O RASABOXES E O DESCOBRIMENTO DOS SABORES DO JOGO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202408290936


Daniele Cristina Mariano de Lima


RESUMO

Este artigo irá debater a contextualização do desenvolvimento do método de preparação corporal criado por Richard Schechner intitulado Rasaboxes, introduzindo a discussão do embasamento do método com os conceitos de ator como atleta das emoções teorizado por Antonin Artaud. E com isso, ampliar e debater a descoberta do Rasaboxes por meio do sabor dos sentimentos e a criação de um corpo sem órgãos pelo jogo.

Palavras-chave: Rasaboxes; Ator Atleta das Emoções; Sabor.

ABSTRACT

This article will discuss the contextualization of the development of the body preparation method for actors and performers crente by Richard Schechner called Rasaboxes, introducing the discussion of the method’s basis with the concepts of the actor as an athlete of the heart, theorized by Antonin Artaud. And with this, to expand and debate the discovery of Rasaboxes through the taste of feelings and the creation of a body without organs through play.

Keywords: Rasaboxes; Actor Athlete of the Heart; Taste.

O Rasaboxes é uma proposta prática criada para ampliar as possibilidades de exploração de emoções e a criação para atores e performers. Sistematizada por Richard Schechner, diretor, pesquisador e professor, e que esteve presente durante a fundação do departamento de Performance Studies na Tisch School of Arts, em Nova Iorque, onde compõe o corpo docente até o momento, além disso fundou o The Performance Group, também localizado em Nova Iorque, em meados dos anos de 1960. Nos anos de 1990 no The Performance Group, em conjunto com as alunas Michele Minnick e Paula Murray Cole em trabalhos desenvolvidos com a East Coast Artists, companhia formada por Schechner em Nova Iorque, desenvolveram a prática do Rasaboxes.

O Rasaboxes consiste em uma prática objetivada denominada ‘exercício’ por Schechner, visto que o autor declara que o Rasaboxes estará em constante desenvolvimento em sua existência, por isso sua qualidade de ‘exercício’, um treinamento para atores e performers que se utiliza dos escritos do Natyasastra somado com a teoria do ator atleta das emoções desenvolvida por Antonin Artaud. Ao criar um jogo em formato de tabuleiro composto por nove Rasas (do sânscrito que significa suco) são as emoções a serem percorridas durante a prática a fim de culminar no ator atleta de Artaud. As nove Rasas são: sringara, hasya, karuna, raudra, vira, bhayanaka, bibhatsa, adbhuta e shanta. Falaremos sobre elas adiante.

O Natya Shastra é tido como o livro mais antigo escrito sobre a performance e o fazer teatral. Sua autoria foi atribuída a Bharata-muni, considerado o pai das formas de arte teatral indiana, entretanto há um debate sobre quem seria Bharata-muni, visto que é possível que o texto tenha sido escrito por vários autores ao longo dos anos. O texto escrito em sânscrito versa sobre cenografia, música, dança, sentimentos e emoções em 36 capítulos composto por 6.000 sutras (versos). O primeiro manuscrito foi encontrado em 1860 e acredita-se que o texto seja derivado de outro chamado Natya Veda dos quais os registros manuscritos nunca foram encontrados, já que sua transmissão de conhecimentos era realizada via oral. Dentro dos aspectos abordados no Natya Shastra tem-se no capítulo 6 a introdução ao conceito de Rasa.

Rasa, do Sânscrito, significa suco, essência, sabor, é o conceito de que as artes, em todas as suas formas de apresentação, existem para provocar uma emoção dentro do espectador. Rasa são sabores emocionais, ou neste caso, sabores afetivos que são criados a partir da obra por seu autor e transmitidas ao espectador que irá receber esta Rasa e saboreá-la. De acordo com a teoria da Rasa contida no Natya Shastra, a Rasa é o objetivo principal dentro de qualquer obra, sendo ela um condutor do espectador para um saturamento de uma reflexão dentro de sua própria consciência.

Qualquer explicação e/ou tradução do que é a Rasa tende a ser falha, já que Rasa é processo de degustação de estímulos apresentados ao espectador. O espectador degusta a emoção porém não a vive de fato, podendo assim a Rasa gerar um processo de reflexão por meio do saboreamento desta emoção. Assim como descreve Wallace Dace em The Concept of Rasa in Sanskrit Dramatic Theory.

O termo Rasa aparece pela primeira vez num texto específico do Natya Shastra de Bharata, um documento em sânscrito muito antigo, difícil de datar (as estimativas variam entre 500 a.C. e 500 d.C.) e considerado, até há pouco tempo, impossível de traduzir para inglês. Uma das principais razões para este fato é a presença no manuscrito (sobre dramaturgia) de palavras como Rasa; trata-se de um termo-chave cuja compreensão é totalmente incompreensível para a teoria dramática sânscrita, mas para o qual não existe absolutamente nenhum equivalente em inglês. Mas precisamos de uma palavra para a Rasa e, em vez de inventar uma, a tendência atual parece ser a de usar o termo original, transliterado do sânscrito. Precisamos de uma palavra porque sabemos que a emoção vivida no teatro é de alguma forma sutilmente diferente da emoção que tem o mesmo nome na vida real. Sentimos pena e medo no teatro e gostamos da experiência; mas a pena na vida real acaba por ser incómoda e irritante; e evitamos com determinação e engenhosidade qualquer situação que seja suscetível de nos despertar medo. A estética hindu resolveu este problema há muito tempo: tal como o ator imita a emoção, também o público saboreia a emoção enquanto assiste à sua representação. A diferença entre saborear a emoção e vivenciá-la na vida real é resumida pela palavra Rasa. De acordo com o esteta indiano Pravas Jivan Chaudhury, “Rasa era originalmente um termo fisiológico que aparecia na literatura médica antiga e significava a qualidade física do gosto, e também qualquer um dos seis gostos: doce, ácido, salgado, amargo, adstringente e insípido. Estes seis tipos de sabores caracterizam os seis humores do corpo, que são conhecidos pelos seus sabores. Por acaso, tudo isto também se encontra em Hipócrates, que enumera estas mesmas seis qualidades físicas do gosto como caracterizando seis humores corporais. Bharata diz inicialmente que há seis Rasas no drama, mas depois diz que há oito. Ele descreve Rasa como o gosto de uma emoção humana elementar como o amor, a piedade, o medo, o heroísmo ou o mistério, que forma a nota dominante de uma peça dramática. Esta emoção dominante, tal como é saboreada pelo público, tem uma qualidade diferente da que é despertada na vida real; pode dizer-se que Rasa é a emoção original transfigurada pelo deleite estético. (DACE, 1963, p.249 tradução nossa)1

Aliado ao conceito de Ator como Atleta Afetivo que foi teorizado por Antonin Artaud e publicado no livro O Ator e Seu Duplo em que Artaud influenciado pelo movimento dadaísta e surrealista, criou a teoria do Teatro da Crueldade que propunha a criação de um novo teatro com uma nova percepção através da psique humana, buscando questionar os ideais propostos pela sociedade em meados do século XX. O Atletismo Afetivo se desdobra sobre um outro ideal para atores, que versa sobre o acesso através da fisicalidade para o disparo de determinada emoção, utilizando de treinamentos para condicionar o atletismo no corpo que, através de alavancas físicas, possa gerar o estado de uma emoção que será transmitido ao espectador como emoção, mas não será de fato vivida pelo artista em cena. Utilizando de musculaturas que gerem sensações afetivas, quase que como uma espécie de disparo em que ao mover de uma musculatura (gesto, expressão ou movimento) possa reproduzir a sensação da emoção proposta (Artaud, 1985) desenvolvendo a criação de disparadores corporais em que por meio de gatilhos físicos se reproduza a sensação de uma emoção, assim não utilizando sua individualidade e suas emoções individuais.

Schechner buscou a união do Ator como Atleta Afetivo de Artaud com o Natya Shastra em que emoções são abordadas como um sabor a ser digerido e saboreado em totalidade dentro de um exercício: Rasaboxes. Formando uma prática que pudesse dar as ferramentas necessárias aos artistas da cena para atingir o estado de ator-atleta através do sentir das emoções como um sabor. Um processo de degustação da rasa que se articula de maneira muito mais eficaz quando aplicada dentro de um exercício do que durante a ato da performance.

O sistema rásico de resposta não exclui o olho e o ouvido durante o desempenho real, mas, especialmente durante o treino, funciona direta e fortemente no sistema nervoso entérico que, sob diferentes nomes, têm sido muito importante e bem teorizado em vários sistemas asiáticos de desempenho, medicina e artes marciais – todos eles intimamente relacionados com as culturas asiáticas. (SCHECHNER, 2002, p. 38 tradução nossa)2

Mas afinal, o que é o Rasaboxes? A sistematização do exercício criado foi publicada no artigo Rasaesthetics (2001) do qual exponho a seguir:

Nos últimos cinco anos, eu e vários dos meus colegas da East Coast Artists, especialmente Michele Minnick e Paula Murray Cole, temos desenvolvido o exercício Rasabox. Este exercício é uma aplicação de algumas das ideias deste ensaio, uma espécie de treino SNE para uso artístico. Baseia-se no pressuposto de que as emoções são construídas socialmente, enquanto os sentimentos são vividos individualmente. O exercício Rasabox demora muitas horas a completar; na verdade, é um exercício aberto. Não pode ser feito numa única sessão. Continua de um dia para o outro. O exercício prossegue como uma progressão ordenada de etapas:

  1. Desenhe ou cole uma grade de nove caixas retangulares no chão. Todos os retângulos são iguais.
  2. Defina de forma muito sucinta cada rasa. Por exemplo, raudra significa raiva, fúria, gritar; bibhasta significa nojo, cuspir, vomitar.
  3. Com giz de várias cores, escreva o nome de um rasa dentro de cada retângulo. Utilize métodos aleatórios para determinar que rasa vai para onde. Escreva os nomes em sânscrito. Deixe o centro ou a nona caixa vazia ou livre.
  4. Peça aos participantes para desenharem e/ou descreverem cada rasa dentro da sua caixa. Ou seja, pedir a cada um que interprete a palavra sânscrita, que associe sentimentos e ideias a ela. Enfatize que essas “definições” e associações não são para sempre, mas apenas “para agora”. Sublinhe também que podem ser usados desenhos, configurações abstratas ou palavras. Ao passarem de uma caixa para outra, os participantes devem “andar na linha” no limite das caixas ou sair completamente da área da Rasabox e passar fora da área da Rasabox e dar a volta até à nova caixa. Não existe uma ordem de progressão de caixa para caixa. Uma pessoa pode voltar uma caixa quantas vezes quiser, tendo o cuidado de não escrever por cima da contribuição de outra pessoa. Demore o tempo que for necessário até que todos tenham preenchido a sua caixa. Quando um participante tiver terminado, deve dirigir-se para o exterior da área da Rasabox. Esta fase do exercício termina quando todos os participantes estiverem fora da zona da Rasabox. Por vezes, isso demora várias horas.
  5. Quando todos se encontram no limite da área da Rasabox, é dado tempo para que todos “absorvam” o que foi desenhado/escrito. Os participantes andam à volta da borda das Rasaboxes. Lêem para si próprios e em voz alta o que está escrito. Descrevem o que foi desenhado. Mas não podem fazer perguntas, nem explicar nada.
  6. Pausa. Silêncio.
    (SCHECHNER, 2002, p. 39 tradução nossa)3

A prática consiste em um tabuleiro formado por um grande quadrado, idealmente de 10×10, feito no chão com fita crepe para delimitar a marcação, este grande quadrado é dividido em nove quadrados menores em que em cada um deles residem uma rasa, formando nove bhavas [do Sânscrito que significa emoções] sendo elas: sringara [amor, desejo]; hasya [alegria, humor]; karuna [tristeza, piedade, luto]; raudra [raiva]; vira [vigor, energia]; bhayanaka [medo, vergonha]; bibhatsa [nojo, asco, aversão]; adbhuta [surpresa]; e shanta [paz, plenitude] sendo esta última adicionada na última etapa do jogo simbolizando a paz, o equilíbrio perfeito entre todas as rasas. Esta é a última rasa a ser adicionada ao tabuleiro e seu uso não é incentivado durante a prática, esta rasa é o último estágio a ser passado dentro do jogo.

A pesquisadora Julia Sarmento (2013) refere-se ao Rasaboxes como um tabuleiro afetivo. Me apropriando do termo usado por Sarmento, o tabuleiro proposto é composto por nove rasas, as bhavas [emoções] que juntas formam um banquete afetivo. Como posto anteriormente, rasa é como o preparo de uma receita em que uma única escolha diferente pode alterar todo o sabor final do prato preparado e despertar novas possibilidades de descobertas, assim como o Rasaboxes. O tabuleiro oferece um banquete afetivo, são nove Rasas que não se limitam apenas a uma única definição de sabor, cada uma dessas rasas possui suas reverberações que não apenas um sabor (emoção), único. Sringara vai além de apenas amor, pode ser também carinho, afeição, prazer sexual, desejo, paixão, excitação, tentação, adoração, atração; hasya além de alegria também é felicidade, riso, bom humor, gargalhar, satisfação, bem-estar, euforia, gozo, divertimento, brincadeira, festa; karuna pode ser tristeza, piedade, infelicidade, descontentamento, depressão, melancolia, entristecimento, insatisfação, desesperança, mágoa, sofrimento, angústia, dor; raudra pode ser raiva, fúria, irritação, ódio, violência, agressividade, frustração, indignação, antipatia, rancor, ressentimento; vira é energia, potência, ânimo, disposição, vitalidade, vivacidade, ardor, intensidade; bhayanaka tem medo, pavor, pânico, susto, fobia, horror, amedrontamento, pavor, receio, preocupação, ansiedade, inquietação, aflição, covardia; bibhatsa pode ser nojo, asco, aversão, enjoo, repúdio, repulsa, abominação, animosidade; adbhuta é surpresa, susto, espanto, maravilhamento, estranheza, fascínio, admiração, súbito; e shanta paz, harmonia, união, conciliação, concordância, equilíbrio.

O Rasaboxes oferece um banquete de emoções. Assim como uma escolha pode fazer com que uma mesma receita tenha inúmeras versões, as rasas quando combinadas, podem gerar inúmeros novos sabores para serem experienciados dentro do jogo em uma mistura de temperos e sabores que geram na experimentação constantes mutações que gerarão novos sabores e novos banquetes a serem servidos.

Mas como este banquete ganha forma?

Com o tabuleiro montado, é hora do jogo: os jogadores (que denominarei de rasantes4), caminham ao redor do tabuleiro e entendem a estrutura para só então preencher as caixas com suas reverberações. Com giz, canetas caso a área do jogo seja forrada com cartolina nesta etapa de preenchimento, não importa o material e abordagem escolhida desde que haja a etapa de preenchimento do que é entendido por casa rasante da emoção em questão, os rasantes começam a desenhar e/ou escrever dentro das caixas associando o que sente com determinada bhava, na minha experiência de primeiro contato com as caixas afetivas neste primeiro momento é incentivado que não se use palavras durante o preenchimento para que não haja contaminação de um conceito preestabelecido do que é cada caixa antes mesmos do ato de adentrá-las. Nenhuma explicação precisará ser realizada em relação a reverberação no preenchimento de cada uma das emoções postas, o rasante pode preencher a caixa com o que quiser.

Após todas as etapas de preenchimento e reconhecimento do tabuleiro, os rasantes fazem a escolha de duas a três caixas para iniciar uma experimentação física das rasas, tendo a escolha irá se adentrar o tabuleiro e produzir uma pose estática do que o rasante compreende daquela rasa. Neste primeiro momento é esperado que as reverberações primeiras de cada rasa habitem o senso comum, como expressão de choro em karuna, pose de herói em vira, expressão de nojo em bibhatsa e assim por diante, a consistência e repetição destas entradas nas caixas, uma por vez sempre saindo de uma para então entrar em outra, é que vai ampliar as descobertas de reverberações que estejam além da superfície da rasa. Neste momento também não se usam palavras, apenas a fisicalidade do corpo tem lugar.

O sabor dentro dos parâmetros do Rasaboxes é o que deve reger a prática do rasante dentro do tabuleiro. O processo de encarar emoções como um sabor propondo a degustação dos sabores das emoções, experienciando-os em toda sua magnitude. Schechner chama este processo de snout-to-belly-to-bowel (em tradução livre: focinho para barriga para intestino) fazendo uso do Segundo Cérebro que é um dos lugares principais onde a teatralidade se encontra para Schechner. O Segundo Cérebro é o Sistema Nervoso Entérico, responsável pelo processo completo da digestão desde o consumo até a evacuação. Nele se concentram milhões de neurônios que mesmo ligados ao Sistema Nervoso Central conseguem trabalhar de maneira independente:

O sistema nervoso entérico é uma rede complexa de neurônios localizada no trato gastrointestinal, com cerca de cem milhões de neurônios. É capaz de operar de forma independente do sistema nervoso central e desempenha um papel crucial na regulação das funções digestivas e na comunicação entre o trato gastrointestinal e o cérebro. Este sistema é frequentemente referido como o ‘segundo cérebro’ devido à sua autonomia e importância na manutenção da saúde e bem-estar geral. (GERSHON, 2012).

Tendo em questão o SNE, o Segundo Cérebro e compreendendo sua função de digestão e absorção, o melhor processo de descrição da Rasa reside no processo de culinária em que na feitura de uma receita, em que todos os sabores descobertos ao explorar as possibilidades de combinação de condimentos, temperos e ervas resulta em um único lugar: a escolha. Ao adicionar manjericão ao invés de orégano em uma receita, o resultado atingido será completamente diferente. Do mesmo modo, uma escolha dentro do tabuleiro, mesmo que pequena, é responsável pela descoberta de uma nova Rasa, um novo suco, um novo sabor, que será digerido pelo rasante e um novo processo de digestão desta emoção, um novo prazer.

Não existe natya sem Rasa. A Rasa é o resultado cumulativo de vibhava [estímulo], anubhava [reação involuntária] e vyabhicari bhava [reação voluntária]. Assim como, por exemplo, quando vários condimentos e molhos, ervas e outros materiais são misturados, experimenta-se um sabor, ou quando a mistura de melaço com outros materiais produz seis tipos de sabores, junto com os diferentes bhavas [emoções], os sthayi bhava [emoções permanentes experimentadas “internamente”] tornam-se uma Rasa. Mas o que é essa tal de Rasa? Eis a resposta. Como ela é prazerosamente saboreada, chama-se Rasa. Como acontece esse prazer? As pessoas que ingerem alimentos preparados com diferentes condimentos e molhos e.. são sensíveis, desfrutam dos diferentes sabores e sentem prazer; do mesmo modo, espectadores sensíveis, após apreciarem as várias emoções expressadas pelos atores através de palavras, gestos e sentimentos, sentem prazer. Esse sentimento dos espectadores é explicado aqui como sendo as Rasas de natya. (BHARATAMUNI, 1996, p. 54-55 apud SCHECHNER, 2001).

Rasaboxes é enunciado. Sua estrutura é composta por fita, giz, desenhos, palavras e emoções. Assim como um conjunto de ingredientes formam um enunciado antes de ser um bolo, o Rasaboxes é um enunciado antes de ser o Rasaboxes. A estrutura do Rasaboxes com fitas crepes formando 9 caixas quadras no chão, dentro de um quadrado maior, é um enunciado. O preenchimento das caixas feito com giz inserindo as formas, palavras e/ou desenhos, formam um outro enunciado. Enunciados estes que vão se completando para somente após, com a presença, se tornarem discursos.

Eu via minha vida se ramificando à minha frente como a figueira verde daquele conto.
Da ponta de cada galho, como um enorme figo púrpura, um futuro maravilhoso acenava e cintilava. Um desses figos era um lar feliz com marido e filhos, outro era uma poeta famosa, outro, uma professora brilhante, outro era Ê Gê, a fantástica editora, outro era feito de viagens à Europa, África e América do Sul, outro era Constantin e Sócrates e Átila e um monte de amantes com nomes estranhos e profissões excêntricas, outro era uma campeã olímpica de remo, e acima desses figos havia muitos outros que eu não conseguia enxergar.
Me vi sentada embaixo da árvore, morrendo de fome, simplesmente porque não conseguia decidir com qual figo eu ficaria. Eu queria todos eles, mas escolher um significava perder todo o resto, e enquanto eu ficava ali sentada, incapaz de tomar uma decisão, os figos começaram a encolher e ficar pretos e, um por um, desabaram no chão aos meus pés.
(PLATH, p. 70, 2019)

Como a figueira de Sylvia Plath, o Rasaboxes presenteia o rasante com um amontoado de ramificações de possibilidades de frutos possíveis para a receita. Frutos maduros, frutos verdes, frutos doces, frutos “marrentos”, frutos por vezes com bicho. Cada entrada no jogo é uma receita. Cada escolha de ramificação entre as rasas dispostas é uma uma ceifa. No entanto, mesmo com a mesma fiqueira (a mesma estrutura), os mesmos frutos dispostos (as mesmas 9 caixas), a receita nunca será a mesma. O modo como me coloco no tabuleiro é o modo possível naquela instância. A escolha que me é possível nunca é a mesma receita, nunca o mesmo Corpo sem Órgãos (CsO).

O CsO é um conceito desenvolvido para descrever uma espécie de corpo primordial, anterior à organização anatômica e funcional do corpo humano como normalmente entendemos. Para Artaud, o corpo sem órgãos é um corpo que está livre das limitações e estruturas convencionais, permitindo assim uma expressão mais visceral e autêntica. Por outro lado, o Rasaboxes é uma técnica de treinamento de atores que envolve a exploração e expressão de estados corporais universais por meio do banquete oferecido pelo tabuleiro. Enquanto o CSo propõe uma ruptura com as estruturas convencionais do corpo em favor de uma expressão mais autêntica e primal, Schechner fornece uma estrutura para explorar e expressar estas expressões (estados) de forma controlada e consciente. Ambos os conceitos compartilham uma preocupação com a liberação das potencialidades do corpo na performance, seja através da quebra das convenções anatômicas como proposto por Artaud, ou através da exploração e expressão das emoções universais como proposto por Schechner.

No entanto, o Rasaboxes apenas pode servir de receptáculo, como a vasilha que serve o sabor contido de um alimento do banquete, quando ativado pela presença. É então quando se torna um CsO que pulsa e lateja. A presença do rasante é o que inicia a conversa, que propõe o discurso individual da trajetória no campo do jogo, munido de 9 ingredientes base que culminam em 24310 possibilidades de receitas dentro do tabuleiro.

Tudo é virtual até a presença que o ativa.

O mise en place: os limites formados pelas fitas no chão são as veias cheias e pulsantes. Formando um vampiro sugador pronto e com desejo de saborear o suco extraído do sabor vivido na experimentação no tabuleiro. Não ousaria definir o que é o Rasaboxes, mas arrisco compreender a sua verdade enquanto ser pulsante e consumidor. Os limites são ao mesmo tempo as veias e a criatura pronta para o consumo. Uma criatura autofágica com sede e fome de si mesmo, de ser ativada pela presença, de consumir os sabores e desejos despertados na minha vivência dentro do tabuleiro.

As caixas são os sabores e ao mesmo tempo os ingredientes. Todo ingrediente vem carregado de algum sabor que ao ser composto com outro ingrediente, e outro, e outro, e outro, e outro, formando um cadenciado de sucos de sabores diferentes e então estes novos sabores sendo compostos com outros sabores, impulsionando cada vez mais desejo de sabor e consumo criando a Ouroboros5 do rasante.

O saciar do Rasaboxes só é possível -existe saciar no Rasaboxes?- por meio dos rasantes presentes no tabuleiro que criam desejos que desejam desejos, sabores que saboreiam sabores, dentro das caixas afetivas.

Engole e recrie.

Digere e vomite.

Saboreia.

Morre e re-morre.

Nasce e renasce

O jogo é a máquina abstrata, as caixas são os CsO, a presença dos rasantes é a manifestação do desejo dentro do tabuleiro.

“[…] o conjunto de todos os CsO não podem ser obtidos sobre o plano de consciência senão por intermédio de uma máquina abstrata capaz de cobri-lo e mesmo de traçá-lo, de agenciamentos capazes de se ramificarem no desejo, de assumirem efetivamente os desejos, de assegurar suas conexões contínuas, suas ligações transversais. ” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.27)

Assim como não se pode criar um CsO sem desejar, não se pode adentrar as caixas sem desejo. O desejo pelo sabor, de caminhar sobre as linhas do tabuleiro e o sabor do abandono. Ao ser sugada pelos sabores é onde eu crio o meu o CsO no jogo. Do modo que me cabe naquele momento.

O desejo do tabuleiro é gritante uma vez dentro dele. Viciante até, ao se colocar em uma das caixas, saborear e desejar o sabor, é impossível parar até completar a rodada estipulada para aquele momento. Entre Rauda e Hasya, Karuna e Vira, o desejo se amplia e o Rasaboxes nasce e renasce na obsessão física que paira sobre o tabuleiro e o jogador.

Conforme estabelecido por Artaud:

Tomar consciência da obsessão física, dos músculos tocados pela afetividade, eqüivale, como no jogo das respirações, a desencadear essa afetividade potencial, a lhe dar uma amplitude surda mas profunda, e de uma violência incomum.
(Artaud, 1984, p. 126)

O tomar consciência física sobre os sabores e estados irá reger o processo violento de descoberta de potenciais. As alavancas de aprendizagem inventadas e desenvolvidas na prática do Rasaboxes. As novas consciências desencadeadas permitirão a descoberta e compreensão de onde está localizado cada um das emoções no rasante quando em prática dentro das caixas, do mesmo modo que se estabelece a respiração para Artaud, a respiração não era apenas um processo físico, mas uma ponte entre o corpo e a alma, uma porta de entrada para os reinos do inconsciente e do transcendental. Artaud viu na respiração o veículo primordial para a comunicação autêntica, capaz de romper as barreiras da racionalidade e acessar a essência pura da experiência humana, a respiração como um fluxo vital que pode ser modulado e explorado para alcançar estados alterados de consciência, desencadeando uma catarse emocional e espiritual que desafia as convenções sociais e culturais, sendo a respiração profunda e consciente um ato de rebelião contra a alienação e a padronização do corpo e da mente. Diante do exposto, ao identificar a localidade física do sabor/estado/respiração que está me afetando naquele momento, posso identificar o ponto geográfico em mim para cada uma das alavancas criadas/descobertas durante o jogo.

A descoberta do CsO se dá pelo saborear do jogo. Ao adentrar as caixas afetivas e iniciar o jogo, o rasante é disposto de 9 caixas afeitas que podem ser mescladas entre si, sendo 1 caixa principal e 8 caixas secundárias que podem ser combinadas, totalizando 24310 possibilidades de combinações. Ou seja, 24310 possibilidades de sabores expostas no banquete do tabuleiro do Rasaboxes.

São milhares de sabores que possuem um território e precisam ser explorados, o processo de descoberta e invenção dentro do tabuleiro é o processo de territorialização, na qual cada escolha gera uma nova nuance de sabor que gera um novo território. Cada um dos sabores precisa ser experienciado como um todo, sentindo toda a acidez, doçura, textura, amargor, sal, agridoce, azedo, etc.

Não é o tabuleiro que cria um CsO, ele é apenas a carcaça. Por isso, após atingir a limitação de experimentação da caixa, seja por esgotamento momentâneo das possibilidades fornecidas por ela, seja pela impossibilidade de conseguir controlar os afetamentos gerados pelo consumo do banquete, ou seja pela pulsão da caixa ultrapassar os limites da fita no chão e precisar ser vivenciada com a combinação de outra caixa, independente do motivo, em dado momento é preciso iniciar o processo de afastamento do jogo. Afinal, o Rasaboxes não passa por você, é você quem passa por ele.


1 No original: The term Rasa appears for the first time in a particular text in the Natya- castra of Bharata, a very old Sanskiit document difficult to date (estimates range from 500 B.C. to 500 A.D.) and thought to be, until very recently, quite impossible to render into English. One of the chief reasons for this is the presence in the treatise (on dramaturgy) of such words as Rasa; it is a key term without an understanding of which Sanskrit dramatic theory is totally incomprehensible, and yet for which absolutely no English equivalent is available. But we need a word for Rasa and rather than invent one, the present tendency seems to be to use the original term, transliterated from Sanskrit. We need the word because we know that emotion experienced in the theatre is somehow subtly different from that emotion which goes by the same name in real life. We experience pity and fear in the theatre, and enjoy the experience; but pity in real life is annoying and irritating ultimately; and we avoid with determination and ingenuity any situation which is at all likely to arouse fear in us. Hindu aesthetics solved this problem long ago: as the actor imitates the emotion, so the audience tastes the emotion as it watches his performance. The difference between tasting the emotion and experiencing it in real life is summarized by the word Rasa. According to the Indian aesthetician Pravas Jivan Chaudhury,’ Rasa was originally a physiological term which appeared in ancient medical literature and meant the physical quality of taste, and also any one of six tastes: sweet, acid, salt, bitter, astringent and insipid. These six kinds of tastes characterize the six bodily humours which are known by their tastes. As it happens, all this is found in Hippocrates too, who enumerates these same six physical qualities oftaste as characterizing six bodily humours. Bharata says at first that there are six Rasas in drama, but later that there are eight. He describes Rasa as the relish of an elemental human emotion like love, pity, fear, heroism or mystery, which forms the dominant note of a dramatic piece. This dominant emotion, as tasted by the audience, has a different quality from that which is aroused in real life; Rasa may be said to be the original emotion transfigured by aesthetic delight.

2 No original: The rasic system of response does not preclude the eye and ear during actual performance, but during training especially, it works directly and strongly on the ENS which, under different names, has been very important and well theorized in various Asian systems of performance, medicine, and the martial arts—all of which are tightly related in Asian cultures. Thus, when I say the rasic aesthetic experience is fundamentally different than the eye-dominant system prevalent in the West, I am not talking metaphorically.

3 No original: Over the past five years I and several of my colleagues at East Coast Artists, especially Michele Minnick and Paula Murray Cole, have been developing the Rasabox exercise. This exercise is an application of some of the ideas in this essay, a kind of ENS training for artistic use. It is based on the assumption that emotions are socially constructed while feelings are individually experienced. The Rasabox exercise takes many hours to complete; in fact it is open-ended. It can’t be done in one session. It continues from one day to the next. The exercise proceeds as an orderly progression of steps: 1. Draw or tape a grid of nine rectangular boxes on the floor. All retângulos are the same and each ought to be about 6’x3’. 2. Very roughly “define” each rasa. For example, raudra means anger, rage, roaring; bibhasta means disgust, spitting up/out, vomiting. 3. In variously colored chalk, write the name of one rasa inside each rectangle. Use chance methods to determine which rasa goes where. Write the names in Roman alphabetized Sanskrit. Leave the center or ninth box empty or clear. 4. Have participants draw and/or describe each rasa inside its box. That is, ask each person to interpret the Sanskrit word, to associate feelings and ideas to it. Emphasize that these “definitions” and associations are not for all time, but just “for now.” Emphasize also that drawings, abstract configurations, or words can be used. In moving from one box to another, participants must either “walk the line” at the edge of the boxes or step outside the Rasabox area entirely and walk around to the new box. There is no order of progression from box to box. A person may return to a box as often as she likes, being careful not to overwrite someone else’s contribution. Take as much time as necessary until everyone has drawn her fill. When a participant is finished, she steps to the outside of the Rasabox area. This phase of the exercise is over when everyone is outside the Rasabox area. Sometimes this takes several hours. 5. When everyone is standing at the edge of the Rasabox area, time is allowed for all to “take in” what has been drawn/written. Participants walk around the edge of the Rasaboxes. They read to themselves and out loud what is written. They describe what is drawn. But they can’t ask questions; nor can anything be explained. 6. Pause. Silence.

4 O termo rasante quando referido àquele que joga o Rasaboxes foi criado por mim durante este processo de pesquisa.

5 Ouroboros (ou oroboro ou ainda uróboro, do grego Οὐροβόρος: ‘que consome a cauda’; do grego οὐρά: ‘cauda’ + βόρος ‘consumo’; plural Ouroboroi ou Uroboroi) é um conceito simbolizado por uma serpente — ou por um dragão — que morde a própria cauda. O Ouroboros costuma ser representado pelo círculo, o que parece indicar, além do eterno retorno, a espiral da evolução, a dança sagrada de morte e reconstrução. Acesso em 14 de junho de 2024: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ouroboros.


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