OS DESAFIOS DA QUÍMICA MEDICINAL NA PRODUÇÃO DE PRÓ-FÁRMACOS PARA O TRATAMENTO DO CÂNCER

THE CHALLENGES OF MEDICINAL CHEMISTRY IN THE PRODUCTION OF PRO-DRUGS FOR THE TREATMENT OF CANCER

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10062358


Cristiane Alves de Siqueira1,
Erika Guerreiro Costa1,
Bruna de Oliveira1,
Dra. Rosa Silva Lima2


Resumo

Introdução: A química medicinal combina química, biologia e medicina para criar medicamentos seguros e eficazes. A latenciação e o bioisosterismo são estratégias para tratar o câncer. Tratamentos comuns incluem radioterapia, quimioterapia e cirurgia. Objetivos: Realizar um estudo de levantamento bibliográfico sobre os desafios, eficácia e interação dos pró-fármacos no tratamento de neoplasias malignas. Materiais e métodos: Levantamento de dados em manuscritos sobre química medicinal, modificação molecular e câncer entre 2007 e 2023. Revisão bibliográfica com critérios de inclusão e exclusão. Resultados e discussão: Fármacos extraídos de plantas e pró-fármacos são usados no tratamento do câncer, visando alvos específicos nas células cancerígenas. Exemplos incluem vinorelbina, vindesina, vinflunina, taxol, docetaxel, cabazitaxel, camptotecina, irinotecano e capecitabina. A química medicinal busca superar desafios e aproveitar oportunidades no desenvolvimento de pró-fármacos para o tratamento do câncer. Avanços recentes melhoram a eficácia e reduzem reações adversas, mas desafios como identificação de alvos terapêuticos e resistência a medicamentos persistem. Abordagem personalizada é necessária.Considerações finais: A química medicinal desempenha um papel crucial na busca por novos tratamentos contra o câncer. A produção de pró-fármacos é uma estratégia promissora para superar desafios relacionados à eficácia e toxicidade dos medicamentos. Com pesquisa contínua e colaborações interdisciplinares, é possível desenvolver terapias mais eficazes e seguras, oferecendo esperança e melhores resultados para os pacientes com câncer.

Palavras chaves: Câncer, pró-fármacos, latenciação, bioisosterismo.

Abstract

Introduction: Medicinal chemistry combines chemistry, biology, and medicine to create safe and effective drugs. Prodrug design and bioisosterism are strategies for cancer treatment. Common treatments include radiotherapy, chemotherapy, and surgery. Objectives: To conduct a literature review on the challenges, efficacy, and interaction of prodrugs in the treatment of malignant neoplasms. Materials and Methods: Data collection from manuscripts on medicinal chemistry, molecular modification, and cancer between 2007 and 2023. Literature review with inclusion and exclusion criteria. Results and Discussion: Drugs extracted from plants and prodrugs are usedin cancer treatment, targeting specific cellular components in cancer cells. Examples include vinorelbine, vindesine, vinflunine, taxol, docetaxel, cabazitaxel, camptothecin, irinotecan, and capecitabine. Medicinal chemistry aims to overcome challenges and capitalize on opportunities in prodrug development for cancer treatment. Recent advancements improve efficacy and reduce adverse reactions, but challenges such as identifying therapeutic targets and drug resistance persist. A personalized approach is necessary. Conclusion: Medicinal chemistry plays a crucial role in the search for new cancer treatments. Prodrug production is a promising strategy to overcome challenges related to drug efficacy and toxicity. With continuous research and interdisciplinary collaborations, it is possible to develop more effective and safer therapies, offering hope and better outcomes for cancer patients.

Keywords: Cancer, prodrugs, prodrug design, bioisosterism.

Introdução

A química medicinal é um ramo da química que inclui biologia, medicina e ciências farmacêutica. Destina-se à criação, inovação, descoberta e síntese de compostos com atividade farmacológica, e compreensão de seu mecanismo de ação no nível molecular (LIMA et al., 2007).

A descoberta de novos medicamentos é uma tarefa complexa atribuída à área de Química Farmacêutica e Medicinal. Isso se deve à variedade de fatores envolvidos no planejamento molecular de novas estruturas, que devem ser capazes de fornecer os efeitos farmacológicos desejados, ao mesmo tempo em que são seguros para uso terapêutico. Até hoje, ainda existem vários medicamentos, incluindo alguns muito potentes, que apresentam características físico-químicas, sensoriais, farmacocinéticas, farmacológicas e toxicológicas que dificultam sua aplicação clínica (SERAFIM et al., 2011).

Uma maneira de aprimorar as propriedades físico-químicas de um medicamento é por meio da introdução de grupos funcionais polares em pequenas moléculas orgânicas, que são reversíveis biologicamente. Dessa forma, é possível mascarar essas características temporariamente sem alterar de forma permanente as propriedades da molécula. Essa estratégia tem sido bem-sucedida, utilizando-se grupos funcionais como álcoois que são convertidos em ésteres, os quais podem ser facilmente transformados in vivo por reações químicas ou enzimáticas (SERAFIM et al., 2011).

Essa abordagem, conhecida como latenciação de fármacos, tem como objetivo solucionar os problemas mencionados anteriormente e explorar novos compostos terapêuticos. Ela é amplamente aplicada em estudos de fármacos antineoplásicos, visando melhorar as taxas de absorção, retardar o metabolismo, otimizar a seletividade em relação ao local de ação e reduzir a toxicidade causada pelo fármaco (BARREIRO, 2008).

Outra técnica utilizada na química medicinal para projetar moléculas com propriedades similares a uma substância-alvo é o bioisosterismo. Essa estratégia consiste em substituir um grupo ou átomo em um composto por outro que apresente características estruturais e/ou elétricas semelhantes, mas que possam aumentar a atividade, seletividade ou propriedades farmacológicas do composto original (NANDI et al., 2017).

O câncer é uma condição complexa, sendo uma doença de múltiplos fatores que se caracteriza pela proliferação desorganizada e descontrolada das células. Essa proliferação ocorre devido a mutações causadas por agentes químicos, físicos ou biológicos (GUEMBAROVSKI et al., 2008). De acordo com esse mesmo autor, esses agentes podem incluir substâncias químicas carcinogênicas presentes na fumaça do cigarro e em contaminantes da dieta, como a aflatoxina B1, bem como fatores físicos, como radiação UV, raios X e raios gama, entre outros. Patogênicas, incluindo o Helicobacter pylori, o vírus do papiloma humano (HPV) e os vírus das hepatites B e C (HBV/HCV), pode ter uma influência significativa no surgimento do câncer.

Diferentes processos fisiológicos podem levar a alterações genéticas, tais como a desativação de genes supressores de tumores, a ativação de oncogenes e a desativação de genes responsáveis pela apoptose. Dessa forma, o câncer representa um desafio significativo para a medicina, não apenas devido à sua complexidade no desenvolvimento, mas também devido à dificuldade em encontrar tratamentos eficazes em todos os casos (GUEMBAROVSKI et al., 2008).

De acordo com as projeções do Instituto Nacional de Câncer, estima-se que o número de casos de câncer no Brasil chegue a   704 mil por ano até 2025. No país, são relatados 21 tipos de câncer, dois a mais do que os relatos anteriores. Os tipos mais comuns são o câncer de pele não melanoma, o câncer de mama feminino, o câncer de próstata, o câncer de colorretal, o câncer de pulmão e o câncer de estômago.

O câncer de próstata é a forma de câncer mais comum entre os homens. O câncer de cólon e reto é o segundo mais comum, enquanto o câncer de estômago ocupa a terceira posição em regiões menos desenvolvidas. De acordo com o (INCA, 2022), é estimado que até 2025 haverá cerca de 74 mil novos casos de câncer de mama, tornando-o o tipo mais comum entre as mulheres. Esses dados revelam a importância da conscientização sobre a prevenção e o diagnóstico precoce do câncer, bem como a necessidade de investimentos em saúde para combater essa doença que afeta milhares de brasileiros anualmente (INCA, 2022).

De acordo com (ONCO HEMATOS, 2013) a medicina utiliza principalmente dois mecanismos no tratamento de tumores malignos: a radioterapia e a quimioterapia, podendo ser associadas ou não a cirurgias. A escolha do melhor tratamento para cada paciente depende das características do tumor, como sua localização, tamanho e presença de metástases. A radioterapia tem como objetivo eliminar as células cancerígenas por meio da radiação, enquanto a quimioterapia envolve o uso de medicamentos para eliminar as células malignas ou impedir sua multiplicação e crescimento. Vale ressaltar que a quimioterapia não está restrita a uma área específica do corpo. Já a cirurgia é um procedimento pontual com o objetivo de remover o tumor (FREIRE et al., 2014).

Este trabalho de revisão bibliográfica teve como objetivo identificar os desafios mais comuns enfrentados pelos pesquisadores na área da química medicinal no desenvolvimento de pró-fármacos para o tratamento do câncer. Dentre esses desafios, destacam-se a seleção adequada dos pró-fármacos, a otimização das vias de administração, a formulação correta para a liberação controlada do composto ativo, a escolha de grupos funcionais apropriados e a consideração das propriedades físico-químicas e farmacocinéticas dos pró-fármacos.

Por meio desta revisão bibliográfica, buscou-se obter uma visão abrangente dos desafios enfrentados na produção de pró-fármacos para o tratamento do câncer e os subsídios para o avanço científico nessa área, que está promovendo a descoberta de novas estratégias e abordagens terapêuticas.

Materiais e Métodos

Foram coletados dados através de pesquisa de revisão bibliográfica em 29 manuscritos divulgados entre 2007 e 2023 em língua portuguesa ou inglesa, encontrados em bases de dados como Scientific Electronic Library Online (SCIELO) Instituto Nacional do Câncer (INCA), Us National Library of Medicine (PubMed), e Google Acadêmico. As palavras-chaves utilizadas nas pesquisas foram: Química medicinal, modificação molecular, extratos naturais bioisosterismo, antineoplásico, Câncer e Neoplasias.

Caracterização do Estudo: O presente estudo caracteriza-se como estudo de revisão de literatura bibliográfica, pois empregou-se como fonte de coleta de dados a busca por informações coletadas em bancos de dados como PubMed, Scielo, e Google Scholar. No período de 2007 a 2023.

Critérios de Inclusão: Utilizamos critérios de inclusão baseados em materiais bibliográficos que possuíam resumos e títulos relacionados ao tema. Após a pesquisa, foram selecionados 29 manuscritos que forneceram informações relevantes para a elaboração do presente estudo.

Critérios de exclusão: Foram excluídos artigos, teses e dissertações que possuíam estudos metodológicos divergentes em relação ao tema proposto.

Resultados e Discussão

Após a realização da pesquisa exploratória com 29 manuscritos foi viável relacionar os principais fármacos e pró-fármacos produzidos a partir de compostos naturais extraídos e empregados no combate ao câncer. Além disso, verificou-se que os principais alvos de atuação dessas substâncias são as estruturas microtubulares, as proteínas tubulinas e o mecanismo de controle do ciclo celular.

A descoberta de novos agentes antitumorais derivados de plantas tem inpulsionado as pesquisas. Um exemplo altamente relevante é o emprego da Vinca, também conhecida como Catharanthus roseus (L.) G. Don, que é amplamente utilizada pela população de Madagascar para tratar diabetes. O isolamento dos compostos vimblastina e vincristina tem sido de extrema utilidade no tratamento de várias condições, como linfoma de Hodgkin, sarcoma de Kaposi, câncer testicular e ovariano, assim como leucemia linfoblástica aguda em crianças. A principal adversidade associada aos alcaloides da Vinca é a neurotoxicidade, sendo este o principal efeito colateral (BRANDÃO et al., 2010).

Segundo (VALENTE et al., 2022)  o objetivo de aprimorar a eficácia dos compostos derivados de C. roseus, métodos biotecnológicos relacionados ao metabolismo secundário têm sido empregados para criar novas moléculas com maior atividade farmacêutica e menor ocorrência  de efeitos adversios.

A vinorelbina ou nor-5′-anidrovimblastina (figura 1) , provinda semisinteticamente da vinca, tem extensa atividade anticancerígena e é utilizada no tratamento do câncer de pulmão e câncer de mama. Vinorelbina apresenta maior efetividade e menor neurotoxidade ( ZHANG et al., 2008).

Figura 1: Estrutura química da vinorelbina

A vindesina (figura 2) também conhecida como sulfato de 4-desacetilvimblastinamida, um resultante semissintético da vimblastina. É aplicado para o tratamento de distúrbios hematológicos, câncer de mama, melanoma, câncer de pulmão e outros cânceres resistentes à vincristina. Isso inibe a mitose de maneira dependente da dose e torna-se reversível quando a mesma substância é removida do corpo (CHADEANI et al., 2009).

Figura 2: Estrutura química da vindesina

O antineoplásico semissintético vinflunina (figura 3) é o primeiro a ser desenvolvido a partir do semissintético vinorelbina. É um resultado alcançado por meio de modificações moleculares nos alcaloides da Vinca. Dois átomos flúor foram adicionados ao composto permitindo que o espectro de atividade da vinflunina em relação a outros alcaloides fosse ampliado. De acordo com (BENNOUNA et al., 2008) efeitos tóxicos da vinflunina são atribuídos a ligação da molécula a um sítio específico de ligação na tubulina o que perturba a dinâmica dos microtúbulos e impede a formação de um fuso durante a mitose. Vinflunina impede a expansão e crescimento de microtúbulos. Como resultado a transição da metáfase para a anáfase e bloqueada, resultando na morte celular por apoptose (VALENTE et al., 2022).

Figura 3: Estrutura química da vinflunina

O desenvolvimento do taxol (figura 4) enfrentou desafios significativos. Inicialmente, houve preocupações ambientais devido à baixa quantidade de taxol presente na casca de T. brevifolia (0,01-0,03%), o que exigiria o abate de muitas plantas. Além disso, a solubilidade em água do taxol era extremamente baixa, o que dificultava a formulação adequada do medicamento. Essas questões, combinadas com a alta demanda pelo taxol, levaram ao desenvolvimento de processos para obter o taxol a partir de fontes mais sustentáveis. Isso foi necessário para garantir a disponibilidade contínua do medicamento e minimizar o impacto ambiental (MIELE et al., 2009).

Figura 4: Estrutura química do taxol

De acordo com (WEAVER, 2014), o objetivo de garantir um suprimento mais consistente do taxol, foi desenvolvido um processo semi-sintético para a sua obtenção utilizando um precursor, o 10-desacetilbacatina III (10-DABIII). Esse precursor possui a estrutura básica e as funcionalidades essenciais do paclitaxel e é obtido a partir do isolamento das agulhas das espécies T. baccata (teixo europeu) e T. yunnanensis (teixo do Himalaia). O paclitaxel é então sintetizado em poucas etapas, envolvendo a acetilação da posição 10 da 10-DABIII e a introdução da cadeia lateral na posição C-13. Esse processo semi-sintético permite obter o taxol de forma mais eficiente, superando as limitações associadas ao abate de plantas e à baixa solubilidade em água, garantindo assim um fornecimento mais estável e sustentável do medicamento (MIELE et al., 2009).

Segundo (YARED et al., 2011) o docetaxel foi desenvolvido como o primeiro análogo do paclitaxel para superar os desafios iniciais enfrentados na obtenção desse composto. É um análogo semi-sintético do paclitaxel produzido a partir das agulhas do teixo europeu, Taxus baccata. O docetaxel apresenta diferenças estruturais em duas posições em relação ao paclitaxel, o que o torna ligeiramente mais solúvel em água. No entanto, mesmo com essas modificações, o docetaxel ainda enfrenta alguns problemas clínicos, como baixa hidrossolubilidade e graves efeitos tóxicos, como mielosupressão e neuropatia sensorial periférica, que limitam a dose administrada.

O cabazitaxel é um derivado do docetaxel (figura 5) que foi sintetizado com o objetivo de apresentar benefícios clínicos e farmacocinéticos superiores. Essas vantagens incluem uma menor afinidade pela proteína P-gp, que está associada à resistência dos tumores aos taxanos, tanto de forma intrínseca quanto adquirida. Além disso, o cabazitaxel demonstrou atividade promissora em estudos pré-clínicos in vitro e em modelos animais com expressão dessa proteína, mostrando eficácia contra tumores refratários e resistentes (YARED et al., 2011).

Figura 5: Estruturas química do docetaxel e cabazitaxel.

A camptotecina, alcaloide derivado da planta Camptotheca acuminata (Descaisne, Nyssaceae), é um agente com propriedade antitumoral no qual inibe a topoisomerase I, enzima presente em tumores. No entanto, devido à sua baixa solubilidade aquosa, alta instabilidade físico-química e alta toxicidade, o uso dessa droga na medicina foi restrito por muitos anos (MARQUES et al., 2015).

Os primeiros ensaios clínicos com a camptotecina foram realizados com sua solução salina, pois a baixa solubilidade da droga limitava seu uso por via intravenosa. Apesar de ter sido observada atividade antitumoral em pacientes com o câncer gastrointestinal, a detecção de toxicidade medular e outras não hematológicas foi considerada muito grave para prosseguir com outros testes. Estudos posteriores revelaram que a manutenção do anel lactônico da camptotecina era crítica para a atividade antitumoral. Porém, a porção lactônica da molécula é sujeita à hidrolise despretensiosa, resultando na forma carboxilada.

De acordo com (GRANADA et al., 2007) falta de efetividade da camptotecina é atribuída à abertura do anel lactônico por três razões. Inicialmente, a estrutura carboxilada tem uma associação reduzida com a membrana em aproximadamente duas vezes. A abertura do anel causa mudanças estruturais no fármaco, limitando sua atividade na via bicamada lipídica das células. Por fim, experimentos em cultura celular revelaram que uma abertura resulta na diminuição da atividade da droga contra a Topoisomerase I. Essas condições contribuem para a redução da atividade da citotóxica da camptotecina (DORA et al., 2006).

A camptotecina (figura 6) é um alcaloide natural muito pouco solúvel em água, impossibilitando a preparação de soluções intravenosas. Por esta razão, alguns análogos foram criados na tentativa de preservar as propriedades essenciais da molécula para citotoxicidade e produzir derivados solúveis em condições fisiológicas. Cada análogo CPT tem uma estrutura semelhante. As mudanças ocorridas no C-7, C-9 e C-10 originou derivados ativos deste fármaco incluindo irinotecano, topotecano, 9-amino-CPT e 9-nitro- camptotecina (GRANADA et al., 2007).

Figura 6: Estruturas química da camptotecina

Segundo (GRANADA et al., 2007) o irinotecano (figura 7) derivado da camptotecina é administrado por via intravenosa e é convertido em seu sítio de ativação 7-etil-10-hidroxicamptotecina (SN-38), principalmente no fígado. SN-38 é um bloqueador da enzima topoisomerase I, desempenha um papel vital na replicação do DNA e na síntese do RNA. O SN-38 interage com a enzima topoisomerase I, formando uma estrutura complexa com o DNA. Essa interação impede a reconexão das cadeias de DNA que foram danificadas pela topoisomerase I, resultando na formação de quebras no DNA. Essas quebras dificultam a replicação do DNA e a síntese de RNA, levando à morte programada das células cancerígenas, também conhecida como apoptose.

Figura 7: Estruturas química do irinotecano

O irinotecano demonstra uma atividade notável contra vários tipos de câncer, como câncer de estômago, pulmão, pâncreas e colo do útero, bem como tumores cerebrais de alto grau, linfomas e leucemia (MORAES et al., 2011).

A capecitabina é um medicamento antineoplásico com propriedades citotóxicas, recomendado para o tratamento de câncer de mama (em monoterapia ou combinado com outros antineoplásicos), câncer de cólon e reto, e câncer de estômago. Essa substância é um pró-fármaco da fluropirimidina, que passa por uma conversão enzimática em 5-fluorouracil (5-FU). Em nível celular, a capecitabina inibe a formação de timidilato a partir do uracil, que é um precursor do trifosfato de timidina, uma molécula essencial no processo de síntese do DNA. Além disso, também interfere na síntese de RNA e proteínas celulares (NASCIMENTO et al., 2023).

(ROCHA, 2010) Afirma que a capecitabina é convertida em 5-FU, ela passa a desempenhar sua atividade citotóxica ao inibir a síntese de DNA, o processamento do RNA e a produção de proteínas. Esse mecanismo resulta em danos celulares e pode levar a efeitos adversos.

A descoberta de novos medicamentos envolve uma série de etapas, desde a concepção teórica até os testes de segurança. Inicialmente, as moléculas são projetadas com base no conhecimento prévio das estruturas biológicas e suas ações. A triagem farmacológica busca avaliar diversos aspectos, incluindo o mecanismo de ação e a seletividade da molécula. Essa avaliação ocorre em diferentes níveis, desde o molecular até o celular, para determinar seu perfil farmacológico. (OLIVEIRA, 2012).

Antes de prosseguir para experimentos clínicos, as moléculas passam por testes rigorosos de segurança em ensaios não clínicos. Esses testes têm como objetivo investigar os efeitos tóxicos nos órgãos-alvo, considerando a relação entre dose, exposição e possibilidade de reversibilidade dos danos observados. Essa análise criteriosa garante a segurança dos medicamentos antes de serem testados em seres humanos (OLIVEIRA, 2012).

Foram empregados processos de biotecnologia para aprimorar a utilização da planta Catharanthus roseus e desenvolver derivados semissintéticos dos alcaloides ativos. Essas modificações moleculares visaram aumentar a atividade terapêutica dos compostos e reduzir sua toxicidade. Um exemplo é a vinorelbina, um derivado semissintético da vimblastina, que possui um mecanismo de ação semelhante aos outros alcaloides da Vinca. A vinorelbina passou por mudanças moleculares, como a adição de um grupo metoxi na posição 4′ do anel B e a substituição de um grupo hidroxila por um grupo acetila na posição 3′ do anel B. Essas modificações bioisostérica conferem propriedades estruturais e farmacológicas distintas em comparação com a vimblastina.   (WOLF et al., 2020).

A vinflunina passou por modificações moleculares utilizando a estratégia do bioisosterismo, adicionando átomos de flúor à sua estrutura. Essas modificações ampliaram o espectro de atividade da vinflunina e melhoraram sua eficácia como agente antineoplásico. A nova estrutura molecular da vinflunina aumentou sua afinidade com o sítio de ligação na tubulina, perturbando os microtúbulos e bloqueando a formação do fuso mitótico de forma mais eficiente. Além disso, as alterações visaram aumentar a estabilidade e a biodisponibilidade do composto, permitindo que ele alcance os tecidos-alvo de maneira adequada e exerça seu efeito citotóxico com eficácia. Essas modificações resultaram em um aumento da atividade citotóxica da vinflunina contra células cancerígenas, ao mesmo tempo em que reduziram a toxicidade nos tecidos saudáveis, minimizando os efeitos colaterais indesejados. (BRANDÃO et al., 2010; VALENTE et al.,2022).

Segundo (VILLANUEVA et al., 2011) o cabazitaxel passou por duas modificações estruturais, primeiro, o grupo acetoxi em C2′ do paclitaxel foi substituído por um grupo tert-butoxicarbonila (t-Boc) no cabazitaxel. Essa mudança tem o propósito de aumentar a estabilidade do composto, pois o grupo t-Boc é menos suscetível à hidrólise e outras reações químicas em comparação ao grupo acetoxi, isso pode aumentar a meia-vida e a disponibilidade do cabazitaxel no organismo.

Além disso, o grupo benzamido em C3′ do paclitaxel é substituído por um grupo 2′-cloro-2′-metil-propionamido no cabazitaxel. Essa alteração tem como objetivo melhorar a solubilidade do composto, tornando-o mais fácil de ser formulado e administrado. A introdução do grupo 2′-cloro-2′-metil-propionamido também pode contribuir para a eficácia do cabazitaxel, possivelmente influenciando sua interação com as proteínas-alvo ou melhorando sua absorção e distribuição nos tecidos.

Essas modificações estruturais baseadas no bioisosterismo têm como finalidade otimizar as propriedades farmacológicas do cabazitaxel, permitindo que o composto apresente características superiores ou diferentes em relação ao paclitaxel, como melhor estabilidade, solubilidade e atividade, o que pode resultar em uma maior eficácia terapêutica. (VILLANUEVA et al., 2011; OUDARD et al., 2017).

O irinotecano é um pro-fármaco utilizado no tratamento de diversos tipos de câncer. Ele passa por uma conversão molecular para se tornar a forma ativa conhecida como SN-38. Essa conversão é mediada pela enzima carboxilesterase e ocorre nas células cancerígenas, onde o grupo carbamato é modificado para o grupo lactona. O SN-38 atua como um potente inibidor da enzima DNA topoisomerase I, contribuindo para suprimir o crescimento das células tumorais.

Esse processo de conversão molecular, juntamente com a latenciação, permite a administração segura e seletiva do fármaco, melhorando a eficácia do tratamento e reduzindo os efeitos colaterais nos tecidos saudáveis. Além disso, o irinotecano é transportado por um grupo de transportadores chamados proteínas de resistência a múltiplas drogas (P-gp), que estão localizadas nas membranas celulares e desempenham um papel essencial no transporte ativo de substâncias, incluindo o irinotecano, dentro e fora das células (COSTA, 2010).

A capecitabina, um pró-fármaco convertido em 5-FU, possui vantagens significativas no tratamento do câncer. Sua conversão ocorre principalmente nos tecidos tumorais, direcionando o composto para as células cancerígenas e minimizando os efeitos em tecidos saudáveis. Além disso, a administração oral facilita o tratamento, evitando a capecitabina também tem uma meia-vida mais longa, permitindo uma exposição prolongada às células tumorais. Sua toxicidade sistêmica é reduzida em comparação ao 5-FU convencional, devido à conversão gradual e seletiva nos tecidos tumorais. A conversão em 5-FU ativo dentro das células tumorais resulta em eficácia terapêutica, inibindo a síntese de componentes celulares essenciais e levando à morte das células cancerígenas (NASCIMENTO et al., 2023).

Considerações finais

Em conclusão, os desafios da química medicinal na produção de pró-fármacos para o tratamento do câncer são significativos, mas também oferecem oportunidades promissoras para avanços terapêuticos. O câncer continua a representar uma ameaça global à saúde, exigindo constantemente o desenvolvimento de novas abordagens medicamentosas. A compreensão dos mecanismos moleculares envolvidos na progressão do câncer tem sido fundamental para identificar alvos terapêuticos e projetar fármacos eficazes.

A utilização de extratos naturais como base para a produção de fármacos ou pró fármacos oferece uma vantagem potencial, pois a legislação permite sua exploração. No entanto, a obtenção do princípio ativo a partir de folhas possui uma maior facilidade em comparação com a extração da planta inteira do ambiente. Além disso, a modificação estrutural dos precursores naturais ativos pode levar ao desenvolvimento de pró-fármacos, que apresentam maior potencial de ação e menor toxicidade ao organismo.

Os avanços recentes na química medicinal e na tecnologia de síntese orgânica têm permitido a criação de pró-fármacos com características desejáveis, como maior solubilidade, biodisponibilidade e seletividade. Essas melhorias podem aumentar a eficácia dos tratamentos e reduzir os efeitos indesejáveis relacionados aos medicamentos convencionais.

No entanto, é importante destacar que os desafios persistem. A identificação de alvos terapêuticos específicos para diferentes tipos de câncer, a superação da resistência aos medicamentos e a redução dos efeitos colaterais ainda são questões a serem enfrentadas. Além disso, a complexidade e a heterogeneidade do câncer requerem uma abordagem personalizada no desenvolvimento de pró-fármacos, levando em consideração as características individuais do paciente e do tumor.

Em suma, a química medicinal desempenha um papel fundamental na busca por novos tratamentos contra o câncer. A produção de pró-fármacos oferece uma estratégia promissora para superar os desafios relacionados à eficácia e toxicidade dos medicamentos. Com pesquisas contínuas e colaborações interdisciplinares, é possível avançar no desenvolvimento de terapias mais eficazes e seguras, proporcionando esperança e melhores resultados para os pacientes afetados por essa doença devastadora.

Agradecimentos

Agradecemos à nossa orientadora, Dra. Rosa Silva Lima, cujo comprometimento, conhecimento e paciência foram essenciais para o desenvolvimento deste trabalho.

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¹Aluna do Curso de Farmácia
²Professora Doutora do Curso de Farmácia