URBAN PLANNING AND SOCIO-ENVIRONMENTAL CONTRADICTIONS: A CRITICAL ANALYSIS OF THE PARTICIPATORY MASTER PLAN OF IGARASSU (2024)
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202508061211
Marcelo Francisco dos Santos1
RESUMO
Este artigo realiza uma análise crítica do Plano Diretor Participativo de Igarassu (2024), à luz dos princípios da justiça socioambiental, do direito à cidade e da geografia crítica. Partindo da hipótese de que o plano, embora avance em termos normativos e discursivos, mantém contradições estruturais do urbanismo brasileiro, a pesquisa investiga suas omissões em relação às áreas urbanas vulnerabilizadas e à gestão de riscos ambientais. A metodologia adotada baseia-se na análise documental crítica, com foco nos instrumentos de zoneamento, regularização fundiária e participação social. Os resultados revelam a persistência de desigualdades socioespaciais, racismo ambiental e exclusão deliberativa, com ausência de estratégias para territórios como o Loteamento Agamenon e a Cortegada, mesmo diante de mapeamentos técnicos que indicam alto risco. A falta de articulação metropolitana e de mecanismos efetivos de escuta popular reforça uma lógica tecnocrática e seletiva de planejamento. Conclui-se que, para se tornar um instrumento de transformação urbana, o plano precisa romper com a abordagem normativa convencional e adotar políticas concretas de reparação territorial, participação vinculante e integração regional, comprometidas com a justiça espacial e a equidade.
Palavras-chave: Planejamento urbano; Justiça socioambiental; Racismo ambiental; Direito à cidade.
ABSTRACT
This article presents a critical analysis of the Participatory Master Plan of Igarassu (2024), in light of the principles of socio-environmental justice, the right to the city, and critical geography. Based on the hypothesis that the plan, despite advancing in normative and discursive terms, still reproduces structural contradictions of Brazilian urbanism, the research investigates its omissions regarding vulnerable urban areas and environmental risk management. The adopted methodology is based on critical document analysis, focusing on zoning instruments, land regularization, and social participation. The results reveal the persistence of socio-spatial inequalities, environmental racism, and deliberative exclusion, with a lack of strategies for territories such as Loteamento Agamenon and Cortegada, even in the face of technical mappings indicating high risk. The absence of metropolitan coordination and effective mechanisms for community engagement reinforces a technocratic and selective planning logic. It is concluded that, to become an instrument of urban transformation, the plan must break with conventional normative approaches and adopt concrete policies of territorial reparation, binding participation, and regional integration, committed to spatial justice and equity.
Keywords: Urban planning; Socio-environmental justice; Environmental racism; Right to the city.
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, a urbanização brasileira tem sido marcada por um processo contraditório, no qual o crescimento físico das cidades não foi acompanhado por uma distribuição equitativa de infraestrutura, serviços e oportunidades. Em cidades médias e metropolitanas, como Igarassu (PE), os desafios urbanos assumem contornos ainda mais complexos, revelando a permanência de desigualdades socioespaciais que se entrelaçam com heranças históricas de exclusão, racismo ambiental e precarização territorial. Diante desse cenário, os instrumentos de planejamento urbano, especialmente os planos diretores, assumem um papel estratégico: mais do que regulamentar o uso do solo, eles devem ser capazes de enfrentar as múltiplas camadas de injustiça acumuladas nos territórios.
O Plano Diretor Participativo de Igarassu (2024) insere-se nesse contexto como um marco legal que busca integrar princípios de sustentabilidade, justiça social e gestão democrática ao ordenamento territorial local. Trata-se de um documento que, ao menos em sua dimensão normativa, procura alinhar o município às diretrizes contemporâneas de desenvolvimento urbano sustentável e inclusivo.
Contudo, este artigo parte da hipótese de que, embora o plano avance em termos de linguagem e institucionalização de dispositivos progressistas, ele ainda reproduz os limites estruturais do urbanismo brasileiro. Persistem lacunas importantes no enfrentamento das desigualdades já consolidadas, sobretudo nas periferias urbanas invisibilizadas pelas políticas públicas. A ausência de estratégias robustas de reparação territorial, justiça ambiental e participação social efetiva revela uma dissonância entre o discurso normativo e a realidade vivida.
A partir de uma perspectiva crítica e geograficamente situada, propõe-se aqui uma análise do Plano Diretor de Igarassu que vá além da letra da lei, explorando suas contradições, omissões e potencialidades. Mais do que examinar os instrumentos técnicos previstos, busca-se compreender como, e se, o plano contribui para construir uma cidade mais justa, resiliente e inclusiva, em sintonia com o direito à cidade e os princípios da justiça socioambiental.
REFERENCIAL TEÓRICO
O debate contemporâneo sobre planejamento urbano e justiça socioambiental revela um campo profundamente marcado por tensões entre a racionalidade técnico-normativa e as múltiplas expressões da desigualdade territorial. A produção do espaço urbano, longe de ser um processo neutro ou meramente técnico, está imbricada em relações de poder, disputas econômicas e dinâmicas históricas de exclusão. Como bem afirma Harvey (2005), o urbanismo moderno frequentemente opera sob a lógica da acumulação por espoliação, na qual o capital se apropria de territórios urbanos por meio de políticas estatais que naturalizam o deslocamento de populações pobres para áreas periféricas e ambientalmente degradadas, reforçando ciclos de vulnerabilidade.
Neste mesmo campo teórico, Lefebvre (1991) introduz a noção de direito à cidade como uma reivindicação coletiva e transformadora, que extrapola o acesso formal à moradia ou aos serviços públicos. Para Lefebvre, trata-se de um direito à apropriação ativa e à reinvenção do espaço urbano por aqueles que nele vivem e o produzem cotidianamente. O direito à cidade, portanto, implica uma ruptura com a lógica hegemônica da cidade como mercadoria, afirmando-a como campo de expressão democrática, cultural e política.
No contexto brasileiro, as contribuições de Rolnik (2022) são fundamentais para compreender os mecanismos contemporâneos do que a autora denomina de urbanismo de exclusão. Ela denuncia o uso seletivo da legislação urbanística, que ao invés de garantir inclusão e equidade, muitas vezes atua como instrumento de regulação repressiva, impondo limites aos mais pobres enquanto flexibiliza regras para grandes empreendimentos privados. Essa seletividade normativa, como também alerta Bullard (2000), aprofunda os efeitos do racismo ambiental estrutural, ao permitir que populações negras e periféricas sejam desproporcionalmente expostas a riscos ambientais, enchentes, poluição e ausência de infraestrutura básica.
Tais reflexões são atualizadas e tensionadas por pensadores contemporâneos que articulam o planejamento urbano à perspectiva da justiça territorial. A urbanista De Paula (2020), por exemplo, propõe um planejamento antirracista, orientado pela reparação histórica e pela redistribuição ativa de recursos e investimentos nos territórios marginalizados. Para ela, não se trata apenas de incluir populações periféricas nos planos urbanos existentes, mas de reconfigurar as próprias estruturas do planejamento a partir das experiências e demandas desses sujeitos historicamente silenciados.
Complementarmente, Vainer (2019) critica o modelo tecnocrático de planejamento, que tende a privilegiar soluções padronizadas, descoladas das realidades vividas. Vainer defende uma abordagem mais dialógica, insurgente e participativa, na qual os planos urbanos sejam construídos com base em processos coletivos, articulando saberes populares, técnicos e acadêmicos em prol da justiça espacial.
À luz desse referencial teórico, compreende-se que a análise de um plano diretor não pode restringir-se ao exame de sua coerência técnica ou legal. É fundamental problematizar suas omissões, contradições e impactos concretos sobre os territórios historicamente vulnerabilizados, especialmente no contexto das cidades brasileiras marcadas por profundas desigualdades. Um plano diretor só se torna instrumento de transformação quando confronta os legados da injustiça territorial e se compromete com a construção de cidades mais inclusivas, sustentáveis e democráticas.
METODOLOGIA
Este estudo fundamenta-se em uma abordagem qualitativa, de natureza exploratória e analítico-crítica, que busca compreender os sentidos, contradições e implicações socioespaciais presentes no discurso normativo do Plano Diretor Participativo de Igarassu (Lei Complementar nº 156/2024). Tal abordagem revela-se adequada para captar as nuances e complexidades dos instrumentos de planejamento urbano, especialmente quando estes são confrontados com a realidade concreta dos territórios vulnerabilizados.
O método utilizado foi o da análise documental crítica, que, segundo Cellard (2008), permite não apenas identificar o conteúdo explícito dos documentos analisados, mas também interpretar os silêncios, omissões e interesses subjacentes à sua formulação. Nesse sentido, o corpus principal da pesquisa consistiu no texto integral do Plano Diretor, com especial atenção às seções relativas ao zoneamento ambiental, à função social da propriedade urbana, aos instrumentos de regularização fundiária, às Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e aos mecanismos de participação popular.
Além da análise do plano em si, foram utilizados dados secundários que contribuíram para contextualizar o cenário territorial do município de Igarassu, incluindo diagnósticos socioambientais regionais, relatórios técnicos do poder público, registros cartográficos e estudos acadêmicos anteriores. A triangulação desses dados permitiu confrontar o conteúdo normativo com a realidade empírica das periferias urbanas da cidade, especialmente em áreas como Loteamento Agamenon, Tabatinga, Cortegada dentre outras, que têm sido historicamente marcadas por exclusão, alagamentos e déficit de infraestrutura.
A interpretação dos dados foi orientada por categorias analíticas da geografia crítica e da justiça ambiental, destacando conceitos como produção social do espaço, racismo ambiental, direito à cidade e urbanismo excludente. Essa base teórica permitiu uma leitura situada, que considera os conflitos, as desigualdades e os jogos de poder que atravessam a formulação e a aplicação dos instrumentos de planejamento urbano no Brasil.
Optou-se por uma metodologia que não se limita à descrição técnica do plano, mas que busca revelar suas implicações políticas e territoriais, analisando em que medida ele avança, ou não, na construção de um ordenamento urbano mais justo, inclusivo e comprometido com a reparação das desigualdades socioambientais historicamente cristalizadas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise crítica do Plano Diretor Participativo de Igarassu (2024) revela uma ambivalência estrutural entre os avanços normativos e a persistência de desigualdades socioespaciais que historicamente moldam o território do município. Embora o Plano introduza inovações em consonância com diretrizes internacionais de sustentabilidade e justiça urbana, a sua aplicação concreta ainda esbarra em limites estruturais e políticos.
Avanços Normativos: Entre a Regulação e a Potencialidade
Do ponto de vista normativo, o Plano Diretor estabelece uma série de diretrizes que apontam para um novo paradigma de ordenamento territorial. A incorporação da gestão democrática e do princípio da função social da propriedade (Art. 4º) alinha-se com os fundamentos da Reforma Urbana, dando ênfase à participação social e à redistribuição do espaço urbano. Instrumentos como as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e a Cota de Solidariedade (Art. 87) demonstram um esforço em promover justiça socioespacial, direcionando investimentos para a habitação de interesse social.
O macrozoneamento ecológico, por sua vez, propõe uma organização territorial que busca harmonizar crescimento urbano e proteção ambiental. A delimitação da Macrozona do Ambiente Natural (MAN) e da Macrozona do Ambiente Construído (MAC) revela uma tentativa de conter a expansão urbana desordenada e preservar ecossistemas estratégicos como manguezais, zonas estuarinas e a Mata Atlântica.
Entretanto, conforme destaca Lefebvre (1991), o direito à cidade não se realiza apenas pela formalização de instrumentos legais, mas pela apropriação concreta dos espaços urbanos pelas populações que neles vivem. A presença de zonas como as Zonas de Proteção Permanente (ZPAP) e Zonas de Reestruturação (ZRPA) reforça a tecnicização da política urbana, muitas vezes dissociada das demandas reais das comunidades.
Contradições Territoriais e Omissões Críticas
Apesar das conquistas normativas, o Plano padece de omissões significativas que revelam a persistência de uma lógica excludente no planejamento urbano. Comunidades historicamente afetadas por inundações e precariedade, como o Loteamento Agamenon, a localidade da Cortegada, dentre outros, não são contempladas com políticas específicas de requalificação urbana, drenagem ou reassentamento digno. Essa omissão reforça o que Harvey (2005) chama de acumulação por espoliação, perpetuando a marginalização de populações empobrecidas que habitam áreas ambientalmente degradadas.
Para ilustrar essas contradições, o quadro a seguir apresenta uma análise comparativa entre as previsões normativas do Plano Diretor e as condições socioambientais observadas em algumas das áreas mais adensadas do município.
Quadro 1: Plano Diretor x condições socioambientais observadas
Área/Bairro | Previsão no Plano Diretor | Condições Reais Observadas | Lacunas Identificadas |
Loteamento Agameno; Manancial e Cortegada | Não é mencionado explicitamente no plano. Área inserida em zonas residenciais e ambientalmente sensíveis, sem previsão de intervenções estruturantes. | Alagamentos recorrentes, ausência de sistema de drenagem pluvial, precariedade viária, ocupações irregulares e risco sanitário. | Ausência de políticas específicas de requalificação, drenagem, urbanização ou regularização fundiária para o local. |
Nova Cruz I; Alto do Céu I e Bonfim. | Não é mencionado explicitamente no plano. Área inserida em zonas residenciais e ambientalmente sensíveis, sem previsão de intervenções estruturantes. | Áreas susceptíveis a deslizamentos, precariedade viária, ocupações irregulares | Ausência de políticas específicas de requalificação, contenção, impermeabilização, drenagem, urbanização ou regularização fundiária para o local. |
Fonte: Elaborado pelo autor.
Esse descompasso evidencia uma justiça ambiental seletiva, que legitima a reprodução das desigualdades sob o manto da legalidade, ao negligenciar os territórios historicamente marcados pela precariedade e pela invisibilidade política, a exemplo das áreas acima citadas, que, mesmo enfrentando sérios problemas socioambientais, sequer é abordada de forma específica pelo Plano Diretor.
Nesse contexto, destaca-se o bairro de Areia Branca (Figura 1), classificado pelo relatório de setorização de áreas de risco do Serviço Geológico do Brasil (CPRM) como suscetível a inundações recorrentes, em razão da frequente extravasão do rio Pitanga. Segundo dados da Defesa Civil Municipal, em 2010, os níveis de alagamento chegaram a atingir 1,10 metro de altura (de acordo com o documento). Tal cenário evidencia a histórica ausência de planejamento e controle urbano por parte do poder público, refletida na ocupação desordenada da área, inclusive com edificações construídas sobre o leito do rio, o que agrava ainda mais os riscos hidrológicos e compromete a segurança das populações residentes.
Figura 1: Setorização feita no bairro de Areia Branca
Fonte: CPRM, 2021
Além disso, observa-se uma justiça ambiental seletiva, onde a proteção de áreas naturais convive com a negligência a territórios periféricos marcados por racismo ambiental.
A omissão de estratégias concretas para o enfrentamento dos riscos geológicos e hidrológicos no Plano Diretor de Igarassu (2024) torna-se ainda mais preocupante diante do diagnóstico técnico elaborado pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM), que identificou cinquenta e dois setores de risco alto e muito alto no município, relacionados a deslizamentos de encostas, erosão acelerada e inundações recorrentes em planícies flúvio-marinhas. O estudo evidencia que a expansão urbana desordenada, especialmente sobre encostas sem acompanhamento técnico, intensificou a vulnerabilidade geotécnica e socioambiental da cidade. Foram observadas ravinas, sulcos erosivos, descarte irregular de lixo e conchas, além do despejo inapropriado de esgoto em encostas e canais, o que agrava os processos de instabilização do solo e compromete a segurança habitacional. A ausência de qualquer referência explícita a esse mapeamento no plano diretor revela um descompasso entre o conhecimento técnico produzido e o planejamento normativo municipal, ignorando riscos concretos que afetam milhares de moradores das áreas mais precarizadas. Como alerta Rolnik (2022), essa dissociação entre informação e ação é característica do urbanismo de exclusão, que legitima a negligência institucional sob a aparência de legalidade. Além disso, conforme Bullard (2000), trata-se de um claro caso de racismo ambiental estrutural, uma vez que os riscos recaem de forma desproporcional sobre populações negras, pobres e periféricas, expostas a desastres ambientais sem direito à prevenção nem à reparação territorial.
Limites da Participação e da Escala Metropolitana
Outro ponto crítico diz respeito à fragilidade dos mecanismos de participação social. Embora o Plano mencione audiências públicas e o Conselho da Cidade como espaços de consulta, não há garantias de que as demandas das comunidades mais vulnerabilizadas influenciem, de fato, a alocação de investimentos. Trata-se de uma participação muitas vezes simbólica, que não rompe com a tradição tecnocrática do planejamento urbano. Nesse sentido, como aponta novamente Lefebvre (1991), o verdadeiro direito à cidade exige protagonismo popular e capacidade de decisão, não apenas mecanismos formais de escuta.
Por fim, o Plano falha em integrar o município à escala metropolitana, aspecto crucial em temas como drenagem urbana e mobilidade. A ausência de articulação com políticas regionais da Região Metropolitana do Recife (RMR) compromete a eficácia das ações, revelando um déficit de governança territorial. Em contextos urbanos complexos e interdependentes, como o da RMR, a ausência de planejamento integrado resulta em soluções fragmentadas e ineficazes.
Caminhos Possíveis para um Planejamento Transformador
Os resultados indicam que, para se tornar um instrumento efetivamente transformador, o Plano Diretor de Igarassu deve romper com a lógica de planejamento excludente e normativo. A priorização de áreas críticas já consolidadas, com intervenções sustentáveis e inclusivas, como parques lineares, infraestrutura verde e regularização fundiária integrada, deve ser uma prioridade. A incorporação explícita da justiça racial e ambiental, como propõe Tainá de Paula (2020), é fundamental para corrigir desigualdades estruturais que atravessam o território.
O fortalecimento de mecanismos de participação vinculante, por meio de orçamentos participativos territoriais e conselhos locais com poder deliberativo, é um passo necessário para democratizar o planejamento. Além disso, é imprescindível articular o Plano Diretor com políticas públicas já existentes, como o programa Minha Casa Minha Vida, Entidades e o Pacto pelas Águas de Pernambuco, potencializando recursos e garantindo capilaridade territorial.
CONCLUSÃO
A análise crítica do Plano Diretor Participativo de Igarassu (2024) evidencia importantes avanços em sua formulação normativa, notadamente pela incorporação de princípios como a justiça socioambiental, a gestão democrática e o desenvolvimento urbano sustentável. Contudo, os resultados deste estudo demonstram que tais avanços permanecem, em grande medida, no plano do discurso, não se convertendo integralmente em estratégias eficazes de enfrentamento às desigualdades históricas que marcam o território municipal.
Apesar da previsão de instrumentos como as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e o macrozoneamento ecológico-econômico, o plano apresenta lacunas críticas ao não oferecer soluções concretas para áreas urbanas vulnerabilizadas, como o Loteamento Agamenon e a comunidade da Cortegada, onde persistem deficiências em infraestrutura, drenagem e contenção de riscos ambientais. Soma-se a isso a omissão quanto à incorporação dos setores de risco mapeados pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM), o que evidencia uma desconexão entre o diagnóstico técnico e as propostas de intervenção, reforçando padrões de negligência institucional e racismo ambiental.
Outro ponto sensível diz respeito à participação social. Embora o plano reconheça formalmente a importância da escuta comunitária, os mecanismos previstos demonstram baixa efetividade deliberativa, mantendo a hegemonia de uma lógica tecnocrática que limita o protagonismo das populações mais afetadas pelas desigualdades socioespaciais. Além disso, a ausência de uma abordagem integrada à Região Metropolitana do Recife (RMR) compromete o enfrentamento de desafios regionais compartilhados, como a mobilidade urbana e a gestão de recursos hídricos.
Diante desse cenário, esta pesquisa aponta a necessidade urgente de reorientar o planejamento urbano de Igarassu com base em quatro diretrizes centrais: (i) políticas de reparação territorial, com prioridade para a urbanização de áreas precarizadas e mitigação de riscos; (ii) institucionalização da justiça socioambiental e racial como eixos estruturantes da política urbana; (iii) fortalecimento da participação popular com instrumentos vinculantes e inclusivos; e (iv) articulação metropolitana efetiva, visando uma governança territorial mais integrada e solidária.
Conclui-se, portanto, que o Plano Diretor de Igarassu poderá se constituir como instrumento de transformação urbana apenas se romper com uma lógica normativa meramente formal e assumir um compromisso político robusto com a justiça territorial. A construção de uma cidade mais justa, resiliente e inclusiva exige mais do que boas intenções: requer ações concretas, fundamentadas em um planejamento urbano comprometido com a equidade, a escuta ativa das comunidades e a superação das estruturas históricas de exclusão.
Este estudo reforça, assim, a importância de uma abordagem crítica no campo do planejamento urbano, capaz de articular instrumentos técnicos a processos políticos amplos de democratização do território e de efetivação do direito à cidade.
REFERÊNCIAS
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IGARASSU. Plano Diretor Participativo de Igarassu: Lei Complementar nº 156, de 20 de fevereiro de 2025. Igarassu, 2025. Disponível em: https://igarassu.pe.gov.br/lei-plano-diretor-lei-complementar-no-156-2024/. Acesso em: 20 jul. 2025.
1https://orcid.org/0000-0003-2806-202X – Mestre em Engenharia Ambiental, Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail: eng.marcelo333@gmail.com