PERTENCIMENTO E EUROCENTRISMO: A REALIDADE DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL

BELONGING AND EUROCENTRISM: THE REALITY OF BLACK POPULATION IN BRAZIL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10631230


Ednaldo Lopes Barbosa de Lima1
Laura Beatriz Pires da Silva2


Resumo

O presente artigo tem como objetivo aprofundar o debate sobre a perspectiva do sujeito negro em relação ao pertencimento. Pretende-se dimensionar através do que Frantz Fanon denomina como catarse coletiva a internalização do sistema de reprodução de práticas racistas. Assim, abordaremos os fatores da repitibilidade, em que o negro reproduz uma visão positiva de si criada por sujeitos alheios oriundos da indústria cultural direcionada para a branquitude, bem como a colonialidade da linguagem, do saber e o fenômeno da dissociação, sob a ideia de que qualidades individuais afastariam a negritude. A colonialidade do poder afeta a todos os negros de modo a rejeitarem a própria cultura, senso de pertencimento comum, induzindo-os a reproduzirem bem a cultura pautada no eurocentrismo. Com base nessas reflexões e no levantamento bibliográfico, aprende-se sobre a importância da organização política coletiva como elemento-chave de superação das diversas formas de racismo, especialmente o racismo cultural.

Palavras-chave: Identidade, colonialidade do poder, negros.

Abstract

The present article aims to broad the debate concerning the vision of to be black for belonging notion. Intend to dimensionate through Frantz Fanon denominates as collective carthasis the internalization of racist practices reproduction system. So, we broach the factors of repitbility, that the black people reproductes positive views of themselves created by unaware subjects from c knowledge and the phenomenom of dissociation, by idea that individual qualities has been keep away the negritude. The coloniality of power affects all the blck people so that to reject own culture, common belonging sense, leading to reproduce well the culture ruled by eurocentrism. Based in this reflections and the bibliographic survey, we learn about the importance of collective political organizations as key element of overcoming of different ways of racism, especially cultural racism.

Keywords: Identity, coloniality of power, black people.

Introdução

“O homem nasce livre, mas por toda parte encontra-se acorrentado”. Esta célebre frase de Jean Jacques Rosseau, introdutória da sua obra magna “Do Contrato Social” (2002), parece definir bem a situação em que negro se encontra mentalmente diante de seu lugar na questão de classe. São correntes invisíveis, correntes mentais, navios negreiros que distanciam os negros de conhecerem e se identificarem com as próprias origens. De não se entenderem como vítimas de um apagamento longo e intenso gerador de não reconhecimento. A busca pelo reconhecimento e por “se tornar gente” quase sempre se dá em buscar se parecer mais branco, ou seguir “minorias modelos”, como judeus e alguns povos asiáticos, como os japoneses. 

Visa-se reconhecimento de igualdade e dignidade a partir do momento em que se passa a reproduzir bem a cultura do colonizador, ou até mesmo melhor, sem que haja o trabalho de se fazer uma busca, ao mesmo tempo, da identidade e cultura negras. Assim, ilustra bem o músico, cantor e compositor Jorge Aragão, na música “Identidade” o quanto a busca pelo reconhecimento do branco gera sofrimentos internos por não se valorizar a própria identidade:

Se preto de alma branca pra você
É o exemplo da dignidade
Não nos ajuda, só nos faz sofrer
Nem resgata nossa identidade

Como reconhecimento da importância do indivíduo de encontrar e expressar a própria identidade, a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 prevê o direito à liberdade de consciência, crença e de expressão, inclusive de mudar as próprias crenças ( Arts. 18 e 19). Porém, conta-se como empecilho para a efetivação desses direitos, no caso dos negros do Brasil, a perda da identidade e reconhecimento da condição de negro, presos às amarras das opressões estruturais, especialmente quando busca se ascender socialmente a campos culturais mais elitizados, ou quando já nascem em um contexto elitizado cujos ascendentes, especialmente pais, avós e bisavós negros que buscaram a branquitude, previamente o inseriram.

A tentativa de apagamento da identidade negra começa a partir da miscigenação com pessoas brancas, as quais os homens e mulheres negros buscam validação e merecimento por reproduzirem bem o arcabouço cultural hegemônico dos “países do Norte global”, defendendo os interesses dessa mesma elite branca. Também é perceptível com o uso da linguagem e do sotaque associados aos produtores culturais de maior status, de forma a legitimar uma posição de classe. Consequentemente, o negro já previamente inserido ou inserido “voluntariamente” à cultura eurocêntrica acaba por não se identificar com os seus semelhantes de cor, se apegando inclusive a uma pele mais clara que possui, um cabelo menos crespo ou traços faciais menos evidentes para se autoconsiderarem “brancos”.

Tal visão de apagamento da identidade, quanto da falta do bem-estar psicológico do negro que enseja revolta da parte deste, permeia toda a obra de Frantz Fanon (2019), especialmente nas suas obras magnas “Peles Negras, Máscaras Brancas” e “Os Condenados da Terra”, tendo o imperialismo francês como base de estudo. Fanon sente a necessidade da descolonização do ser, de uma mudança radical que torne as diferenças entre indivíduos e grupos não hierarquizadas. O negro, para o autor, está ligado à sua identidade ancestral, mas não precisa estar presa somente a ela. Como um existencialista inspirado em Sartre, o escritor martinicano defende o negro como definidor do próprio destino, sem precisar se neutralizar “apenas como um ser humano qualquer, igual aos outros” a fim de evitar conflitos.

Em função disso, torna-se mais difícil uma luta mais ampla e de maior qualidade, bem como a efetivação, de políticas públicas que não apenas melhorem as condições de vida dos negros gerando igualdade de condições, mas também igualdade na capacidade de produção de bens culturais de status e com qualidade superior que beneficie a todos indistintamente. Este artigo visa explanar melhor as nuances de aculturação e assimilação do negro como forma de perpetuação da estruturas racistas, sendo o negro aculturado e assimilado transformados em reprodutores e perpetuadores do racismo estrutural.

 A metodologia abordada por este artigo se trata da revisão bibliográfica de artigos, livros e revistas, fazendo uma comparação de resultados e uma análise interpretativa desses resultados. Os principais referenciais teóricos do texto são Frantz Fanon, com a sua análise da colonialidade do ser, do poder e do saber; Grada Kilomba, que aborda o apagamento histórico das mulheres negras, sendo tratadas como o outro do outro; Michel Pêcheux, que discorre sobre a repetibilidade, definida por ele como a reprodução de uma identificação cultural fabricada como se tratasse da cultural original; e de Nancy Fraser, abordando uma característica cultural recente de dominação através da abordagem e representatividade das mais diversas ideias, práticas e vivências do ser negro, que não geram como consequência mudanças estruturais significativas, mas reforçam os lucros dos membros do mesmo poder hegemônico.

1. Análise do racismo sob a noção de opressão

Além de definir-se o que é racismo, é preciso delimitar de forma precisa como ele opera, ensejando aprimoramento legal, tornando o combate mais efetivo, e reduzindo as desigualdades étnicas. Segundo Silvio Luiz de Almeida (2020, p. 32), racismo é um conjunto de práticas discriminatórias sistemáticas recorrentes na sociedade, tendo o elemento racial como fundamento, que estabelece uma relação de privilégios e opressões para indivíduos, a depender do grupo ao qual se insere.

Não é possível reproduzir a dimensão do racismo em laboratório de forma que a revisão por pares brancos chegue a conclusões muito parecidas. Como resposta, Grada Kilomba, em Memórias da Plantação (2019, pgs. 230-232) afirma que os negros precisam aceitar que nem sempre podem modificar o consenso branco, sendo que a busca principal deve ser no sentido de modificar a relação do negro diante desse consenso. Isto é: se entender ao invés de querer ser entendida/o, melhorando a relação do sujeito consigo próprio, se auto-aceitando e vivendo melhor com isso.

 Todavia, é possível observar os fenômenos de transformação e aprimoramento de uma série de procedimentos econômicos e ideológicos formadores do capitalismo, que diminui a importância do conceito de minoria coletiva em prol do indivíduo, do individualismo, do uso de mão de obra assalariada em prol do lucro máximo, mínima intervenção do estado com uma menor garantia de segurança social, e estímulo a mercados consumidores catalisadores do consumismo desenfreado insustentável ao meio ambiente. Tudo isso naturalmente exclui, diminui a autonomia e explora a mão de obra de milhões de negros, enquanto ascendem alguns poucos “como nunca antes”, ao mesmo tempo concentrando muita renda nas mãos de poucos. 

A Declaração Universal de Direitos Humanos (Arts. 18 e 19) e a Constituição Federativa do Brasil (Art. 5º, IV e VI)  preveem o direito ao livre pensamento e consciência. Observam-se, porém, diversas violações dos preceitos da liberdade de pensamento e de consciência, uma não efetivação desses e adesão insuficiente dos contemplados à causa da consciência negra, mesmo com avanços legais no sentido de promoção de ações afirmativas, combate aos discursos racistas e à discriminação racial. 

Embora nos últimos anos existam bons resultados práticos das pautas no sentido de diminuir desigualdades, maior representatividade e participações em setores chave, existem medidas importantes que ainda precisam ser adotadas. Pois os negros, mesmo contribuindo de forma significativa para a construção de um país e região, obtendo importantes avanços institucionais, agregando mais representatividade, obtém ainda conquistas tímidas se comparadas ao histórico de luta e esforço coletivo empreendido. 

Apesar do racismo, como um sistema de opressão, se manifestar de diversas formas e graus, sendo a reação ao racismo, quando se torna perceptível, variável de acordo com a pessoa racializada que o sofre, os números relacionados à níveis de saúde demonstram diversas disparidades entre brancos e negros, ou pelo menos uma diferença notável devido a traumas de infância ocasionados pela discriminação e falta de afeto adequado, e que são levados pelo resto de suas vidas, mesmo que seja uma exposição indireta ao racismo.

O fato é que muitos autores, como Grada Kilomba e Lélia González (2020 e 2019), a partir da segunda metade do Século XX trabalharão com o conceito de colonialidade do poder. Segundo as autoras, a colonialidade se trata da herança mais profunda deixada pelos colonizadores que se instalou na alma do povo. Reconhece-se as profundas deformações existentes na constituição das subjetividades individual e coletiva, impedindo a livre expressão de todas as potencialidades.

Tanto González quanto Kilomba (2020 e 2019) adotam a abordagem da colonialidade do ser sob a perspectiva feminista negra com o aracabouço teórico psicanalítico clássico, por entenderem que autores negros como Frantz Fanon não abordam a subjetividade do ser negro de modo a incluírem as mulheres negras na visão da (o) outra (o), nem as especificidades das opressões que as mulheres negras têm que se submeter  (Kilomba, 2019, p. 27-31). Os dados estatíscos mostram que não apenas se encontram mais presas ao papéis comumente atribuídos (mães solos subservientes a trabalhos domésticos, objetos sexuais), como possuem, em geral, menores níveis de renda e instrução (González, 2020, p.88).

É perceptível historicamente, com evidências, a busca constante, mesmo no período pós-colonial, da maioria dos países latino-americanos que se autodeclararam independentes politicamente da suas metrópoles, em sempre se parecerem e terem a capacidade de conseguirem reproduzir os costumes culturais e pensamentos dos países em que o capitalismo e Revolução Industrial se encontravam mais complexos (Arraes e Falcão, 2019, p. 2). 

Isso pode ser observado através da arquitetura (com as reformas urbanas à Paris), no campo das Artes ,através do consumo direto de produtos artísticos com alta carga ideológica ou das tentativas de imitação (Arraes e Falcão, 2019, p. 4); na preferência pelo uso de determinados idiomas que não os dos colonizadores originais, em especial o Inglês; além da forma de se produzir Ciência. 

Jessé Souza, em seu livro “A Classe Média no Espelho” (2018) escreve o quanto isso criou nas elites brasileiras um afastamento da necessidade de se entender com preocupação a população mais simples e de dispensarem ser meros reprodutores da cultura dos outros (especialmente EUA e Europa), preferindo utilizar-se, para os negros, a lógica da biopolítica, da necropolítica e da invisibilidade, assim como a ideia de ascensão meritocrática com assimilação cultural dos valores da elite. 

A biopolítica é, segundo Achille Mbembe (2016), é a prática do fazer viver e deixar morrer, em que a vida do ser humano considerado “diferente”, o outro, é preservada com fins de exploração econômica e exercício de opressões estruturais. Porém, é um conceito insuficientemente abrangente para se explicar a preferência de certos governantes em adotar políticas de Estado que, diretamente ou indiretamente, causam a morte de milhares de negros. Por isso, o professor camaronês adotou o termo “necropolítica” para explicar o fenômeno.

Coloca-se, nas abordagens preconceituosas, os povos não brancos como inferiores, sentindo a necessidade de absorvê-los ou eliminá-los, introjetando estruturalmente no inconsciente coletivo dessas minorias a ideia de inferioridade e de subserviência, mesmo com a disseminação da ascensão social através dos estudos e plena assimilação cultural. 

Grada Kilomba (2019, p. 79) faz a divisão das formas de inferiorização dos negros por parte dos brancos. Entre elas, estão a infantilização (dependência constante do senhor), primitivização (tratado como alienado, incivilizado e selvagem), animalização e erotização, em especial, da mulher negra.  Essa forma de ascensão e busca pela “democratização da civilização” e do chamado “estado normal das coisas” contribuem para a perpetuação da pobreza da maioria dos negros, além da devastação do planeta para suprir essas novas demandas de consumo por esses padrões.

2. Branquitude e o apagamento cultural do ser negro

O “branqueamento” do homem e da mulher negra por meio de um repertório cultural e de status, seja ele ligado à condição de cultura clássica ou erudita, seja em relação ao consumo desenfreado de itens culturais massivos previamente planejados por uma indústria visando o lucro máximo, ocorre em todos os setores culturais: nas artes, no aprendizado e construção da modificação de idiomas, nas diferentes formas de falar, na produção científica, nas ideologias políticas adotadas e nas religiosidades.

Define-se cultura como toda criação humana, através da modificação da natureza, da produção de ideias e obtenção de conhecimentos sobre a realidade visível, que se modifica com o tempo e varia de acordo com as sociedades. Nas diversas realidades sociais em que o negro se insere, conseguir reproduzir a cultura hegemónica eurocêntrica e individualista em detrimento do poder coletivo com a consciência de classe, acaba por se tornar um sinônimo de superação do racismo e a elevação do negro à condição de ser igual ou soar parecido a um branco, sendo elogiado por isso e sendo forçadamente afastado das suas origens e do seu verdadeiro pertencimento.

Como bem explana Fanon (2019, p. 83), ao citar o caso de Jean Veneuse, que obteve a seguinte resposta de Coulanges, irmão da mulher branca Andrée Marielle, com que gostaria de se casar e teve o seu amor correspondido, embora precisasse da permissão do irmão dela. Fica evidente, da parte de Coulanges, aquilo que Grada Kilomba (2019, p. 77) denomina como  dissociação, um mecanismo de defesa do ego, em que características  de um indivíduo consideradas boas ou ruins (ser negro e ser civilizado, por exemplo) coexistem, apesar de não se integrarem na mente de quem é racista:

Enfie isso na sua cabeça. Você não sabe nada dos seus conterrâneos antilhanos. Eu ficaria até surpreso se você conseguisse se entender com eles. […] Na verdade, você é como nós. Você é “um de nós”. Os seus pensamentos são os nossos. Você age como nós agimos, como nós agiríamos. Você acha que é – e acham que você é – negro? Errado! De negro, você só tem a aparência. Em tudo mais, você pensa como um europeu.

Com isso, entende-se erroneamente, inclusive até os dias atuais, que os negros não poderiam, sozinhos, criarem e expressarem um legado cultural complexo que beneficie toda a humanidade. Isso se dá também pelo apagamento histórico do legado cultural negro, de forma intencional por parte do poder hegemônico, ao ponto de não explanar também a falta de oportunidades dadas para os negros não fazerem parte de um clube restrito de amigos que lançam em destaque uns aos outros.

No quesito linguístico, predomina-se a ideia de que a pessoa negra não saiba falar corretamente, que a sua forma de falar comum e de criação é inferior e mais distante de uma norma convencionalmente padrão das línguas europeias, como o português. Caracteriza-se, portanto, o preconceito linguístico. A cobrança por saber falar e escrever corretamente é muito maior nas pessoas negras, sendo surpreendente para o branco o fato de um negro saber falar bem, e também demonstrar erudição e inteligência, assim como um ter um padrão de vida um pouco acima do esperado para pessoas de cor. Tudo isso, quando não é reforçado o lugar de subserviência do negro.

Como brilhantemente retrata Frantz Fanon, em seu livro “Peles Negras, Máscaras Brancas” (2019, p. 49):

                   É que o negro deve se apresentar de determinada maneira e, do negro de Sem piedade – “eu bom operário, nunca mentir, nunca roubar” – à criada de Duelo ao sol, é esse estereótipo que encontramos. […] Fazê-lo falar petit-nègre é acorrentá-lo à sua imagem, enredá-lo, aprisioná-lo, vítima eterna de uma essência, de uma aparência pela qual ele não é responsável. E, obviamente, […] o negro que cita Montesquieu deve ser vigiado. Que nos entendam: vigiado na medida em que, com ele, algo se inicia.

3. A representação e identificação plena do negro propagada pelo “neoliberalismo progressista”, definido por Nancy Fraser, com base em Michel Pêcheux

Uma das estratégias mais recentes propagadas pela indústria cultural de forma a permanecer sempre obtendo lucros na cifra dos milhões e dos bilhões de dólares é se utilizar de pautas como libertação das opressões por meio de um trabalho coletivo, questionando estereótipos, denunciando tanto a exploração, quanto a superação das opressões por assimilação, a superação pelas vitórias resultantes esforços individuais que sejam inspiradores e pela subjugação a padrões inalcançáveis de corpos. Assim como também critica-se, de longa data, o excesso de consumo de coisas supérfluas como forma de conexão com um ídolo ou uma filosofia de vida.

Tal medida adotada pela indústria cultural de forma mais intensa nos últimos tempos é denominada pela pensadora norte-americana Nancy Fraser como “neoliberalismo progressista” (2018). Segundo a autora, isso inevitavelmente geraria a perpetuação por parte da indústria do “homem unidimensional”, conceito definido por Herbert Marcuse (1982), no qual as mesmas nações hegemônicas, inclusive as minorias subalternas dessas nações, acabam por inevitavelmente definir, de forma concentrada, quais valores democráticos os povos oprimidos do mundo inteiro devem seguir, sem que as pessoas vejam como tão latente é necessária a superação do sistema capitalista como todo pelo fato das demandas socialistas estarem “predominantemente bem representadas pela cultura de massa”.

A verdade é que a lógica de produção capitalista continua operando a todo vapor, definindo novos padrões, incentivando mais consumismo degradante do meio ambiente, visando a criação de novos mecanismos exploratórios da condição humana, não apenas para gerar um maior retorno na melhoria dos padrões de vida dos negros (tomando-os como exemplo para o foco deste artigo), mas, principalmente, facilitar um maior domínio e prevalência do mesmo perfil de donos dos meios de produção, sem que os direitos humanos, incluindo o de autodeterminação, avancem em uma proporção muito maior e mais necessária.

Os negros não se tornaram muito menos subjugados e distanciados da gestão do poder pelo racismo na medida em que passaram a ser representados em papéis não somente de protagonistas, mas também de personagens em profissões e posições de status não associadas comumente a pessoas não-brancas, como médicos, advogados, políticos, empresários, juízes, policiais de alta patente, cientistas, promotores ou até mesmo aristocratas. 

Ainda que muitas dessas obras abordam as diversas formas de racismo, bem como as demandas raciais, de forma bastante condizentes com as denúncias de racismo comuns e as demandas mais pertinentes, apontadas por diversas associações negras espalhadas pelo mundo, especialmente nas Américas, elas continuarão reproduzindo, em grande parte, a visão do capitalista privilegiado em busca de lucro no esforço de “homenagear” as pessoas negras, nem sempre contando com a contemplação no processo de criação dos personagens, roteiro, direção, figurinos e cenários, o trabalho de pessoas negras para além dos atores.

Alia-se a isso a criação de um outro processo de alienação dos negros que poderia ser considerado menos nocivo dos diversos povos afrodescendentes nas Américas por representá-los de forma mais positiva e diversa. Esse processo inspira visões de povos que passam a ser incorporadas por esses mesmos como parte da própria identidade, de forma superficial e bastante repetida, quase nunca se aprofundando nas estruturas econômicas geradoras e exploradoras da pobreza.

Tal processo de alienação por meio de uma falsa e distorcida identificação é classificada pelo filósofo francês Michel Pêcheux como repetibilidade: o sujeito tem a ilusão de ter produzido o discurso com o qual estabelece uma identificação imediata com o sujeito universal da formação discursiva (2007, p.26). Porém, tal reprodução dessa suposta realidade vivida é feita fora do eixo geopolítico abordado, geralmente por pessoas de fora que jamais vivenciaram essa realidade (Pêcheux, 1990, p. 172-176).

Não se pode, contudo, ignorar o caráter reflexivo, inspirador, educativo e transformador que a arte pode trazer para as pessoas, ainda que cooptada de forma industrial para reforçar a hegemonia e dominação de um grupo, ainda se utilizando e incentivando de uma cadeia de exploração laboral tradicionais. Porém, pode se tratar de uma ilusão acreditar que a tendência do mea culpa do capitalismo e a sua movimentação para tentar fazer reparações históricas, estimulando uma maior representatividade, melhorando um pouco as condições de trabalho desumanas e defendendo a taxação dos super-ricos será de caráter permanente, sem precisar haver um fortalecimento das bases coletivistas que visem quebrar toda essa hegemonia e apropriação, puxando mais para o protagonismo das relações de produção econômicas, com o objetivo integral de favorecer bem comum.

Um exemplo relativamente recente de como o neoliberalismo progressista atua é o filme “Pantera Negra”, lançados nos cinemas pela Marvel no ano de 2018. Na trama, um personagem mais disruptivo, que pretende utilizar as grandes riquezas de um país para estimular revoluções ativas e destrutivas em outros países africanos acaba sendo vilanizado e entrando em confronto com outro personagem, o rei do país, protagonista da trama através de uma ação mais pacífica, com apoio da CIA, de maneira reivindicativa em organismos internacionais.

Considerações finais

É possível chegar à conclusão de que o racismo estrutural se opera de uma forma complexa e sempre mutável, ao ponto que se torne imperceptível, muitas vezes, a sua atuação no sujeito negro e a reprodução do racismo devido a diversos processos sociais, estruturais e institucionais de negação de si próprio e dos seus semelhantes . O que a mídia hegemônica e os setores empresariais induzem como forma de autovalorização, representatividade e liberdade, por vezes, torna-se um novo tipo de aprisionamento, no qual as pessoas negras não tomam rédeas da situação, muitas vezes se definindo apenas pela ótica positiva do sujeito colonizador, alheio às vivências, demandas e debates dentro do movimento.

Deve-se atentar para a tendência progressista cada vez maior da cultura de massa em se apropriar da luta antirracista sem fazer uma contestação profunda das relações de produção exploratórias, muito embora possam gerar alguns resultados significativos na melhoria da auto estima, empoderamento individual e instigação de mobilização dos negros me busca de mais direitos de acordo com pautas específicas definidas. É preciso que as bases de toda essa discussão racial se voltem sempre mais pelas próprias pessoas militantes, ao invés das instituições burguesas.

Conclui-se também que não se pode falar da inexistência da ideia de colonialidade do poder limitante. Com isso, o poder público, juntamente à sociedade deve prezar por um conjunto de direitos e uma noção de justiça que garanta a plenitude das potencialidades dos habitantes brasileiros.

Através do referencial teórico de Frantz Fanon, também pode se chegar à conclusão da urgência da descolonização do ser negro, sem negar e neutralizar a própria ancestralidade, reconhecendo-o a todos como sujeitos, com as suas particularidades natas ou adquiridas, merecedores de respeito e direitos atinentes à própria vivência diária, sem hierarquias de classes divididas entre opressores e oprimidos, que foram construídas historicamente e de forma quase sempre artificial.

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1Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco no ano de 2022.
2Advogada. Mestre em Direitos Humanos pela UFPE