O USO DO RPG COMO FERRAMENTA NA PSICOTERAPIA BREVE DE ORIENTAÇÃO PSICANALÍTICA: UMA EXPERIÊNCIA CLÍNICA COM ADOLESCENTES

THE USE OF RPG AS A TOOL IN BRIEF PSYCHOANALYTIC-ORIENTED PSYCHOTHERAPY: A CLINICAL EXPERIENCE WITH ADOLESCENTS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ma10202504261101


Naiara Beber1
Bruna Leticia Noronha de Oliveira2
Alessandra Thomé de Almeida3


RESUMO 

Este artigo apresenta uma reflexão teórico-clínica sobre o uso do Role-Playing Game (RPG) como ferramenta na psicoterapia breve de orientação psicanalítica, com base na experiência de estágio clínico realizado em uma clínica-escola universitária. A partir do atendimento de um caso de adolescente com hipóteses diagnósticas entre histeria e psicose, analisa-se a potencialidade do RPG como espaço simbólico e projetivo no manejo da transferência, da linguagem e da subjetividade. Utilizando-se de técnicas de associação livre e apoio no arcabouço teórico freudiano e lacaniano, evidencia-se como o jogo favoreceu a elaboração de conteúdos inconscientes e a ressignificação de conflitos intrapsíquicos, possibilitando avanços significativos no processo terapêutico. A análise sugere que o RPG, quando aplicado com escuta clínica e manejo ético, pode configurar-se como recurso valioso no tratamento de adolescentes, especialmente aqueles com dificuldades simbólicas severas. 

Palavras-chave: RPG. Psicoterapia breve. Psicanálise. 

ABSTRACT 

This article presents a theoretical-clinical reflection on the use of Role-Playing Game (RPG) as a tool in brief psychoanalytic-oriented psychotherapy, based on the clinical internship experience in a university-based psychology clinic. Through the therapeutic follow-up of an adolescent patient with diagnostic hypotheses oscillating between hysteria and psychosis, the potential of RPG is analyzed as a symbolic and projective space for the management of transference, language, and subjectivity. Using free association techniques and grounded in Freudian and Lacanian theoretical frameworks, this study demonstrates how RPG facilitated the elaboration of unconscious content and the resignification of intrapsychic conflicts, enabling meaningful therapeutic progress. The analysis suggests that RPG, when applied with clinical listening and ethical handling, can serve as a valuable resource in adolescent treatment, especially for those with severe symbolic limitations. 

Keywords: RPG; Brief psychotherapy; Psychoanalysis. 

INTRODUÇÃO  

A adolescência é uma fase marcada por intensas transformações psíquicas e sociais, exigindo do sujeito um reposicionamento frente a si mesmo, ao outro e à cultura. Diante dessas mudanças, é comum a emergência de sintomas que indicam sofrimento subjetivo, como dificuldades de expressão, isolamento e comportamentos disruptivos. 

Neste contexto, a psicoterapia breve de orientação psicanalítica tem se mostrado uma estratégia clínica relevante, por sua capacidade de oferecer escuta qualificada e intervenções focadas em tempo delimitado. Contudo, adolescentes frequentemente apresentam resistência ao modelo tradicional de atendimento, o que exige a adaptação de ferramentas que favoreçam a comunicação e a simbolização. 

O presente artigo propõe discutir o uso do Role-Playing Game (RPG) como recurso terapêutico em um processo de psicoterapia breve com uma adolescente. Parte-se do estudo de caso clínico de uma paciente com estrutura psicótica para analisar de que modo o RPG pode facilitar a expressão simbólica e o manejo da transferência. Ao fazer isso, pretende-se preencher uma lacuna na literatura sobre o uso de estratégias lúdicas na clínica psicanalítica com adolescentes, contribuindo para o aprimoramento das práticas terapêuticas nesse campo.

MÉTODOS 

O presente estudo foi desenvolvido a partir da experiência de estágio supervisionado obrigatório no Núcleo de Estudos Avançados em Psicologia (NEAP), clínica-escola vinculada ao curso de Psicologia de uma universidade do sul do Brasil. O acompanhamento clínico descrito neste artigo ocorreu ao longo de dois semestres, no ano de 2024, com encontros semanais presenciais, supervisão clínica semanal e registros sistemáticos de evolução. O caso aqui apresentado refere-se à paciente nomeada Lecter, adolescente de 13 anos, cujo acompanhamento revelou características clínicas complexas, culminando na formulação de hipótese psicótica com necessidade de manejo transferencial específico. 

As intervenções basearam-se na técnica da psicoterapia breve de orientação psicanalítica, conforme delineada por Knobel (1986) e Braier (2008), com foco na identificação da situação-problema, foco, ponto de urgência e formulação de hipótese psicodinâmica. Diante das dificuldades associativas da paciente, optou-se por introduzir gradualmente o RPG como dispositivo auxiliar ao processo transferencial e à construção simbólica. 

Todas as práticas foram conduzidas em conformidade com os princípios do Código de Ética Profissional do Psicólogo (CFP, 2005), sendo garantido o sigilo e a segurança da paciente. O nome utilizado no estudo é fictício, e os dados foram preservados de forma ética, garantindo anonimato e integridade. 

RESULTADOS 

O processo terapêutico com Lecter revelou uma trajetória complexa, permeada por tensões vinculares, dificuldades associativas e expressivas, bem como por manifestações de sofrimento psíquico intensas. Desde o início, a paciente apresentou resistência à associação livre, comportamento retraído e marcadores de angústia em seus relatos, destacando sentimentos de solidão, rejeição e abandono. As primeiras sessões foram marcadas por falas monossilábicas e um silêncio que indicava não apenas resistência, mas também dificuldades estruturais no acesso à linguagem simbólica. 

Logo nas primeiras sessões, Lecter expressou preferência por ser chamada por um nome neutro, o que foi respeitado clinicamente como parte do reconhecimento de sua subjetividade. O nome Lecter surgiu como um acróstico elaborado pela paciente, o que, por si só, já indicava um esforço simbólico importante. Essa escolha nomeante pode ser compreendida como tentativa de reinscrição subjetiva e sinalizou um dos primeiros movimentos transferenciais importantes, atribuindo à terapeuta a função de reconhecimento. 

O vínculo com a terapeuta se constituiu progressivamente por meio de pequenos rituais: a entrega de textos e desenhos, o compartilhamento de músicas e a apresentação de personagens de jogos e séries. A transferência inicialmente positiva foi intensificada após a introdução do RPG como dispositivo clínico. O jogo foi sugerido como atividade intermediadora após sessões marcadas por silêncios densos e rupturas no fluxo da associação. 

O RPG foi introduzido de forma cuidadosa e adaptada às necessidades clínicas da paciente. Inicialmente, as personagens eram pouco desenvolvidas, muitas vezes sem nome, história ou objetivos claros. Porém, com o tempo, Lecter passou a desenvolver personagens mais estruturados, com histórias marcadas por temas de violência, perda, controle e rejeição. O personagem Kyza, por exemplo, um chefe mafioso que controlava com rigidez todos os aspectos de sua organização, pode ser interpretado como uma elaboração simbólica de fantasias de onipotência e controle frente ao desamparo vivido. 

Em contraste, a personagem Lua, interpretada pela terapeuta, era retratada como vulnerável, submissa e à mercê das decisões de Kyza. O jogo se tornou, assim, uma cena dramática onde era possível deslocar conteúdos inconscientes para um espaço seguro e compartilhado. Episódios de dominação, submissão, proteção e violência se repetiam, permitindo que a paciente elaborasse, ainda que de forma indireta, seus próprios sentimentos ambivalentes em relação às figuras parentais e ao Outro. 

Um dos momentos marcantes foi quando Kyza obrigava Lua a seguir um conjunto de regras estritas, incluindo relatar todas as suas ações, vestir roupas específicas e permanecer confinada em um ambiente designado. Esses elementos simbólicos evocavam o ambiente familiar relatado por Lecter, especialmente a relação com a mãe, descrita como negligente, mas também controladora em momentos específicos. Tais episódios permitiram trabalhar simbolicamente temas de autoridade, limite, desejo e castração. 

Com o avanço das sessões, a paciente começou a introduzir elementos inusitados nas histórias, como o uso de um avental da Hello Kitty por parte de Kyza. Esse gesto simbólico de mistura entre agressividade e afeto foi interpretado como um deslocamento pulsional que permitia a introdução de aspectos de cuidado, sensibilidade e humor no enredo. A partir desse ponto, as histórias passaram a conter não apenas atos de controle, mas também cenas de cuidado e interdependência. 

O RPG também serviu para introduzir questões relacionadas à sexualidade, ao corpo e à identidade de gênero. A paciente criava personagens com identidades de gênero fluidas ou que se recusavam a se encaixar em padrões binários. Essa produção narrativa funcionava como forma de expressar conflitos internos que ainda não conseguiam ser verbalizados diretamente. A terapeuta acompanhava essas construções com escuta flutuante, intervindo pontualmente com interpretações ou devoluções que favorecessem a simbolização. 

Houve também sessões em que Lecter trazia enredos de vingança e assassinato, como a elaboração detalhada de um plano homicida envolvendo envenenamento, mutilação e manipulação emocional. Essas narrativas, apesar de chocantes, foram acolhidas como manifestações simbólicas de conteúdos transferenciais intensos. A frieza com que tais cenas eram descritas indicava uma dissociação afetiva compatível com quadros psicóticos. A supervisão foi essencial para o manejo clínico e ético dessas manifestações. 

Após episódios intensos de transferência negativa — como o ocorrido após uma conversa com os pais da paciente, onde se discutiu sua segurança em interações virtuais —, observou-se retraimento, evasivas e rupturas no discurso. O RPG foi fundamental para reconstituir o vínculo terapêutico. A paciente, que chegou a faltar uma sessão, retornou ao tratamento com propostas para “novos episódios” no enredo, demonstrando desejo de continuidade. 

Ao longo das semanas, a paciente passou a elaborar temáticas afetivas com mais clareza, relatando experiências de amizade e sentimentos amorosos no ambiente escolar. Um desses episódios foi trabalhado simbolicamente através da relação entre Kyza e Lua, na qual Kyza ofertava presentes e expressava dificuldade de lidar com rejeições, espelhando o que Lecter vivenciava com seus pares reais. Essa projeção facilitava a escuta e abria espaço para intervenções interpretativas sutis. 

A construção de vínculos na vida real também foi favorecida pelo trabalho simbólico no RPG. A paciente relatou melhora em sua relação com os colegas e um aumento na sensação de pertencimento à escola. As narrativas do jogo passaram a incluir mais personagens secundários, criados pela própria paciente, que interagiam com o casal central (Kyza e Lua), refletindo uma ampliação do campo relacional interno da paciente. 

Durante as sessões, a linguagem de Lecter se transformou. Inicialmente marcada por erros gramaticais, lapsos e uso de pronomes confusos, foi se tornando mais coesa e articulada, ainda que permeada por neologismos e metáforas incomuns. Esse movimento foi compreendido como indício de maior apropriação simbólica da linguagem, uma vez que, segundo Fink (2018), o sujeito psicótico encontra na linguagem um campo fragmentado e muitas vezes persecutório. 

Outro marco importante ocorreu na última sessão do semestre, quando a paciente elaborou manualmente um quadro com recortes representando as mãos dela e da terapeuta. A composição foi oferecida como presente de encerramento, funcionando como objeto transicional (Winnicott, 1971) e consolidando simbolicamente o vínculo terapêutico. Esse gesto também indicava um avanço importante na capacidade de separação e de elaboração do luto da ausência temporária. 

A paciente demonstrou entender que a terapia teria pausas e mostrou-se mais preparada para lidar com isso. O reconhecimento do espaço terapêutico como um lugar seguro e constante contribuiu para a manutenção do laço transferencial. A mãe da paciente, em conversa posterior, relatou mudanças no comportamento da filha, principalmente em sua disponibilidade afetiva com os membros da família. 

Durante as sessões, foi possível observar que o RPG, além de ser uma ferramenta de expressão simbólica, funcionava como dispositivo organizador da realidade psíquica da paciente. As histórias criadas no jogo revelavam conteúdos inconscientes, elaboravam traumas e funcionavam como suporte para o fortalecimento do eu. 

As repetições temáticas que envolviam cenas de dominação, humilhação e rejeição foram sendo progressivamente substituídas por histórias em que Lua conseguia estabelecer limites, dialogar com Kyza e criar saídas alternativas para os conflitos. Esse deslocamento apontava para o início de uma maior simbolização dos conflitos e possibilidade de elaboração subjetiva mais autônoma. 

A continuidade do processo terapêutico foi garantida, com recomendação para manutenção do uso do RPG como ferramenta auxiliar. O caso Lecter ilustra não apenas a complexidade da clínica com adolescentes em sofrimento psíquico grave, mas também o potencial transformador de intervenções que respeitam os modos singulares de simbolização de cada sujeito. O RPG se mostrou um recurso potente, ético e clínico para acessar territórios do inconsciente e apoiar o sujeito em sua travessia subjetiva. 

DISCUSSÃO 

O caso Lecter permite refletir sobre a potencialidade do uso do Role-Playing Game (RPG) como ferramenta terapêutica em contextos clínicos de alta complexidade, sobretudo quando articulado à abordagem psicanalítica de orientação breve. A introdução do RPG possibilitou o deslocamento de conteúdos inconscientes para o campo do simbólico, criando um espaço intermediário entre o jogo e a vida psíquica real do sujeito, tal como proposto por Winnicott (1971) em sua teoria do espaço transicional. 

A clínica psicanalítica, especialmente com adolescentes, exige constante adaptação técnica e sensibilidade diante das expressões singulares do sofrimento psíquico. No caso aqui analisado, as dificuldades associativas e discursivas da paciente indicavam um funcionamento estrutural comprometido, com traços de foraclusão e falhas na simbolização, características próprias da estrutura psicótica conforme Lacan (1988). Diante disso, o RPG operou como campo de amarração simbólica capaz de sustentar o vínculo transferencial e evitar rupturas que, sem tal recurso, poderiam se tornar irreversíveis. 

A literatura psicanalítica reconhece que, na psicose, o sujeito encontra-se frequentemente invadido pela linguagem, não conseguindo significá-la a partir de um ponto de referência estável. A função do analista, nesse contexto, é sustentar a escuta e possibilitar a construção de novos significantes (Fink, 2018). Através do RPG, a paciente pôde experimentar uma forma menos invasiva de acessar a linguagem, apropriando-se dela em pequenos fragmentos narrativos que, gradualmente, compuseram uma trama mais coesa. 

O RPG se apresenta, nesse sentido, como um dispositivo transferencial alternativo. A relação entre o personagem criado pela paciente e aquele assumido pela terapeuta tornou-se campo de projeção e atuação das fantasias inconscientes. Laplanche e Pontalis (1970) definem a transferência como a atualização de desejos infantis inconscientes na relação analítica. No caso de Lecter, a transferência ocorreu não apenas entre paciente e analista, mas também entre os personagens, numa espécie de “transposição dramatúrgica” das relações psíquicas. 

Durante os enredos, a paciente repetia cenários de controle e submissão, como forma de reinscrição simbólica de experiências precoces de negligência e desamparo. Segundo Freud (1914), a repetição é uma das formas pelas quais o inconsciente se manifesta, buscando uma elaboração que não pôde ocorrer à época do trauma. Nesse contexto, o RPG atuou como palco de elaboração de traumas passados, onde a paciente pôde reescrever seus papéis subjetivos e afetivos. 

A resistência, fenômeno clínico frequentemente presente na psicose, manifestava-se através de silêncios, evasivas e rupturas associativas. No entanto, conforme destaca Meirelles (2012), a transferência negativa também pode ser um potente indicativo de envolvimento afetivo. O uso do RPG facilitou a travessia dessas resistências, oferecendo um meio-termo entre o real da angústia e o simbólico da fala. O jogo, ao funcionar como território compartilhado, permitiu reorganizar o discurso da paciente a partir de elementos fictícios mas intensamente investidos libidinalmente. 

O campo da clínica contemporânea tem enfatizado a importância de dispositivos que promovam o acesso à linguagem e à simbolização de forma não impositiva. O RPG, ao possibilitar a criação de personagens e narrativas, permite ao paciente se constituir subjetivamente de forma criativa, dialogando com a proposta de Conti e Souza (2010), para quem o brincar e o narrar são práticas fundamentais na construção psíquica de sujeitos em sofrimento. 

Além disso, o jogo favoreceu o trabalho com as formações do inconsciente. Os lapsos, os atos falhos e os deslocamentos presentes nas falas da personagem Kyza eram recebidos como expressões significativas a serem escutadas e interpretadas. Freud (1905) já havia assinalado o valor terapêutico dos chistes e das produções simbólicas aparentemente “sem sentido” como formas privilegiadas de acesso ao inconsciente. 

A clínica com adolescentes também demanda atenção ao lugar da fantasia no processo de subjetivação. Segundo Klein (1926), o brincar constitui-se como espaço de projeção e elaboração de conteúdos inconscientes. No caso aqui analisado, a elaboração simbólica de temas como violência, abandono, desejo e identidade se deu preferencialmente pelo recurso à fantasia, articulada por meio do jogo. A construção de enredos progressivamente mais complexos indicou não apenas avanços na estruturação psíquica, mas também o fortalecimento do ego e da capacidade de simbolização. 

Do ponto de vista estrutural, o caso foi inicialmente considerado como uma histeria, dada a expressividade emocional e a demanda por reconhecimento presentes nos primeiros atendimentos. Entretanto, a dificuldade de simbolização, a presença de delírios organizados e a falha nos mecanismos de recalcamento indicaram progressivamente uma estrutura psicótica, conforme os critérios de diagnóstico estrutural de Lacan (1988) e Oliveira et al. (2018). 

A temática do duplo, presente na criação de personagens ambíguos ou contraditórios, revela a complexidade da construção identitária na adolescência. A oscilação entre o masculino e o feminino, o herói e o vilão, o cuidador e o agressor, foram recursos utilizados pela paciente para experimentar identificações diversas sem se fixar em nenhuma delas. Essa mobilidade psíquica, apesar de caótica em alguns momentos, constituiu-se como uma tentativa criativa de reorganização subjetiva frente ao desamparo estrutural. 

É importante salientar o papel da supervisão clínica nesse processo. Diante de manifestações transferenciais intensas, como o relato do plano homicida simbolicamente dirigido à terapeuta, foi necessário constante trabalho ético e técnico para sustentar a função analítica. Conforme indica Santos (1994), o analista deve se manter como ponto de referência simbólica sem se confundir com os objetos projetivos do paciente. O jogo, mais uma vez, foi fundamental para reinscrever essas manifestações no campo do simbólico. 

Outro ponto relevante refere-se à função narrativa do RPG na construção de enodamentos entre os registros lacanianos do Real, Simbólico e Imaginário. A paciente transitava entre eventos traumáticos do real (automutilação, violência simbólica, negligência), o imaginário (fantasias de poder, identificação com personagens idealizados) e o simbólico (nomeação, estruturação narrativa, relações de causa e consequência). Essa articulação, segundo Lacan (1988), é essencial para a constituição de um sujeito estruturado. 

A relação da paciente com o tempo também foi transformada ao longo do tratamento. Inicialmente, Lecter apresentava dificuldades em organizar eventos cronológicos e em projetar ações no futuro. Com o uso do RPG, foi possível construir enredos que envolviam planejamento, consequências e desfechos, o que colaborou para uma organização temporal mais consistente, conforme abordado por Fonseca (2018) ao discutir a importância do tempo lógico na clínica. 

O reconhecimento da função do analista como “Suporte do Sujeito Suposto Saber” foi crucial para que a paciente aceitasse interpretações e sugestões de enredo sem vivenciá-las como imposições. Isso possibilitou que o jogo se tornasse um lugar de escuta e não de julgamento, promovendo a autorreflexão e o autoconhecimento. Segundo Quinet (1991), a análise só se inicia quando o sujeito reconhece no analista essa posição simbólica. 

A melhora clínica observada nos relatos da paciente e nas observações dos pais evidencia a eficácia do método adotado. A reintrodução da paciente no ambiente escolar, sua maior abertura afetiva e a criação de vínculos mais estáveis apontam para uma reorganização psíquica significativa. Não se trata aqui de uma “cura” no sentido tradicional, mas de um movimento de subjetivação mais consistente e menos marcado pela fragmentação e o desamparo. 

Do ponto de vista técnico, o uso do RPG exige do terapeuta uma escuta refinada e a capacidade de sustentar uma posição de alteridade dentro da cena. A atuação da terapeuta como Lua, personagem criada pela paciente, implicava não apenas interpretar, mas vivenciar o jogo sem perder a função analítica. Essa prática, embora desafiadora, mostrou-se extremamente potente para a construção do vínculo e o avanço terapêutico. 

A experiência clínica aqui relatada contribui para ampliar o repertório técnico da psicoterapia psicanalítica com adolescentes. Diante dos desafios contemporâneos — como o aumento da violência simbólica, o uso excessivo de tecnologias e a precarização dos vínculos —, torna-se cada vez mais necessário lançar mão de dispositivos que dialoguem com a linguagem dos sujeitos e favoreçam sua inscrição subjetiva. 

Por fim, cabe destacar que o RPG não é uma solução mágica, mas sim um recurso clínico que, quando utilizado com responsabilidade, rigor técnico e sensibilidade ética, pode transformar a escuta analítica em uma travessia mais acessível para sujeitos que, como Lecter, buscam na fantasia um lugar onde possam ser, existir e se reinventar. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS  

O presente artigo buscou refletir sobre a potência do uso do Role-Playing Game (RPG) como recurso clínico na psicoterapia breve de orientação psicanalítica com adolescentes. A experiência clínica com a paciente Lecter revelou que o RPG, quando articulado à escuta psicanalítica, pode se constituir como espaço simbólico facilitador da expressão subjetiva, da elaboração de conflitos inconscientes e da manutenção do vínculo transferencial. Através da criação de personagens e narrativas, a paciente foi capaz de elaborar aspectos traumáticos de sua história, simbolizar conteúdos psíquicos anteriormente dissociados e ressignificar vivências relacionais. 

A análise do caso evidencia que, diante de sujeitos com funcionamento psíquico fragilizado, o uso do RPG pode operar como dispositivo de estabilização e de construção de sentido, desde que manejado com responsabilidade ética e técnica. A proposta não substitui a técnica psicanalítica, mas a amplia, ao incorporar recursos que dialogam com a linguagem e o imaginário do adolescente contemporâneo. Reforça-se, portanto, a necessidade de um olhar clínico atento à singularidade de cada caso, capaz de acolher os modos criativos e, por vezes, inusitados, com que o sujeito procura se constituir como tal. 

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1Psicóloga pós graduada em Psicanálise Clínica Avançada, Neuropsicanálise e Psicanálise, Psicoterapia e Psicopatologia do Adolescente pela Faculdade Iguaçú. Contato:naiarab.psi@gmail.com
2Psicóloga, pós graduada em Terapia Familiar e de Casal pela Faculdade de Ciências Humanas Esuda e Especialista em Saúde Renal pela Universidade Federal de Pernambuco. Contato:noronha.psi@gmail.com
3Psicóloga pós graduada em Psicologia Jurídica pela Universidade Cidade de São Paulo – UnisãoPaulo. Contato: alessandrathome@yahoo.com.br