O RAPTO DA MENINA DOURADA REDES SOCIAIS, MANIPULAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E ATRAÇÃO PELO GROTESCO NO EPISÓDIO THE NATIONAL ANTHEM, DO SERIADO BLACK MIRROR

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202410091245


Danielle Veras dos Santos Salles1


RESUMO

Criada pelo roteirista britânico Charlie Brooker, Black Mirror é uma série antológica de ficção científica lançada em 2011 pela emissora de televisão Channel 4. Os episódios, que não apresentam personagens e tramas fixas, têm como fio condutor a mediação cada vez mais frequente das relações humanas pelas redes sociais e pela tecnologia, representada pelo “espelho negro” comum a todos os aparelhos – a tela. O episódio National Anthem, corpus deste artigo, será usado para a investigação de alguns temas, entre os quais destacam-se a força das redes sociais, a atração do público pelo grotesco e a manipulação da opinião pública na atual sociedade midiatizada. 

Palavras-chave: redes sociais; opinião pública; grotesco; Black Mirror

ABSTRACT

Created by british screenwriter Charlie Brooker, Black Mirror is an anthology science fiction series launched in 2011 by Channel 4. The episodes, which do not feature characters and fixed frames, are driven by the increasingly frequent mediation of human relations by social networks and technology, represented by the “black mirror” common to all devices – the screen. The National Anthem episode, corpus of this article, will be used to investigate some themes, among which the strength of social networks; the attraction of the public by the grotesque and the manipulation of public opinion in today’s mediatized society.

Keywords: social networks; public opinion; grotesque; Black Mirror

1. Introdução 

Nas paredes, sobre as mesas e na palma das mãos jaz o espelho negro, frio e brilhante de uma TV, smartphone, tablet ou laptop. Se antes a influência era exercida exclusivamente pela mídia impressa, pelo rádio, pela TV e pelo cinema, hoje ela é potencializada pelas tecnologias digitais da comunicação e da informação. Dispositivos cada vez menores e com uma capacidade de armazenamento de dados cada vez maior se mesclam aos corpos e alteram a produção de subjetividade, oferecendo instantaneidade, interatividade e multiplicidade de informações através de uma conexão contínua e em rede, dando origem a novas práticas e desdobramentos. 

Assim, a presença midiática é crescente na vida cotidiana, nas mais diferentes esferas – profissional, pessoal, política e religiosa, em um cenário de hiperconectividade e, também, de vigilância, ansiedade, angústia e insegurança. Foi pensando em explorar esse lado sombrio do estreitamento das relações com a tecnologia que o roteirista britânico Charlie Brooker criou, em 2011, a série de ficção científica Black Mirror, produzida pela empresa britânica Zeppotron. 

Inspirada indiretamente nas histórias de suspense, fantasia, terror e ficção científica de The Twilight Zone (Além da Imaginação)2, Black Mirror teve suas duas primeiras temporadas transmitidas pela rede de televisão inglesa Channel 4. Em 2015, a plataforma global de filmes e séries via streaming Netflix, com mais de 100 milhões de assinantes, adquiriu os direitos autorais da série, atualmente em sua sexta temporada, lançada em junho de 2023. No último mês de março, por meio de um vídeo, a plataforma anunciou uma nova leva de seis episódios, que serão lançados em 2025, prometendo “um futuro mais brilhante do que nunca”. Até agora, 27 episódios foram produzidos e lançados. 

Uma das principais particularidades de Black Mirror é o fato de fugir da estrutura clássica em que a trama e os personagens principais são mantidos. Seus episódios são independentes, com uma temática geral que perpassa todos eles: a presença massiva das redes sociais e da tecnologia na contemporaneidade e os conflitos decorrentes dessa onipresença, seja no presente, seja no futuro. 

O corpus deste artigo é o primeiro episódio da primeira temporada, intitulado The National Anthem (Hino Nacional), no qual é narrada a trajetória do primeiro-ministro do Reino Unido, Michael Callow. Despertado no meio da noite por um telefonema, ele é informado por um de seus assessores que algo havia acontecido com a “princesa do Facebook” Susannah, duquesa de Beaumont, querida por todos e defensora das causas ambientais. O carro em que ela estava havia sido interceptado enquanto voltava do casamento de uma amiga de faculdade. 

Sem saber onde encontrá-la e a quem atribuir a ação, os assessores mostram a Callow um vídeo postado pelo sequestrador no Youtube, com as exigências que deveriam ser cumpridas para que a princesa fosse libertada. Só havia, de fato, uma exigência: Callow deveria manter uma relação sexual plena com um porco em rede nacional de televisão. Apesar de ter conseguido evitar, inicialmente, que o vídeo e o sequestro fossem noticiados pelas emissoras de TV, o mesmo não pode ser feito com relação à internet. Os nove minutos que o conteúdo ficou no ar foram suficientes para que fosse baixado, duplicado, propagado e visto por cerca de 50 mil pessoas, se tornando um dos assuntos mais comentados no micro blog Twitter.

Os desdobramentos da trama possibilitam a discussão de inúmeros temas, entre os quais se destacam a força das redes sociais (RECUERO, 2009), a viralização de conteúdos online (JENKINS, 2013), a manipulação da opinião pública e sua dinâmica com os poderes instituídos (SAUVY, 1997) e a atração do público pelo grotesco (SODRÉ E PAIVA, 2002). 

Considerando a temática deste episódio e a estrutura da própria série em si, a proposta deste artigo é procurar responder aos questionamentos levantados pelo próprio criador de Black Mirror. Três dias antes de The National Anthem ir ao ar, Brooker publicou um artigo no jornal The Guardian3 se perguntando quais seriam os efeitos colaterais dessa onipresença. “Aonde isso está nos levando? Se a tecnologia é uma droga, e realmente parece uma droga, então quais são, precisamente, seus efeitos colaterais?”, escreveu o roteirista.

Não se trata de romantizar a presença das redes sociais e da tecnologia na contemporaneidade e tampouco demonizá-la, apontando para um cenário apocalíptico em que a humanidade seja subjugada por máquinas. Procuraremos, apenas, observar como as pessoas reagem à multiplicidade de informações. 

2. A influência das redes sociais e a atração pelo grotesco 

“O primeiro-ministro enfrenta um chocante dilema quando a amada princesa Susannah é raptada”. É esta a sinopse que consta na plataforma Netflix para o primeiro episódio da primeira temporada de Black Mirror, The National Anthem (44 min.). Escrito por Charlie Brooker e dirigido por Otto Bathurst, foi veiculado pelo canal Channel 4 em dezembro de 2011. 

O episódio em questão tem início com o primeiro-ministro do Reino Unido, Michael Callow, sendo despertado no meio da noite por um telefonema. Do outro lado da linha, sua assessora lhe informa do sequestro da princesa Susannah, duquesa de Beaumont, muito popular entre os britânicos. 

Callow, então, se reúne com membros do primeiro escalão do governo que, sem saber onde encontrar a princesa e a quem atribuir o sequestro, mostram ao primeiro-ministro um vídeo gravado pelo sequestrador. Desesperada e aos prantos, Susannah implora por sua vida e é forçada a ler uma declaração. 

Eu sou Susannah, duquesa de Beaumont, popularmente conhecida como princesa Susannah. Eu estou em um lugar que vocês não encontrarão e mantida por alguém irrastreável. Primeiro-ministro Michael Callow, minha vida depende de você. Se não fizer precisamente o que for instruído, até às 16 horas da tarde de hoje, eu serei executada. 

Figura 1: o primeiro-ministro assiste ao vídeo do sequestro da princesa Susannah.

Fonte: Black Mirror (2011)

Nesse momento, o vídeo é interrompido por um assessor, que explica que o carro em que a princesa estava foi interceptado à noite, na volta do casamento de uma amiga de faculdade. Os dois seguranças que a acompanhavam apresentavam marcas de agulha no pescoço, indicando que haviam sido sedados. O assessor também afirma não haver dúvidas de que a mulher apresentada no vídeo é realmente a princesa Susannah. Callow pergunta que exigência deverá ser cumprida para que ela possa ser libertada. “O que eles querem? Dinheiro, a libertação dos jihadistas, o fim da dívida do Terceiro Mundo, salvar as bibliotecas?” 

O vídeo volta a ser reproduzido, com a ressalva de que a exigência envolve diretamente o primeiro-ministro. “Às 16h de hoje”, lê a princesa, “o primeiro-ministro Michael Callow deve aparecer ao vivo em todas as emissoras britânicas de TV, terrestres e via satélite, e ter uma relação sexual plena, não simulada, com um porco”. Ao final da transmissão, são apresentadas diversas especificações técnicas que deveriam ser respeitadas durante a transmissão, com o objetivo de evitar a simulação do ato.

Em estado de choque, Callow tem dois tipos de reação. À princípio não acredita no conteúdo do vídeo, desconfiando tratar-se de alguma brincadeira de mau gosto. Em seguida, afirma categoricamente que não irá se submeter a nenhum tipo de chantagem, cogitando ou prender o sequestrador ou negociar com ele. Seus assessores lhe informam, porém, que não há nenhum e-mail, palavra de código ou canal para negociação disponíveis, impossibilitando ambas as ações. 

Interessado em preservar sua dignidade, bem como sua reputação política, o primeiro-ministro exige que sua equipe tome todas as medidas necessárias para evitar o vazamento das imagens e as condições para a libertação da princesa. Não existiam muitas alternativas para contornar a situação, porém, uma vez que o vídeo havia sido postado no Youtube, através de um IP encriptado. Os nove minutos em que ficou no ar foram suficientes para que fosse baixado, duplicado, propagado e visto por cerca de 50 mil pessoas, se tornando um dos assuntos mais comentados no micro blog Twitter. “Maldita internet!”, pragueja Callow. 

Seus assessores lhe informam, ainda, que os canais de televisão também já tiveram acesso ao conteúdo, mas que, até aquele momento, estavam cumprindo uma notificação enviada pelo governo impedindo sua exibição. O premier questiona qual seria o procedimento adequado, ao que um dos assessores responde: “tudo isso é novo, primeiro-ministro. Não tem procedimento”. 

É importante observar que o acontecimento que desencadeia uma crise sem precedentes no Palácio de Westminster não veio à tona por meios tradicionais, como uma carta enviada diretamente a um destinatário específico. O sequestro da princesa Susannah já nasceu midiático. Para escapar de entraves que poderiam ser criados pelo Estado, o autor do sequestro optou por tornar seu ato público através da plataforma de compartilhamento de vídeos Youtube, o que contribuiu, sobretudo, para sua abrangência, velocidade de propagação e interatividade entre os espectadores nas redes sociais, definidas por Recuero (2009, p. 39-40) como ambientes onde as pessoas podem reunir-se publicamente através da mediação da tecnologia. 

Ainda na mesma obra, a autora indica que esses espaços públicos mediados possuem características especiais: a persistência (“aquilo que foi dito permanece no ciberespaço”); a capacidade de busca ou searchability (“refere-se à capacidade que esses espaços têm de permitir a busca e de permitir que os atores sociais sejam rastreados, assim como outras informações”); a replicabilidade (“aquilo que é publicado no espaço digital pode ser replicado a qualquer momento, por qualquer indivíduo. Por conta disso, é difícil determinar a autoria dessas informações”) e a presença, nos públicos mediados, de audiências nem sempre visíveis por meio da participação.

Tais propriedades, permitem, como aponta Bueno (2015, p. 5), que as informações sejam “disseminadas, amplificadas, reverberadas, discutidas e repassadas”, o que contribui para a reconfiguração do espaço midiático contemporâneo, marcado pelo protagonismo dos indivíduos e por suas conexões e interações.

Esse trecho do episódio retrata, igualmente, como se dá a circulação de informações na internet que, muitas vezes, acaba acontecendo independentemente do consentimento dos envolvidos, dando a ideia de que, uma vez que um conteúdo é postado, não há mais nenhuma forma de ingerência sobre o mesmo. De acordo com Jenkins (2013, p. 25), um conjunto de forças de baixo para cima e de cima para baixo determinam como o material é compartilhado através das mídias e culturas, o que caracteriza sua “espalhabilidade”, em um modelo híbrido de circulação. Jenkins também destaca que, identificada a relevância do conteúdo, ele circulará por todos os canais disponíveis, promovendo um maior engajamento. 

A trama passa a focar a reação das pessoas assistindo ao vídeo. Perplexo, um casal de namorados tem acesso ao conteúdo através de um tablet. Na sequência, jornalistas da emissora UKN discutem, durante uma reunião de pauta, se exibiriam ou não o vídeo. Eles haviam sido notificados oficialmente pelo governo, mas, ao mesmo tempo, aqueles já tinham visto as cenas promoviam uma cobertura informal bem abrangente sobre o assunto nas redes sociais, ainda que se questionassem sobre a falta de cobertura da mídia tradicional. “Isso aqui é o 11 de setembro e estamos transmitindo receitas de sanduíche”, comenta uma repórter, ressaltando que seria preciso fazer alguma coisa, pois a credibilidade da emissora estava em jogo. 

De acordo com Martino (2015, p. 113), a possibilidade de os cidadãos conversarem entre si sobre assuntos que os interessam diminui, ou mesmo elimina, a dependência em relação à mídia tradicional para ficar a par dos últimos acontecimentos.

A agenda política da sociedade torna-se parcialmente independente da agenda temática dos meios de comunicação – não é porque as redes de televisão estão divulgando o assunto x que as pessoas falarão sobre esse x; em rede, um assunto y, mesmo que ignorado pela mídia de massa, pode se tornar o assunto mais comentado nas redes. Em outras palavras, a agenda política da sociedade ganha independência relativa dos assuntos discutidos nos meios de comunicação. (Ibid., p. 113)

A princípio, o editor-chefe comunica que está inclinado a honrar a notificação, quando é interrompido por outro jornalista informando que o caso já estava sendo noticiado por emissoras como CNN, FOX, Al Jazeera e NHK. É quando eles decidem fazer o mesmo, contrariando a notificação oficial emitida pelo governo. A personagem que assistia ao vídeo com seu namorado, em um tablet, chega ao hospital em que trabalha e pergunta a seus colegas se as emissoras de TV já haviam começado a cobrir o caso, recebendo uma negativa em resposta. Nesse momento, são interrompidos por uma chamada de transmissão extraordinária do canal UKN que, enfim, dá início à cobertura, ressaltando toda a repercussão que o caso tinha atingido nas redes sociais. Até então, o Youtube registrava mais de 18 milhões de visualizações para o vídeo do sequestro da princesa Susannah e o Twitter 10 mil tweets por minuto, como retrata a imagem abaixo.  

Figura 2: repercussão do sequestro da princesa Susannah nas redes sociais. 

Fonte: Black Mirror (2011)

Pesquisas de opinião mostram, de início, um público simpático ao primeiro-ministro. “Ninguém deveria ceder a qualquer tipo de humilhação, sob esse tipo de ameaça”, diz uma pessoa entrevistada na rua. “Eu não aguentaria assistir a isso”, diz outra, enquanto um terceiro entrevistado afirma que nem ligaria a TV. “Só de pensar já é horrível”. O assessor de imprensa do governo comunica ao premier que a cobertura do sequestro promovida pelos veículos de comunicação tem sido positiva: “toda pesquisa indica compreensão do público, nojo pelo sequestrador, revolta com a situação toda, mas não com você”. Na sequência, a TV exibe o resultado da pesquisa: apenas 28% dos entrevistados afirmaram que assistiriam à cena de sexo explícito entre o primeiro-ministro e o porco.

Figura 3: resultado da primeira pesquisa de opinião feita com telespectadores da emissora UKN.

Fonte: Black Mirror (2011)

A esposa de Callow, no entanto, não está tão otimista e demonstra preocupação. 

E se não a encontrarem? Não é qualquer princesa, é a princesa. A princesa do Facebook, preocupada com o meio ambiente, queridinha do país. Todos estão rindo de nós. Eu conheço as pessoas. Adoramos humilhação, não podemos ficar sem ela. 

O primeiro-ministro garante que não precisará fazer nada, ao que sua esposa insiste: “já está acontecendo na cabeça delas. Na cabeça delas é o que o meu marido está fazendo”. 

A fala da esposa de Callow ressalta o elemento grotesco – um dos pontos-chave da trama –, presente na condição para a libertação da princesa. A possibilidade de o primeiro-ministro acatá-la provoca reações díspares a quem tem acesso ao conteúdo, como repulsa, estranheza e mesmo divertimento, ampliadas pelo cunho dramático do episódio. Para Sodré e Paiva (2002, p. 44), o grotesco se faz presente em situações cotidianas, muitas vezes com o intuito de provocar o riso ou enaltecer uma situação cômica.    

O comum nesses casos é a figura do rebaixamento […], operado por uma combinação insólita e exasperada de elementos heterogêneos, com referência frequente a deslocamentos escandalosos de sentido, situações absurdas, animalidade, partes baixas do corpo, fezes e dejetos – por isso, tida como fenômeno de desarmonia do gusto […], suscitando um mesmo padrão de reações: riso, horror, espanto, repulsa (Ibid., p. 17)

Para compreender este tipo de reação, é preciso apontar algumas características do estrato social representado no episódio The National Anthem – a sociedade inglesa e monárquica, na qual a Família Real desempenha um papel muito importante. Uma das instituições mais antigas da História, a Família Real é um elemento de união nacional e de lealdade. Ainda que suas funções políticas sejam reduzidas, ela representa uma força que promove a união entre as pessoas, muitas delas desiludidas com a política em si. Assim, é possível pensar na imagem da princesa Susannah, muito querida por todos, popular nas redes sociais e comprometida com causas sociais importantes, como fica claro na fala da esposa de Callow, como uma espécie de símbolo para os ingleses. A imagem e o símbolo da princesa, portanto, influenciam diretamente o comportamento instintivo do grupo social aqui representado.   

A partir do quadro apresentado, é possível inferir que o sequestro não vitimou apenas a princesa, mas toda a sociedade inglesa, dada a representatividade da duquesa de Beaumont. O sequestrador não se apossou apenas da liberdade de Susannah, mas também de sentimentos nobres de toda a nação, como orgulho, empatia, generosidade e amabilidade. Quando não restaram dúvidas da ameaça e do sofrimento que pairavam sobre a princesa, sobretudo quando a imagem do dedo decepado veio à tona, a reação do coletivo não poderia ser outra que não pressionar o primeiro-ministro. Estava nas mãos dele salvar o símbolo da sociedade inglesa, custasse o que custasse. 

3. A manipulação da opinião pública

Paralelamente, o governo tenta de todas as formas resgatar Susannah, além de desenvolver um plano para enganar o sequestrador. Funcionários do gabinete do primeiro-ministro contratam um renomado especialista em efeitos especiais que, por meio de computação gráfica, se utilizaria de um rosto diferente mapeado em uma atuação ao vivo. Na verdade, quem manteria relações sexuais com o porco seria um ator pornô, com um pano sobre sua cabeça. Na versão final, a cabeça do ator seria substituída pela de Callow. Ao chegar para as filmagens, porém, o ator é reconhecido por um fã, que o fotografa e posta a imagem na internet.  

Figura 4: governo tenta enganar o sequestrador se utilizando de efeitos especiais.

Fonte: Black Mirror (2011)

O sequestrador não tarda a tomar conhecimento do caso e, pouco tempo depois, jornalistas da emissora UKN recebem uma caixa com um estojo e um pendrive (“assista-me”). No estojo, um dedo humano com um anel que a princesa supostamente usava no dia em que foi raptada. No pendrive, por sua vez, um vídeo com imagens de Susannah, amarrada a uma cadeira, e do sequestrador, com o rosto coberto, decepando seu dedo. O conteúdo trazia, ainda, a seguinte mensagem: “eu estabeleci as regras. Disse para não trapacear”. A programação da UKN é logo interrompida por uma chamada de breaking news com os últimos acontecimentos, acompanhados por espectadores perplexos com a reviravolta do caso. 

Neste ponto da trama, é importante explicar a estratégia adotada pelo sequestrador. Ao optar por expor seu ato diretamente na plataforma Youtube, sua intenção era atingir o maior número possível de pessoas, a fim de manipular a opinião pública que, segundo Sauvy (1997), “é o foro interior de uma nação, um poder anônimo, uma força política que não foi prevista por nenhuma constituição”. O sequestrador sabia que, se a opinião pública se sentisse sensibilizada pelo caso, exerceria uma forte pressão sobre o primeiro-ministro, que se veria obrigado a copular com um porco em rede nacional para que a princesa fosse libertada. Com a opinião pública favorável ao premier, porém, como fica claro através de pesquisas, o plano, de início, não é bem-sucedido.

Se antes apenas 28% da população acreditava que o primeiro-ministro deveria ceder à condição grotesca imposta pelo sequestrador, com a exibição do vídeo em que a princesa tem, supostamente, um dedo decepado, as opiniões começam a mudar. Uma reportagem da emissora UKN traz uma nova pesquisa em que 86% dos entrevistados defendem o ato sexual. Uma das vozes ouvidas diz que sim, será humilhante, mas nada comparável ao sofrimento da princesa. Uma segunda pessoa diz que os britânicos poderiam ter outro primeiro-ministro, mas não poderiam viver sem uma princesa. A reportagem deixa claro que o sequestrador acusa o governo de tentar burlar as regras definidas. A jornalista diz, ainda, que o “lamentável acontecimento” veio à tona poucas horas antes do prazo final estipulado, às 16h. 

Figura 5: após novo vídeo divulgado pelo sequestrador, pesquisa indica mudança na opinião pública.

Fonte: Black Mirror (2011)

Por conta desse novo vídeo, o sequestrador faz com que a opinião pública acredite que, para salvar a vida da princesa, não há outra alternativa que não o ato sexual entre o primeiro-ministro e o porco. Com isso, o sequestrador consegue, enfim, manipular a opinião pública, que passa a pressionar o premier, através dos resultados das pesquisas.    

Reunido com o primeiro escalão, a fim de tentar capturar o sequestrador e resgatar a princesa, Callow recebe a notícia de que, enfim, a equipe de inteligência teria conseguido rastrear o cativeiro: um campus universitário fechado e vazio. Na imagem é possível ver luzes acesas, o que reforça a ideia de descoberta. Depois de ser informado por seu assessor de imprensa de que os últimos acontecimentos não haviam sido bem recebidos pela opinião pública, o primeiro-ministro exige a invasão imediata do local pelas forças especiais. A operação, no entanto, foi um fracasso. No local, encontrou-se apenas um manequim sentado em uma cadeira, com um laptop no colo. Uma jornalista, que seguiu os militares na esperança de conseguir um furo de reportagem, acabou baleada, o que tornou tudo ainda mais desastroso. 

Após mais uma tentativa fracassada de resgatar a princesa, os assessores de Callow se reúnem com ele a portas fechadas. Informam que o público, o palácio e o partido insistem na consumação do ato, ao que o primeiro-ministro insiste que não iria se submeter a tal. “Para o público”, argumenta uma de suas assessoras, “seria um homem de popularidade questionável pensando na vergonha pessoal ao invés da vida de uma jovem”, ao que seu assessor de imprensa confirma: “a pesquisa demonstra isso”. Callow ainda hesita, lembrando que muito provavelmente a princesa já estaria morta. Sua assessora dá a cartada final, dizendo ter sido informada de que, caso algo acontecesse, não teriam como garantir a integridade física dele ou de sua esposa e filho, ainda um bebê. “Sinto muito, Michael, já não está nas suas mãos”. Derrotado e sem nenhum argumento, ele cede à pressão.

Câmeras da UKN, em transmissão ao vivo, mostram o carro do primeiro-ministro se encaminhando para o estúdio onde aconteceria o ato. A mulher de Callow, tenta, em vão, falar com ele, que não atende sua ligação. Tomadas aéreas mostram a cidade completamente deserta: todos estão aglomerados em suas casas, locais de trabalho ou pubs para acompanhar o ato sexual entre homem e porco, como estariam caso estivessem assistindo à final de um campeonato de futebol. 

Figura 6: primeiro-ministro com o porco, no estúdio onde o ato seria gravado

Fonte: Black Mirror (2011)

Durante a transmissão do vídeo, acompanhado por uma plateia global, é mostrado que o sequestrador havia se enforcado, que o dedo não era da princesa, e sim do próprio sequestrador, e que Susannah havia sido libertada 30 minutos antes do início da transmissão e encontrada vagando nas ruas desertas por policiais. Todas essas informações, obviamente, são deixadas de fora do relatório oficial. Ninguém deveria saber, principalmente o primeiro-ministro. Terminado o ato, Callow se tranca no banheiro. Chorando e vomitando muito, recusa, mais uma vez, o telefonema da esposa, envergonhado. Sua assessora bate na porta da cabine em que ele se encontra e lhe diz que ele salvara a princesa. 

Figuras 7 e 8: o ato sexual é acompanhado por uma plateia global, que não esconde os sentimentos contraditórios de repulsa e divertimento

Fonte: Black Mirror (2011)

O episódio termina com uma reportagem especial da UKN, exibida no aniversário de um ano do sequestro. Imagens mostram um Michael Callow aparentemente feliz ao lado da esposa. Sua imagem política manteve-se intacta e ele se tornou popular entre os britânicos, graças a seus esforços pessoais para salvar a princesa. Esta, por sua vez, aparece radiante ao lado do noivo. A reportagem esclarece alguns detalhes sobre o caso, como a identidade do sequestrador. Carlton Bloom, artista e ganhador do Prêmio Turner4 foi o responsável pelo rapto e pelas exigências bizarras. A jornalista termina a reportagem especial dizendo que um crítico causou controvérsia ao descrever o sequestro da princesa Susannah como a primeira grande obra de arte do século XXI. 

Mas enquanto os críticos da cultura debatem o seu significado, não restam dúvidas de que, com a audiência global de 1,3 bilhão, foi um evento do qual todos nós participamos. Contudo, o evento não foi capaz de destruir o primeiro-ministro, que hoje possui uma aprovação três vezes maior do que tinha no ano passado.

Embora a reputação e prestígio políticos de Callow tenham se mantidos intactos, o mesmo não pode ser dito em relação a sua vida pessoal. Na última cena de The National Anthem, após terem aparecido em público para dar entrevistas e tirar fotos como um casal perfeito, o primeiro-ministro chama sua esposa, que olha para trás friamente e continua a subir as escadas de casa sem atender seu pedido. A relação de confiança que existia entre eles foi completamente arruinada pelo episódio do sequestro e pela condição imposta pelo sequestrador. O que se mantinha ali era apenas um casamento de fachada.

4. Conclusão

O episódio The National Anthem, do seriado Black Mirror, mostra, de forma magistral, como a apropriação do símbolo de uma nação (a princesa Susannah) altera o comportamento social coletivo, destacando o papel fundamental das mídias e aparatos tecnológicos na construção de valores e de relações sociais contemporâneas. O principal objetivo deste artigo foi tentar desmistificar as novas plataformas de informação e compartilhamento de dados, representadas pelas múltiplas telas presentes na vida cotidiana, mas sem deixar de reconhecer sua relevância e contribuição para a produção de conteúdo, bem resumidas por Bretas (2012, p. 54).  

A liberação do polo da emissão, a conexão em rede e a liberação de modos de produção midiáticos e de fazeres sociais são as leis que fundam a cibercultura e norteiam as remixagens ou recombinações contemporâneas. […] As novas possibilidades de emissão referem-se à entrada de milhões de indivíduos nos novos espaços de comunicação possibilitados pela internet, inaugurando outros modos de visibilidade e fazendo emergir novas práticas facultadas antes somente aos tradicionais meios de comunicação, cuja potencialidade massiva funciona e continua a funcionar no modelo de emissões “um para muitos”. 

À medida em que as diversas funcionalidades das plataformas digitais são enaltecidas, é preciso relativizar seu uso exacerbado. Não se trata, como dito inicialmente, de endeusar ou crucificar as diversas funcionalidades das plataformas digitais, mas apenas suscitar o debate a respeito de sua onipresença e influência sobre a produção de subjetividade. E, para isso, é preciso dizer que a série Black Mirror, e não só o episódio analisado, apresenta enorme relevância, apresentando um contraponto interessante para os efeitos do nosso vício tecnológico. 


2Série de televisão americana criada por Rod Serling e exibida entre outubro de 1959 e junho de 1964
3O artigo, intitulado “The dark side of our gadget addiction”, está disponível no link https://www.theguardian.com/technology/2011/dec/01/charlie-brooker-dark-side-gadget-addiction-black-mirror
4Prêmio concedido pela Tate Gallery, a cada ano, para um artista britânico com menos de 50 anos. Celebra os novos desenvolvimentos e contribuições para a arte visual contemporânea.


5. Referências

BRETAS, Beatriz. Remixagens cotidianas: o valor das pessoas comuns nas redes sociais. In: BUENO, Wilson da Costa. Estratégias de comunicação nas mídias sociais. Barueri, SP: Manole, 2015, p. 194.        

JENKINS, Henry; FORD, Sam; GREEN, Joshua. Spreadable media: creating value and meaning in a network culture. Nova York: New York University Press, 2013. 

MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria das Mídias Digitais: linguagens, ambientes e redes. 2. Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

MENDES, Conrado Moreira. Modalizações do fazer no episódio “Hino Nacional”, do seriado Black Mirror. Revista Significação, São Paulo, v. 44, n. 48, p. 32-52, 2017. 

PEREIRA, Raissa; AZEVEDO, Viviane; SOUSA, Monica. Black Mirror – uma crítica sobre o espetáculo e o poder do jornalismo. In: Intercom – 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2017. Curitiba, Paraná.

RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009.

SAUVY, Alfred. L’opinion public. Paris, Presses Universitaires de France (PUF), Collection Que Sais-Je?, 1977

SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do grotesco. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.

TRENTO, Francisco; VENANZONI, Thiago. Subjetividade, controle e ubiquidade midiática: o seriado Black Mirror. In: Intercom – XVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2013. Bauru, São Paulo.

VALENTIM, Renata. O político, o porco e o público: Black Mirror e a produção do acontecimento na mídia. In: Intercom – XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2016. São Paulo.

Materiais especiais

THE National Anthem. Direção: Otto Bathurst. Produção: Barney Reisz. Roteiro: Charlie Brooker. In: Black Mirror. Londres: Netflix, 2012, 44 mim.


 1Graduada em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Especialista em Comunicação Empresarial pela Universidade Estácio de Sá. Especialista em Marketing Digital pela Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), E-mail: danielleverassouza@gmail.com