OS NOVOS INCIDENTES PROCESSUAIS TRAZIDOS PELO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7746450


Maurício José Gomes Medeiros Tavares Filho


INTRODUÇÃO

O presente artigo busca abordar os dois novos incidentes processuais trazidos pelo Código de Processo Civil de 2015, Lei nº 13.105/15, dispondo sobre seu cabimento, procedimentos e consequências jurídicas, bem como a intenção do legislador ao prever tais hipóteses.

DESENVOLVIMENTO

O  Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15), com todas suas inovações inseridas no ordenamento jurídico brasileiro, trouxe dois novos incidentes processuais: o Incidente de Assunção de Competência, previsto no art. 947, e o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, previsto no art. 976 e seguintes, ambos do referido diploma legal.

De início, cabe conceituar o que se entende por incidente processual, tratando-se de questão ou procedimento secundário dentro do objeto principal da demanda, devendo ser solucionado antes da decisão de mérito, podendo tais incidentes serem divididos em questões prejudiciais, quando vinculadas ao próprio direito material, e procedimentos, mais próximas ao direito processual. (referência: https://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/1454/Incidente-processual)

Assim, incidente é uma controversa acessória que surge no curso de um processo, devendo ser examinada antes do pedido principal.

O estudo começa sua análise com o Instituto da Assunção de Competência – IAC previsto no art. 947 do CPC/15.

O Instituto da Assunção de Competência é cabível em sede de recurso, reexame necessário ou em processo de competência originária do Tribunal, tratando-se, assim, de incidente de competência originária de Tribunais, não tendo o Juízo de 1º grau competência para tal.

É incidente de competência de Tribunais de 2º grau, como Tribunais de Justiça (TJ) e Tribunais Regionais Federais (TRFs), bem como de Tribunais de superposição, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF).

Sua hipótese de cabimento prevê dois requisitos positivos: ser a matéria relevante questão de direito e ter repercussão social, e um requisito negativo, a inexistência de múltiplos processos versando sobre a matéria, o que evidencia sua caráter preventivo.

Todavia, no parágrafo quarto, do art. 947, é prevista uma outra hipótese de cabimento, quando houver conveniência em evitar ou compor divergência interna do próprio Tribunal, entre suas câmaras, turmas ou entre uma e outra. Tal hipótese poderá ser aplicada mesmo quando houver múltiplos processos, excepcionando o previsto no caput do mesmo artigo.

Assim, o Tribunal, em sede de IAC, ao perceber que a matéria tem potencial de vir a ser decidida de maneira controversa pelos julgadores, antecedendo-se, já criando um precedente vinculante, visando padronizar as futuras decisões judiciais quanto à matéria.

Pode-se questionar como se identificaria uma controvérsia quando não há múltiplos julgados sobre o tema. Cabe frisar, no entanto, que a controvérsia autorizadora do incidente não se limita à jurisprudencial, podendo ser doutrinária ou controvérsia demonstrada pela divergência de julgados de outros Tribunais ou órgãos inferiores.

A legitimidade ativa para a instauração de seu procedimento é ampla, detendo legitimidade as partes do processo que se instaurou o incidente, o Ministério Público, a Defensoria Pública e o próprio relator, de ofício. Quanto à Defensoria Pública, deve-se observar os limites de seu campo institucional de atuação, não podendo requerer em todo e qualquer caso, mas apenas naqueles que tratarem sobre direitos de hipossuficientes.

Tal limitação decorre do caráter difuso que o precedente formado possui, devendo ser aplicada a mesma legitimidade das demandas coletivas ao incidente.

Quanto ao Ministério Público, este tem legitimidade ativa em qualquer circunstância, pois tem ampla competência para os direitos difusos na tutela coletiva, devendo o mesmo entendimento ser aqui aplicado.

Ressalta-se que tanto a Defensoria como o Ministério Público têm competência para atuar como terceiro interessado, nos casos em que não forem partes.

A instauração do IAC é um incidente prévio, ocorre antes do julgamento do mérito do processo. Uma vez requerida sua instauração, o processo é enviado ao órgão previsto no regimento interno do Tribunal competente para uniformizar a jurisprudência.

O referido órgão fará um juízo de admissibilidade. Sendo este negativo, há o retorno dos autos ao órgão fracionário inicial para julgar o processo. Sendo positivo, haverá uma mudança interna de competência, uma espécie de transporte do processo do órgão fracionário inicialmente competente ao órgão pleno previsto no regimento para o julgamento e fixação da tese vinculante.

Com a tese fixada, caso esta tenha sido definida pelos Tribunais Superiores (STF ou STJ), terá eficácia nacional, devendo ser observado por todos os órgãos judiciais. Caso o incidente tenha sido instaurado em Tribunal de 2º grau, o precedente formado terá eficácia apenas regional, tendo efeito vinculante apenas na jurisdição de competência do referido Tribunal.

Passando-se a análise do próximo incidente, qual seja, o Incidente de Resolução de Demanda Repetitiva – IRDR, previsto nos artigos 976 e seguintes do Código de Processo Civil de 2015, sua instauração também se dá em recurso, reexame necessário ou processo de competência originária de Tribunal, exigindo seu cabimento também dois requisitos positivos e um negativo.

O primeiro requisito positivo é uma efetiva repetição de processos que versem sobre a mesma questão de direito. Diferentemente do IAC, aqui não há um caráter prévio, o IRDR somente tem cabimento quando já exista uma efetiva multiplicidade de processos tratando sobre a mesma questão de direito, material ou processual.

Os processos podem ter questões de fatos distintas dos demais, bastando que estas sejam similares a ponto de permitir a aplicação da mesma tese jurídica para a solução do caso.

O segundo requisito positivo exigido é o risco concreto de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, em razão de decisões divergentes, devendo ser tal divergência devidamente comprovada no requerimento de instauração do incidente.

Já seu requisito negativo é a não existência de Recurso Especial ou Recurso Extraordinário sobre a mesma questão de direito, pois nestes casos, já haveria incidente de eficácia vinculante nacional, devendo esta ter preferência, eis que possui um maior âmbito de abrangência.

Assim, pode-se constatar outra diferença entre e o IRDR e IAC, vez que aquele, além de não possuir caráter preventivo, é de competência apenas de Tribunal de 2º Grau, quando este pode ser suscitado também em Tribunais Superiores.

A legitimidade para suscitar o incidente, cuja previsão se encontra no art. 977, CPC/15, é do juiz ou relator, de ofício, das partes do processo em que se instaurou o incidente, e do Ministério Público e Defensoria Pública. Quanto a estes dois últimos, deve-se aplicar as mesma considerações feitas à Assunção de Competência referente ao âmbito de suas atuações institucionais.

Nesse ponto, cabe frisar que o Ministério Público tem participação obrigatória no IRDR, participando como fiscal da lei quando não for parte, podendo, inclusive assumir a condução do incidente, caso o suscitante desista do processo.

O IRDR será julgado pelo órgão qualificado no regimento interno do Tribunal como competente para uniformizar jurisprudências. O mesmo órgão que firmar a tese também julgará o processo afetado.

Assim, há um relator inicial para esses processos. Com a instauração do IRDR, ocorre o encaminhamento deste ao órgão colegiado competente previsto no regimento interno, que fará seu juízo de admissibilidade. No órgão colegiado haverá um novo relator, que não tem competência mais para se manifestar sobre a admissibilidade.

Cabe mencionar que o juízo de admissibilidade feito pelo órgão colegiado não preclui, por ser matéria de ordem pública, sendo possível uma admissibilidade inicial que pode ser indeferida posteriormente.

Da decisão colegiada que não admite o incidente não cabe recurso, uma vez ser possível uma nova propositura desta, condicionada à apresentação de uma nova circunstância fático-jurídica.

Caso o juízo de admissibilidade seja positivo, ocorrerá o sobrestamento dos processos que tratem sobre a mesma questão de direito, ou seja, sua tramitação será suspensa. Todavia, tal suspensão tem sua eficácia limitada ao âmbito de competência do Tribunal competente para julgar o incidente, não sendo aplicado a todos os processos, mas apenas aqueles que tramitem sob a jurisdição do Tribunal julgador.

O sobrestamento dos processos encontra-se previsto no art. 982, CPC/15, e tem seus efeitos aplicados tanto para as ações individuais como para as coletivas, que tramitem tanto na Justiça Comum como nos Juizados Especiais, atingindo, inclusive, o próprio Tribunal.

Ainda sobre o sobrestamento, há previsão legal de sua ampliação para todo o território nacional, mediante requerimento nesse sentido que deve ser endereçado ao Presidente do Superior Tribunal de Justiça, quando a questão for infraconstitucional, ou para o Presidente do Supremo Tribunal Federal, quando a matéria for constitucional.

A legitimidade para requerer essa nacionalização do incidente é das partes do processo no qual foi suscitado o incidente, do Ministério Público e Defensoria Pública, bem como de qualquer sujeito que participe como parte de outro processo que verse sobre a mesma questão de direito e que tramite em outro Estado ou Região. Assim, sendo aceito o encaminhamento, passando o incidente a ser de competência do STF ou STJ, o sobrestamento terá caráter nacional, suspendendo todos os processos, sem limitação territorial, até o seu julgamento.

A referida suspensão, entretanto, tem uma limitação temporal, vez que não sendo o processo afetado julgado em até um ano de seu o sobrestamento, este tem sua suspensão cessado, dando-se prosseguimento aos processos suspensos, salvo quando houver justificativa fundamenta para a demora.

Assim, visto a importância na célere fixação do precedente vinculante,  haverá a preferência de seu julgamento sobre demais processos, salvo nos caso de Habeas Corpus e processos com réu preso.

Importante frisar que o sobrestamento é uma faculdade do relator, baseado em um juízo de conveniência, sendo possível a sua modulação temporal, com a determinação de que a suspensão ocorra apenas a partir de determinada fase processual (ex: a partir da conclusão pra sentença).

O sobrestamento também pode ter um caráter parcial, quando a aplicação da tese vinculante se limitar apenas a parte do processo, quando houver mais de um tipo de pedido. O processo, no que toca ao pedido não suspenso pelo IRDR, poderá ter seu andamento, inclusive com julgamento parcial do mérito.

Já na hipótese de processos já com trânsito em julgado, que se encontram em fase de cumprimento de sentença, caso estes tenham decidido matéria que posteriormente foi afetada em sede de IRDR e que tenha sido determinado o seu sobrestamento, a suspensão não surtirá efeitos, vez que o processo já foi decidido de forma definitivo, estando acobertado pela coisa julgada.

Nessa linha, o Enunciado 107, da I Jornada de Direito Processual Civil, do Conselho da Justiça Federal dispõe: “Não se aplica a suspensão do art. 982, I, do CPC, ao cumprimento de sentença anteriormente transitada em julgado e que tenha decidido questão objeto de posterior incidente de resolução de demandas repetitivas.”.

É possível a participação de outros sujeitos no IRDR, como amicus curiae e a realização de audiência pública, no intuito de alargar o diálogo do julgamento, com a apresentação dos mais diversos fundamentos relevantes à fixação da tese.

O julgamento do incidente será de mérito, o Tribunal, além de julgar o incidente também julgará o processo afetado. É necessário o enfrentamento de todos os argumentos referentes a tese jurídica, tanto os contrários como os favoráveis. Uma análise exauriente, pois serão os fundamentos determinantes que irão vincular os demais órgãos.

Na hipótese de um incidente tratar sobre matéria relativa à prestação de serviços concedidos, permitidos ou autorizados, a agência reguladora responsável por sua fiscalização irá observar o respeito daqueles na aplicação da tese jurídica vinculante, podendo aplicar sanções administrativos quanto ao seu descumprimento, nos termos do art. 985, §2º, do CPC/15.

O acórdão que resolve o mérito do IRDR é recorrível por Embargos de declaração, Recurso Especial e Recurso Extraordinário, com a peculiaridade de que nos dois últimos é previsto um efeito suspensivo ope legis, ou seja, quando a suspensão é determinada pela própria lei.

Assim, sendo interposto RE ou REsp de IRDR, os efeitos do incidente ficarão suspensos até o julgamento do recurso

Outra peculiaridade do IRDR é que, caso seja interposto RE contra ele, o requisito de repercussão geral exigido já se encontrará presumidamente preenchido (art. 987, §1º, CPC/15).

Em sede de IRDR, a sucumbência recursal é diferente dos processos comuns, visto que a fixação de uma tese jurídica é algo abstrato, não havendo um pedido específico a ser decidido em um caso concreto. Assim, o interesse recursal tradicional não é aqui aplicado, prevalecendo a ideia de que o interesse recursal a ser demonstrado para a interposição do recurso é a formação de um precedente nacional.

Assim, interposto RE ou REsp contra o acórdão de 2º grau, e sendo estes julgados, a tese fixada à questão divergente terá efeito vinculante de âmbito nacional, devendo ser observada a todos os Tribunais, órgãos de 1º grau e Juizados Especiais.

Visto isso, percebe-se que o legislador, ao prever incidentes que evitem a formação de decisões divergentes ou que as resolvam quando já existentes, buscou dar uma maior uniformidade e segurança aos jurisdicionados, formando precedentes vinculantes que devem ser observados pelos julgadores na solução da lide.

Quanto à previsão desses precedentes vinculantes, há três formas de criação: a Assunção de Competência, o Incidente de Resolução de Demanda Repetitiva e o Recurso Extraordinário e o Recurso Especial repetitivos.

Alguns doutrinadores afirmam que houve uma ideia de criação de um microssistema de formação de precedentes vinculantes, no intuito de compartilhamento de regras processuais entre um e outro quando existirem eventuais lacunas. Todavia, sobre tal hipótese, o STJ,  no AgRg no AResp 611.249/SP, rejeitou a hipótese, sob o argumento de que no IAC não há a previsão de sobrestamento dos processos que tratem sobre a mesma matéria, sendo hipótese prevista para o IRDR e RE/REsp repetitivos, afirmando que, com isso, o legislador não quis permitir a permuta de regras entre os 3 (três) institutos.

A título de informação, muito se questiona acerca da possibilidade de instauração de IRDR em sede de Juizado Especial.

O seu cabimento já seria em hipótese única, via recursal, eis não existir em sede de Juizado remessa necessária ou competência originária.

Questiona-se, então, de quem seria a competência para julgar o incidente junto com o recurso inominado, da Turma Recursal ou dos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais?

Apesar de questão ainda divergente na doutrina, uma parte dela vem entendendo pela criação de um órgão interno no próprio Juizado com competência para julgar o IRDR. Entendimento corroborado pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM, em seu Enunciado de nº 44, que entende ser admitido IRDR “nos juizados especiais, que deverá ser julgado por órgão colegiado de uniformização do próprio sistema.”.

3 CONCLUSÃO

Assim, com esse artigo, buscou-se mostrar os novos incidentes trazidos pelo Código de Processo Civil, e os motivos pelos quais o legislado os previu, restando claro  o intuito deste em dar uma maior segurança jurídica às decisões judiciais no sentido da fixação de precedentes vinculantes a serem observados pelos julgadores.