PARIDADE DE GÊNERO: UMA ANÁLISE DAS COTAS PARLAMENTARES NA VIGÊNCIA DA ATUAL CONSTITUIÇÃO

GENDER PARITY: AN ANALYSIS OF PARLIAMENTARY QUOTAS UNDER THE CURRENT CONSTITUTION

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10199168


Cleana Mota Mourão¹
Letícia Maria Gonçales Fin Ramos2
Rozania Pinto Lima³


RESUMO

O projeto político constitucional pugna pela paridade de gênero. No entanto, historicamente as mulheres têm sido excluídas dos espaços de decisão e poder, especialmente do poder legislativo. Essa exclusão é fomentada pelo papel que as mulheres desempenham na esfera doméstica e afronta o caráter democrático do sistema representativo que pressupõe uma composição mais plural dos espaços políticos-decisórios que favoreça a construção de políticas voltadas aos interesses e necessidades de parcelas mais amplas da população. A leitura sistemática do texto constitucional articula ao direito de igualdade os elementos de enfrentamento às desigualdades e cabe ao Estado efetivar os direitos fundamentais. Assim, no âmbito das ações afirmativas, surgem, como instrumentos compensatórios da desigualdade de gênero, as cotas parlamentares que se sustentam no direito à igualdade preconizado no texto constitucional e visam superar a sub-representação política das mulheres. Nesse contexto, serão apresentadas as principais legislações e jurisprudências relativas à representação política das mulheres e analisado em que medida contribuem para a realização da igualdade material entre homens e mulheres na seara política.

Palavras-chaves: Política. Paridade. Gênero. Sub-representação. Cotas parlamentares.

ABSTRACT

The constitutional political project strives for gender parity. However, women have historically been excluded from decision-making and power spaces, especially the legislature. This exclusion is fostered by the role women play in the domestic sphere and affronts the democratic character of the representative system, which presupposes a more plural composition of political-decisional spaces that favors the construction of policies aimed at the interests and needs of broader sections of the population. A systematic reading of the constitutional text articulates with the right to equality the elements of tackling inequalities and it is up to the state to make fundamental rights effective. Thus, within the scope of affirmative action, parliamentary quotas have emerged as instruments to compensate for gender inequality, based on the right to equality advocated in the constitutional text and aimed at overcoming the political under-representation of women. In this context, the main legislation and case law relating to the political representation of women will be presented and the extent to which they contribute to the achievement of material equality between men and women in the political sphere will be analyzed.

Keywords: Politics. Parity. Gender. Under-representation. Parliamentary quotas.

1. INTRODUÇÃO


A despeito de ter uma Constituição comprometida com a igualdade tanto no que diz respeito ao tratamento igualitário quanto ao dever positivo de promoção da igualdade – o Brasil continua sendo um país de desigualdades sociais. Tais desigualdades são reiteradas cotidianamente por práticas políticas, culturais e institucionais. Nesse contexto, o direito tem um papel extremamente relevante: por um lado, pode ser perpetuador de subordinações; por outro, se analisado, construído, interpretado e utilizado de maneira comprometida com a igualdade material, pode se tornar um eficiente mecanismo de emancipação social.

Na seara da igualdade formal evidenciada na Carta Magna, o art. 5º determina que ” todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Nesse aspecto, a Constituição Federal enfatiza que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.

No entanto, materialmente, nosso país está longe de atingir tal paridade de direitos, em especial, no que concerne à representatividade de gênero no âmbito político. A própria garantia constitucional dessa igualdade formal é recente na história brasileira. Apesar dos avanços legislativos formais, os resultados das mais recentes eleições evidenciam que muito há de ser feito para que seja atingida a paridade de gênero na política brasileira, vez que o número de mulheres eleitas é significativamente inferior ao dos homens.

Sendo esse um projeto político constitucional, o presente artigo visa apontar as principais legislações brasileiras e decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, posteriores à aprovação da Constituição Federal vigente, em prol de uma maior participação política de mulheres nos parlamentos. Com o intuito de compreender as repercussões, formais e substantivas, de tais leis e decisões na representação política das mulheres serão apresentadas estatísticas. Essa compreensão dos mecanismos legais e jurisprudenciais elaborados no sentido da redução das desigualdades de acesso e incremento à permanência de mulheres nos espaços de decisões políticas é primordial para que novas diretrizes sejam traçadas rumo à paridade almejada.

2. GÊNERO E IGUALDADE POLÍTICA

Araújo (2022)1, antes de enfrentar as dificuldades de acesso das mulheres às esferas públicas de poder no Brasil, enfatizou a imprescindibilidade de apresentar alguns elementos introdutórios sobre as origens das desigualdades que, segundo a autora, estão intrinsecamente relacionadas com a própria construção teórica dos conceitos de democracia e de cidadania.

Assim, tem-se que as desigualdades históricas e sociais, estruturais e estruturantes, são refletidas nos espaços públicos nos quais se manifestam poder e liderança, de maneira que, por séculos, a dominação masculina foi sedimentada. Restringindo as mulheres aos espaços privados e domésticos. Sendo, pois, domesticada e, por vezes, tidas como servas em decorrência, única e exclusiva, do sexo biológico.

Segundo Bolognesi (2012)2, essa posição social de exclusão somada à sobrecarga em atividades domésticas, ao reduzido prestígio no ambiente de trabalho e ao domínio dos homens como seres políticos relega às mulheres uma percepção de autoexclusão, em que elas não se sentem devidamente aptas a exercer cargos políticos.

Ocorre que, ainda que uma mulher esteja posicionada em elevado nível social, cultural e econômico pode enfrentar obstáculos que não são enfrentados pelos homens e que a colocam em posição de desvantagem para ocupar posições semelhantes às deles. Ou, conforme Bourdieu (1999)3, muitas vezes, a própria mulher incorpora os valores e as atitudes impostas pela dominação, expressando uma aparente aquiescência, como ocorre com muitos sujeitos/grupos dominados.

Interpretações feministas sobre essa exclusão política das mulheres, bem como suas estratégias, foram realizadas e, em O contrato sexual, Carole Pateman (1988)4 analisou o debate de Locke com os patriarcalistas sobre autoridade política e autoridade patriarcal, argumentando, segundo Sacchet (2012), de maneira pertinente, que o Estado moderno e suas instituições teriam sido idealizados e estruturados a partir da separação entre esfera pública e esfera privada

Reforçando tal entendimento, Pateman (1988, 1989), afirmou que a noção de cidadania, enquanto um conceito relacionado à esfera pública e as relações dos indivíduos com o Estado, foi construída a partir da imagem e da experiência da vida dos homens. Como consequência disso, a inclusão política das mulheres na atualidade constitui-se em árdua tarefa e efetua-se de forma diferente da inclusão original dos homens.

Nesse cenário de instituição do Estado a partir da separação das esferas pública e privada, o objeto da política e os seus agentes encontrar-se-iam localizados na esfera pública. A esfera privada, por outro lado, espaço central da exploração, risco e opressão das mulheres, seria excluída da política e das leis, e identificada como a esfera da intimidade na qual o indivíduo pode se recompor e se desenvolver de maneira autônoma.

Mister observar que a esfera doméstica e a unidade familiar são historicamente focos centrais do debate feminista. Em The subjugation of women, John Stuart Mill argumentou que a responsabilidade das mulheres com a esfera doméstica obstaculiza suas conquistas no mundo das artes e da ciência. Segundo o autor, mesmo as mulheres que contam com a ajuda de trabalhadoras domésticas (servents) seriam prejudicadas, pois é esperado delas que seus tempo e pensamento estejam à disposição dos membros da família.

Portanto, se um dos impedimentos centrais ao desenvolvimento políticos das mulheres é o papel que elas desempenham na esfera doméstica, transformar as relações familiares e criar políticas públicas mais pertinentes não deveriam ser objetivos precedentes à ampliação dos espaços de participação política?

Para esse questionamento Anne Phillips (1999)5 coloca uma nova questão, indagando sobre quem estaria interessado em tais mudanças e como elas ocorreriam sem uma grande presença de mulheres nos espaços decisórios das instituições políticas.

Anne Phillips (1999) argumenta que as normas que ditam os comportamentos da instituições políticas definem limites claros entre a esfera pública e a privada e, assim, “aqueles que desobedecerem a tais limites (conduzindo seus bebês para reuniões políticas, deixando suas emoções “intervirem” nos debates racionais) serão considerados, disruptivos, peculiares, e mal adaptados aos padrões da vida democrática”.

Igualmente algumas leis que regulamentam o processo eleitoral, e que são consideradas neutras desde uma perspectiva de gênero, acabam favorecendo os homens. No Brasil, por exemplo, as regras sobre financiamento de campanha permitem que sejam consideradas como despesas de campanha apenas aqueles gastos diretamente relacionados ao processo eleitoral.

Destaca, pertinentemente, Hannah Aflalo (2021) 6que a lei não permite, assim, que dinheiro gasto com atividades de cuidado durante a campanha seja declarado como despesa na prestação das contas eleitorais. A autora observa que essa regra vale tanto para homens como para mulheres, mas, como o cuidado de crianças, pessoas enfermas e idosas são atividades preponderantemente desempenhadas por mulheres, são elas que mais diretamente são afetadas de forma negativa pela suposta neutralidade da regra.

Para Anne Phillips (1999) um legislativo composto majoritariamente por homens dificilmente se interessaria por promover políticas necessárias para modificar o sistema de gênero e a divisão sexual do trabalho na esfera doméstica. Assim, a autora sugere que começar mudando aqueles que definem as políticas pode ser uma boa iniciativa para promover a equidade de gêneros em outras esferas. Anne Phillips (1999), enfatiza que uma distribuição mais equânime de posições representativas entre os diferentes grupos sociais traz uma maior variedade de perspectivas

Ocorre que, ante a conveniência para os homens da atribuição de tais estereótipos às mulheres, o comportamento social de restrição feminina aos ambientes domésticos repercute até a atualidade. O que impõe o estabelecimento de políticas públicas e de mudanças legislativas que possibilitam o acesso da mulher aos espaços de poder e decisão anteriormente circunscritos aos homens. Inclusive a política.

Para reverter o cenário apresentado são necessárias profundas transformações significativas, qualitativas e quantitativas, que abranjam desde a participação política feminina paritária até o combate das diversas violações de direitos contra mulheres e meninas, transversalizando a perspectiva de gênero com outras identidades.

Philips (1999) acredita que mais cidadania para as mulheres implica necessariamente maior inclusão das mulheres em processos políticos-decisórios, e implementação de políticas de gênero. Já para Iris Marion Young (1985), conforme observa Sacchet (2012; 2020)7 , a definição de justiça sem a participação de grupos sociais distorce visões sobre seus interesses, ao mesmo tempo que apresenta uma noção idealizada deles. Young defende que a igualdade de política signifique igualdade de acesso e de influência, e implique igualdade de direitos civis, políticos e sociais, mas também tratamento especial para grupos que necessitam de direitos especiais.

O objetivo da democracia, para Chantal Mouffe (1993, 1999), como bem observa Sacchet (2012; 2020), não seria atingir consenso como no ideal deliberacionista de Habermas – já que a política é sempre imbricada em relações de poder e de conflito -, mas a constituição de espaços públicos verdadeiramente pluralistas, onde diferentes discursos buscassem legitimação, e todos ele fossem reconhecidos como igualmente válidos.

Assim, na medida em que as ideias das pessoas não estão dissociadas de suas vivências materiais, uma composição mais plural dos espaços políticos-decisórios, onde diversos grupos sociais estejam representados, propicia a expressão de diferentes perspectivas, favorecendo a construção de políticas voltadas aos interesses e necessidades de parcelas mais amplas da população, aprofundando, assim, o caráter democrático do sistema representativo.

3. A SUB-REPRESENTAÇÃO POLÍTICA DAS MULHERES E A AFRONTA AO PROJETO POLÍTICO CONSTITUCIONAL

Segundo a Organização das Nações Unidas em seus estudos sobre equidade de gênero na política, no Brasil, embora as mulheres sejam em torno de 52% dos eleitores e da população, o número de mulheres representantes na Câmara dos Deputados, em 2021, foi de apenas 15%, um dos menores da América Latina.

E dados compilados pela União Interparlamentar8, com base nas informações fornecidas pelo parlamentos nacionais, resultaram no relatório mais recente disponibilizado no site da Justiça Eleitoral, datado de primeiro de outubro de 2023, evidenciam que o Brasil ocupa a 132ª posição de um total de 185 países do ranking geral, apresentando 17,5% de mulheres nos parlamentos nacionais.

A média da participação feminina no parlamento, ao levar-se em consideração os 185 países cujos dados estão no citado relatório, é de 25,5%, conforme dados coletados pela organização internacional União Interparlamentar, em 01 de outubro de 2023.

Contudo, de acordo com o Global Gender Gap Report, produzido pelo Fórum Mundial Econômico, avaliando-se dados de países e de regiões coletados desde 2006 e o seu progresso na redução da desigualdade de gênero no que tange à saúde, educação, política e economia, como o impacto da pandemia da Covid-19 continua a ser sentido, a perspectiva de que a lacuna global de gênero deixe de existir aumentou em uma geração em comparação a 2020. O Fórum Econômico Mundial9 observou que o que se previa em 2020 era que as mulheres alcançariam a paridade perante os homens em 99,5 anos, mas em 2021 as estatísticas se elevaram para mais 135,6 anos até que seja atingida a paridade entre os gêneros em nível global.

Há uma literatura vasta indicando a dominação masculina existente na sociedade (Bourdieu, Elshtain e Paterman), mas não há como uma mulher pleitear simplesmente que não seja dominada, a não ser que haja algum ato violento. Nessa seara, as vagas de representantes nos legislativos nacionais são de um número limitado e não podem ser reivindicadas pelas mulheres como um direito seu.

Todavia, os dados existentes acerca da representação nesses legislativos indicam que há algum problema. Mister observar que, no esquema maquiaveliano, se há dominação, o dominador também não é livre. Sendo a liberdade a não dominação, a República livre é aquela que apresenta instituições que possibilitam a expressão dos interesses, principalmente aqueles conflitivos, e, por meio de leis, permitem distribuir o poder de maneira que nenhum dos grupos ou indivíduos possam ser dominados por outrem.

Maynor (2000) aponta a necessidade de que a comunidade política possibilite aos cidadãos o exercício de sua cidadania, manifestando seus apetites, humores e interesse, e que, ao mesmo tempo, possam exercer sua virtude cívica buscando não dominar os interesses dos demais. Para o autor, por possibilitar a manifestação singular da cidadania ativa, o republicanismo é muito mais bem-sucedido ao lidar como o pluralismo do que o liberalismo, pois, além de possibilitar a manifestação da pluralidade de interesses e visões de mundo, pode também garantir a tolerância, na medida em que veda a dominação de quaisquer possíveis interesses e visões.

Dessa forma, segundo Abreu (2011; 2012) conflito e pluralismo conviveriam plenamente no espaço político republicano. Tal cidadania ativa e virtude cívica seriam promovidas pelas instituições republicanas e, entre elas, a atividade legislativa assume papel primordial. A autora destaca que é por meio dela que o Estado republicano possibilita e garante aos cidadãos a oportunidade de participarem da vida política, sem sofrerem ameaça de dominação. Nesse contexto, tem-se que o republicanismo preza pela liberdade como não dominação como alternativa à liberdade como não interferência, consagrada pelo liberalismo.

A despeito dessa defesa do republicanismo, é necessário alterar o quadro de concentração de poder político pois o modelo hegemônico de democracia parlamentar é deficitário no que concerne à inclusão de ideias, interesses e perspectivas de setores sociais mais amplos. Assim, viabilizar a liberdade política das mulheres de serem representantes passa, na atual situação de dominação, por alguma interferência estatal, cuja forma mais frequente nas experiências internacionais tem sido as cotas. Assim, o conceito de liberdade como não dominação é bastante útil do ponto de vista teórico para fundamentar políticas de cotas para mulheres para o legislativo e também para outras esferas de poder.

Mister observar que a inefetividade dos direitos políticos para população feminina ameaça a própria realização do Estado democrático de Direito, e a necessidade de alcançarmos patamares de igualdade na sociedade é fundamental para realização do projeto político constitucional.

Isso decorre do fato de a Constituição Federal elevar a participação política ampla e igualitária como direito fundamental, declarando que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Dessa forma, a paridade de gênero foi instituída como princípio visceral da ordem constitucional, inclusive estabelecendo como dever do Estado tomar medidas apropriadas à inserção igualitária da mulher na política.

Destaca Martins (2012) que um tratamento desigual pelo Estado legislador pode restar justificado se corresponder a um limite constitucional ao direito fundamental à igualdade e se o método de limitação usado pelo legislador atende ao critério da proporcionalidade com um limite ao seu poder de limitar o direito decorrente de seu próprio vínculo ao direito fundamental. O limite pode ser, inclusive, o direito fundamental à igualdade de outrem. Nesses termos, é lícito ao Estado estabelecer políticas legislativas que busquem a promoção da igualdade material, desde que obedecidos elementos de proporcionalidade na adoção das medidas.

Assim, a identificação da situação de desigualdade de setores sociais implica a adoção de medidas legislativas que, partindo de critérios de proporcionalidade, busquem promover essa igualdade.

A leitura sistemática do texto constitucional articula ao direito de igualdade os elementos de enfrentamento às desigualdade baseadas no gênero e na raça, e cabe ao Estado estabelecer medidas que atendam às necessidades desses grupos, orientados pela efetivação dos direitos fundamentais, de maneira que medidas afirmativas, por exemplo, encontrem nessa leitura do direito à igualdade uma forte sustentação constitucional. Ainda que não carreguem consigo a potência de alterar profundamente as relações de dominação, contribuem para a realização da igualdade material e, no limite, da própria democracia.

Vale frisar que a ideia de direitos universais, central no modelo político atual, não parece se referir a todos indiscriminadamente. Na medida em que os chamados direitos universais são falhos, no sentido de incorporar as experiências “particulares” das mulheres e de outros grupos sociais não hegemônicos, eles são pouco efetivos para atender às suas necessidades e seus interesses (LISTER, 1990, 1997; VOGEL, 1991; WALBY, 1994).

Para Sarlet (2012)10, a condição de participação política é um dos núcleos da dignidade da pessoa humana que é a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz digno do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade.

Os direitos políticos constituem direitos fundamentais devendo ser assegurados que eles possam ser exercidos em igualdade de condições entre todas e todos os cidadãos brasileiros. Assim, nos termos do art. 5º, § 1º da CRFB, têm aplicação imediata.

Ademais, se foi expressão no texto constituinte ressaltar aspectos de diferenciação, e uma preocupação no enfrentamento do reconhecimento das diferenças entre homens e mulheres (art. 3º, IV; art. 5º, I; art. 7º, XX; art. 40, III, a; art. 143, § 2º; art. 183, §1º, art. 189, parágrafo único, art. 201, V; art. 226, § 6º), a política legislativa deve dedicar-se a construir as condições de realização do projeto constitucional no que concerne à participação política das mulheres.

Do exposto, verifica-se que os elementos explicitados pelo texto constituinte dão margem para defender que existe uma intencionalidade de superação das desigualdades entre homens e mulheres. Ademais, a inclusão das mulheres como cidadãs na estrutura política implicaria na desorganização do modelo atual e construção de um modelo alternativo, moldado a partir da consideração das diferenças de gênero.

Para reverter o cenário de sub-representação política das mulheres, tem-se implantado mecanismos para promover a distribuição de espaços políticos-decisórios às mulheres e, dentre eles, as cotas têm sobressaído, o que se passa a analisar mais detidamente.

4. AS COTAS PARLAMENTARES COMO INSTRUMENTOS COMPENSATÓRIOS DA DESIGUALDADE DE GÊNERO

A autora Fabris (2015)11 pondera que a conquista dos direitos políticos pelas mulheres – da possibilidade de votarem e serem votadas – é resultado de uma luta que tem origem no século XIX, que passa ser formalmente reconhecida na Era Vargas em 1932 e culmina como o reconhecimento da igualdade de gênero como direito fundamental na Constituição de 1988.

Com a lei eleitoral de 1932, pondera Miguel (2009)12, passaram a votar apenas as mulheres casadas, desde com autorização do marido, e solteiras ou viúvas que tivessem renda própria. Em seguida, a Assembleia Constituinte de 1934, que contou com a presença de duas mulheres (uma eleita e outra como delegada classista), eliminou tais restrições, mas estabeleceu o voto não obrigatório para as mulheres e obrigatório para os homens. A Constituição de 1946, por fim, equiparou os eleitores de ambos os sexos. E somente na virada do século XX para o século XXI o eleitorado alcançou a paridade de gênero.

Sob a perspectiva do pensamento liberal de democracia, e seguindo o sistema predisposto, a partir do momento que as mulheres adquirissem o direito formal de votarem e serem votadas, a baixa presença ou a ausência de mulheres no parlamento ou nos cargos eletivos seria tido como um problema individual das eventuais candidatas ou eleitoras, sob o clássico raciocínio utilitarista de que “cada indivíduo é juiz de seu próprio interesse”, e de que a democracia é formada pelo consenso entre indivíduos e não por grupos de interesse ou identitários.

Ao realizar a análise de uma sociedade patriarcal marcada por desigualdades e opressões históricas de classe, raça e, sobretudo, de gênero, o liberalismo puro pode conduzir a um raciocínio simplista que absolve responsabilidades político-institucionais do sistema preestabelecido e ignora de forma clara todas as barreiras estruturais e sociais que sabidamente não desapareceram com o simples reconhecimento jurídico de direitos, como a misoginia, a injusta divisão sexual do trabalho que impõe dupla jornada às mulheres, a violência de gênero, a desigualdade salarial e de oportunidades e a eterna alteridade com que o gênero feminino é tratado diante do “universal” masculino.

Barreiras essas que, quase um século depois da conquista dos direitos políticos pelas mulheres, ainda as colocam em posição de sub-representação nos parlamentos e nos cargos executivos eletivos, mesmo compondo praticamente a metade da população mundial ou, em muitos países, como no Brasil, já figurando como a maior parte do eleitorado apta a votar.

Após o reconhecimento do direito ao voto, a instituição de cotas por gênero foi a primeira medida legislativa tomada com o objetivos de impulsionar a maior participação de mulheres na vida pública no Brasil.

As tratativas a respeito dessas ações afirmativas tiveram início em dezembro de 1993 quando, pela primeira vez, se fala e propõe, explicitamente, cota para candidaturas de mulheres. O deputado Marco Penaforte (PSDB-CE) anuncia que apresentou, juntamente com outros parlamentares do seu partido, um conjunto de emendas que promove profunda reforma no sistema eleitoral.

No dia 10 de agosto de 1995, a deputada Marta Suplicy apresentava o projeto de lei sobre cotas que propunha uma cota mínima de 30% para as candidaturas de mulheres ser incluído no Código Eleitoral.

Em setembro de 1997 foi votada a nova legislação eleitoral tendo sido aprovado o texto que assegurou uma cota mínima de 30% e máxima de 70% para qualquer um dos sexos. Um artigo nas disposições transitórias alterava essa proporção para 25% e 75% nas eleições de 1988.

Tais alterações foram promovidas na Lei no 9.504, de 1997 (Lei das Eleições)13 e, a partir daí, ocorreu o aumento do número de candidaturas femininas. A despeito desse progresso numérico, no Brasil a proporção de mulheres eleitas, diferentemente do que ocorreu diversos em países, como, por exemplo, nos países nórdicos e em muitos da América Latina, manteve-se, praticamente, inalterada.

Desse modo, concluem Araújo e Alves (2007)14, a implementação das cotas não atingiu sequer o seu objetivo mais imediato, que era o de aumentar o número de mulheres eleitas em cargos legislativos em proporção similar ao percentual das cotas. Ocorre que, no Brasil, quando a política de cotas foi negociada no Congresso, houve um aumento do universo de candidaturas em geral (100% para 150% das vagas em disputa). Isso pode ter influenciado o quadro subsequente, de baixos percentuais de candidaturas femininas, pois permitiu, também, um aumento das candidaturas masculinas.

A discussão sobre cotas não se encerrou com a aprovação da legislação de 1997. Em 2000 tramitavam 13 (treze) proposições que tratavam da participação política das mulheres, dessas nove versavam sobre ações afirmativas no judiciário, no executivo, no legislativo e nos partidos políticos.

Mister observar que além de indicar a adoção de medidas de ações afirmativas, de uma maneira geral, os instrumentos internacionais também estimulam a adoção de medidas específicas no sentido da ampliação das possibilidades da participação igualitária da mulheres nas diferentes esferas de poder e nos processos eleitorais, a exemplo, da Declaração Universal do Direitos Humanos (artigos 2 e 21), a Convenção Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (artigo 2), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (artigo 5) e a Carta da Nações Unidas (artigos 1 e 76).

A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, ratificada pelo Brasil em 1995 sem reservas, especificamente no artigo 4º , dispõe “Sobre a aceleração da igualdade entre homens e mulheres”, afirmando que “a adoçao, pelos Estados-Parte, de medidas temporárias destinadas a acelerar a igualdade de fato entre homens e mulheres não pode ser considerada discriminação, se sua ausência pode trazer como consequência a manutenção de desigualdade ou de padrões discriminatórios”, já indicando a necessidade de adoção de medidas de ação afirmativa.

Essas recomendações e medidas internacionais tiveram reflexo no Brasil, pois representavam aspirações de parte da população e as ações afirmativas são objeto de artigo na Constituição Federal de 1988, quando assegura, em seu artigo sétimo, “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivo específico, nos termos da lei”.

No entanto, a proposta por representação especial de grupos e a política de cotas enfrentam críticas embasadas em diferentes tradições políticas. Esses projetos opostos pelos liberais pela ênfase que dão à neutralidade e ao princípio da igualdade jurídica. Aqui as diferenças não devem contar, pois todos são, presumidamente, iguais perante a lei e uma condição para a existência de justiça é a aplicação de regras gerais e imparciais.

Essa visão se sustenta numa noção restrita de igualdade em que políticas de ações afirmativas são vistas como medidas que criam privilégios. No entanto, tais ações, e as cotas mais especificamente, são criadas a partir da contextualização das desigualdades entre grupos sociais específicos. Na maioria das vezes essas políticas voltam-se às mulheres, aos negros e aos membros de minorias étnicas, pois são esses grupos que tendem a estar em maior desvantagem social, econômica, política e cultural em diferentes países. O propósito das ações afirmativas é a equiparação de direitos entre grupos, e não criação de privilégios.

A proposta de esquecimento das diferenças em nome de um indivíduo abstrato, ou em nome do bem comum como no caso do Republicanismo, quando grupos específicos detêm o poder econômico, cultural e político, é projeto contestável. Enquanto não houver condições de os cidadãos participarem indistintamente em pé de igualdade do processo de tomada de decisão política, a proposta de inclusão de grupos marginalizados por meio de ações afirmativas pode constituir-se o único instrumento para alterar a composição numérica de espaços político-decisórios.

Apesar das controvérsias presentes no debate sobre representação especial de grupos, a tendência crescente é considerar que os espaços político-decisórios são mais representativos e responsivos quanto mais efetivos forem em incorporar, no seu processo deliberativo, membros de diferentes grupos sociais.

Ao invés de questionar o pouco resultado obtido com as cotas no tocante à representação política das mulheres, é necessário promover os ajustes necessários de modo a atingir o objetivo da paridade. Nesse sentido é importante destacar que a lei estabelece apenas cotas de candidaturas, não de cadeiras no parlamento.

E, no início, ampliou o número de candidaturas que cada partido ou coligação podia apresentar. Isso justifica a conclusão de Bohn (2009) 15no sentido de afirmar que alguns fatores concorrem para explicar as razões do aparente insucesso da política de cotas no Brasil e suscitaram mudanças no quadro regulatório do processo eleitoral.

Segundo a autora, dentre tais fatores, estão os fatores institucionais que dizem respeito ao fato de que os partidos detém o monopólio sobre candidaturas e também exercem esse poder exclusivo sob um sistema de listas abertas. Nessa seara, estudos mostram que o sistema proporcional contribui para a eleição de um maior número de mulheres quando acompanhado de um sistema de lista fechada, com são os casos de Argentina, Bélgica e Costa Rica (JONES, 1996, 1998; LASERUD; TAPHORN, 2007).

Também foi importante a transformação da reserva das vagas em obrigatoriedade legal, bem como a fiscalização da sua execução (SCHWINDT-BAYER, 2009). Tal obrigatoriedade só ocorreu no âmbito da aprovação da Lei 12034/200916 e o sistema de reprimenda somente foi introduzido ao sistema eleitoral através da Resolução no 23.609/2019 17do Tribunal Superior Eleitoral na qual foi atribuída ao próprio TSE a autoridade de indeferir o registro do partido que descumprir a política de cotas eleitorais, entendida como a apresentação ao eleitorado de listas com, no mínimo, 30% de candidatos de cada sexo.

Mas, mesmo em casos de aparente fracasso, como o do brasileiro, a política de cotas pode ser considerada positiva por impulsionar mudanças não quantificáveis, relacionadas a direitos e à ação política das mulheres, e abrir espaço para o desenvolvimento de novas demandas, que podem ampliar o alcance do projeto original.

Um exemplo disso é a resolução do TSE 23.575/2018 18sobre financiamento público de campanha, que determina que os partidos, ao fazerem a distribuição de recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do Fundo Partidário (da parcela desse fundo que os partidos reservaram para as campanhas), devem obedecer a uma regra de proporcionalidade entre financiamento e candidaturas femininas. O que significa que, pela lei, as candidatas têm que ficar com pelo menos 30% dos recusos públicos de campanha.

Essa resolução foi construída a partir de uma consulta de representantes mulheres na Câmara dos Deputados, baseada no entendimento de que a legislação sobre o financiamento público de campanhas deveria se balizar pela política de cotas de gênero para candidaturas. Apesar de questionamentos incidentes sobre ela, essa nova regra de financiamento foi fundamental para o aumento de 50% visto no número de mulheres eleitas para posições legislativas da Câmara dos Deputados, nas eleições de 2018 (SACCHET, 2020).19

Entre os anos de 2008 e 2012, houve um aumento de menos de 1% o que contrasta significativamente com o aumento do volume bruto de candidatas. Por outro lado, entre as eleições de 2016 e 2020 – quando o sistema de reprimenda e de reserva de fundos passou a vigorar -, esse volume aumentou em 1,68% (uma adição de quase 27 mil candidaturas de mulheres), ao passo que a quantidade de eleitas experimentou um aumento de 2,52%, o que sugere que as candidatas mulheres tiveram mais êxito nesse pleito. Importante salientar que em 2016 foi criada a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher na Câmara dos Deputados

Como desdobramento das mudanças legais, o estoque de candidaturas de mulheres às câmaras municipais ultrapassou a marca de um terço nas eleições de 2012. O volume de mulheres eleitas, por sua vez, conforme evidencia Bohn (2009), vem aumentando lenta, mas gradativamente, e superou o nível de 16% em 2020 nas citadas eleições.

Vale ressaltar que nessas últimas eleições municipais já foi aplicado o sistema de reprimenda que somente foi introduzido ao sistema eleitoral através da Resolução no 23609/2019. Esse acréscimo no número de eleitas para cargos municipais, segundo Massolo (2005, apud Meireles e Andrade, 2021)20, é importante porque elas têm o potencial de atuar efetivamente em políticas que possam melhorar a vida de famílias e comunidades.

5. PRINCIPAIS LEGISLAÇÕES E DECISÕES JURISPRUDENCIAIS EM PROL DA COTAS LEGISLATIVAS NA VIGÊNCIA DA ATUAL CONSTITUIÇÃO

No ano de 2009 as mulheres representavam 52% da população, e, na Câmara dos Deputados, apenas 8,47%. Ou seja, num universo de 513 parlamentares, apenas 45 eram mulheres.

Apesar do reduzido número de eleitas, a bancada feminina composta por todas as deputadas obteve duas vitórias importantes que tiveram impacto significativo durante as discussões posteriores à reforma eleitoral: a instituição de um assento permanente no Colégio de Líderes e consequente participação em todas as decisões da Casa e a aprovação do projeto de resolução que cria a Procuradoria da Mulher que deu margem à institucionalização da luta feminina para atender às demandas de promoção de políticas públicas favoráveis às mulheres.

Nas articulações para a elaboração da minirreforma política de 2009, o deputado Flávio Dino ficou incumbido de coordenar um grupo de trabalho que deveria conter um representante de cada partido político da Casa para discutir a respeito. Mais importante, contudo, é que além dos representantes partidários, também fizeram parte das reuniões do grupo três representantes da bancada feminina: as deputadas Luiza Erundina, Rita Camata e Vanessa Grazziotin.

Essa importante participação feminina decorreu da representação nas reuniões do Colégio de Líderes e as deputadas passaram a buscar inserir suas demandas diretamente na construção do projeto de lei.

Nesse ano a constataçao da insuficiência das políticas de cotas por sexo para candidaturas, com a finalidade de mudar o quadro de sub-representação, era mais do que evidente e, em paralelo, os movimentos feministas e de mulheres atuaram para assegurar também um porcentagem dos recursos do Fundo Partidário e do tempo de propaganda eleitoral.

Em virtude dessa constatação, a Lei no 12.034/2009 incluiu a obrigatoriedade dos recursos oriundos do Fundo Partidário serem aplicados “na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total” e destinou parte do tempo de propaganda eleitoral com o intuito de “promover e difundir a participação política feminina, dedicando às mulheres o tempo que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 10% (dez por cento)”.

Assim, a Lei no 12.034/2009 foi uma das medidas pioneiras a impactarem positivamente a participação feminina na política brasileira. Tal lei assegurou o percentual mínimo de 30% e máximo de 70% para candidaturas de cada sexo. Outra estratégia positiva da lei em comento foi a destinação de, no mínimo, 30% dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV para as candidatas.

Ocorre que, com o advento da obrigatoriedade de lançamento de pelo menos 30% de candidatas mulheres em 2009, alguns partidos utilizaram como estratégia o lançamento de candidaturas fantasmas no intuito de burlar o constrangimento institucional. Essas candidaturas objetivavam apenas permitir que os partidos lançassem o maior número possível de candidatos do sexo masculino. As candidaturas ficaram conhecidas como fantasmas, pois existiam apenas no registro eleitoral e nem elas próprias votavam em si mesmas.

Desse modo, passado décadas da instituição do regime de cotas por gêncero, o quadro permaneceu profundamente desigual, com as mulheres fora da esfera política. Essa legislação, conforme Fabris (2015), demonstrou-se ineficaz, e apresentou problemas em, ao menos, duas dimensões: a própria porcentagem estipulada (30%) está muito aquém da igualdade de representação; e a não existência instrumentos coercitivos adequados para impor o cumprimento do mínimo estabelecido. Um aspecto grave dessa última dimensão, segundo a autora) são as frequentes burlas ao sistema de cotas, sobretudo por meio da criação das citadas candidaturas meramente formais que os partidos apresentam apenas para preencher o mínimo exigido por lei.

Fabris (2015) observa ainda que “essas candidaturas fictícias não recebem investimento monetário, apoio político ou qualquer outro insumo necessário – isto é, sem recursos tipicamente fornecidos aos candidatos “de fato” – para terem reais condições de competitividade”. A autora também é enfática ao evidenciar que as candidaturas sem qualquer investimento e sem qualquer voto, majoritariamente de mulheres, são comumente expressão da fraude às disposições legais que visavam ampliar a participação feminina por meio das cotas. Enfatiza também que, para enfrentar o boicote às candidaturas femininas é preciso vincular candidatura e investimento

Isso deve-se ao fato de que, dentre as muitas barreiras enfrentadas por mulheres para entrar na esfera política, o acesso a recursos, como há muito demonstrado na literatura (ARAÚJO, 2012; SACCHET, 2012), tem papel chave: é indicador das chances de eleição de candidatos e tem efeito crucial quando se trata de candidatas.

A despeito disso, a Minirreforma Eleitoral de 2015 se apresentou como um obstáculo mais grave à inserção de mulheres na política: ao impor teto, misturar fontes de recursos, possibilitar o acúmulo (e a não realização do investimento), abrandar sanções por descumprimento, minou as possibilidades de acesso a recursos financeiros – tanto para campanha, quanto para programas de formação de quadro embora propagasse que garantia o contrário. Constata Bolognesi (2012) que os recursos financeiros são fator preponderante para o sucesso havendo relação direta entre os recursos financeiros declarados e o desempenho dos/as candidatos/as nas eleições de 2014, conforme Eduardo (2018).21

Nessas eleições, comparando a receita média dos eleitos/as e não eleitos/as, a autora observou que o primeiro grupo gastava, em média, 18 vezes mais que o segundo. Assim, o financiamento se confirmou como peça-chave para uma real e maior inclusão feminina na política.

Esse retrocesso ensejou a proposição, pela Procuradoria da República, de uma ação direta de inconstitucionalidade, ADI no 561722, questionando um dispositivo da Minirreforma Eleitoral de 2015 que, sob a justificativa retórica de transformar o quadro de sub-representação feminina na política ao assegurá-las acesso a recursos, regulamentava, na prática, o subfinanciamento de campanha de mulheres.

Em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADI no 5617 na qual a Procuradoria-Geral da República sustentava que os parâmetros mínimo e máximo para investimento em campanhas de candidatas contrariavam as premissas em prol da igualdade entre homens e mulheres prevista na Constituição, assim como os compromissos assumidos pelo Brasil na CEDAW.

O STF decidiu pelo reconhecimento da evidente afronta ao princípio da igualdade entre homens e mulheres expresso no art. 5º, I, CRFB, assim como os objetivos fundamentais da República quais sejam: criar uma sociedade justa, livre e solidária (art. 3º, I, CRFB/88), erradicar a marginalização e as desigualdades sociais (art. 3º, III, CRFB/88) e promover o bem de todos sem discrimação sem discriminação por sexo (art. 3º , IV, CRFB/88, preceito antidiscrimação) e, ainda, os artigos 2º, 3º, 5º e 7º da Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW).

Ademais, na oportunidade o Supremo determinou a destinação de pelo menos 30% dos recursos do Fundo Partidário às campanhas de candidatas do sexo feminino, sob o argumento de que a Lei determinava um mínimo de 30% para as candidaturas, essa mesma porcentagem deveria ser aplicada aos recursos e tempo de propaganda. Mister observar que o percentual de 30% não deve ser encarado como teto de investimento em candidaturas femininas, mas o ponto de partida.

Por sua vez, o Tribunal Superior Eleitoral, em 24 de maio de 2018, decidiu, por meio da Resolução no 23.553/2018, que os mesmos parâmetros estabelecidos pelo STF por ocasião da ADI em tela se aplicam ao Fundo Eleitoral (FEFC).

O TSE reproduziu, ainda, o entendimento de que o mínimo de 30% de recursos compreende também o tempo de propaganda político-partidária. Assim, destaca Fabris (2015), pela primeira vez as mulheres candidatas teriam acesso a 30% de todas as verbas de campanha e o mesmo percentual de todo o tempo de rádio e televisão.

Concluem Quesada e Massuchin (2019)23 que tal entendimento justifica-se pelo fato de que é preciso incentivar não só a participação da mulher nas eleições, mas também oferecer subsídios que aumentem suas chances de ser eleitas.

Segundo Htun e Power (2006), citados por Bolognesi (2012), o efeito não verificado da política de cotas dá-se justamente pelos efeitos perversos do sistema eleitoral brasileiro (individualismo, personalismo e relações de patronagem, causadas pela combinação de multipartidarismo, grandes magnitudes e lista aberta), bem como a falta de fiscalização e de cumprimento da lei de cotas pelo partidos políticos.

Miguel (2008)24, por sua vez, pondera que as listas abertas incentivam a competiçao interna entre os candidatos de um mesmo partido ou coligação. Deste modo, segundo autor, são beneficiados aqueles que possuem maiores recursos para sua campanha, sejam recursos materiais, presença na mídia, contatos eleitorais ou outras formas de capital político.

Ocorre que, em consonância com Quesada e Massuchin (2019), os resultados das cotas dependem de fatores políticos e estruturais específicos a cada contexto. Isso ocorre porque os processos políticos dependem também de negociações travadas dentro das arenas políticas. Assim, escolhas do partido importam para se medir a sub-representação.

A relevância da determinação proporcional do tempo da propaganda eleitoral decorre de maneira geral, segundo Quesada e Massuchin (2019), do fato de os candidatos de ambos os sexos possuem falas nos programas, no entanto, as mulheres tendem a aparecer mais em segmentos sem fala, quando comparadas aos homens, o que seria prejudicial para sua visibilidade na campanha de TV.

Essa decisão foi muito importante no que se refere às regras de financiamento eleitoral porque o impacto da potência financeira de um candidato sobre suas chances eleitorais tem sido amplamente demonstrado pela literatura sobre estudos eleitorais no Brasil e com outros países – como, por exemplo, BACKES; SANTOS (2012), JACOBSON (1980), LEMOS et al. (2010), MANCUSO (2015); SPECK (2015).

Além disso, o fator financiamento eleitoral é um diferencial que tende a afetar negativamente as chances de mulheres candidatas. Isso ocorre porque muitas mulheres não dispõem de uma rede de doadores privados, amplamente utilizada por candidatos mais calejados (THOMSEN; SWERS, 2017) – em sua maioria homens. Ademais, Ballington (2003), como bem apontado por Bohn (2009), evidencia que em partidos políticos tradicionalmente controlados por homens, candidaturas de mulheres usualmente têm menor acesso aos fundos partidários.

Ocorre que, surpreendentemente, em 28 de de junho de 2018 o TSE estabeleceu a Resolução no 23.575 na qual ficou decidido que as verbas de campanhas de mulheres podem ser utilizadas para gastos de campanhas compartilhadas por candidatos homens, desde que no interesse das candidaturas delas (art. 19, §§ 5º e 6º).

Já nas Eleições Gerais de 2018, pela primeira vez, os partidos políticos foram obrigados a repassar recursos públicos recebidos do Tesouro Nacional Nacional para as mulheres candidatas, além de abrir espaço no horário eleitoral gratuito. O Tribunal Superior Eleitoral incluiu em suas resoluções os entendimentos jurisprudenciais fixados nesse sentido.

Não obstante nem todos os partidos tenham cumprido com as novas exigências, os impactos dessas decisões foram notáveis, com um aumento em 50% de mulheres no parlamento, em comparação aos resultados das eleições anteriores: foram eleitas 77 deputadas federais, elevando o percentual de ocupação feminina feminina dos assentos da Câmara Federal para 15%, um número ainda muito baixo, porém inédito, já que até então nunca os homens haviam ocupado menos que 90% das vagas.

Só em 2019 a engenharia política associada às cotas eleitorais para mulheres se voltou para a questão do financiamento de campanhas de maneira incisiva com a emissão da Resolução 23607/2019, em seu art. 17, inciso 4. Tal texto também incluiu um sistema de reprimenda no inciso 8 do citado artigo.

No entanto, foi concedida “autoanistia” pelos artigos 55-A, 55-B e 55-C da Lei dos Partidos Políticos, incluídos pela Lei n. 13.831/2019, e que isentam de sanções os partidos que tenham descumprido, até 2018, com a obrigação legal de destinar 5% dos recursos oriundos do Fundo Partidário para promover a participação feminina na política.

Sob o argumento de que uma atuação do poder público, inclusive normativa, que enfraquece uma ação de combate à desigualdade, é equivalente a uma ação que a amplia, a Lei 13.831/2019 foi questionada sob o entendimento de que padece de inconstitucionalidade. Outro modo de apresentar essa eiva é fazer referência à proibição do retrocesso. Uma política pública que buscava cumprir a Constituição – e vinha obtendo êxito nesse caminho – não pode ser descontinuada, a não ser que razões igualmente ponderáveis e constitucionais se apresentem. Não é o caso. Trata-se da destinação de recursos públicos a instituições privadas (os partidos políticos), com vinculação muito moderada: 5%.

Apesar de estar pendente de julgamento a Ação Direta de Inconstitucionalidade 6230/DF104, sob relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, e proposta pela Procuradoria Geral da República, tratando exatamente da inconstitucionalidade da legislação mencionada, nada impede que as Cortes regionais já declarem de forma incidental essa inconstitucionalidade da anistia, nos casos concretos, para penalizar as legendas locais que reiteradamente vêm descumprindo com sua obrigação de financiar minimamente a participação feminina na política. No entanto, ainda há conclusões do Supremo Tribunal Federal sobre a declaração ou não de inconstitucionalidade da autoanistia legal de 2019.

Em janeiro de 2020, o Brasil ocupava o lugar de número 140 num ranking com 189 posições (IPU, 2020), bem abaixo dos demais países latino-americanos e caribenhos (com exceção do Haiti) e da maioria dos países em desenvolvimento com renda média alta.

Assim, diante da contínua passividade do Poder Legislativo, ainda composto por 85% de homens, em sua maioria brancos, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral repetiram a dobradinha rumo aos avanços no que se refere ao incremento das cotas legislativas de gênero, dessa vez para incluir o recorte interseccional de raça.

Determinaram nesse contexto que os recursos públicos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e o tempo de rádio e TV devem ser destinados ao pagamento de gastos com as candidaturas de homens negros na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações.

Também foi o Supremo Tribunal Federal, em sessão virtual realizada no dia 05 de outubro de 2020, quem, ao referendar por maioria a medida cautelar que já havia sido concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 738/DF99, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), determinou a imediata aplicação, já nas eleições municipais de 2020, dos incentivos às candidaturas de pessoas negras no que tange à obrigatoriedade da divisão proporcional do fundo eleitoral e partidário e do horário eleitoral gratuito.

Em 2021 o Brasil ainda ocupava apenas o 142º lugar no ranking da União Interparlamentar sobre a participação de mulheres nos parlamentos e em 144º na participação de mulheres em cargos ministeriais.

Ainda que as mulheres representem 46% das pessoas filiadas a partidos políticos, essa proporção não é verificada na ocupação de posições relevantes nos contextos partidários. Poucas mulheres figuram nos espaços decisórios dos partidos políticos o que repercute na ausência de poder feminino na seara da definição da destinação das verbas provenientes do fundo eleitoral, o que acaba por implicar na baixa eleição de mulheres.

Outro entrave à representação feminina na política é a violência política contra a mulher que, segundo o Ministério dos Direitos e da Cidadania, é a agressão física, psicológica, econômica, simbólica ou sexual contra a mulher, com o objetivo de impedir ou restringir o acesso e exercício de funções públicas e/ou induzi-la a tomar decisões contrárias à sua vontade. 

Nessa concepção estão incluídas as eleitas, as candidatas aos cargos eletivos, as ocupantes de cargos públicos, as dirigentes de conselhos de classe, de empresas estatais e das entidades de representação política. Assim, a sub-representação feminina no âmbito da política é a repercussão dessa violência que objetiva a exclusão da mulher do cenário político.

Visando combater tal violência, a Lei no 14.192, datada de 4 de agosto de 2021, estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher durante as eleições e no exercício de direitos políticos e de funções públicas, para criminalizar a violência política contra a mulher e para assegurar a participação de mulheres em debates eleitorais proporcionalmente ao número de candidatas às eleições proporcionais.

Deve-se reconhecer o avanço em se dispor de um instituto legal que reconheça a existência e ao mesmo tempo conceitue a violência política contra as mulheres. No entanto, a Lei no 14.192/2021 deixa de exemplificar as múltiplas formas de violência, inclusive inclusive simbólicas, psicológicas e econômicas, que podem ser utilizadas contra os direitos políticos das mulheres. Além de vaga, tal lei restringe-se apenas ao punitivismo penal.

Nesse mesmo ano, no tocante ao fomento da participação política das mulheres negras, a Emenda Constitucional (EC) 111, datada de 28 de setembro de 2021, foi criada visando potencializar tal representatividade na política. Espera-se que tal alteração constitucional possa gerar impactos positivos e aumentar o número de mulheres negras a ocuparem cargos eletivos. Tal emenda, em seu art. 2º, determina que os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados nas eleições realizadas de 2022 a 2030 serão contados em dobro com o objetivo de promover a distribuição, entre os partidos políticos, dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC).

Em 2022, por sua vez, foi promulgada a Emenda Constitucional (EC) 117, datada de 05 de abril, que impõe aos partidos políticos a destinação de, no mínimo, 30% dos recursos públicos para a campanha eleitoral das candidaturas femininas. Visando, deste modo, conforme Araújo (2021), efetivar a participação feminina nas campanhas e evitar que mulheres figurem como candidatas apenas para que seja atingida a cota imposta legalmente aos partidos.

Lamentavelmente, em 2022 foi aprovada uma nova anistia aos partidos políticos descumpridores das cotas de financiamento de gênero, agora por emenda constitucional. Trata-se da Emenda Constitucional nº 117, de 05 de abril de 2022, que alterou o artigo 17 da Constituição Federal, in verbis:

Art. 1º O art. 17 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido dos seguintes §§ 7º e 8º:

“Art……………………………………………………………………………………

§ 7º Os partidos políticos devem aplicar no mínimo 5% (cinco por cento) dos recursos do fundo partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, de acordo com os interesses intrapartidários.

§ 8º O montante do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e da parcela do fundo partidário destinada a campanhas eleitorais, bem como o tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão a ser distribuído pelos partidos às respectivas candidatas, deverão ser de no mínimo 30% (trinta por cento), proporcional ao número de candidatas, e a distribuição deverá ser realizada conforme critérios definidos pelos respectivos órgãos de direção e pelas normas estatutárias, considerados a autonomia e o interesse partidário.”

No §8º do artigo 17 da Constituição Federal acima exposto foi acrescentada uma conquista jurisprudencial no que se refere à destinação de pelo menos 30% dos recursos públicos aplicados pelos partidos em campanhas eleitorais para as candidaturas femininas, mas se ignorou completamente a jurisprudência de 2020 que havia garantido cotas raciais na distribuição desses recursos, na medida da apresentação das candidaturas de pessoas negras.

Constata-se que, sob a alegação de garantir benefícios às mulheres na política, ao flexibilizar as sanções pelo seu descumprimento, retirou a eficácia de uma política afirmativa que há anos vem sendo descumprida pelos partidos, conforme bem observa Araújo (2017).

Assim, mais uma vez, a expectativa é depositada na Corte Constitucional e na justiça eleitoral, em especial na forma como serão interpretados esses retrocessos e o absoluto descaso do Poder Legislativo com a concretização da paridade e inclusão que deveriam fazer parte da nossa democracia.

A despeito do apontado, o ano de 2022 foi marcado pelo recorde de registro de candidaturas femininas atingindo 33,3% dos registros nas esferas federal, estadual e distrital. Apesar de as mulheres representarem 53% do eleitorado brasileiro, atingindo aproximadamente o número de 82 milhões de eleitoras, apenas 17,28% das vagas no Senado são ocupadas por mulheres. Assim, o aperfeiçoamento da legislação é um mecanismo essencial para efetivar a participação feminina no cenário político.

Exemplos de ações afirmativas no sentido de promover a paridade de gêneros no âmbito político são as campanhas institucionais promovidas, em virtude da Lei no 13488, de 2017, pelo Tribunal Superior Eleitoral que incentivam a participação feminina, dos jovens e da comunidade negra na política.

Ocorre que, para além de incentivar e proporcionar mecanismos para as mulheres acessarem os espaços de decisões políticas, é preciso assegurar condições adequadas das funções quando eleitas, nesse sentido, em 2021, o Senado, através da Resolução 5, adicionou, ao Regimento Interno, a liderança da Bancada Feminina. Tal liderança goza das mesmas prerrogativas asseguradas aos líderes de partido ou bloco parlamentar tanto no uso da palavra quanto ao direito a voto.

Já no Tribunal Superior Eleitoral, através da portaria 791, foi instituída a Comissão Gestora de Políticas de Gênero (TSE Mulheres) cuja função é atuar no planejamento e acompanhamento de ações para estimular a participação feminina na política e na Justiça Eleitoral.

De acordo com o levantamento da Organização das Nações Unidas, divulgado de setembro de 2021, em média, a participação das mulheres nos parlamentos é de 25% sendo que, em 1995, tal representação feminina era, em média, de 11%. No citado levantamento o Brasil encontra-se aquém da média atual, com apenas 14,8% de representantes mulheres o que, em consonância com a própria ONU, caso esse ritmo persista, a paridade de gênero nos órgãos legislativos nacionais só será alcançada após 2063.

Já o relatório Desigualdade de Gênero e Raça na Política Brasileira, que a Oxfam Brasil e o Instituto Alziras lançaram em julho de 2022, evidencia que a paridade de gênero nas prefeituras brasileiras poderá levar, caso seja mantido o ritmo atual de crescimento na participação feminina na política eleitoral, até 144 anos para ser atingido. Caso seja considerada apenas a paridade racial, a paridade em comento será alcançada em vinte anos, nos moldes citados.

6. AVANÇOS E RETROCESSOS REFERENTES ÀS COTAS LEGISLATIVAS

A estimativa do alcance da paridade de gênero no âmbito da representação política é preocupante e evidencia a necessidade da realização de ajustes nas ações afirmativas de maneira a atingir o que constitucionalmente é preconizado. Nesse cenário, vale conferir que tem havido incremento pois o Centro Feminista de Estudos e Assessoria, Cfemea, organização não governamental, fundada em 1989, com sede em Brasília, monitorava, em 2000, 13 (treze) propostas tratando do tema do poder e da participação política. Dessas, de acordo com Miguel (2000) apenas uma foi aprovada e resultou na Resolução do Senado no 2 e de 16 de março de 2001. As demais foram arquivadas ao fim das legislaturas.

Já em dezembro de 2020, em vez de 13 propostas, havia 91 proposições monitoradas pelo Cfemea no campo do poder e participação políticas das mulheres. Na Câmara dos Deputados 79 propostas e no Senado Federal 12 propostas. Como em 2000, a maioria das propostas eram ações afirmativas, expressas na sugestão de adoção de cotas por sexo em diferentes espaços. A novidade foi a entrada com mais força da discussão da paridade.

Enquanto em 2000, havia uma única proposta sugerindo a paridade (PL 2355/2000), em dezembro de 2020, eram 17 propostas nesse sentido. Das quinze propostas tramitando na Câmara, onze tratam da paridade na política, seja na lista de candidaturas (4), seja nas vagas em disputa propriamente ditas (7); e quatro tratavam da paridade entre homens e mulheres em outros espaços, a exemplo da representação em conselhos e comissões.

No Senado, em dezembro de 2020, haviam duas propostas. Uma propondo paridade entre homens e mulheres na ocupação de vagas dos legislativos ( PEC 81/2019); e outra, paridade na lista de candidaturas à eleições proporcionais (PL 1984/2019). Outra novidade foram as propostas para prevenir, sancionar e combater a violência política contra as mulheres. Em dezembro de 2020 haviam oito tramitando na Câmara e duas no Senado Federal.

No entanto, mais de vinte e cinco anos depois da primeira legislação sobre cotas por sexo ainda temos proposições sugerindo o fim dessa política sugerindo a extinção das cotas por sexo sob o argumento de que ferem a autonomia partidária, levaram a fraudes e que isso se deu pela “ausência de interessadas em número para atingir o percentual reservado, que era então atingido por meio de “candidatas laranjas”.

Não houve, no entanto, questionamentos acerca do baixo investimento dos partidos políticos nas candidaturas das mulheres nem sobre os entraves históricos para a participação das mulheres na política; ao contrário, defendem os partidos e culpam as próprias mulheres por sua sub-representação.

No Senado também houve tentativa de extinção das cotas, através do PL 1256/2019, do senador Ângelo Coronel (PSD-BA), cuja justificativa foi a suposta dificuldade de encontrar candidaturas femininas viáveis. A proposta foi rejeitada. Na Câmara dos Deputados, o PL 2996/2019 nesse mesmo sentido foi retirado pela própria autora, Renata Abreu (PODE-SP).

Depois de 25 anos da política de cotas por sexo, segue o debate sobre cotas e sobre a ampliação da participação política e ocupação dos espaços de poder pelas mulheres. As medidas até agora adotadas tiveram pouco impacto. Em relação às cotas eleitorais, isso se deu em parte pela resistência dos partidos políticos que, enquanto puderam (e podem), se utilizaram de todos os artifícios possíveis para não cumprir o patamar mínimo de 30% por sexo, estabelecido pela legislação para as listas de candidaturas. Em parte, pelos limites de nosso próprio sistema eleitoral. Isso sem falarmos, é claro, na resistência atávica dos homens à divisão e compartilhamento do poder.

Assim, ainda estamos patinando no patamar mínimo de 30% das candidaturas, previstas por lei para as eleições proporcionais. Nosso sistema político e eleitoral mantém firmes as suas bases patriarcais, racistas e coloniais, sustentáculos da profunda desigualdade do nosso país. Para reverter esse cenário é necessário eleger mulheres e homens dispostos a transformar essas estruturas, compromissados com a perspectiva feminista e também antirracista.

Importante frisar que, de acordo com Miguel (2021), até o ano de 2014, nenhuma mulher ocupou qualquer cargo na mesa diretora da Câmara dos Deputados. Ao analisar a distribuição dos cargos titulares da Mesa Diretora entre legisladoras e legisladores entre 1995/2021, fica explícito o viés de gênero: dos 106 cargos titulares disponíveis no período analisado, apenas 7 ou 6,6% foram ocupados por deputadas. Até o presente ano, 2023, nenhuma mulher ocupou a presidência da Câmara dos Deputados a despeito de a cadeira existir desde 1891..

Importante mencionar que maior presença de mulheres na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados ocorreu a partir de 2019, na 56ª legislatura, período em que o percentual de deputadas também cresceu, atingindo o marco de 15%. Isso aponta para a importância do percentual de eleitas.

Houve uma articulação das parlamentares, a bancada feminina da Câmara, forma de atuação coletiva que surgiu na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988) a fim de pressionar pela garantia de direitos das mulheres na nova Carta. Desde então, ela contribuiu para avanços com a garantia da igualdade jurídica no novo Código civil, sancionado em 2002, ou a determinação da realização do aborto nos casos permitidos por lei (estupro ou risco de vida para a gestante) pela rede pública de saúde (MIGUEL, 2012).

A maior presença de mulheres no parlamento tem cada vez repercutido em benefícios para a classe feminina. Das duas leis de maior visibilidade em favor dos direitos das mulheres, uma – as cotas eleitorais – foi iniciativa de uma parlamentar do sexo feminino. A outra, a chamada “Lei Maria da Penha”, de 2006, contra a violência doméstica, foi iniciativa do Poder Executivo (MIGUEL, 2012).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudos recentes sobre a participação das mulheres na política brasileira registraram a baixa representação deste público nos espaços de poder e decisão e buscaram entender os fatores que obstaculizam a entrada e permanência deste público nessas instâncias.

Dentre tais fatores, são evidenciadas as desigualdades históricas e sociais que refletem nos espaços públicos nos quais se manifestam poder e liderança. Assim, sedimentou-se a dominação masculina restringindo as mulheres aos espaços privados e domésticos.

Ocorre que a porcentagem de mulheres nos parlamentos é um indicador relevante na avaliação da qualidade da democracia (LIJPHART, 2003). Dessa forma, a representação feminina em instâncias democráticas é extremamente importante (LIMA; FERNANDEZ; BATISTA, 2020).

Assim, com o intuito de reverter o quadro de sub-representação política das mulheres foram estabelecidas políticas públicas que visam incluir mulheres nas instituições representativas brasileiras – também denominadas cotas parlamentares. Mister observar que, no Brasil, conforme Baldin (2021)25, algumas das políticas públicas que têm por objetivo incluir mulheres nos espaços públicos de poder, como as citadas cotas, são inseridas “a reboque” de reformas feitas ao sistema político.

Nesse contexto, conforme enfatiza Bohn (2009), três inovações possuem extrema importância: a transformação do preenchimento das listas com candidaturas de mulheres, em obrigação legal, a reserva de fundos de campanha para essas candidaturas e a criação de um sistema de fiscalização e de reprimenda para punição de infrações.

Nesse aspecto, o estabelecimento da política pública de cotas, com objetivo de ampliar a participação das mulheres na política nacional recente, está marcado por três conjunturas jurídico-históricas: 1) da lei no 9504/1997, vigente de 1998 a 2006; 2) da lei no 12.034/2009, vigente de 2010 a 2018; e 3) da Emenda Constitucional (EC) no 97/2017, vigente deste as eleições de 2020. E, mais recentemente, pelas Emendas Constitucionais 111 e 117 que evidenciam que a ocupação dos espaços decisórios e de poder por mulheres é um objetivo a ser buscado pois tem potencial de transformação social.

O preenchimento das vagas femininas passou a ser obrigatório, bem como a concessão de verbas de campanha e de espaço para as candidatas na propaganda eleitoral. Ainda assim, como destaca Miguel (2008), permanece o hiato entre a cota de candidaturas e a proporção de cadeiras parlamentares efetivamente ocupadas por mulheres.

Desse modo, destaca Araújo (2005) que os partidos aparecem com elementos cruciais para a efetivação das ações afirmativas em prol da representação política das mulheres. No que diz respeito às cotas parlamentares em tela, a forma como têm sido incorporadas e efetivadas no sistema eleitoral depende do comprometimento dos partidos com essas medidas. Ocorre que as mulheres ficam dependentes dos dirigentes partidários no momento de definir aqueles/as candidatos/as que serão elegíveis.

E, lamentavelmente, aponta Bolognesi (2012) que partidos têm utilizado a cota de gênero apenas pro forma, visto que não chegam a cumprir a meta estabelecida legalmente de 30% de mulheres entre candidatos. Para alterar esse cenário, decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral tem sido relevantes para a luta das mulheres em busca da igualdade material que passa, necessariamente, por igualdade na representação política. Nesse contexto, o julgamento da ADI 5617 é marco.

Miguel (2012) destaca que a presença numérica faz diferença porque a ampliação do número de mulheres torna mais difícil insulá-las em nichos temáticos específicos ou barrá-las em blocos das posições centrais do campo. Assim, a ampliação da igualdade política não é um problema que diz respeito apenas às mulheres – ou qualquer outro grupo em posição subalterna. Configura-se, portanto, um desafio a ser enfrentado por qualquer sociedade que se queira democrática.

O enfrentamento da questão exige, conforme Miguel (2012) medidas no âmbito dos processos eleitorais, como as cotas; exige mudanças culturais, que garantam o reconhecimento desses grupos; exige a redistribuição dos recursos materiais que possibilitam a ação política, entre eles, o tempo livre. Mas exige também transformações na dinâmica das próprias instituições representativas, impedindo-as de simplesmente reproduzir as hierarquias já estabelecidas.

Atingir o projeto político constitucional de concretização da igualdade de gênero demanda, além da eleição de mais mulheres, a garantia de que essas possam de fato influenciar o processo decisório, com o objetivo de disseminar uma perspectiva de gênero nas políticas públicas resultantes do processo legislativo.

REFERÊNCIAS

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1 ARAÚJO, Gabriela Shizue Soares de. Mulheres na política brasileira. Arraes Editores. Edição do Kindle.

2 BOLOGNESI, Bruno. A cota eleitoral de gênero: política pública ou engenharia eleitoral? In: MIGUEL, Luis Felipe. Mulheres e representação política: 25 anos de estudos sobre cotas eleitorais no Brasil. Porto Alegre: Zouk, 2021. p. 229-247.

3 BOURDIEU, Pierre, A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

4 PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. Trad. De Marta Avancini. São Paulo: Paz e Terra, 1993.

5 PHILLIPS, Anne. De uma política de idéias a uma política de presença? Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/FdBzZvsFvDmZLZQQm5DKY8M/. Acesso em: 22 ago. 2023.

6 AFLALO, Hannah Maruci. O estranho caso do sistema político qu defende a vida, mas rechaça a maternidade. O Estado de S. Paulo, on-line, 9 de fevereiro de 2021. Disponível em: politica.estadao.com.br/blogs/legis-ativo/o-estranho-caso-do-sistema-politico-que-defende-a-vida-mas-rechaca-a-maternidade/. Acesso em: setembro de 2023.

7 SACCHET, Teresa. Representação política, representação de grupos e política de cotas: o debate feminista. In: MIGUEL, Luis Felipe. Mulheres e representação política: 25 anos de estudos sobre cotas eleitorais no Brasil. Porto Alegre: Zouk, 2021. p. 65-100.

8 JUSTIÇA ELEITORAL. Estatísticas – TSE Mulheres – Justiça Eleitoral. https://www.justicaeleitoral.jus.br/tse-mulheres/. Acesso em: 11 nov. 2023

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10 SARLET. Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

11 FABRIS, Lígia. Desigualdade de gênero na lei: recursos de campanha para mulheres na Minirreforma Eleitoral de 2015 e o julgamento da ADI 5617 no STF. In: MIGUEL, Luis Felipe. Mulheres e representação política: 25 anos de estudos sobre cotas eleitorais no Brasil. Porto Alegre: Zouk, 2021. p.199-227.

12 MIGUEL, Sônia Malheiros. A política de cotas por sexo: Um estudo das primeiras experiências no Legislativo brasileiro. CFEMEA . — Brasília: CFEMEA, 2000.

13 BRASIL. Lei no 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm. Acesso em: 20 set.2023.

14 ARAÚJO, Clara; ALVES, José Eustáquio Diniz. Impactos de indicadores sociais e do sistema eleitoral sobre as chances das mulheres nas eleições e suas interações com as cotas. In: MIGUEL, Luis Felipe. Mulheres e representação política: 25 anos de estudos sobre cotas eleitorais no Brasil. Porto Alegre: Zouk, 2021. p. 351-386.

15 BOHN, Simone. Avanços e tarefas ainda por fazer: a política de cotas nas eleições municipais (2012-2020). In: MIGUEL, Luis Felipe. Mulheres e representação política: 25 anos de estudos sobre cotas eleitorais no Brasil. Porto Alegre: Zouk, 2021. p. 401-423.

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18 TSE. Resolução nº 23.575, de 28 de junho de 2018. Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2018/resolucao-no-23-575-de-28-de-junho-de-2018. Acessom em. 25 ago. 2023.

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1 Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade de Ensino Superior da Amazônia Reunida – Fesar/Afya – Redenção-PA.

2 Docente da disciplina “Direito Constitucional” do Curso de Direito da Faculdade de Ensino Superior da Amazônia Reunida – Fesar/Afya – Redenção-PA, pós-graduada em Direito Processual Civil.

3 Acadêmica do Curso de Direito da Fesar/Afya – Redenção – PA