O ROMANCE DE FORMAÇÃO COMO UMA AÇÃO PEDAGÓGICA: UMA LEITURA DE VERÃO NO AQUÁRIO, DE LYGIA FAGUNDES TELLES 

THE NOVEL OF FORMATION AS A PEDAGOGICAL ACTION: A READING OF THE NOVEL SUMMER IN THE AQUARIUM, BY LYGIA FAGUNDES TELLES

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7908789


Lízia Adriane Freire Ferreira Gomes
Rita de Cássia de Oliveira


Resumo: É possível destacar que toda a produção literária até a chegada do século XX, dominada pelos homens, também é elemento persistente dentro do bildungsroman (Romance de Formação). Nesse aspecto, está explícito um protagonista especificamente homem (a young male hero). Assim, a jornada do personagem consiste num enquadramento de aprendizagem e formação exclusiva do sexo masculino. Com a chegada do século XX, intensamente marcado pelo início de ondas feministas que ampliaram os direitos femininos, evidenciou-se a ascendência literária produzida por mulheres. Pertinente a essa perspectiva, surge o bildungsroman feminino, configura-se como uma revisão literária e histórica. A partir das décadas de 80 e 90, com o crescimento dos estudos feministas e pós-coloniais, as definições do conceito de Bildungsroman passaram por revisões e quando se pensa em bildungsroman feminino, não se trata de apenas uma troca do personagem principal ou do escritor masculino por uma mulher, mas na consideração de diferenças entre os gêneros , não no sentido de que um seja maior que o outro, mas que as condições do universo feminino sejam respeitadas, sem estereótipo na criação literária. Segundo essa ótica, lemos e analisamos o romance de formação Verão no Aquário, de Lygia Fagundes Telles.

PalavrasChave: Romance de Formação. Bildungsroman femenino. Aprendizagem. Verão no aquário. Lygia Fagundes Telles. 

Abstract: It is possible to highlight that all literary production until the arrival of the 20th century dominated by men is also a persistent element within the bildungsroman (Novel of Formation). A specific male protagonist (a young male hero) is explicit in this aspect. Thus, the character’s journey consists of a male-only learning and training framework. With the arrival of the 20th century, intensely marked by the beginning of the feminist waves that expanded women’s rights, the literary ascendancy produced by women became evident. Relevant to this perspective, the female bildungsroman emerges, configured as a literary and historical review. From the 1980s and 1990s onwards, with the growth of feminist and post-colonial studies, definitions of the concept of Bildungsroman underwent revisions and when we think of female bildungsroman, it is not just a change of the main character or the masculine writer by a woman, but in the consideration of differences between the genders, not in the sense that one is greater than the other, but that the conditions of the feminine universe are respected, without stereotypes in literary creation. From this perspective, we read and analyzed the novel of formation called Summer in the Aquarium, by Lygia Fagundes Telles.

Keywords: Novel of Formation. Female Bildungsroman. Learning. Summer in the aquarium. Lygia Fagundes Telles.

Introdução

No tocante ao romance e à sua estrutura, diretamente ligada à ascensão da classe burguesa e de seus ideais, faz-se profícua a análise de Georg Lukács (2000) acerca da nomenclatura “romance de educação”. A teoria do Romance, que foi escrita durante a Primeira Guerra (1914-1915), teve influência na Escola de Frankfurt, em especial nas ideias de Theodor Adorno e Walter Benjamin. Nesse trabalho, cujo cerne se baseia nos elementos genéricos constitutivos do romance, Lukács discorre sobre a questão solitária e problemática do herói romanesco, que tem sua jornada marcada pela busca de um objetivo. Tal análise abarca a importância do cronotopo do protagonista, numa tentativa de interpretar a relação existente entre o indivíduo e a sociedade. Para ele, a ação do herói inserto num espaço social é matéria de romance. De maneira crítica, Lukács mostra a ruptura entre o herói e o mundo degradado como traço intrínseco à constituição do romance. Ao reiterar várias vezes que o “romance é a epopeia do mundo abandonado por deus” (LUKÁCS, 2000, p. 89), há evidências dessa constante modificação social burguesa. 

Ademais, cumpre abordar sobre as desigualdades sociais e sexuais existentes ao longo da história até chegar à aceitação do gênero bildung sob a ótica feminina. Evidencia-se que a mulher fora considerada por muito tempo como uma autora marginalizada, à proporção que existia uma usurpação das funções de significação e representação da mulher, bem como um falseamento de sua realidade enquanto ser. Historicamente, é preciso ressaltar que, embora a existência de sistemas matriarcais, em Creta, na Idade do Bronze (cerca de 3000 a.C a 700 a.C.), de acordo com Antônio Carlos Olivieri (2007, p.1), em Mulheres: Uma longa história pela conquista de direitos iguais, a mulher tinha um espaço muito reduzido, sobretudo no campo das profissões e no campo político. Ante a esse cenário, na Idade Média, porém, houve um primeiro registro de ideias feministas. A exemplo disso, a obra-prima da francesa Christine de Pisan, “Cidade das Damas”, escrita em 1405, sob uma erudição eminente, relatou acerca da igualdade natural entre os sexos, mostrando também vidas femininas exemplares da época, dando voz a um lugar que antes era negado a esse público. Na concepção de Luciana Eleonoura de Freitas, em sua tese A cidade das damas: a construção da memória feminina no imaginário utópico de Christine de Pizan ( 2006, p.12):

A obra trata de temas como educação, igualdade e diferença entre sexos, estupro e introduz um tema novo no século XV: a importância de um espaço próprio para abrigar o processo de escrita, “o quarto só seu” de que nos fala Virginia Woolf, cinco séculos mais tarde, em A room of one’ own. 

Infere-se, portanto, que o Bildungsroman de autoria feminina, tomando como base sua evolução, é produzido a partir de vivências subjetivas formadoras, que tendem à revisão da estrutura clássica inicial do gênero, mas que não pode fugir à experiência do processo de transformação do ser. Se o princípio da Literatura, tal como Antonio Cândido (2000), é uma tentativa de transposição da realidade para o ilusório, sob forma de uma “estilização formal”, é possível considerar a identidade feminina na escrita, compreendendo seu papel também importante para a sociedade.

1. Passagem do Bildungsroman à Bildungsroman feminino

Na segunda metade do século XIX, no período vitoriano, na Inglaterra, por exemplo, parece evidenciar claramente o ápice da  realidade de revisão do papel da mulher na sociedade. Isso porque o papel feminino, durante aquele século, era restrito à submissão e às responsabilidades domésticas validadas pelos valores patriarcais, o que também se estendia a outros âmbitos, inclusive com respeito à arte literária. Com efeito, as mulheres deveriam ter um padrão de características, tais como atributos físicos destacáveis, uma personalidade doce, comportamento elegante e respeitável, além de atender às expectativas de procriação e de educação dos filhos. No pensamento de Elaine Showalter, em A literature of their own. British women novelists from Brontë to Lesing (1999), tal modelo de padrão vitoriano deveria ser seguido, sob pena de serem consideradas subversivas ou até mesmo, fallen women

Ao mesmo tempo, a era vitoriana, também trouxe consigo um intenso e paradoxal momento de transformação: se de um lado houve reformas políticas, emergiram-se desigualdades, se observava-se o progresso tecnológico, persistem dúvidas religiosas, se as revoluções filosóficas agora tomavam lugar de prioridade, o conservadorismo tentava manter-se. Assim, características como o industrialismo, o evolucionismo de Charles Darwin e o imperialismo britânico apontavam para uma nova rota na condição feminina. Segundo Showalter (1999), durante esse período, havia fortes mudanças econômicas, principalmente com o surgimento da Revolução Industrial. Nesse sentido, as fábricas exigiam um maior quantitativo de mão de obra, devido ao volume da demanda de trabalho. Por essa razão, as mulheres, antes, com papéis reduzidos, agora passaram a assumir uma dupla jornada, que era dividida em tarefas domésticas e industriais, entretanto com salários  menores do que os homens. Esse cenário se apresentava dessa forma, pois, de acordo com Therese Cecilie Kolle, em Woman’s struggle for autonomy A reading of Jane Eyre, Wuthering Heights and The Mill on the Floss (2011), as mulheres dessa época, além de não receberem  uma educação de qualidade, eram vistas como inferiores aos homens e sem legalidade, não apresentavam propriedade particular, pertenciam inicialmente aos pais e depois aos maridos, e nem mesmo os filhos eram considerados seus. Acrescenta-se que o casamento era a única saída para conseguir a estabilidade econômica. 

Embora essa configuração cronológica, o século XIX, por sua vez, ao demonstrar grandes avanços na produção literária, revelou o surgimento de uma vasta literatura produzida por mulheres dentro do contexto inglês. Alguns desses romances como Jane Eyre (1847), de Charlotte Brontë e The Mill on the Floss (1860), de George Eliot, teceram críticas assertivas ao mundo feminino dentro do contexto vitoriano, além de mostrarem o crescimento e as experiências de protagonistas femininas em uma sociedade extremamente conservadora, cuja hegemonia cultural era masculina. Em Teoria e Crítica Literária Feminista – conceitos e tendências (2007), Thomas Bonnici, define o termo patriarcalismo, como um sistema organizacional marcado pela figura do patriarca no comando das relações familiares. Tal conceito foi utilizado nas ciências antropológicas e nas teorias de gênero e pelos movimentos feministas. Nessa análise, “na teoria feminista, o patriarcalismo é definido como controle e repressão da mulher pela sociedade masculina e parece constituir a forma histórica mais importante da divisão e opressão social. É um vazio conjunto universal de instituições que legitimam e perpetuam o poder e a agressão masculina”. (BONNICI, 2007, p. 198).

Com a chegada do século XX, intensamente marcado pelo início de ondas feministas que ampliaram os direitos femininos ao voto, aos salários e à educação, evidenciou-se ainda mais a ascendência literária produzida por mulheres. Nessa linha, Simone de Beauvoir , em 1967, iniciou sua obra O segundo sexo – a experiência vivida, afirmando que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. (BEAUVOIR, 1967, p. 9). Tal afirmação diz respeito ao fato de que, na infância, não há a concepção de diferenças sexuais entre meninos e meninas. Isso somente acontece quando o indivíduo entra em contato com ideologias e diferentes formas de convívio social. No pensamento de Beauvoir (1967, p. 21), “a passividade que caracteriza essencialmente a mulher ‘feminina’ é um traço que se desenvolve nela desde os primeiros anos. Mas é um erro pretender que se trata de um dado biológico: na verdade, é um destino que lhe é imposto por seus educadores e pela sociedade”. É necessário sublinhar que a filosofia beauvoriana aborda sobre o aspecto ontológico, que ultrapassa os limites do determinismo biológico e envolve o contexto cultural formativo do sujeito. Em toda a sua obra, há uma preocupação com as fases que a mulher passa, sobre sua sexualidade, suas funções sociais até a velhice, em uma tentativa de legitimar o “ tornar-se”, égide da sua filosofia existencialista, que consiste na formação de um ser, durante a sua trajetória de vida. 

Nessa lógica, segundo a tese de Lucilene Canilha, intitulada O Bildungsroman feminino de Lygia Fagundes Telles: uma leitura da mulher brasileira, quando se pensa em bildungsroman feminino, não se trata de apenas uma troca do personagem principal ou do escritor masculino por uma mulher, mas na consideração de diferenças entre os gêneros , não no sentido de que um seja maior que o outro, mas que as condições do universo feminino sejam respeitadas, sem estereótipos, diante de um histórico sistema sociocultural que sempre estabeleceu profundas e radicais distinções, inclusive na explicação de que uma ordem biológica influencia diretamente na criação literária. Para a crítica brasileira Nelly Novais Coelho (1993), rejeita a ideia da diferença entre a escrita entre ambos, mas concorda que certos temas e algumas focalizações literárias produzidas por mulheres assim seja, em virtude de uma perspectiva que sempre foi relegada e negligenciada. Assim, pela tradição do gênero de formação ser uma expressão de uma sociedade, entende-se que a escrita feminina apresenta modificações quanto ao uso de elementos e às projeções simbólicas. 

É possível destacar que toda a produção literária até a chegada do século XX, dominada pelos homens, também é elemento persistente dentro do bildungsroman. Para François Jost, que traçou uma pequena história do gênero na Alemanha, Inglaterra e França, em “La Tradition du Bildungsroman”, esse tipo de escrita romanesca consiste em um processo “no qual se aprende a ser homem”. Nesse aspecto, está explícito um protagonista especificamente homem (a young male hero). Assim, a jornada do personagem consiste num enquadramento de aprendizagem e formação exclusiva do sexo masculino. Contudo, na concepção de Jerome Hamilton Buckley, em Season of  Youth: the Bildungsromam from Dickens to Golding, em seu capítulo sobre a obra The Mill on the Floss, de George Eliot, não há nenhuma menção ao fato de a protagonista ser do sexo feminino, diferente das outras obras em que os homens aparecem como principais. Nessa obra, de 1860 , da autoria de Mary Ann Evans, cujo nom de plum3 era George Eliot, alcunha masculina para que seus trabalhos recebessem reconhecimento, longe de estereótipos, Maggie Tulliver é apresentada ao público como uma verdadeira contravenção ao modelo vitoriano vigente: ela não é recatada e segue resiliente e obstinada, desde a infância, a não cumprir os destinos traçados pela mãe Bessy – uma perfeita senhora do lar, trazendo em seus diálogos a reflexão de um comportamento insurgente e revolucionário contra um sistema vigente masculino. 

Constata-se assim, o impasse de que, no gênero de formação do Bildungsroman, não há a presença de personagens femininas. Isso trouxe à baila muitas críticas feministas, como a de Ellen Morgan, em 1972, no estudo “ The Bildungsroman is a male affair”. Segundo ela, nós já publicamos romances de aprendizagem, se a protagonista fosse mulher, sua jornada era constituída pela preparação dela para o casamento e a maternidade. Seu crescimento era retrato apenas da infância e adolescência, e sua maturidade consistia nas condições propícias para o casamento e gestação, negligenciando qualquer foco no desenvolvimento pessoal e intelectual. Nesse viés, enquanto o herói do bildungsroman tradicional era um homem que passa por um proceso de educação, de descoberta da vocação e de uma maturidade, a protagonista feminista, ao tentar esse mesmo processo, era considerada uma ameaça à normalidade. Nas palavras de Esther Kleinboard Labovitz, em The Myth of the heroine: the Female  Bildungsroman in the Twentieth Century (1986), ela era colocada em uma categoria de violadora da lei. Para a estudiosa brasileira Cristina Ferreira Pinto (1990): 

Segundo Morgan, o final negativo acontece devido ao abismo que, na maioria das vezes, há entre o desenvolvimento interior da mulher e o do mundo que a rodeia. Em outras palavras, diferente da integração do EU com a sociedade que o desenvolvimento das habilidades propicia no Bildungsroman tradicional, no feminino há uma discrepância entre o interno e o externo, uma vez que: “O ‘mundo exterior’ responsável pela formação do herói do Bildungsroman seria, no caso da protagonista feminina, o lar e a família, não havendo margem para o crescimento interior.” (PINTO, 1990: 13).

Em vista disso, muitos teóricos e críticos sugeriram outras denominações , como fizeram Elizabeth Abel, Marianne Hirsch e Elizabeth Langland (1983), ao considerarem mais adequada a expressão “[…]‘novels of female development’, que incluem o crescimento físico e interior da protagonista a partir da sua infância como seu crescimento interior já na idade adulta” (PINTO, 1990, p. 15). 

É importante asseverar sobre a caracterização desse gênero, quando se refere à experiência feminina, visto que, esse tipo de narrativa, que passava a ser vista como um romance de “renascimento e transformação” se trata de buscar uma integração espiritual que, segundo Annis Prattis (1981), ao estudar sobre o arquétipo feminino, dá a possibilidade de um final positivo à protagonista. Contudo, tal intento se anula, ao verificar que a possível integração da mulher exclui a chance de autorrealização, por ter a obrigação de cumprir papéis sociais estabelecidos pelo seu entorno. Assim, é comum que o final das narrativas sejam imbricados de destinos truncados (truncated Bildungsroman), segundo Labovitz (1986). Para Pinto (1990, p. 17), essa interrupção – truncamento, mutilação física ou emocional, a loucura, o suicídio ou o fracasso – pode representar indiretamente “um modo mudo, de protesto, uma rejeição da estrutura social que exige da mulher submissão e dependência”. Desse modo, pela sua vivência externa ser tomada e subjugada, a mulher, dentro da narrativa, volta-se para o seu interior, numa esfera intimista e complexa, que se expõe na escrita, em certos casos, desordenada. Para Pinto (1990: p. 27):

A literatura feminina se caracteriza também como subversiva ao adaptar ou reescrever temas e enredos tradicionalmente masculinos, invertendo a relação entre personagens, jogando o foco narrativo sobre um aspecto novo, estabelecendo perspectivas incomuns ou oferecendo uma visão alternativa da realidade.

Pertinente a essa perspectiva, o bildungsroman feminino, ao utilizar como base a tradição preponderantemente masculina, configura-se como uma revisão literária e histórica. Tobias Boes (2006) constata que a partir das décadas de 80 e 90, com o crescimento dos estudos feministas e pós-coloniais, as definições do conceito de Bildungsroman passaram por revisões. Dessa forma, passou-se a realizar releituras de autores modernos, a exemplo de  Woolf, Joyce e Conrad, ressaltando a cisão com romances do século XIX no que se refere ao processo de desenvolvimento do protagonista. Sob essa ótica, o estudioso ainda mostra outra obra importante para o estudo do Bildungsroman feminino: Unbecoming Women de Fraiman, publicada em 1993, mesmo mirando unicamente no constexto vitoriano. Desde seu surgimento, o Bildungsroman tem ultrapassado as fronteiras da literatura alemã e vem sendo usado para classificar a maioria dos romances que, como a obra goethiana, apresentam um personagem que busca aprimorar suas habilidades individualmente e socialmente.

Infere-se, portanto, que o Bildungsroman de autoria feminina, tomando como base sua evolução, é produzido a partir de vivências subjetivas formadoras, que tendem à revisão da estrutura clássica inicial do gênero, mas que não pode fugir à experiência do processo de transformação do ser. Se o princípio da Literatura, tal como Antonio Cândido (2000), é uma tentativa de transposição da realidade para o ilusório, sob forma de uma “estilização formal”, é possível considerar a identidade feminina na escrita, compreendendo seu papel também importante para a sociedade.

2. O Bildungsroman feminino de Lygia Fagundes Telles

Em 2016, a União Brasileira de Escritores (UBE) indicou o que seria um dos marcos para a representatividade literária brasileira no mundo: o nome de Lygia Fagundes Telles, ao Prêmio Nobel de Literatura. A vasta jornada literária da contista inclusa na 3ª fase do Modernismo, cujas obras dão ênfase nuclear entre sociedade e política, também envolve um conjunto rico de romances, que ganham reedições ampliadas e comentadas. Dentro dessa múltipla funcionalidade ficcional, de acordo com os estudiosos na obra lygianano no Brasil, sua grandeza literária se encontra com maestria nos seus quatro romances publicados, a saber Ciranda de pedra (1954), Verão no aquário (1964) , As meninas (1973) e As horas Nuas (1989), que se alinham à perspectiva do gênero de formação. 

Em Verão no Aquário, especificamente, há uma clara sucessão de desencontros vividos pela personagem central, Raíza, apontando, de uma forma sinestésica e metafórica, uma intensa inquietação diante das questões do mundo. Desse modo, os traços do bildungsroman são impressos, constituindo o caráter em transformação, a partir das experiências externas e da maneira pela qual a protagonista passa a enxergar o interno. 

A narrativa moderna lygiana, influenciada pelo Realismo machadiano do século XIX, em que investia em caracterizações psicológicas, também busca aprimorar a dialética interna de suas personagens femininas com o mundo externo, marcado também por transformações culturais, sociais e até políticas. A obra em questão foi publicada em 1964, um período político brasileiro de significativas mudanças. 

No mundo, a década de 60, mostrou os grandes feitos de um momento histórico pós-guerra. Ante ao ritmo acelerado de crescimento econômico e de tecnologia, percebeu-se o acesso a uma multiplicidade de bens materiais e culturais. Nascia ali a sociedade do consumo, o que aparentava um apogeu da prosperidade. De acordo com a historiadora Maria Helena Simões, na obra A década de 60: rebeldia, contestação e repressão política (1997, p. 12):

A prosperidade desses tempos expressou-se, sobretudo para as populações dos países desenvolvidos, no acesso crescente a (…) bens que eram frequentemente vislumbrados não só como portadores de maior conforto e comodidade, mas ainda de uma vida melhor. Era a sociedade que, além do elevado padrão de consumo e do avanço tecnológico, associou-se (…) à cultura de massa. 

Ao mesmo tempo em que ocorriam tais mudanças, diante de tantas forças macrossociais, o “indivíduo” enquanto sujeito direto do processo social passa a sofrer fragmentações. Isso é constatado pela ascensão da chamada indústria cultural e pelo fortalecimento do Estado, como uma entidade de controle. Nessa linha, os aspectos estruturais da modernidade foram analisados à luz do pensamento marxista. De acordo com Michel Foucault4, o sujeito se descentraliza, em virtude dos processos histórico e social. Nessa percepção foucaultiana, o indivíduo é resultado do próprio movimento da história, ao mesmo tempo em que se depara com a compreensão de que ele não tem responsabilidade sobre suas próprias ações e seu desenvolvimento. Esse caráter paradoxal, contudo, dentro da década de 60, forma traços específicos do sujeito da década de 60 e apontam para um contorno distinto: o da contestação e o da rebelião. Nesse sentido, grande parte da juventude se motivou para um movimento de recusa ao cenário vigente, que estava polarizado entre o comunismo e o capitalismo. Assim, floresceram os movimentos underground, hippie, o pensamento de Herbert Marcuse, a música folk  de Bob Dylan, o rock de os Beatles e dos Rolling Stones e o festival de Woodstock Music & Art Fair. Questionavam-se, nessas manifestações a famosa focalização na sociedade industrial desenvolvida, o “american way of life”, que garantia, de um lado, as comodidades e a produtividade, mas de outro, impunha regimes totalitários na condução das organizações sociais, cerceando o desejo libertário de uma juventude, que desejava fugir às burocracias. Sob essa ótica,  (Simões 97. p. 22) assevera: 

Por isso, para milhões de jovens naquela década, a saída vislumbrada foi a busca de um mundo alternativo. Da recusa da cultura dominante e da crítica ao establisment (…), nasceram novos significados: um modo de pensar, de encarar o mundo, de se relacionar com outras pessoas. Da recusa, surgia na verdade, uma revolta cultural que contestou a cultura ocidental em seu âmago: a racionalidade.

No Brasil, também vivia-se uma euforia. O governo do “presidente Bossa-nova” e suas metas de desenvolvimento, Juscelino Kubitschek, a chegada do cinema Novo, o sucesso internacional dos jogadores Mané Garrincha5 e Pelé6 alimentavam a visão próspera de um “sub-desenvolvimento”. Contudo, no auge desse frenesis, o país passou a encarar as consequências negativas, comprometendo seu destino político e social. O Plano de Metas de JK, que se destinou à elevada produção da indústria automobilística deixou uma dívida externa, que era paga por uma parte significativa das exportações, desfalcando as condições internas de importação (insumos, petróleo e bens de capital) e, por sua vez, de crescimento industrial em franca ascendência. Somado a isso, o aumento da inflação e a relegação das questões agrárias criaram tensões financeiras, que se refletiram na alta dos produtos e no fluxo migratório rural para o urbano. É importante mencionar que o grande progresso não atingia à população majoritária, potencializando, assim, os desequilíbrios sociais em um mesmo país, fomentando ideologias partidárias e levando ao poder o movimento civil-militar, iniciado em 1964 e que só terminaria em 1985. No limiar dessas transformações, estava o brasileiro, na tentativa de entender um novo mundo que estava chegando e, dessa forma,  tentar se identificar com ele. 

Todo esse cenário real é pauta para o enfrentamento dos conflitos ficcionais das protagonistas dos romances de Lygia, em especial, Raíza, em Verão no Aquário. É interessante destacar que, quanto ao cânone, em Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe, o protagonista se tratava de um jovem do sexo masculino, uma vez que, às mulheres, não era possível, à época, a liberdade que o herói tinha no contato com as múltiplas experiências sociais, decisivas no percurso do autoconhecimento. Dessa forma, a articulação discursiva de Telles, em dar voz às mulheres em seus enredos, pretende um equilíbrio de ações, na sociedade brasileira marcada pelas relações de poder efervescentes e ainda majoritariamente masculinas. 

Ao tratar dos embates desse novo Brasil, a geração de mulheres precisava lutar por igualdade de direitos e por representatividade. O ano de lançamento do romance (1964) coincidiu com um significativo momento de mobilização social feminista , que buscou repensar o papel da mulher na sociedade. Tal influência social refletiu-se em Verão no aquário, embora não seja a intenção direta de Lygia em reproduzir diretamente os feitos históricos e políticos da época. 

No posfácio da edição do romance de 2010 de Telles, Ivan Marques apura:

E mais uma vez a autora faz coincidir, de modo engenhoso e poético, a descrição do processo de formação de uma identidade  individual – da insegura, carente e irrequieta Raíza, que também  é a narradora da história – com o retrato mais amplo de uma sociedade decadente e corrompida. […] As personagens de Verão no Aquário dão as costas para o mundo. Não se preocupam nem com a iminência de um conflito internacional (estamos no tempo da Guerra Fria), nem com a “revolução francesa” que parecia estar perto de ocorrer no Brasil. Velhos e jovens, todos permanecem à margem nesse extrato pequeno- burguês TELLES/(MARQUES, 2010, p. 219-225).

Na narrativa, há pautas pertinentes quanto ao movimento contracultural, entre elas a liberação sexual da mulher (representada por Marfa e Raíza, em seus relacionamentos com vários parceiros), o uso de psicativos e a independência social do sexo feminino. Nesse viés, a estudiosa Luciana Eleonora de Freitas confirma: 

[…] Um dado relevante que unifica esses quatro livros [os quatro  romances de Lygia Fagundes Telles] é a insistência em centralizar suas tramas em torno de protagonistas femininas. A condição da mulher nesta sociedade eminentemente masculina é uma preocupação sempre presente na ficção desta autora. Em Verão no aquário, isso se coloca duplamente, pelos conflitos e atitudes de Raíza, a protagonista, e pela atividade literária de sua mãe, Patrícia, uma romancista que cria enredos e personagens altamente idealizados, distantes da realidade concreta vivida por sua filha e por sua sobrinha (Freitas, 2006, p.120).

Assim, seus romances desvelam tanto a necessidade de expressar o mundo concreto, como a tentativa de vencê-lo. Infere-se, com isso, que o gênero de formação respira a realidade e a possibilidade, o atingível e o utópico, o mundo externo e o interior, numa metáfora perfeita de um tempo mediado pela ânsia de ordenação pessoal diante da desestabilização coletiva. 

Na concepção do professor Joseph R. Slaughter, cujo estudo é ligado ao trabalho social da Literatura no livro Human Rights (2007), o Bildungsroman  narra a história de um protagonista integrado à sociedade, “compartilhando a vontade geral sem o recurso à coerção social”. Na obra de Telles, tal adequação se condiciona aos grupos politicamente minoritários, que desejavam também ter reconhecimento. Nesse caso, o gênero de formação se encarregava de tornar pungente o drama constituído pelo caráter frágil das escolhas individuais ante a uma realidade caótica, bem como revelar um sujeito capaz de transformar sua própria condição. Para isso, há um investimento nos diálogos internos, visto que o intimismo passa a ser posto em xeque, graças às experiências externas, que envolvem juízos, crença e valores de outrem, contribuindo para o amadurecimento moral da personagem.

Tem-se no segundo romance de Lygia, Verão no aquário, uma protagonista jovem, sem qualquer menção a uma idade definida. Raíza, representação ficcional de uma juventude real questionadora do status quo, apresenta conflitos existenciais que gravitam no relacionamento paradoxal e conflituoso com a mãe, Patrícia. No romance de formação, percebe-se a importância dos símbolos e das representações, visto que eles fazem parte da experiência. No título da obra, a simbologia do verão, estação marcada pelas altas temperaturas, associada às sensações de abafamento, devido às tensões, coaduna-se ao estrito e artificial aquário/redoma, objeto presente nos cenários da obra, que é indiscutivelmente protegido pela personagem tia Gracian. Essa representação expressa o desejo de libertação que Raíza busca. Se, como visto, no romance de formação, impetra-se o desejo de superação, a protagonista, nessa obra, necessita enfrentar o juízo misterioso e inalcançável da mãe, sempre ocupada em seus próprios afazeres, a ausência de um pai, sentida nas obsessivas lembranças e sonhos e que, quando vivo, não tinha liderança e equilíbrio, dado aos vícios, a carência de um par que a acolha e a ame, e as dúvidas dilacerantes de uma jovem que tenta encontrar seu lugar no mundo. Tal mal-estar que tem sua gênese nos relacionamentos familiares e pode ser visto no diálogo entre mãe e filha: “Há um germe que se instalou em nós, mas agora resolvi reagir, não quero mais esse vazio, não quero mais esse desespero, quero fortalecer a minha vontade”. (TELLES, 1998, pp.76, 77) “Estou me despedindo do meu aquário, mamãe, estou me preparando para o mar, não percebe?”. (TELLES, 1998, p.77)

O narrador é autodiegético e, por isso, apresenta uma percepção muito subjetiva e particular, distanciando da utilidade dos bildungsromane. Ao ter a história contada por Raíza,em 1ª pessoa, percebe-se com facilidade seu trânsito em todas as suas dinâmicas. Impede afirmar que a intenção da onisciência, comum nos gêneros de formação, trata-se de uma característica preciosa na dimensão geral da narrativa, visto que, como Luckács, dilui a relativização de um discurso que apresenta passionalidade   e afetividade, favorecendo o chamado pacto ficcional. Por outro lado, tal foco narrativo permite ao leitor que aceite facilmente a fantasmagoria, sem parecer que é absurda e irreal. Quanto ao ambiente, a ação se passa em sua maior parte no interior de uma casa, onde estão Raíza, a mãe, a tia, a empregada e a prima que aparece periodicamente. A escolha pelos ambientes fechados é também uma característica que permite avaliar o lar, a casa como um topos de transformação, que se origina na família. 

Vale acrescer que o Bildungsroman tradicional apresenta um didatismo nas etapas de formação, que não será visto neste romance em questão. Nos romances de modelo goetheano, há a passagem demarcada da evolução das personagens, envolvendo o crescimento físico e mental, que vai desde a infância até à fase adulta. Em Verão no aquário, no entanto, Raíza, é uma jovem sem definição etária, mas que se concentra  na fase de transição da adolescência para a idade adulta, ao tentar assumir responsabilidades, equilibrar a emoção nas diversas relações que estabelece, como uma preparação para sua independência profissional e psicológica. Isso porque, na sociedade, coexiste o consenso de que a fase adulta é a chegada da maturação. 

Quadro 1- Esquema da evolução de Raíza

Quanto à caracterização, não há, em Verão no Aquário, o intento em descrever fisicamente Raíza. O objeto simbólico espelho, que aparece sempre na ação e que permite a visualização física, destaca a mudança interna que ela vai percebendo ao longo do seu processo: “Voltei- me então para o espelho. Há pouco, senti-me fulgurante debaixo do sol. E eis  que qualquer coisa apagara-se em mim. Achei que antigamente meu cabelo era mais dourado” (TELLES, 2010, p. 26). 

É possível mencionar que tal reflexão psicológica está presente na escrita feminina. Conforme Cíntia Schwantes, no ensaio “Dilemas da representação feminina”7, essa estratégia é comum na representação da mulher na literatura: 

[…] Assim, uma narradora homodiegética (como tão comumente são as narradoras da ficção escritas por mulheres), não está sendo (apenas) confessional e autobiográfica. Ela está alargando as possibilidades de representação do feminino (SCHWANTES:s/d, p. 9).

3. A figura da “mentora” como formadora na ação pedagógica

Dentre os aspectos que favorecem o processo de formação, está o relacionamento com a mãe. Em sua perspectiva, Raíza antagoniza-se à mãe: empoderada ao seu tempo, arrimo da casa, exercendo a função de escritora e permeada por mistérios. Ao mesmo tempo, a protagonista nutre uma admiração pela mãe: 

Agora podia ouvir o ruído da máquina, mamãe estava escrevendo, André ainda não tinha chegado para o chá. […] Seria concebível uma amizade assim branca? Dentro de alguns     anos ela já estará velha. Teria tido forças para resistir àquele jovem esbraseado e ainda por cima, casto?! Casto… Está claro que já se amavam como loucos, os hipócritas. Ela é, principalmente, tão distinta, tão correta. É tão devassa (TELLES, 2010, p. 14).

Acendi um cigarro e fiquei ouvindo o ruído da máquina de escrever, um ruído acobertado lá no fundo como uma conspiração. Minha mãe. […] o importante era que ela escrevesse seus livros. […] Ela não queria saber de nada. Ou melhor, queria saber mas era como se não tivesse sabido. Ouvia. Calava. E muito tesa e muito limpa, sentava-se diante da máquina, punha os óculos e começava a escrever. […] Que importância meu pai ou eu podíamos ter? […] que importância, não, mamãezinha? Se ao menos tivéssemos sabido aprender as lições admiráveis de seus livros […] (TELLES, 1973, p. 67-68).

Um raio de luz batia em seus cabelos dando-lhes um brilho quente. Podia tingi-los. Mas preferia deixá-los assim, docemente castanho-grisalhos, penteados para trás. O perfume discreto. O discreto colorido da boca. E os olhos largos e luminosos, irradiando uma luz que a envolvia como uma aura. Era jovem mas não era mais jovem. Estava vestida para sair mas não ia sair (TELLES, 1973, p. 68-69).

Fiquei sorrindo e pensando em minha mãe. Tão deusa, tão inacessível, às vinte mil léguas submarinas longe daquela vulgaridade que se pintava diante de mim. E o mesmo triste lado humano na sede da mocidade, o mais velho sempre sugando o mais jovem na ânsia de alguns anos mais… (TELLES, 2010, p.89).

Pensei em minha mãe. Lá devia estar ela na sua sala, tão bem penteada, tão bem composta que parecia recear algum fotógrafo  invisível, pronto para o flagrante do descuido, caso ela se descuidasse (TELLES, 2010, p. 147).

A tese de Luciene Canilha Ribeiro, intitulada o Bildungsroman feminino de Lygia Fagundes Telles: uma leitura da mulher brasileira no século xx, também enfatiza a caracterização dessas personagens:

A figura feminina de Raíza é transgressora, mas a de sua mãe é ainda mais desafiadora para a sociedade da época. Patrícia é uma das personagens femininas mais fortes e independentes dos romances de Lygia Fagundes Telles. Ela rompe com as barreiras da tradição ao assumir o controle de sua própria vida, cuidando de sua família incluindo o seu marido, decidindo seu destino amoroso em um momento que se esperava que os pais decidissem o destino matrimonial dos filhos. O romance ainda suporta outras personagens femininas com comportamentos diferenciados que compõem a complexidade da composição social de um mesmo período. Ao misturar mulheres de diferentes gerações, de graus econômicos e portadoras de visão de mundo tão particulares e distintas no microcosmo do romance, e, mais ainda especificamente, da casa onde vivem Raíza, Patrícia, Graciana e Marfa, reside aí uma multiplicidade de olhares sobre o universo feminino. Todos esses prismas conduzirão a protagonista, de uma forma ou de outra, a compor sua personalidade em franco  amadurecimento. (2017, p. 139).

Tal complexidade no relacionamento é ainda agravada com o aparecimento do jovem seminarista, André, cuja aproximação com Patrícia é constituída de reverência e de uma não definida paixão, que não fica clara ao leitor: “E apesar de tudo me recebia ainda, me abria os braços, a mim que não fizera outra coisa do que atormentá-la, principalmente   depois da chegada de André” (TELLES, 2010, p.138). Tal triângulo se mostra como um ponto importante e decisivo período de transformação da protagonista.  Mas antes disso, percebe-se que, ao longo da narrativa, Raíza apercebe-se das suas metamorfoses, embora os outros personagens envolvidos não tenham essa clareza. Em seu diálogo com a prima Marfa, ela reconhece: “– Marfa, estou tão animada! Sinto-me à beira de coisas tão importantes que vão acontecer! É complicado explicar mas é como se eu estivesse a um passo  da metamorfose” (TELLES, 2010, p. 26). 

4. Considerações finais

Neste processo de formação, evidencia-se a ação pedagógica que o romance de formação possui ao narrar a maturação em termos psicológicos e mais a presença de uma mentora,no caso de Verão no aquário, característica presente no canône de formação tradicional. Nesse caso, Patrícia, ao inspirar admiração na filha e de todos os que estão na trama, representa um padrão que Raíza não só tenta seguir, mas superar . Em um diálogo com André, ele dispensa elogios e compara a mãe à filha: “Você faz ironia, Raíza. Essa é a diferença principal  entre sua mãe e você. Patrícia atingiu a profundidade, lá onde a ironia não chegava jamais, como escreveu Rilke” (TELLES: 2010, p. 99).

Outros personagens também elogiam a mãe, inclusive Fernando, um dos amantes da protagonista: “Estive relendo seu último livro. Não é o meu gênero, mas sem dúvida que é uma escritora fora do comum” (TELLES: 2010, p. 50). Tia Graciana, outra personagem da obra,  também tece sua admiração pela força de trabalho da irmã, quando a família sofreu grandes perdas financeiras: “Só Patrícia parecia raciocinar, só ela não perdeu a cabeça, sempre tão segura…” (TELLES, 2010, p. 39). 

Patrícia, por sua vez, é uma mentora, aos moldes clássicos do bildung. Ela age na educação da filha, por meio de muitos conselhos adultos e reflexivos. Patrícia parece entender a imaturidade da filha e deixa certos assuntos para o momento que julga compatível e oportuno ao crescimento mental da filha, para um entendimento pleno de certos acontecimentos da vida, compreendendo a metamorfose pela qual sua pupila está passando:

[…] – E os estudos [de piano]? Quer dizer que não vai mesmo continuar.
Por que ela falava naquele tom? Por quê?
– Mas eu seria uma grande pianista?
– Só depois de muitos anos de trabalho você poderia ter essa resposta. Seria preciso antes muita dedicação, muito amor para  que um dia você mesma saiba…
– Se venci? – atalhei-a levantando-me. – Quer dizer que só na velhice? Não, muito obrigada, quero a resposta já. Não suporto a ideia de passar a vida estudando para depois um Goldenberg me anunciar que não tenho vocação, que devo fazer outra coisa. Ela pareceu concentrar-se num pensamento doloroso mas distante. Os olhos se apertaram cheios de uma ácida sabedoria. Mas a expressão não durou mais do que um brevíssimo segundo  e logo a fisionomia ficou de novo serena.
– Ainda não chegou a hora.
– Que hora?
– Quando chegar você saberá – disse ela baixinho. O sorriso irradiou-se da boca para o olhar. – Você saberá, Raíza (TELLES, 2010, p. 114).

Conforme Canilha (2008, p. 57):

A mãe fixa-se como mentora da filha, intensificando a caracterização formativa da narrativa, além de estabelecer o tipo de mulher que provocará a busca incessante de Raíza, levando às inúmeras modificações encontradas ao longo do texto. A identificação-negação da figura da mãe sustenta-se na impossibilidade de habitar um tempo e espaço   exterior a si. O fato de sabermos pouco da evolução externa-biológica de Raíza  advém justamente de uma das funções de Patrícia: resumir a figura amadurecida  e permitir que a história se concentre na conflituosa transformação da filha de dentro para fora. As duas gerações confirmam o romance de formação, pois  impedem que nossa atenção escape da evolução temporal e da transformação entre passado e futuro.Em outro momento, ambas estabelecem uma das conversas  mais marcantes da narração, ao discutirem sobre a vida no aquário. Nela, Patrícia deixa clara a sua percepção, e Raíza, facilmente percebe a relação entre a vida do peixe e a sua.

[…] Deve ser boa a vida de peixe de aquário – murmurei.
– Deve ser fácil. Aí ficam eles dia e noite, sem se preocupar com  nada, há sempre alguém para lhes dar de comer, trocar a água… Uma vida fácil, sem dúvida. Mas não boa. Não se esqueça de que eles vivem dentro de um palmo de água quando há um mar  lá adiante.
– No mar seriam devorados por um peixe maior, mãezinha.
– Mas pelo menos lutariam. E nesse aquário não há luta, filha. Nesse aquário não há vida.
A alusão não podia ser mais evidente. Estou me despedindo do  meu aquário, mamãe, estou me preparando para o mar, percebe? Mas nem você percebe isso?… (TELLES, 2010, p. 137).

3Pseudônimo
4Foucault, M. (1995b). O sujeito e o poder. In P. Rabinow, H. Dreyfus, Michel Foucault: uma trajetória filosófica (V. P. Carrero, trad., pp. 231-248). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária.
5Manoel Francisco dos Santos, chamado de Mané Garrincha ou simplesmente Garrincha, foi um futebolista brasileiro considerado o mais célebre ponta-direita e o melhor driblador da história do futebol. Foi um dos principais jogadores das conquistas da Copa do Mundo de 1958.
6Edson Arantes do Nascimento,  conhecido como Pelé, é um ex-futebolista brasileiro que atuou como atacante, sendo considerado um dos maiores atletas do mundo. 
7SCHWANTES, Cíntia. Dilemas da representação feminina. Disponível em http://repositorio.bce.unb.br/bitstream/10482/3734/1/ARTIGO_DilemasRepresenta%CA7%C3% A3oFeminina.pdf, acessado em 04/06/2021.

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