OS SENTIDOS DOS VERBOS EM UMA ABORDAGEM SEMÂNTICA ENUNCIATIVA: UMA ANÁLISE DO VERBO “ANDAR” E A SUA VARIEDADE DE SENTIDOS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10249261606


Florisbela Deuselita De Oliveira[1]


RESUMO: O presente estudo direciona-se a uma reflexão sobre como se dão algumas ocorrências da classe gramatical “verbo”, visando analisar os efeitos de sentidos construídos mediante a enunciados utilizados no cotidiano. Para uma melhor compreensão desta proposta, será realizada uma análise de identificação nos possíveis valores de sentidos ocorridos no verbo “andar” e na sua aplicabilidade em enunciados diversos. A pretensão aqui está localizada em explorar o processo e a ocorrência dos valores referenciais ocorridos no verbo “andar” pela construção e desconstrução de sentidos, propiciados por enunciados variados, a fim de buscar quais outros valores/sentidos que a marca verbal “andar” se encarrega em enunciados diversos. Para a realização da análise, o corpus foi composto a partir de enunciados selecionados e retirados de diversas fontes. Na discussão dos resultados, a pesquisa interpretou os achados descrevendo detalhadamente os sentidos encontrados e suas variações.

PALAVRAS-CHAVE:  Enunciado; Verbo; Andar; Construção de Sentido.

ABSTRACT: The present study is directed towards a reflection on how some occurrences of the grammatical class “verb” occur, aiming to analyze the effects of meanings that are constructed through statements used in everyday life. For a better understanding of this proposal, an identification analysis will be carried out in the possible values of meanings occurring in the verb “andar” and their applicability in different statements. The intention here is to explore the process of the occurrence of referential values occurring in the verb “walk” through the construction and deconstruction of meanings, provided by varied statements, in order to seek out what other values/meanings the verbal mark “andar” are entrusts in different statements. To carry out the analysis, the corpus was composed from selected statements taken from various sources. In discussing the results, the research interpreted the findings by describing in detail the meanings found and their variations.

KEYWORDS: Utterance. Verb. To Walk. Meaning Construction.

Introdução

Este artigo investiga sobre como se desenvolve a formulação e a reformulação de significação da categoria gramatical “verbo”, com o intuito de examinar os efeitos de sentidos presentes em discursos cotidianos.

A pesquisa é do tipo qualitativa e de natureza descritiva, focando a análise semântica e enunciativa do verbo “andar”. A metodologia do estudo compreende a definição do objeto de estudo, coleta de dados, análise dos dados e discussão dos resultados. O objeto de estudo é a significação e os valores semânticos do verbo “andar” em diferentes enunciados, tendo como objetivo analisar como a significação do verbo em questão é formulada e reformulada em diferentes contextos, identificando os possíveis valores de sentido atribuídos a ele. 

Para a realização da análise, o corpus foi composto a partir de enunciados selecionados e retirados de diversas fontes, tanto presentes no dicionário Houaiss (2001), como em enunciados pertencentes à internet. Também utilizamos expressões conhecidas e usadas no cotidiano, tais como as retiradas do <dicionarioinformal.com.br>, no intuito de subsidiar uma melhor análise de conteúdo, no qual foi dada ênfase na semanticidade de sentidos de propriedade do verbo “andar”, observando as propostas teóricas e metodológicas dialogadas por autores como Benveniste (1988, 1989), Marcia Cançado (2005), Vogüé (2011) e Lima (2010), além de outros autores consultados.

Na discussão dos resultados, a pesquisa interpretou os achados descrevendo detalhadamente os sentidos encontrados e suas variações, comparando-os com os pressupostos teóricos utilizados.

1    O uso do verbo na construção de sentidos

A interação através da linguagem, seja oral, escrita ou gestual, constitui, sobretudo, ato imprescindível para a humanidade. Por isso, é importante que os currículos escolares abordem as atividades de uso da linguagem para além do ensino das nomenclaturas, definições e classificações gramaticais, especialmente, quando partem para o processo de compreensão da classe gramatical verbal, uma vez que essa mesma unidade gramatical traz uma vasta propriedade de natureza polissêmica.

A mobilidade dos verbos ocorre de muitas maneiras, e por terem valores e sentidos polissêmicos, é de fundamental importância não se reter apenas ao seu sentido literal em um determinado enunciado, ou acreditar que uma unidade lexical verbal terá apenas uma única significação de sentido. Sendo assim, não apenas o verbo “andar”, mas também muitos outros verbos, podem conter mais de uma significação e isso, porque eles podem estar em diferentes enunciados. A partir do acréscimo de novos termos, ou outros casos que serão explicados mais adiante, alguns desses verbos que pedem complemento poderão obter um novo sentido no enunciado, pois alguns verbos da língua portuguesa possuem habilidades capazes de mudar o sentido absoluto, a depender do contexto em que estiverem inseridos. 

Benveniste (1988, p. 184–185) relata que: “É impossível assim, diante de uma forma verbal isolada, dizer se é transitiva ou intransitiva, positiva ou negativa no seu contexto, se comporta um regime nominal ou pronominal, singular ou plural, pessoa ou não etc.”. De acordo com esse apontamento de Benveniste, pode-se afirmar que os sentidos dos verbos são construídos quando a enunciação é proferida, e não é algo já estabelecido e imutável. No caso do emprego dos verbos em enunciados, o sentido é produzido no instante e pela situação específica da enunciação ocorrida.

Azevedo Filho (1975) apud Travaglia (2016, p.26) destaca alguns aspectos relacionados aos valores de sentidos ocasionados pelos verbos de modo geral, que certamente requerem um aprofundamento de estudo, pois o verbo nem sempre pode apresentar um valor temporal. Há vezes em que o verbo pode exprimir um valor aspectual mais predominante que o temporal em um enunciado. 

Quadro – 1. Alguns aspectos

ASPECTOMEIO DE EXPRESSÃO
Momentâneo  Presente do indicativo
DurativoPresente do indicativo, pretérito imperfeito do indicativo (duração, tempo linha), estar + gerúndio.
IncoativoPresente do indicativo (o único exemplo dado é de um verbo incoativo: amanhecer), começar + a +
InconclusoPretérito imperfeito do indicativo
ConclusoPretérito perfeito do indicativo, pretérito mais-que-perfeito do indicativo, acabar + de + infinitivo.
PermansivoPretérito perfeito composto do indicativo, presente do indicativo
FrequentativoPresente do indicativo, costumar + infinitivo.
HabitualPresente do indicativo, pretérito imperfeito do indicativo.
De ação iminenteIr + infinitivo

Fonte: Azevedo Filho (1975) apud Travaglia (2016, p. 26).

Considerando o quadro explicativo acima, vê-se a real necessidade de examinar a composição dos verbos, de investigar a adequação ou não desses verbos para a compreensão da semanticidade verbal. Lima (2010, p. 243) esclarece que:

O fundamental em uma aula de língua portuguesa em que está trabalhando os tempos verbais não é o aluno saber classificar o tempo gramatical a ou b, mas perceber os valores temporais e aspectuais que forma assume em construções de significação distintas (Lima, 2010, p.243).

Diante dessa afirmação, compreende-se a importância que o ensino do uso dos verbos, sob forma de situar o modo e o tempo, precisa ir além das nomenclaturas, das definições e classificações isoladas. É necessário buscar formas de atividades metalinguísticas, a fim de possibilitar aos alunos uma melhor compreensão de como empregá-los em diversas situações cotidianas. Assim, formulando e reformulando cada tempo e modo verbal, a partir de exemplos enunciativos, nos quais se aplique o referido verbo com seu tempo e modo praticado em sua multiplicidade, verificando os sentidos referenciais em que tais verbos proporcionam naquele cenário enunciativo.

Decorrente disso, vê-se como uma equivocação o professor que, ao ensinar uma categoria gramatical em sala de aula, encontra-se, na maioria das vezes, condicionado a uma sistematização pré-estabelecida e estagnada. Essas limitações são advindas, em muitos casos, das formações escolares que já estão convencionadas a ensinar os conteúdos gramaticais apenas em seu aspecto morfológico, apresentando, por exemplo, os verbos e seus modos (indicativo, subjuntivo, imperativo), descartando as perspectivas que incluem as possibilidades de variações dessa categoria.

As gramáticas normativas já existem para essa função. Elas estabelecem uma predefinição e uma conjugação condicionada aos tempos e modos verbais, trazendo à luz tanto as vozes verbais (ativa, passiva, reflexiva), quanto às formas nominais dos verbos (infinitivo, gerúndio e o particípio). Além disso, apresentam previamente as flexões nos tempos verbais (presente, pretérito perfeito, imperfeito, mais-queperfeito, futuro do presente e do pretérito), estabelecidos nas normas da gramática da língua portuguesa.

Portanto, o ensino dessa categoria não deveria se manter apenas nessas nomenclaturas, pois se perde uma oportunidade de verificar os valores e os sentidos dos enunciados construídos, e condiciona consequentemente os alunos a mera decodificação do conteúdo. Na maioria dos casos, os alunos empregam o uso dos verbos de forma isolada à situação enunciativa em que poderia ser proferida. Essa abordagem torna o ensino do verbo superficial em sala de aula, resultando em uma desvinculação entre o uso dos verbos nos enunciados e a busca por novos sentidos que podem ocorrer em situações distintas.

E assim, dentro desses mal-entendidos supracitados percebe-se quão notável é a ocorrência do erro de  ensinar aos discentes a conjugação de um verbo, em seus tempos e modos verbais, seguindo o mesmo paradigma já determinado, tabelado e demonstrado nas gramáticas normativas. Em casos de 1ª, 2ª e 3ª conjugação (por exemplo os verbos regulares, alguns irregulares), que já possuem uma flexão modelo exposto nos livros didáticos e nos meios alternativos ligados à tecnologia, apresentam as mesmas terminações padrões, cabendo ao aluno apenas substituir o radical de um verbo por outro, ou a desinência de um tempo verbal por outra, realizando a atividade de conjugação verbal. Desfavoravelmente, esse mesmo aluno habitua-se, em alguns casos, à desinformação sobre quais situações deve-se ou pode-se usar esses verbos conjugados e qual a finalidade de realizar tal atividade.

Nessa direção, faz-se necessário retomar que “para Culioli, são os enunciados que constituem o dado a partir do qual podem ser restituídos os mecanismos de linguagem” (Vogué, 2011, p.65). Formular, reformular e transportar para uma capacidade em reconhecer os sentidos enunciativos das unidades verbais pode e deveria ser uma atividade recorrente em sala de aula. Tais exercícios ocorrendo dentro da classe certamente favoreceriam muito a atividade docente, contribuindo para a criatividade do professor diante do ensino da gramática normativa.

Assim, percebe-se uma necessidade de que mais do que ensinar a conjugar um verbo, é preciso analisar a produção de sentido que esse mesmo verbo pode acarretar, em situações distintas, e entender a distinção entre sentido e significado.

 Após essa visão, tem-se uma possível recomendação para o trabalho docente, que seria instigar os alunos a reconhecerem os efeitos de sentido decorrentes no emprego dos verbos nos enunciados, impulsionando-os a tentarem distinguir os tempos e modos verbais como objetivos de aprendizagem. E, nessa situação, os professores teriam como um eixo temático o trabalho de análise linguística, promovendo a identificação de marcadores conversacionais, manipulando construções adequadas para cada verbo empregado, e caracterizando de acordo com a dada situação, através de enunciados expositivos. Sobre isso, Cunha (2007) relata que: 

A expressão “efeito de sentido” não possui uma definição única utilizada por todas as correntes linguísticas que se ocupam da linguagem em uso. No entanto, de maneira geral, a expressão “efeito de sentido” pode ser entendida como o sentido que é construído para entre os sujeitos, considerando-se as indicações fornecidas não somente pelos signos linguísticos, mas também pelos parâmetros da situação de comunicação (Cunha, 2007, p. 89). 

Uma hipótese sugestiva para realização de um trabalho reflexivo, na parte de estudo de produção de sentidos, teria como ponto de partida promover a interação desses alunos, propondo diálogos do nível básico ao intermediário, ou até mesmo avançado, a depender do nível da turma, e a prática de uso dos verbos em seus modos e tempos estudados. Ao mesmo tempo, poderiam ser inseridos exercícios de análise de formulação e reformulação dos enunciados pronunciados, trabalhando em conjunto com os alunos, envolvendo a colaboração e a participação de todos na sala de aula. 

Posteriormente, os alunos poderiam revisar as marcas verbais já estudadas e aplicá-las em novos enunciados relacionados ao mesmo conteúdo gramatical, organizando e recriando novos efeitos de sentido nos enunciados simulados por eles mesmos. 

Diante disso, entende-se que é de fundamental importância criar oportunidades de trabalho em sala de aula com análise de construção de sentidos, observando qual o valor temporal subjacente estaria implicado ao enunciado abordado. E, para entender melhor essa proposta, certamente, será fundamental realizar uma análise do verbo, como uma forma mais favorável de exemplificar, tendo em vista as implicações do estudo de um elemento gramatical sem a observação da sua semanticidade. 

2     Uma análise do verbo “Andar” dentro de uma abordagem semântica enunciativa

Abordar o ensino da categoria verbal devia referir-se, principalmente, a sua articulação e ao seu funcionamento na língua. Além de serem uma boa base semântica, os verbos apresentam uma natureza mais dinâmica, pois, como mencionado anteriormente, a classe gramatical do verbo apresenta uma forma linguística muito polissêmica.

Não se busca aqui uma análise do sentido literal do verbo “andar”, pois ele já tem um sentido pleno bastante conhecido e de fácil compreensão. Este artigo busca, portanto, analisar as possibilidades de manipulação e variação de sentidos correspondentes ao seu emprego, a forma diferenciada de uso da língua em diferentes enunciados.  

Contudo, torna-se de fundamental importância trazer primeiramente alguns conceitos do verbo mencionado segundo alguns dicionários, para a posteriori seguir com a buscar de seus possíveis sentidos.

No Dicionário Aurélio Ilustrado (2008, p.33) tem-se as seguintes definições:

Quadro – 2. Significado de “andar” retirado do Dicionário Aurélio

Fonte: (Ferreira, 2008, p.33).

Vê-se nesse dicionário apenas quatro definições de sentido para “andar”, nele se transcreve cada sentido em uma frase, certamente para dar esclarecimento da definição proposta. 

A seguir, veremos as definições propostas por outro dicionário, para que seja dado continuidade ao trabalho de análise. As definições de “andar” no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

Quadro – 3. Significados de “andar” retirado do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa

Fonte: (Houaiss, 2001, p.141–142).

Pode-se observar que o dicionário Houaiss apresenta 23 definições que, juntamente com o Dicionário Aurélio, trazem de forma precisa as mais variadas possíveis definições da palavra “andar”. Porém, como já foi mencionado, a intenção de estudo se dedica em fazer análise do uso e funcionamento do verbo “andar” em enunciados, e, para tanto, o conteúdo para análise foi selecionado dos mais variados enunciados, tanto presente em dicionário como enunciados presentes na internet, com o intuito de contribuir para uma melhor análise de conteúdo.

A princípio, será apresentado um enunciado simples, de sentido mais básico do verbo “andar”:

                                                              (1)        Pedro anda rápido.

Em (1), pode-se verificar um sentido geral e costumeiro da palavra. O presente do verbo “anda” traz o sentido semântico de locomoção sobre as próprias pernas. Logo, nessa situação, é possível compreender que “anda” está sendo empregado no sentido “caminhar”, “locomover”, dando uma ideia de movimento.

Expressando uma certeza, possuindo um valor de sentido “aspectual habitual” que, de acordo com Travaglia (2006), esse aspecto se caracteriza por ser um “(presente iterativo), quando dizem que o presente do indicativo e o pretérito imperfeito do indicativo indicam ou expressam um fato, uma ação que é costume, que acontece habitualmente” (Travaglia, 2006, p.22).

E exerce também a função de forma sintática de “verbo de ação”, podendo ser facilmente substituído por:

                                                          (1a)      Pedro caminha rápido.

                                                        (1b)      Pedro desloca-se rápido.

Nas ocorrências (1a) e (1b) foi possível haver substituições sem alterar os valores de sentido do verbo “andar”. 

Veremos outras possibilidades de sentido no próximo enunciado:

                                                      (2)        O jovem anda preocupado.

Já a enunciação (2) traz um sentido diferenciado do enunciado (1), porém, ainda assim, é bastante utilizado em sua forma geral e social. Nessa situação o verbo “andar” refere-se ao estado em que o sujeito se encontra. O que se pode atestar é que o sentido do verbo “andar” em (1), não se apropria dessa mesma situação de sentido em (2). A localização ainda remete a um valor genérico, pois não determina nenhum jovem em específico, nem o contexto da situação enunciativa que explicaria a motivação dessa preocupação.

No enunciado (2), o verbo “anda” indica uma forma, estado recente ou aspecto momentâneo, assumindo que antes o jovem em questão não andava preocupando. Nesse contexto, foi permitida a alteração pelos seguintes termos verbais sem alterar o sentido do enunciado proferido:

       (2a)      O jovem está preocupado.

(2b)     O jovem parece/permanece preocupado.

Em sentido costumeiro, percebe-se que houve possibilidades de substituir o verbo “andar” por outros verbos, mas esses verbos têm sentidos completamente diferentes em comparação ao (1). 

Tratemos a seguir de mais um enunciado com o verbo “andar”:

                     (3)        O bebê anda chorando.

Diferentemente de (1) e de (2), na situação (3) sucederia em dizer que “anda” se caracterizaria como um verbo de estado. Entretanto, no caso do enunciado (3), o verbo “andar” está preposicionado como um verbo auxiliar do verbo principal, ou seja, há uma locução verbal. Em tal caso, o verbo “anda” atua como um verbo auxiliar, e não exterioriza um sentido próprio, estando seu sentido entrelaçado com o sentido do verbo principal, ocorrendo uma variação de sentido em função da construção sintática.

Outro fato a ser observado no enunciado (3) é a relação de continuidade expressa em “anda chorando”, pois ele indica uma ação não concluída. Além disso, apesar de ser classificado como verbo com função copulativa, sendo um dos que mais se destacam nessa função (Bessa Neves, 2006), no enunciado, “anda” funciona como auxiliar de “chorando”, indicando uma de ação momentânea ou temporária, e não apenas uma relação de ligação como o sujeito. Nessa ocorrência verifica-se um evento em “desenvolvimento gradual da ação”, que Travaglia (2016) define como:

[…] auxiliares acurativos que se combina com os verbos no infinitivo ou gerúndio do verbo principal para determinar com mais rigor os aspectos do momento da ação verbal que não se acham bem definidos na divisão geral de tempo presente, passado e futuro” (Travaglia, 2016, p.27)

 Além disso, a situação referencial enunciativa de (3) é ambígua, por trazer um questionamento passível de mais uma interpretação de sentido. Temos: “O bebê está apenas chorando?” ou “O bebê está caminhado e chorando ao mesmo tempo?”. Não é possível constatar qual é o verdadeiro sentido proferido, apesar da primeira interpretação ser mais viável para um bom entendimento. No entanto, não podemos deixar de verificar que, dependendo de algum contexto específico, a segunda interpretação também se torna bastante plausível, podendo ou não haver a necessidade de algum custo enunciativo, mesmo que nessa segunda situação o verbo “anda” deixe de ser verbo auxiliar para corresponder a um verbo de ação. 

Dando continuidade, a essas operações de análise linguística, temos a seguintes afirmativas:

(4)      O aluno foi mal na prova porque a única coisa que fazia era andar nas nuvens

durante as aulas.

(5)        

Fonte: maionesefilas.blogpot.com / acesso em 16 de nov.2021.

Em ambos os enunciados (4) e (5), no ponto de vista linguístico, verifica-se que está inicialmente caracterizado pelo nível de representação mental, e depois passará para o nível de representação linguística. Posteriormente, o enunciado passará para o nível metalinguístico, uma vez que a operação de manipulação de dados se decorre por meio de um ajustamento para que se possa chegar um dado valor. Vogué (2011) esclarece que: 

Podemos, portanto, dizer que a linguagem é o traço de um pensamento organizado de um modo específico entre outras formas possíveis de pensamento: todo pensamento não se reduz à linguagem. Podemos evocar imagens (imagens figurativas, imagens mentais), os gestos.” (Vogué, 2011, p.42).

 Em (5), a charge “ando meio desligado” aborda em sua arte, um sentido literal, no qual a figura humana tem um conecto, ou seja, um fio transmissor de eletricidade desligado da tomada, porém, no sentido subentendido em “andar nas nuvens” e “anda meio desligado” não tem propriedade validável. O sentido dos enunciados remete um entendimento que o Sujeito Enunciador (SE) está com o pensamento longe, distraído, imaginando coisas ou desatento ao momento da enunciação. Pois, de acordo com Márcia Cançado (2005): 

As teorias que tratam do significado do ponto de vista representacional, ou seja, o significado como uma questão de representação mental, que não tem relação com a referência no mundo, são conhecidas como teorias mentalistas, ou representacionais ou ainda cognitivas. (Cançado, 2005, p. 24)

Evidentemente há uma correlação nos acontecimentos linguísticos, promovendo a reflexão sobre os valores que determinados verbos podem evidenciar a partir de novos enunciados construídos, mediante a prática de formulação e reformulação dos verbos flexionados em diferentes modos e tempos pronunciados em vários enunciados. 

Nesse entendimento Marcia Cançado (2005) relata que:  

A cada tipo de verbo são associados diferentes papéis temáticos […]. Essas informações a respeito dos papéis temáticos dos verbos fazem parte do conhecimento semântico da língua que o falante adquire. Portanto, espera-se que essas informações, de alguma maneira, estejam estocadas no léxico. Devemos ter informações não somente a respeito do número e do tipo sintático dos complementos que um verbo pede, ou seja, a sua transitividade, mas também devemos saber que tipo de conteúdo semântico esse complemento tem, ou seja, se é um agente, um paciente, etc.[…]. Na literatura da gramática gerativa, essa lista de papéis temáticos é geralmente chamada de grade temática[…]. (Cançado, 2005, p. 120-121).

Assim, vê-se, momentaneamente, a necessidade de analisar o verbo sob vários aspectos, para a construção e produção de sentidos diferentes. Explorando, dessa forma, possibilidades de aprendizagens no uso que um mesmo verbo pode exprimir, uma vez que um verbo de movimento ou ação pode também indicar um estado, construindo novos sentidos e significados.

Seguiremos para mais enunciados em análises.

                                   (6)        Carla está a andar em círculos nesse projeto.

Em (6), a sequência enunciativa, o sentido, traz uma diferenciação no verbo “andar” que geralmente remete a uma ideia de algum tipo de movimento. Porém, nessa afirmativa, o sentido está atribuído a algo que não foi desenvolvido, algo parado, que não evoluiu, que não saiu do lugar. Se considerarmos (6) como um todo, verifica-se que o exemplo se trata de uma “expressão idiomática”. 

E para um melhor esclarecimento pode-se afirmar que:

 Uma expressão idiomática ocorre quando um termo ou frase assume significado diferente daquele que as palavras teriam isoladamente. Assim, a interpretação é captada globalmente, sem necessidade da compreensão de cada uma das partes. (Só Português, 2004-2021).

O próximo enunciado, transcorre a subsequente ocorrência enunciativa:

                            (7)        O processo andou mais depressa do que se esperava.

Nessa assertiva (7), a unidade lexical “andou” procede um outro valor referencial, que indica uma continuidade ou progressão de algo que, por fim, acabou sendo realizado. É válido afirmar que o posicionamento desse termo em sua forma pressupõe uma circunstância que teve um seguimento concluso. 

A seguir mais um enunciado sugestivo: 

(8) A inflação anda perto de 10% ao ano.

Em (8), o valor referencial de “anda” opera sobre um domínio quantitativo, no qual é possível caracterizar uma localização complexa pertinente ao índice de parâmetros sobre as taxas numéricas em relação ao aumento de preços em produtos ou serviços. Esse enunciado desencadeia uma propriedade relativa em escala de valores, onde o sentido de “anda” é construído em equivalência a uma aproximação em atingir um certo número. 

Vejamos um outro enunciado com o verbo andar:

(9) Pedro sempre anda na linha.

A ocorrência (9) resulta uma construção de sentido distinta das anteriores. O advérbio “sempre”, anteposto ao verbo “anda”, pontua um aspecto durativo, localizando uma relação predicativa. A expressão idiomática “andar na linha” implica dizer que Pedro tem um modo de agir corretamente, expressa uma confiança no sujeito enunciador. Portanto, a noção de domínio de “andar na linha” resulta em uma qualificação de Pedro. 

Tratemos para análise da próxima sentença:

                                         (10)    Ana anda com a pulga atrás da orelha.

O enunciado (10) traz uma expressão idiomática popular “andar com a pulga atrás da orelha”. Nesse contexto, o verbo “anda” marca um estado de comportamento do Sujeito Enunciador (SE), atuando como verbo de ligação, conferindo um sentido em que o (SE) está levantando suspeitas de alguma coisa; há uma desconfiança sobre um fato específico ou alguma pessoa. A relação enunciativa do verbo “andar” remete a um valor genérico, pois não especificou a que está relacionada essa desconfiança.

Vejamos mais enunciados:

(11)Ele só anda com poderosos.

(12) Não andes com estranhos.

No enunciado (11) e (12), o verbo “andar” desencadeia uma relação de sentido em estar acompanhado, em ter convivência. Já em (12), há o marcador “não”, caracterizado como advérbio de negação, tirando a noção de domínio sobre o verbo “andar” e pontuando o valor de asserção negativo. 

Seguiremos a seguir com o próximo enunciado e a que sentido ele remete:

(13) O relógio precisa dar corda para andar.

No exemplo (13), o verbo “andar” acarreta um valor de sentido de funcionamento, no qual, o termo “precisa dar corda” está diretamente vinculado a progressão do andar dos ponteiros no relógio, incidindo sobre a competência de funcionamento do relógio, que depende do impulso de dar corda para que ele mesmo possa estar em execução de sua atividade plena.

No próximo enunciado temos:

(14) Menino, anda logo com isso!

Em (14), tem-se uma oração no modo imperativo, expressando uma entonação de ordem ou pedido. Nesse enunciado, a interpretação do emprego do verbo está direcionada ao sentido de ter pressa, de precisar agilizar algo. Supõe-se uma situação em que uma mãe esteja com pressa por algo e fale para seu filho agilizar o que ele esteja fazendo, para então concluir a sua ação desejada, não especificando o quê necessariamente, podendo ser algo que requer agilidade em caminhar ou agilidade em algo que não implicaria caminhar, por exemplo, terminar uma lição escolar.

Dando continuidade nas análises, temos a seguir:

(15) A sogra não gosta de andar de saltos.

Na ocorrência (15), a unidade lexical “andar” contempla o sentido de usar ou calçar saltos, sucedendo uma relação de propriedade sensorial, qualificando uma preferência do sujeito gramatical, em que o sujeito pode não gostar de saltos por inúmeros motivos. Desde não gostar de andar com saltos ou não se sentir confortável, entre outros, desencadeando uma propriedade de sensação tátil preferencial do sujeito.

Ainda é importante destacar que, em alguns casos, o verbo “andar” assume o valor de um substantivo, como nos exemplos a seguir:

(16) O andar de Regina era triste.

Na afirmativa (16), o verbo “andar” possui valor de substantivo — atribuído pelo uso do artigo antecedido ao verbo. Nesse caso, portanto, o “andar” não permite conjugação verbal. Assim como no próximo enunciado, que transcorre mais uma ocorrência enunciativa:

(17)Como está o andamento do seu manuscrito?

Nessa assertiva (17), a unidade lexical “andamento” não vem a ser um verbo como já se tem habitualmente, mas sim, atribui-se o valor de um substantivo, empregado em uma forma de sentido um pouco menos usual em relação às demais, uma vez que, o sentido desse substantivo, nesse caso, procede um outro valor referencial, que indica a representação de continuidade, de progressão, por exemplo:

(17a) Como está a continuação do seu manuscrito?

(17b) Como está o prosseguimento do seu manuscrito?

Nesse sentido, é válido afirmar a ocorrência de posicionamento desse termo em outra forma, no qual o aspecto da unidade lexical “andamento” pressupõe uma circunstância não concluída, inacabada e imperfeita, onde a possibilidade de manuseio de termos empregados poderia acarretar ou não novos sentidos.

3    Uma possível interpretação das análises discursadas

Depois de verificar o sentido do verbo “andar” analisado em 17 enunciados, foi possível observar que o verbo “andar”, mesmo operando como verbo principal, pode trazer um valor referencial de movimento, de continuidade, de progressão ou de agilidade, em uma ação a ser desenvolvida ou já concluída. Assim, o verbo “andar” também pode desencadear o sentido de propriedade a um estado emotivo ou a uma condição de comportamento do sujeito enunciador, mediante ao uso de preposições vinculadas ao seu complemento (uma relação predicativa, um adjunto ou uma expressão idiomática), inserida posterior ao verbo em questão. Além disso, o verbo pode também funcionar como um substantivo morfologicamente situado, a depender do enunciado e da situação ocorrida.

Considerações finais 

Nesta proposta de estudo não se buscou pesquisar o sentido literal do verbo andar, pois, bem como foi dito inicialmente, ele já tem um sentido pleno bastante conhecido e de fácil compreensão. O principal objetivo da pesquisa foi sondar as outras possibilidades de ocorrências do verbo “andar”, verificando novas perspectivas de manipulação e variação de sentidos correspondentes ao seu emprego, em formas diferenciadas de uso na língua, com enunciados distintos.

Assim, resulta-se uma necessidade de salientar que, mais do que apenas ensinar a conjugar um verbo, é preciso analisar a produção e os efeitos de sentido que esse mesmo verbo pode acarretar, em situações distintas, entendendo a diferença entre sentido e significado. Ao explorar o uso dos verbos na linguagem cotidiana, a pesquisa pode fornecer reflexões para os estudos enunciativos.

Dessa forma, acredita-se que este artigo pode trazer importantes contribuições para a linguística e áreas relacionadas. Podendo assim, contribuir para o avanço e entendimento da semântica e da enunciação, oferecendo novas perspectivas sobre o funcionamento dos verbos em diferentes contextos. Além disso, pode desenvolver novas metodologias e abordagens de ensino da gramática, baseadas além das normas, nos usos, tornando assim o ensino mais didático. As análises podem servir como base para pesquisas futuras, integrando a teoria linguística com a prática de ensino, e demonstrando como conceitos teóricos podem ser aplicados para melhorar a compreensão e o uso da língua pelos alunos. Essas contribuições destacam a importância e a relevância de uma pesquisa que aborde o verbo “andar” e seus usos em diferentes contextos.

REFERÊNCIAS

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TRAVAGLIA, Luiz Carlos. O aspecto verbal no português: a categoria e sua expressão. – 5. ed. – Uberlândia: EDUFU, 2016.


[1] Mestranda em Letras – PPGEL/UFPI. Professora concursada da Prefeitura Municipal de Lagoa do Barro do Piauí. E-mail: florisbeladeuselita@gmail.com.