POLIAMOR: ANÁLISE DO POLIAMOR À LUZ DA PERSPECTIVA DO PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE E A AUSÊNCIA DA PREDISPOSIÇÃO JURÍDICA

REGISTRO DOI:10.69849/revistaft/th102411231255


Pryscya Lohhana Alves Saraiva Leão1


RESUMO

O presente artigo aborda o conceito de poliamor no contexto das relações afetivas e sua relação com o direito, sendo analisado sob a ótica do Princípio da Afetividade, que reconhece a importância dos laços afetivos como fundamento das relações familiares, sendo o objetivo principal avaliar a possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade, visto a ausência de predisposição jurídica acerca do tema. Trata-se de um tema emergente e polêmico que tem dividido opiniões não apenas no domínio jurídico, mas também socialmente, além de levantar questões culturais e éticas. Na primeira parte, será abordado a mutabilidade do conceito de família, sendo em seguida argumentado a carência de predisposição jurídica levantando questionamentos e insegurança sobre direitos dos quais foram debatidos junto ao Superior Tribunal Federal, mas que não estão claramente definidos de forma legislativa. Por fim, o estudo oferece um quadro acerca do futuro do direito de família em relação ao poliamor. Os objetivos específicos deste estudo são analisar as transformações familiares, destacando o rompimento com o patriarcalismo promovido pela Constituição Federal de 1988 e posteriormente, com o avanço do Código Civil de 2002. Portanto, a discussão proposta neste trabalho busca apresentar os potenciais benefícios sociais decorrentes do reconhecimento jurisprudencial da possibilidade da formação de famílias poliafetivas.

Palavras-chave: Poliamor. Princípio da Afetividade. Constituição. Direito de Família.

ABSTRACT

This article addresses the concept of polyamory in the context of affective relationships and its relationship with law, being analyzed from the perspective of the Principle of Affectivity, which recognizes the importance of affective bonds as the foundation of family relationships, with the main objective being to evaluate the possibility the recognition of multiparenthood, given the lack of legal predisposition on the topic. This is an emerging and controversial topic that has divided opinions not only in the legal field, but also socially, in addition to raising cultural and ethical questions. In the first part, the mutability of the concept of family will be addressed, and then the lack of legal predisposition will be argued, raising questions and insecurity about rights that have been debated before the Federal Superior Court, but which are not clearly defined legislatively. Finally, the study offers a framework for the future of family law in relation to polyamory. The specific objectives of this study are to analyze family transformations, highlighting the break with patriarchy promoted by the Federal Constitution of 1988 and later, with the advancement of the Civil Code of 2002. Therefore, the discussion proposed in this work seeks to present the potential social benefits arising from the jurisprudential recognition of the possibility of forming polyaffective families.

Keywords: Polyamory. Principle of Affectivity. Constitutional. Family Law.

1 INTRODUÇÃO

O reconhecimento jurídico do poliamor tem ganhado destaque na doutrina e está progressivamente sendo debatido no âmbito do poder judiciário. Inicialmente, se torna essencial compreender o conceito de poliamor para, em seguida, argumentar a favor de seu reconhecimento jurídico, fundamentado neste trabalho acadêmico com um dos princípios derivados da Constituição da República, o Princípio da Afetividade. O poliamor emerge em um contexto no qual a monogamia não é mais vista como um requisito indispensável para as relações amorosas, levando a uma nova percepção e abordagem do amor.

Este artigo tem como objetivo analisar o olhar do entendimento do Superior Tribunal Federal acerca da multiparentalidade, desde que comprovado a afetividade, sendo levado em consideração o Princípio da Afetividade. A pesquisa se baseia em uma revisão da jurisprudência junto ao Conselho Nacional de Justiça, para o contexto real da vivência de diversas famílias poliafetivas, baseando-se na literatura de respeitáveis autores para o presente estudo, como Claudia Maria da Silva, Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas, Maria Berenice Dias, além de dados fornecidos pela Jurisprudência Pátria e entendimentos do Conselho Nacional de Justiça.

A escolha do tema justifica-se pela relevância social e jurídica da matéria, uma vez que devido às mudanças sociais, torna-se cada vez mais ordinário a existência de famílias poliafetivas no âmbito da pretensão de vínculos para reconhecer a paternidade e maternidade socioafetiva. O estudo visa fornecer uma visão crítica sobre a existência de impedimentos para realização do reconhecimento dos vínculos familiares socioafetivos e propor uma nova visão acerca das mudanças existentes dentro do Judiciário.

2 MUTABILIDADE E CONTEXTO HISTÓRICO DO CONCEITO DE FAMÍLIA NO BRASIL

A origem da família remonta a um passado tão vasto que é difícil determinar sua extensão exata. Contudo, é fascinante perceber que, desde o início, os seres vivos formam laços entre si. Essa conexão pode ser atribuída tanto ao instinto de perpetuação da espécie quanto ao desejo de não viver em solidão. Muitas vezes, a ideia de que a verdadeira felicidade reside em compartilhar a vida com alguém se torna algo natural.

De acordo com Morgan (1877, p. 49), diferentes partes da sociedade humana evoluíram em distintos estágios: algumas em um estado primitivo, outras em um estado mais avançado de barbarismo, e outras já em um nível de civilização. Essa visão nos leva a concluir que a humanidade começou em uma forma simples e, ao longo do tempo, progrediu, acumulando conhecimento, realizando experimentos, e fazendo invenções e descobertas. E este continua argumentando que uma tribo começou a se dividir em outras, e assim sucessivamente, sendo essa organização totalmente adequada às condições sociais, que passam a não ser mais um agrupamento espontâneo capaz de dirimir conflitos.

Com o decorrer das evoluções naturais e sociais, o modelo familiar do qual disseminou-se de forma espontânea fora o patriarcal. A família patriarcal detém hierarquia, com o predomínio da figura do homem, constituída essencialmente por laços biológicos e busca o poder econômico, político e religioso, tendo como função primordial a manutenção do status social. Cláudia Maria da Silva (2004, p. 128-129), retrata com exímia propriedade a característica da estrutura familiar patriarcal, realçando seu caráter salutar:

O elo familiar era voltado apenas para a coexistência, sendo imperioso para o “chefe” a manutenção da família como espelho de seu poder, como condutor ao êxito nas esferas política e econômica. Os casamentos e as filiações não se fundavam no afeto, mas na necessidade de exteriorização do poder, ao lado – e com a mesma conotação e relevância – da propriedade.

[…]

Os vínculos jurídicos e os laços de sangue eram mais importantes e prevaleciam sobre os vínculos de amor. O afeto, na concepção da família patriarcal, era presumido, tanto na formação do vínculo matrimonial e na sua manutenção como nas relações entre pais e filhos. Quando presente, não era exteriorizado, o que levava a uma convivência formal, distante, solene, substanciada quase que unicamente numa coexistência diária.

A evolução das leis reflete as demandas mais urgentes da sociedade em diferentes períodos. Percebe-se que a Constituição Federal de 1824 não abordava a questão da família de forma significativa, limitando-se a reconhecer apenas o casamento religioso. Naquela época, a Igreja tinha um papel central na definição dos valores morais, não aceitando nenhum tipo de união que não fosse aquele que ela mesma legitimava.

As famílias brasileiras possuem fortes influências do direito romano e canônico, as primeiras sociedades primitivas político-organizadas. As famílias romanas eram definidas pelo conjunto de pessoas e seus respectivos bens submetidos a um chefe (pater famílias), com finalidade religiosa, política e econômica. Desta forma, até 1891, as pessoas apenas poderiam se unir em constituição familiar através do casamento religioso. A primeira Constituição Federal da qual fora se preocupar em delinear a família em seu contexto, foi a de 1934. Nesta, houve a determinação da indissolubilidade do casamento, ressalvando somente os casos de anulação ou desquite. Com os anos passando, a Constituição Federal de 1937 nos trouxe a igualdade entre os filhos considerados legítimos e naturais. Em contrapartida, a emenda constitucional de 1969, que manteve a indissolubilidade do casamento, foi modificada com o advento da Lei do Divórcio de 1977, passando-se a haver aceitação de novos paradigmas.

Nessa esteira, percebe-se que com o passar dos anos, o Brasil abrangeu novas resoluções para com o padrão familiar, sendo no Código Civil de 2002 reconhecidos e percebidos a ruptura do entendimento de família na atual geração. O reconhecimento da União Estável como entidade familiar, relações paterno-filiais e dentre outras, fizeram com que o Judiciário entendesse que há novas formas de constituições familiares sem sequer existirem vínculos biológicos/ sanguíneos.

A Carta Magna adotou um conceito amplo, que engloba uniões fora do casamento, desde que haja vínculos de continuidade e permanência. O texto constitucional entende a família como base da sociedade e, por isso, merece proteção do Estado.

Segundo o ministro Mauro Campbell Marques, relator, tanto a Constituição de 1988 quanto do Código Civil de 2002, transformaram o conceito de família e deram relevância ao princípio da afetividade, por meio do qual “o escopo precípuo da família passa a ser a solidariedade social para a realização das condições necessárias ao aperfeiçoamento e ao progresso humano, regido o núcleo familiar pelo afeto”.

Portanto, torna-se perceptível a mutabilidade, muita das vezes necessária, da qual o Direito Brasileiro tivera que passar para se reinventar e incluir as novas construções familiares, das quais são moldadas por princípios basilares como a afetividade.

2.1Surgimento do poliamor e sua evolução histórica no brasil

Etimologicamente a palavra “poliamor” se divide na expressão grega poli, correspondente a muito ou vário e amore que, no latim, significa amor (Viegas, 2017, p. 236). O poliamor refere-se à possibilidade de existir mais de um vínculo amoroso simultaneamente, abrangendo tanto as uniões poliafetivas, onde há uma única relação com vários participantes que se relacionam entre si, quanto às uniões simultâneas, onde há relacionamentos paralelos nos quais um dos membros participa de todos, com o consentimento dos demais envolvidos.

Caso haja estabilidade nos relacionamentos paralelos ou em uma única relação com múltiplos participantes, e a intenção de formar uma família esteja presente, o poliamor pode dar origem a famílias simultâneas ou poliafetivas.

Analisando os primórdios da antiguidade partindo de um padrão monogâmico de entidade familiar, Maria Berenice Dias procura melhor esclarecer tal conceito quando diz:

A família consagrada pela lei tinha um modelo conservador, era uma entidade matrimonializada, patriarcal, patrimonializada, indissolúvel, hierarquizada e heterossexual. Pelas regras do Código Civil de 1916, os relacionamentos que fugissem ao molde legal, além de não adquirirem visibilidade, estavam sujeitos a severas sanções”. (Dias, 2016, p.02).

Partindo desse viés entende-se que inserir o poliamor na sociedade brasileira não é uma tarefa fácil, porque este representa para muitos que não são adeptos, como uma afronta aos padrões monogâmicos já existentes no ordenamento jurídico brasileiro.

Muitos acontecimentos nas décadas passadas serviram como base para o surgimento do poliamor em outros países e posteriormente no Brasil, e um destes acontecimentos foi a revolução sexual na década de 1960, que embasava como foco o rompimento entre as uniões heterossexuais e monogâmicas, que representava o modelo tradicional. No entanto, a liberdade sexual era uma das principais correntes defendidas por esses movimentos que marcaram a década de 1960 até os anos 1970.

A revolução sexual da década de 1960 envolvendo os relacionamentos monogâmicos em não monogâmicos foi marcada por um forte discurso opositor aos padrões tradicionais de relacionamentos. É o que mostra a fala de Duina Porto:

A apologia ao amor livre e o questionamento a condutas e valores tradicionais opressores como a imposição do casamento heterossexual, patriarcal e monogâmica-por muito tempo indissolúvel-caracterizam a revolução sexual, o movimento hippie e outros movimentos que estão diretamente conectados ao ideal poliamorista. (Porto, 2017, p.187).

O modelo de família monogâmica da época passada é bem retratado por Engels, quando afirma:

A família monogâmica diferencia-se do matrimônio sindiásmico por uma solidez muito maior dos laços conjugais, que já não podem ser rompidos por ato de qualquer das partes. Agora, como regra, só o homem pode rompê-los e repudiar sua mulher”. (Engels, 1984, p. 66)

Observa-se que a fidelidade nos relacionamentos monogâmicos daquela época era seguida apenas pelas mulheres, os homens podiam galgar outros relacionamentos, desde que a sua esposa não soubesse, e esse modelo de relacionamento assemelha-se um pouco com o poliamor. O entendimento seria que essa relação não representasse uma novidade na sociedade brasileira. Há uma diferença, pois, quando se fala do poliamor, está se tratando de um grupo familiar que subsiste com o consentimento mútuo de todos os envolvidos na relação, com o objetivo de constituir família e, não necessariamente para aumentar o núcleo familiar, como acontecia no passado.

Para melhor compreensão dos relacionamentos poliafetivos, faz necessário entender o surgimento fora do Brasil, que segundo Mariana Araguaia (2023, p.1) que trata de forma breve desse surgimento, quando afirma que “o poliamor é um movimento que surgiu na década de 80 nos Estados Unidos, com a sua primeira conferência internacional sendo realizada em 2005, em Hamburgo na Alemanha”. A partir daí, outros movimentos foram surgindo até os primeiros casos serem evidenciados também no Brasil.

Existem alguns argumentos no sentido de que o número de relacionamentos poliafetivos no Brasil ainda é mínimo, motivo que supostamente justificaria a insuficiência da sua regulamentação ou reconhecimento jurídico. Duina Porto (2022, p. 238) faz um complemento com base nas pesquisas realizadas, dizendo:

No Brasil, não há ainda estudos etnográficos ou científicos conclusivos sobre as famílias poliamorosas, mas os registros cartorários das uniões polioafetivas sinalizam a existência dessas morfologias familiares, servindo de inspiração e norte para a presente investigação. (Porto, 2022, p. 238)

Não se pode negar que existem muitas pessoas adeptas desses relacionamentos, mas a compreensão é que independentemente da quantidade de pessoas no cenário atual vivendo em poliamor, todas são merecedoras de proteção jurídica por parte do Estado. E para melhor entendimento, o artigo 226 da Constituição Federal, no § 8º, ressalta ainda que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito das suas relações”.

É percebido neste contexto que a CF/88 não elenca um rol taxativo, acredita-se justamente que esse fato se dar em virtude da variedade do modelo de entidade familiar no cenário brasileiro. Desta forma, tenta verificar a disposição jurídica para a proteção das pessoas e das famílias que já regidas no regime pluralista do amor.

3 DISPOSIÇÃO JURÍDICA

O Direito brasileiro não incentiva, mas também não proíbe o poliamor. A legislação prevê que o casamento é uma instituição monogâmica, permitindo apenas um casamento por pessoa. Caso a pessoa decida morar, na mesma casa, com duas ou mais pessoas e viver um relacionamento amoroso, todos são livres para tal, não existe impedimento na legislação Brasileira.  

Mas onde estão as regras para dar alguma segurança jurídica para essas famílias? Se uma dessas pessoas que fazem parte de um poliamor sair dessa união, ou vier a óbito, como ficarão as outras referente a direitos e deveres que, eventualmente, teriam? Com isso, o reconhecimento e cuidado jurídico do poliamor pode ser possível, considerando alguns aspectos constitucionais como a pluralidade familiar e a boa-fé objetiva. Enquanto não há amparo legal para as relações poliamorosas, os envolvidos buscam o reconhecimento da família por meio das vias judiciais.

A jurisdição, atualmente, norteia o andamento e o enquadramento familiar daqueles que possuem uma vivência poliafetiva, sendo uma fonte principal para o debate da matéria, as lacunas judiciais cuidam com zelo daqueles que precisam de amparo, e neste caso, das famílias poliafetivas.

3.1 Poliamor ao olhar da jurisdição

No decorrer da pesquisa, muito descreveu-se acerca da ausência de legislação, tanto proibindo, quanto regulamentando as famílias provenientes de relações poliamorosas. Sabe-se que a jurisprudência é base norteadora para essas famílias, uma vez que com isso tentam preencher lacunas existentes pela ausência da legislação.

Diante da valorização da jurisdição enquanto fonte jurídica, a jurisprudência, enquanto sucessão de decisões uniformes e reiteradas dos tribunais ou elaboração Súmulas Vinculantes, passa a ser considerada uma outra forma de dizer o direito. No entanto, enfatiza-se que alterações sociais com o decorrer do tempo, também podem promover modificações nos entendimentos jurisprudenciais (KNOBLAUCH, 2018, p. 142).

O problema manifesta-se, no entanto, quando se percebe que o acervo jurisprudencial tratando de questões relacionadas às famílias poliamorosas também é escasso. Desse modo, far-se-á necessário, em diversos momentos do presente tópico, realizar interpretações dos julgados por analogia.

Para o reconhecimento mais amplo da pluralidade das formações familiares, menciona-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277, do Distrito Federal, cuja decisão enfatizou o avanço da Constituição da República Federativa do Brasil do seguinte modo:

TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃOREDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-políticocultural.Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas. (STF. ADI 4.277/DF. Pleno. Min. Ayres Britto. j. 05.05.2011. DJe 14.10.2011.).

Todavia, embora seja possível pontuar alguns avanços no entendimento jurisprudencial referente ao reconhecimento de modelos de instituições familiares diversos do tradicionalmente imposto, no que tange ao poliamor ainda se evidencia um conservadorismo exacerbado.

 Dias (2006, p.54) afirma que a jurisprudência amplamente majoritária nega a existência desses relacionamentos, não os identificando como união estável. No máximo é invocado o direito societário com o reconhecimento de uma sociedade de fato, partilhando-se os bens adquiridos na sua constância, mediante indispensável prova de participação efetiva para a aquisição patrimonial.

Tavares da Silva afirma em suas teses que nem o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e nem o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecem as uniões poliafetivas, conforme se demonstra no teor das decisões transcritas abaixo:

A Ministra do STJ, Nancy Andrighi, escreve que nossa sociedade apresenta como elemento estrutural a monogamia, logo não pode atenuar o dever de fidelidade. Segunda ela ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve, o juiz, atento às peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade. E continua ao falar que emprestar aos novos arranjos familiares, de uma forma linear, os efeitos jurídicos inerentes à união estável implicaria julgar contra o que dispõe a lei. Logo ela explica que o artigo 1.727 do Código Civil regulou, em sua esfera de abrangência, as relações afetivas não eventuais em que se fazem presentes impedimentos para casar, de forma que só podem constituir concubinato os relacionamentos paralelos a casamento ou união estável pré e coexistente. (STJ, REsp 1.157.273/RN, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi. 18/05/2010)

O STF faz distinção entre união estável para concubinato. Para tal órgão uniões paralelas são classificadas como concubinato, logo não gera efeitos jurídicos. O Ministro Marco Aurélio no Recurso Extraordinário 397.762/BA diz que o Direito é uma verdadeira ciência, logo é impossível confundir união estável com concubinato. Para o Ministro a proteção do Estado à união estável alcança apenas as situações legítimas e nestas não está incluído o concubinato.  O concubinato não se iguala à união estável referida no texto constitucional, no que esta acaba fazendo as vezes, em termos de consequências, do casamento. (STF, RE 397.762/BA, 1ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 3.6.2008).

Desta forma, percebe-se que em um país onde a monogamia é considerada por alguns como um princípio constitucional falar de poliamor seria uma afronta a tal princípio, aos bons costumes e a moral, e no qual tange os entendimentos Jurisprudencial do nosso país, assim, não possuindo predisposição para a proteção das famílias poliafetivas.

3.2 Ausência de proteção jurídica de famílias poliafetivas

A Constituição Federal, em seu artigo 1º, inciso III, estabelece que: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – a dignidade da pessoa humana.”

No artigo 227, a Constituição reforça que: “É dever da família, da sociedade e do Estado garantir à criança, ao adolescente e ao jovem, com prioridade absoluta, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Com isso, verifica-se que a proteção jurídica da família existe, sendo essa assegurada pela Carta Magna de 1988. Entretanto, quando o modelo familiar monogâmico modifica, a legislação torna-se mais prejudicada e menos eficaz.

O posicionamento doutrinário mais comentado na jurisprudência atualmente é o que surge do princípio da afetividade, ou seja, famílias de afeto. De acordo com este novo entendimento, os direitos pessoais superam o princípio da monogamia, e assim, as uniões poliafetivas devem ser reconhecidas como uniões estáveis e amparadas pelo direito família, porém, tal entendimento não é pacificado, assim, causando insegurança jurídica.

O Superior Tribunal de Justiça no decorrer de todos esses anos, não modificou o seu entendimento acerca das uniões plurais o que significa que o posicionamento majoritário é que, em nenhuma circunstância, serão admitidas entidades familiares compostas por mais de duas pessoas.

A jurisprudência formulada 12 48ª Sessão Extraordinária do CNJ expõe:

“PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. UNIÃO ESTÁVEL POLIAFETIVA. ENTIDADE FAMILIAR. RECONHECIMENTO. IMPOSSIBILDADE. FAMÍLIA. CATEGORIA SOCIOCULTURAL. IMATURIDADE SOCIAL DA UNIÃO POLIAFETIVA COMO FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DE VONTADE. INAPTIDÃO PARA CRIAR ENTE SOCIAL. MONOGAMIA. ELEMENTO ESTRUTURAL DA SOCIEDADE. ESCRITURA PÚBLICA DECLARATÓRIA DE UNIÃO POLIAFETIVA. LAVRATURA. VEDAÇÃO. 1. A Constituição Federal de 1988 assegura à família a especial proteção do Estado, abarcando suas diferentes formas e arranjos e respeitando a diversidade das constituições familiares, sem hierarquizá-las. 2. A família é um fenômeno social e cultural com aspectos antropológico, social e jurídico que refletem a sociedade de seu tempo e lugar. As formas de união afetiva conjugal – tanto as “matrimonializadas” quanto as “não matrimonializadas” – são produto social e cultural, pois são reconhecidas como instituição familiar de acordo com as regras e costumes da sociedade em que estiverem inseridas. 3. A alteração jurídico-social começa no mundo dos fatos e é incorporada pelo direito de forma gradual, uma vez que a mudança cultural surge primeiro e a alteração legislativa vem depois, regulando os direitos advindos das novas conformações sociais sobrevindas dos costumes. 4. A relação “poliamorosa” configura-se pelo relacionamento múltiplo e simultâneo de três ou mais pessoas e é tema praticamente ausente da vida social, pouco debatido na comunidade jurídica e com dificuldades de definição clara em razão do grande número de experiências possíveis para os relacionamentos. 5. Apesar da ausência de sistematização dos conceitos, a “união poliafetiva” – descrita nas escrituras públicas como “modelo de união afetiva múltipla, conjunta e simultânea” – parece ser uma espécie do gênero “poliamor”. 6. Os grupos familiares reconhecidos no Brasil são aqueles incorporados aos costumes e à vivência do brasileiro e a aceitação social do “poliafeto” importa para o tratamento jurídico da pretensa família “poliafetiva”. 7. A diversidade de experiências e a falta de amadurecimento do debate inabilita o “poliafeto” como instituidor de entidade familiar no atual estágio da sociedade e da compreensão jurisprudencial. Uniões formadas por mais de dois cônjuges sofrem forte repulsa social e os poucos casos existentes no país não refletem a posição da sociedade acerca do tema; consequentemente, a situação não representa alteração social hábil a modificar o mundo jurídico. 8. A sociedade brasileira não incorporou a “união poliafetiva” como forma de constituição de família, o que dificulta a concessão de status tão importante a essa modalidade de relacionamento, que ainda carece de maturação. Situações pontuais e casuísticas que ainda não foramsubmetidas ao necessário amadurecimento no seio da sociedade não possuem aptidão para ser reconhecidas como entidade familiar. 9. Futuramente, caso haja o amadurecimento da “união poliafetiva” como entidade familiar na sociedade brasileira, a matéria pode ser disciplinada por lei destinada a tratar das suas especificidades, pois a) as regras que regulam relacionamentos monogâmicos não são hábeis a regular a vida amorosa “poliafetiva”, que é mais complexa e sujeita a conflitos em razão da maior quantidade de vínculos; e b) existem consequências jurídicas que envolvem terceiros alheios à convivência, transcendendo o subjetivismo amoroso e a vontade dos envolvidos. 10. A escritura pública declaratória é o instrumento pelo qual o tabelião dá contorno jurídico à manifestação da vontade do declarante, cujo conteúdo deve ser lícito, uma vez que situações contrárias à lei não podem ser objeto desse ato notarial. 11. A sociedade brasileira tem a monogamia como elemento estrutural e os tribunais repelem relacionamentos que apresentam paralelismo afetivo, o que limita a autonomia da vontade das partes e veda a lavratura de escritura pública que tenha por objeto a união “poliafetiva”. 12. O fato de os declarantes afirmarem seu comprometimento uns como os outros perante o tabelião não faz surgir nova modalidade familiar e a posse da escritura pública não gera efeitos de Direito de Família para os envolvidos. 13. Pedido de providências julgado procedente.” (Pedido de Providências nº 0001459-08.2016.2.00.0000. 48ª Sessão Extraordinária do CNJ. Relator Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA. Data de Julgamento: 26.06.2018) (grifos nossos)

À vista disso, nota-se que ainda há muito o que ser feito para a proteção familiar poliafetiva ser eficaz, haja vista que independente dos debates árduos e da luta de diversas famílias no judiciário para conseguirem existir aos olhos da lei, o arcabouço jurisprudencial demonstra a lentidão e ineficácia na proteção dessas famílias.

Portanto, torna-se visível a ausência de proteção jurídica das famílias poliafetivas no Brasil, sendo evidenciada a existência de uma lacuna importante no ordenamento jurídico, qu e ainda se mantém centrado no modelo tradicional de família nuclear. É urgente que o ordenamento jurídico avance no reconhecimento da pluralidade das formas familiares, assegurando direitos como herança, segurança social e outras prerrogativas essenciais, para garantir a dignidade e a igualdade de todos os membros dessas famílias. A falta de regulamentação explícita é um obstáculo para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva, que respeite a diversidade afetiva e relacional presente na realidade contemporânea.

4 Considerações finais

O intuito deste Trabalho de Conclusão de Curso foi, essencialmente, o de definir as uniões poliafetivas dentro do espectro do Direito, buscando, dessa forma, demonstrar a ausência de ordenamento jurídico das famílias formadas por meio destas uniões.

O poliamor, portanto, constitui-se como uma realidade social no âmbito do Direito de Família, ou, de maneira mais abrangente, no Direito das Famílias, conforme corretamente apontado por Gagliano e Pamplona Filho (2014). Isso ocorre independentemente do reconhecimento jurídico formal no ordenamento brasileiro, com a matéria sendo reconhecida e regulamentada como uma realidade presente no campo jurídico.

A promulgação da Constituição Federal de 1988 fora sem sombra de dúvidas o grande marco para a quebra de preconceitos sociais, onde a multiplicidade e complexidade das entidades familiares foram reconhecidas em suas variadas possibilidades, dando assim maior visibilidade ao princípio da afetividade, como norteador e indispensável ao reconhecimento da unidade familiar. Contudo, ainda parte da doutrina conservadora ver o poliamor uma violação à moral, aos bons costumes e à fidelidade que exige o casamento, o que não é verídico, vez que a base de tal instituto é o consenso entre os envolvidos no relacionamento.

A única forma de garantir a especial proteção à família no atual contexto social, é através da proteção dos preceitos constitucionais que a fundamentam. Nesse espectro, a fim de resguardar o direito dos cidadãos à igualdade, à dignidade, à solidariedade, à afetividade, à autonomia e à liberdade – no Direito de Família reconhecida na liberdade de constituir famílias e na liberdade de orientação sexual -, é garantindo-lhes o poder da escolha dos meios de constituir essas famílias, bem como da forma das mesmas.

Ressalte-se, que não há no ordenamento jurídico nenhuma forma de vedação de multiplicidade de parceiros na formação de uma unidade familiar, o que há de fato é a vedação à contração de mais de um casamento ao mesmo tempo. O que se pretende demonstrar, é que não vivenciamos uma crise moral no seio familiar, mas um momento de enfrentamento corajoso das pessoas de reconhecerem sua própria condição, trata-se, pois, de uma expansão da entidade familiar, capaz de produzir todos os efeitos que uma família tradicional possa criar.

5 REFERÊNCIAS

ARAGUAIA, Mariana. “Poliamor”; Brasil Escola. Disponível em:. Acesso em 30 de março de 2023

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. https://www.plano.gov.br /c/constante/com. Acesso em: 06 de nov. 2024.

BRASIL. Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977. Dispõe sobre a união estável. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6515.htm. Acesso em: 29 out. 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277/DF. Pleno. Relator: Min. Aires Britto. Julgamento: 05 maio 2011. Diário da Justiça Eletrônico, 14 out. 2011.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 397.762/BA. 1ª Turma. Relator: Min. Marco Aurélio. Julgamento: 3 jun. 2008. Diário da Justiça, 3 jun. 2008.

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FILIAÇ1 Graduando do Curso de Direito do Centro Universitário Fametro. E-mail: lohhannasaraivaa@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0009-0002-2225-7299ÃO