THE HEALTH-ILLNESS PROCESS OF INTERSEXUAL CHILDREN FROM THE NURSE’S PERSPECTIVE
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11647286
Thaiza Maria Silva Farias1; Cristina Portela da Mota2; Jorge Luiz Lima da Silva3; Kathelin Rayani Carvalho de Souza4; Camily da Silva Mesquita5; Cláudia Maria Messias6; Ricardo José de Oliveira Mouta7.
RESUMO
Introdução: os distúrbios do desenvolvimento do sexo, incluindo ambiguidades genitais e intersexo, são estudados para entender os mecanismos fisiológicos que explicam o desvio do binarismo feminino-masculino. Objetivo: analisar a percepção de enfermeiros sobre o processo saúde doença, na intersexualidade, em crianças na faixa etária de 3 a 6 anos de idade. Método: trata-se de estudo descritivo, exploratório de natureza qualitativa, incluiu dez enfermeiras que atuam no cuidado a crianças intersexuais de 3 a 6 anos, no setor de Cirurgia Pediátrica de hospital federal de referência nacional. A coleta de dados utilizou entrevistas semiestruturadas. Os depoimentos foram analisados pelo método de interpretação de sentidos, agrupando elementos e ideias frequentes para estabelecer categorias. Resultados: a análise revelou lacunas na formação acadêmica em relação à intersexualidade, como a falta de preparo sobre o tema durante a graduação. As entrevistas indicaram que a intersexualidade é pouco conhecida e discutida na sociedade, refletindo-se na prática clínica. Conclusão: as intervenções cirúrgicas são usadas para adequar genitálias intersexuais ao padrão binário, contudo não garantem a conformidade com o gênero. É fundamental que o Estado garanta equidade, integralidade e dignidade para essa população.
Descritores: Intersexualidade; Pediatria; Cuidados de Enfermagem.
ABSTRACT
Introduction: Disorders of sexual development, including genital ambiguities and intersex, are studied to understand the physiological mechanisms that explain the deviation from the female-male binary. Objective: to analyze the perception of nurses about the health-disease process, in intersexuality, in children aged 3 to 6 years old. Method: this is a descriptive, exploratory study of a qualitative nature, including ten nurses who work in the care of intersexual children aged 3 to 6 years, in the Pediatric Surgery sector of a national reference federal hospital. Data collection used semi-structured interviews. The statements were analyzed by the method of interpretation of meanings, grouping frequent elements and ideas to establish categories. Results: the analysis revealed gaps in academic training in relation to intersexuality, such as the lack of preparation on the subject during undergraduate studies. The interviews indicated that intersexuality is little known and discussed in society, which is reflected in clinical practice. Conclusion: surgical interventions are used to adapt intersex genitalia to the binary standard, but they do not guarantee gender conformity. It is essential that the State guarantees equity, integrity and dignity for this population.
Descriptors: Pediatrics; Disorders of Sex Development; Nursing Care.
INTRODUÇÃO
A questão dos distúrbios do desenvolvimento do sexo, ambiguidades genitais ou intersexo, vem sendo amplamente explorada em estudos que buscam entender os mecanismos fisiológicos que possam explicar o desvio do binarismo feminino-masculino. Representando um grande desconforto social e um “não lugar”, a condição de ambiguidade genital muitas vezes leva à busca por uma solução corretiva, frequentemente a correção cirúrgica. No entanto, a correção cirúrgica não resolve a questão da identidade desses indivíduos, pois não responde às perguntas sobre qual papel ocupam e desejam ocupar na sociedade, quem são e quem querem ser (Habermas, 2004; Leivas et al., 2023).
A intersexualidade humana é um fenômeno presente em diversas civilizações ao longo da história, cujo significado se modificou conforme os saberes, crenças e discursos dominantes em contextos socioculturais específicos. Historicamente, os conceitos de intersexualidade e hermafroditismo têm estado entrelaçados, sendo em algumas civilizações considerados similares, ou o hermafroditismo visto como uma subcategoria da intersexualidade. A palavra “hermafrodita” surgiu na Grécia, relacionada a um mito que descreve a vida de Hermaphroditus. Hermes (filho de Zeus) e Afrodite (deusa da beleza e do amor sexual) tiveram um filho muito belo, pelo qual uma ninfa se apaixonou. Não sendo correspondida, a ninfa pediu aos deuses para que se tornassem um só, e assim foi feito, fundindo-se em um único corpo (Fausto-Sterling, 2000).
Na segunda metade do século XIX emerge a noção de intersexualidade como sinônimo de hermafrodita, embasada ainda na orientação sexual. Estudos sobre ‘anormalidade’ e ‘monstruosidade’ destaca que “o hermafrodita era considerado como um tipo de monstro, visto como imperfeição da natureza ou moralmente deturpado em que recaiam sobre esses indivíduos medidas regulatórias e reparadoras” (Foucault, 2001).
Esse fenômeno é de alta complexidade, considerado uma urgência médica e social desde o nascimento de uma criança, devido aos riscos e impactos na vida. Nesse contexto, é fundamental destacar a saúde como o principal setor de diagnóstico, tratamento e acompanhamento desses indivíduos. Segundo o artigo 196 da Constituição Federal de 1988: “A saúde é um direito de todos e dever do Estado”. O Estado deve garantir, por meio de políticas sociais e econômicas, a redução do risco de doença e outros agravos, além do acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde (BRASIL, 1988).
Muitos esforços teóricos e metodológicos têm sido realizados para responder à complexidade do processo saúde-doença, especialmente diante das urgentes demandas da Saúde Pública. Inicialmente, os conceitos epidemiológicos sustentaram os estudos na área, destacando a distribuição das doenças na população, focando-se em enfermidades com alta incidência ou prevalência, enquanto as doenças raras eram estudadas pela clínica.
No fenômeno da intersexualidade, as práticas ainda estão direcionadas para a doença e não para a saúde. O modelo de atenção à saúde, pautado na Lei Federal n° 8.080/90 dispõe sobre artigos constitucionais sobre a saúde, o funcionamento e a organização do Sistema Único de Saúde (SUS), tornando-se imperativo na atenção em saúde de forma integral e com equidade, onde a participação e mobilização social são imprescindíveis para a real assistência à saúde que passa a ser considerada de forma ampla, e com uma perspectiva de promoção e educação em saúde (Coren, 2014).
A luta pela equidade ultrapassa décadas e se fortalece com o respaldo dos direitos humanos. Contudo, essa prática política ainda é restrita a algumas categorias consideradas excluídas, enquanto outras permanecem no anonimato, como é o caso da intersexualidade. Como questão social, a intersexualidade ainda se encontra anônima; o sigilo emerge como um comportamento ideal, negociado entre a família e os profissionais de saúde (Canguçu-Campinho, 2008). Aponta-se que uma anomalia genital ocorre em 1 de cada 4.500 nascimentos, sendo fundamental para sua detecção precoce o cuidadoso exame dos genitais de todos os recém-nascidos (Damiani; Guerra-Júnior, 2007, p. 1014).
A sexualidade humana é tema que envolve diretamente a Enfermagem, uma vez que as práticas do cuidado remetem ao contato com os corpos, com a intimidade e com o erótico. Nos domínios da promoção e da educação para a saúde, não há como desconsiderar o lugar que ocupam hoje as discussões acerca dos direitos sexuais e direitos reprodutivos como direitos humanos inalienáveis de homens e mulheres (Carvalho, 2005).
É por volta dos 3 ou 4 anos que a criança costuma expressar de forma clara sua sexualidade, de 3 a 5 anos pode-se observar o quanto a sexualidade está presente na criança e é devido a este período que se inicia a busca pelo saber e o investigar. É na fase fálica que a criança começa a perceber as diferenças em relação a gênero: masculino e feminino (Costa; Oliveira, 2011).
Sendo assim o estudo teve como questões de pesquisa: como o enfermeiro percebe o processo saúde doença da intersexualidade em crianças entre 3 a 6 anos de idade? Para responder a estas questões teve-se como objetivo analisar o processo saúde doença da intersexualidade em crianças entre 3 a 6 anos de idade sob a ótica do enfermeiro.
MÉTODO
Trata-se de estudo descritivo, exploratório de natureza qualitativa. Os participantes da pesquisa foram dez enfermeiros, todos do sexo feminino, que atuam diretamente no cuidado à criança intersexual na faixa etária de 3 a 6 anos de idade. Destas, 10 enfermeiras, 3 eram residentes em pediatria. A partir dos princípios da amostragem em pesquisa qualitativa de referência, foram escolhidos os sujeitos que detinham os atributos relacionados ao que se pretendia estudar (Minayo, 2014). Foi escolhido, assim, um número de protagonistas suficiente para que se pudesse ter certa reincidência das informações e a possibilidade de incluir outros até que fosse possível uma discussão densa das questões da pesquisa. O critério de inclusão foi: enfermeiros que estavam trabalhando no setor nos dias da coleta de dados. Os critérios de exclusão foram: enfermeiros que estavam de licença ou férias (Gomes, 2003).
O cenário foi o setor de Cirurgia Pediátrica (CIPE), localizado do Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz) que articula ações específicas em saúde da mulher, da criança e do adolescente e prescrevem aplicação de cuidados de alta complexidade em ambiente hospitalar, ambulatorial, na rotina do hospital-dia e na modalidade de atenção domiciliar. Como instituição de referência à saúde brasileira, o IFF cumpre um papel relevante quanto ao aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da qualificação, promoção da saúde e ampliação do acesso e garantia dos direitos da criança e da mulher aos serviços e insumos de saúde.
Para a coleta de dados, foi utilizado um formulário de entrevista semiestruturada, constituído de duas partes: a primeira contendo dados de caracterização sócio profissional dos enfermeiros que atuam diretamente no cuidado a criança intersexo, na qual foram preenchidas pelos próprios enfermeiros, e a segunda, contendo dados relacionados ao processo saúde-doença-cuidado da intersexualidade em crianças entre 3 a 6 anos de idade que foram gravadas em MP4 e imediatamente transcritas pela pesquisadora, conforme recomendada (Bertaux, 1980). As transcrições imediatas das entrevistas individuais permitiram a organização das ideias em relação aos questionamentos e ao ponto de saturação.
As entrevistas ocorreram entre os dias 22 e 23 de junho de 2015, na qual seis enfermeiros foram entrevistados no dia 22 de junho e quatro enfermeiros foram entrevistados no dia 23 de junho de acordo com seu desejo de participar da pesquisa. Nesses dias só estavam presentes profissionais do sexo feminino em que foi cumprido a formalidade legal exigida na resolução 466/12, a partir da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em que todas receberam uma cópia.
O acervo de dez (10) entrevistas totalizaram cento e sete (107) minutos e dezoito (18) páginas de transcrição. As entrevistas decorreram, em média, por 10 minutos. Utilizou-se para a análise dos dados, o método de interpretação de sentidos, ferramenta baseada em princípios hermenêutico-dialéticos, para a interpretação das entrevistas. A partir dos dados coletados foram formuladas categorias nas quais foram agrupados elementos, ideias, expressões e palavras que se repetem ou são frequentes, para estabelecer classificações.
A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Antônio Pedro (CEP/HUAP) sob o no CAAE: 44057215000005243 e parecer nº 1141072. No Comitê de Ética e Pesquisa do Instituto Fernandes Figueira (CEP/IFF).
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Todas as participantes nasceram no Estado do Rio de Janeiro, das 10 enfermeiras, 6 (60%) eram casadas, 3 (30%) eram solteiras e 1 (10%) era divorciada. Quanto ao número de filhos, 3 (30%) enfermeiras tinham 2 filhos, 3 (30%) tinham 1 filho e 4 (40%) enfermeiras não tinham filhos. Em relação ao quesito raça/cor, 9 (90%) eram brancas e 1 (10%) era parda. O Brasil era um país de cultura escravocrata e com grande miscigenação de raças, fatores estes que contribuíram para a existência de diversidades de culturas, valores e crenças (Beccari, 2005).
Quanto à religião, 2 (20%) eram protestantes, 2 (20%) eram espíritas e 6 (60%) eram católicas. A Constituição Federal de 1988 consagrava como direito fundamental à liberdade de religião, prescrevendo que o Brasil era um país laico. Com essa afirmação indicava que, consoante a vigente Constituição Federal, o Estado deveria se preocupar em proporcionar a seus cidadãos um clima de perfeita compreensão religiosa, proscrevendo a intolerância e o fanatismo. Deveria existir uma divisão muito acentuada entre o Estado e a Igreja, não podendo existir nenhuma religião oficial, devendo, porém, o Estado prestar proteção e garantia ao livre exercício de todas as religiões (Brasil, 2003).
Das 10 enfermeiras entrevistadas, 7 (70%) eram graduadas por universidades públicas, na qual dessas 7 enfermeiras, 4 (40%) eram graduadas pela UFF e 3 (30%) eram graduadas pela UFRJ. As outras 3 (30%) enfermeiras eram graduadas por universidades particulares, sendo dessas 3 enfermeiras, 1 (10%) era graduada pela UGF, 1 (10%) era graduada pela Universo e 1 (10%) era graduada pela UVA. Em relação à dedicação exclusiva, 8 (80%) não trabalhavam em outra instituição de saúde e 2 (20%) trabalhavam em outro serviço de saúde. Quanto ao nível de formação, 5 (50%) enfermeiras tinham especialização, 2 (20%) tinham mestrado e apenas 3 (30%) eram residentes. O tempo de formação das enfermeiras variava de 6 meses a 24 anos e o tempo de serviço no setor (CIPE) variava de 1 mês a 9 anos.
Na etapa final da análise dos dados, fez-se a interpretação dos achados, estabelecendo diálogos com os autores consultados e a experiência e conhecimento dos pesquisadores, num movimento hermenêutico-dialético sobre a percepção do enfermeiro sobre a intersexualidade: (Des) velando os significados.
A PERCEPÇÃO DO ENFERMEIRO SOBRE A INTERSEXUALIDADE: (DES) VELANDO SIGNIFICADOS
A vida se manifesta através da saúde e da doença, que são formas únicas, experiências subjetivas e que não podem ser manifestadas integralmente através de palavras. No entanto, a pessoa doente utiliza palavras para expressar a sua doença e os profissionais da saúde, por sua vez, também fazem uso de palavras para dar significado a condição do paciente. Dessa maneira, surge tensão entre a subjetividade da doença e a objetividade dos significados atribuídos pelos profissionais às condições do paciente e que o levam a propor intervenções para lidar com a doença (Czeresina, 1999; Paiva et al., 2023).
Ao questionar as enfermeiras sobre a utilização das nomenclaturas ‘Distúrbio de Desenvolvimento Sexual’ ou ‘Anomalia do Desenvolvimento Sexual’ que foram elaboradas no Consenso de Chicago, com o objetivo de atenuar o constrangimento e a conotação pejorativa da situação clínica dos pacientes intersexuais, a maioria explicitou que não utiliza essas nomenclaturas no processo de cuidar da criança intersexo e de sua família, conforme destaca os relatos abaixo:
“Esses termos são alguns teóricos que trazem, não é o termo que a gente usa no ambiente intra-hospitalar. Geralmente, a gente fala intersexo ou fala genitália ambígua ou fala sexo não diferenciado. A gente tem outras terminologias que vão variar de acordo com a linha de cuidado que a gente segue aqui no hospital” (Enfermeira 1, 11 anos de formação).
“As duas expressões praticamente não uso. A intersexualidade é uma expressão nova que eu até desconhecia, é mais a genitália ambígua, eu procuro tratar da forma mais simples possível com a família. Porque a família, às vezes, sabe até muito mais do que a gente sobre a patologia e o transtorno” (Enfermeira 5, 10 anos de formação).
“A gente trata a criança pelo nome, a gente não trata pela doença, pelo que ela é portadora. A gente não tem essa distinção de usar nomenclatura de doença, isso é mais da parte médica. Agora da parte de enfermagem, a gente trata a criança pelo nome” (Enfermeira 7, 12 anos de formação)
Se, por um lado, o consenso pela adoção de uma nova nomenclatura para o diagnóstico da intersexualidade se deu a partir da reunião entre cinquenta especialistas das mais importantes entidades médicas norte-americanas e europeias, por outro, fora do espaço médico e institucional, inexiste consenso para a sua utilização.
Afirma-se que durante o trabalho de campo, os médicos que foram acompanhados em um hospital brasileiro dificilmente utilizavam a denominação intersexo entre eles e nunca usaram esse termo durante as consultas com os familiares e as crianças intersex. Eles utilizavam no seu dia a dia o termo genitália ambígua quando se referiam a algumas condições consideradas intersexualidade. Contudo, esse termo não era utilizado na frente dos familiares, para isso utilizavam o termo genitália incompletamente formada (Machado, 2008).
Diversas sociedades ainda desconhecem ou pouco sabem sobre a existência da intersexualidade e a produção acadêmica nacional stricto sensu tem sido limitada (Carmo; Leão; Lima, 2009). Sendo assim, a partir das entrevistas, pode-se perceber que existe uma dificuldade conceitual e metodológica da intersexualidade por se tratar de um assunto complexo e pouco discutido no cenário acadêmico repercutindo diretamente no cotidiano da clínica da intersexualidade, conforme aponta os depoimentos a seguir:
“A intersexualidade é um fenômeno pouco conhecido, pouco divulgado, pouco estudado e por causa disso existe um amplo desconhecimento do que é a intersexualidade na sociedade brasileira como um todo” (Enfermeira 1, 11 anos de formação).
“A intersexualidade é vista ainda como uma coisa muito obscura, muito longe do conhecimento científico” (Enfermeira 2, 14 anos de formação).
“Abordar a intersexualidade é um tema muito difícil, talvez porque seja polêmico em algumas áreas do conhecimento e têm muitas distinções” (Enfermeira 8, 6 meses de formação).
Na sociedade ocidental moderna, a intersexualidade se torna visível ao olhar social através do discurso biomédico, sendo considerada, por áreas específicas da medicina, como consequência de uma desordem orgânica ou como doença em si. Os saberes da saúde legitimam o intersexo como patologia e destinam seus esforços ao diagnóstico e tratamento precoce. Por décadas, foi disseminada a visão da intersexualidade como situação de emergência médica, fosse por considerá-la como emergência pediátrica no recém-nascido ou enquanto emergência psicossocial ao afetar a família e a saúde psicológica da criança (Damiani, 2002; Spínola-Castro, 2005; Gaudenzi, 2018).
No entanto, nos relatos das enfermeiras 5 e 9, fogem dessa realidade, na qual se evidencia a integralidade como princípio norteador de saberes e práticas em saúde:
“Primeiro a criança como um todo, depois a gente vai cuidar da patologia, que está interligada. Sempre primeiro a criança, depois a família e depois a patologia” (Enfermeira 5, 10 anos de formação).
“Aqui no instituto, primeiro você sempre olha todo o contexto da criança e da família, principalmente dependendo da faixa etária que isso é identificado. Quando a gente trabalha com recém-nascido fica muito mais fácil, porque a gente vai ter como prioridade a questão funcional e a questão da estrutura. Os pais ao mesmo tempo já são aconselhados inicialmente e têm o diagnóstico. Mesmo que em um primeiro momento não faça uma cirurgia de intervenção, os pais já têm claro qual é a base sexual da criança. Eles já vão conduzir culturalmente e inserir a criança na sociedade dentro daquilo que vai ser lá no futuro, mesmo que a cirurgia seja em torno de 2 anos de idade ou 1 ano. Primeiramente, vai ser sempre a dimensão psicossocial e acaba ficando em segundo lugar essa parte estrutural” (Enfermeira 9, 24 anos de formação).
A complexidade da vida contemporânea, com mudanças globalizadas somadas à transição demográfica e difusão de novos hábitos e padrões de comportamento, alterou as condições e a qualidade de vida da população, o que causou mudanças no perfil das doenças e agravos à saúde. Sendo assim, a compreensão de qualquer fenômeno social, dentre eles os relacionados ao processo saúde-doença, requer o conhecimento das suas várias dimensões, integradas tanto no interior das disciplinas, quanto na articulação destas nos currículos que pautam a formação de profissionais de saúde e particularmente na formação de enfermeiros saúde (Vilela; Mendes, 2003; Fernandes, 2007; Lopes et al., 2019).
No decorrer das entrevistas percebe-se que a interação ensino-trabalho pode ser produtiva e transformadora. Quando o cotidiano dos serviços não é levado à universidade, ocorre a restrição do olhar sobre o sistema de saúde como espaço também legítimo de produção de saberes e práticas inovadoras na construção da integralidade do cuidado. Assim, a universidade pode continuar representando sua excelente vocação para produção de conhecimento, mesmo que ele seja também construído no espaço maior para sua aplicação, o serviço.
Afirma-se que a discussão sobre o distanciamento entre graduação/ensino e realidade do sistema de saúde concerne à necessidade de que as instituições tenham como elemento fundamental dessa aproximação o exercício da crítica de seus próprios territórios institucionais, como condição para a produção coletiva de novos espaços e práticas de cuidado e gestão e de formação em saúde orientados para a integralidade (Guizardi, 2006; Araújo da Silva et al., 2021). “Coloca-se, então, o convite para que o encontro entre ensino e trabalho seja olhado no que pode surgir como criação a partir dele, sem que isso implique desconsiderar as especificidades desses territórios institucionais” (Guizardi, 2006).
“O meu Curso de Graduação em Enfermagem não foi suficiente para oferecer um cuidado integral na questão da intersexualidade, e olha que eu estudei em uma universidade pública. Realizei atividades práticas em um hospital público. Fiz especialização em neonatologia em um hospital público. Trabalhei muitos anos em hospitais públicos e só quando eu vim para o Instituto Fernandes Figueira, que é um centro de referência, que eu fui preparada. Hoje, eu me sinto preparada para cuidar dessa população e de sua família” (Enfermeira 1, 11 anos de formação).
“Na minha graduação faltou muita coisa. Meu curso foi bem completo, mas faltou muita coisa nessa parte de intersexo que é uma coisa muito específica” (Enfermeira 2, 14 anos de formação).
“Nem de perto, nem de longe foi abordada a intersexualidade na minha graduação. Eu nem sabia que existia isso. Não foi abordado em nenhum conteúdo, tanto teórico quanto prático. A gente não teve nenhuma vivência em relação a isso na graduação” (Enfermeira 7, 12 anos de formação).
A universidade possui um papel fundamental na discussão sobre a melhoria das condições de saúde da população, já que a mesma participa da produção do conhecimento que será empregado na promoção, prevenção, cura e reabilitação (Chauí, 2001; Gonze, 2009). Cabe à Saúde Coletiva propor outros modos de pensar a formação e a educação em saúde em/com uma visão ampliada de seu campo para potencializarmos a mudança no quadro atual, que não se restringe a conhecimento técnico; relaciona-se a questões de projeto de vida, liberdade e felicidade (Carvalho; Ceccim, 2007).
Os sistemas de saúde se organizam de diversas maneiras, no intuito de atender as necessidades da população. Isso tem provocado a implementação de múltiplas estratégias de atenção à saúde, em várias ocasiões, incorporando tecnologias para seu desenvolvimento. Essas tecnologias que implementam a atenção à saúde vão desde tecnologias orientadas ao diagnóstico, tratamento e sistemas de informação à formação dos futuros profissionais. Por outro lado, as políticas sanitárias enfrentam o desafio de manter e fortalecer a atenção humanizada. Neste sentido, um estudo sobre a concepção hermenêutica da saúde, afirma que o trinômio saúde-doença-cuidado deve ser visto em termos das experiências anteriores vividas pelas pessoas e propõe que a estratégia conceitual das ciências biomédicas possa ser revista por meio de práticas humanizadoras em saúde (Ayres, 2007).
As experiências da vida profissional são de extrema importância para a inserção do enfermeiro nos sistemas de saúde e que vão implicar no modo como o cuidado é realizado (Silva; Ferreira, 2011). No campo da intersexualidade, representa um momento de transição de um mundo social conhecido para um desconhecido, marcado por inquietações e mudanças:
“Acho que a experiência profissional é muito importante. Outros profissionais de saúde não saberiam cuidar, ter o mesmo cuidado que a gente tem aqui (no instituto)” (Enfermeira 2, 14 anos de formação).
“A experiência profissional é um grande diferencial, principalmente para a gente que está aqui dentro. Aqui tudo é muito específico. As crianças são muito delicadas” (Enfermeira 4, 41 anos, casada).
“Acho muito importante a experiência profissional, porque a gente sai da faculdade sem experiência… muito crua, principalmente em alguns assuntos tão complexos. A intersexualidade é um assunto muito específico, a gente não sai preparada para cuidar integralmente desses casos” (Enfermeira 5, 44 anos, divorciada).
A mudança na formação do enfermeiro requer a atuação em coletivos capazes de incidir sobre as políticas públicas que permitam superar os desafios e criar oportunidades de melhoria na qualidade do ensino. Dentre os pressupostos defendidos na formação do enfermeiro, destaca-se a orientação da formação para reconhecer a saúde como direito, determinada pelas condições dignas de vida, atuando de forma a garantir a integralidade da assistência (BRASIL, 2001; Santos et al., 2019).
O processo saúde-doença é entendido pelas participantes do estudo como resultado das formas de organização social, determinada pela maneira como o ser humano se relaciona com a natureza e os outros seres, revelando a concepção de produção social da saúde. Os seres humanos são considerados como seres sociais, conscientes, racionais, perceptivos, controladores, intencionais, voltados para a ação e para o tempo, em interação, podem adquirir autonomia e, assim, estabelecer objetivos e metas de vida, assim como, definir estratégias para consegui-las (Moura; Pagliuca, 2004). O exercício da enfermagem torna-se essencial por considerar como um processo de ação, reação e interação, pelo qual enfermeira e paciente compartilham informações sobre suas percepções, em uma determinada situação de vida (King, 1981).
A vida humana é dinâmica e contraditória, não estática. Dessa forma, a saúde não se reduz à aparição de um transtorno e à busca de um serviço de saúde. Os problemas de saúde são resultado de um processo complexo e dinâmico que se produz no interior da sociedade (Brasil, 2001). Enxergar a sociedade como produto cultural, durante muitos séculos, foi algo impensável devido às teorias essencialistas que se debruçaram sobre a humanidade produzindo metanarrativas que foram internalizadas em seus variados setores.
Há uma a ideia de que o indivíduo é fruto do meio em que vive, e de que tudo na sociedade está interligado, sendo assim, qualquer alteração em algum setor da sociedade afetará em todos os sentidos a mesma (Durkheim, 1996). Desse modo, a intersexualidade é alvo de estigmatização e de invisibilidade social, por romper o dismorfismo binário heterosexista e provocar medo e frustração à sociedade, pois o nascimento de uma criança é cercado por expectativas e possui implicações de ordem social e legal (Tomazi, 2000; Melo et al., 2020).
“Ainda existe muito preconceito a respeito da intersexualidade” (Enfermeira 2, 14 Anos de formação).
“A sociedade é muito preconceituosa e machista, o que torna a intersexualidade um estigma” (Enfermeira 3, 3 anos de formação).
O estigmatizado sofre com o processo de socialização porque existe uma discrepância entre a identidade virtual e a real que prejudica a identidade social. Em geral, a pessoa estigmatizada afasta-se da sociedade e até mesmo de si por se sentir desacreditada diante de um mundo que não o acolhe. É explícito que no processo de socialização há uma fase na qual a pessoa estigmatizada assimila e incorpora o ponto de vista dos normais; em outra fase percebe-se como alguém que possui um estigma e as consequências que isso acarreta (Goffman, 2008).
No Brasil, não há políticas públicas específicas para intersexuais. Assim como não há nenhuma associação atuante que seja exclusivamente voltada para a demanda de pessoas intersexo. As demandas são expressas e resolvidas isoladamente ou articuladas às reivindicações e projetos de leis de outros grupos, como transexuais e travestis. Nesse sentido, a integração da saúde e ensino, com constituição de redes regionalizadas e integradas de atenção, é condição indispensável para a qualificação e a continuidade do cuidado à saúde e tem grande importância na superação de lacunas assistenciais e que pode ser considerada como um instrumento de emancipação e de promoção da dignidade das pessoas nascidas intersexuais.
A enfermagem demonstrou nos últimos anos, potencial para implantação, manutenção e desenvolvimento das políticas de saúde, demonstrando ser ela o eixo principal para suportar qualquer política de saúde que tivesse como objetivo a assistência de qualidade (Barbosa et al., 2004)
CONCLUSÃO
Em ambos os casos – negação e silêncio, o instrumento de adequação e reformulação mais utilizado para o gerenciamento dos corpos intersexuais, são as intervenções cirúrgicas. A maioria das cirurgias é utilizada para adequar a genitália externa das crianças intersexuais ao padrão binário, graças à boa intenção da ciência de retirar da família e, principalmente, das crianças intersexuais o estigma e a discriminação que carregariam em sociedade.
Contudo, afastar a possibilidade de que as cirurgias não necessariamente são a única forma de evitar traumas, rejeições e o estigma social sobre a criança intersexual e sua família é minimizar e obscurecer a violência sofrida por estas pessoas, deixando de compreender que essas intervenções cirúrgicas são produto do estigma e do preconceito que se arraiga, historicamente, na existência da intersexualidade. Mesmo porque as cirurgias não são garantia de que o sexo resignado possa determinar o sexo social (gênero) e o sexo psicológico (desejo), ou seja, as cirurgias não garantem a performance dos corpos, tampouco sua inteligibilidade.
Neste contexto, qualquer produção científica, ainda que não empírica, se torna responsável tanto pela estigmatização quanto pela inovação e ruptura de antigas normalizações dos corpos, gênero e sexualidade humana. E assim a ciência avança, permitindo-se dialogar e repensar saberes e práticas enraizadas socialmente.
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1Graduada em Enfermagem – Universidade Federal Fluminense. E-mail: thaiza19@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0009-0004-1208-9898
2Docente. Depto. Materno-Infantil e Psiquiatria da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: motacristinap@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7496-3385
3Docente. Depto. Materno-Infantil e Psiquiatria da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: jorgeluizlima@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2370-6343
4Graduanda em Enfermagem. Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: kathelinr@id.uff.br. ORCID: https://orcid.org/0009-0007-9349-1441
5Graduanda em Enfermagem. Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil. E-mail: camilymesquita@id.uff.br. ORCID: https://orcid.org/0009-0009-8722-494X
6Docente. Depto. Materno-Infantil e Psiquiatria da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: marimessi1512@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1323-0214
7Docente. Departamento de Enfermagem Materno Infantil. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: ricardomouta@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1284-971X