REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8436210
Núbia Silva Ferreira¹
João Jorge Pereira dos Reis²
Joyce Reny dos Santos Oliveira³
Raphael Bessa Ferreira4
RESUMO: O presente artigo tem o objetivo de analisar o conto “Minha Senhora” (1978), de Haroldo Maranhão, pelo viés da Semiótica da Cultura, observando os elementos culturais e simbólicos presentes na narrativa, e que revelam o sistema do patriarcado, numa proposta direcionada para alunos do 1° ano do Ensino Médio da rede pública. Os fundamentos da análise encontram-se nos estudos de Uspenskii (1972), sobre a “Semiótica da Arte”, do livro Ensaios de Semiótica Soviética, que diz ser a obra de arte um texto composto de símbolos; na obra Semiótica da Cultura e Semiosfera, organizada por Irene Machado (2007), que revela a linguagem como sistemas de signos servindo à comunicação e produção de cultura; e nos estudos de Gerda Lerner (2019), A criação do Patriarcado, que mostra a capacidade humana de conceituar grandes sistemas de símbolos para explicar o mundo e o universo, mas demonstra como as mulheres foram excluídas desse processo criador ao longo da história. A abordagem em sala de aula viabilizada por meio do texto literário faz-se necessária pelo entendimento de que é direito do aluno ter acesso a essa obra de arte, como bem nos esclarece Antônio Candido (2011), em “O Direito à Literatura”, assim como entender os processos que a constroem e formam os sistemas de significados que compõem a narrativa e o mundo do educando. Essa é a prerrogativa do Documento Curricular Do Estado do Pará (2021), que tem por parâmetro a BNCC. Este trabalho de pesquisa destina-se como possibilidade de ferramenta aos docentes durante a práxis na mediação de leitura literária na sala de aula por meio dos elementos temáticos discutidos aqui.
PALAVRAS CHAVE: Haroldo Maranhão. “Minha Senhora”. Semiótica da Cultura. Patriarcado. DECEPA.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A escola é o espaço propício para que o aluno desenvolva as suas potencialidades no conhecimento de si e de tudo aquilo que a sociedade cria de elementos culturais. Em muitos casos, torna-se o caminho para que pessoas consigam ter acesso a bens culturais que não teriam de outra forma.
O texto literário faz parte desse material cultural construído ao longo do tempo e necessário a humanização, como propõe Antônio Candido (2011). Assim, a escolha da obra de Haroldo Maranhão, o miniconto “Minha Senhora”, justifica-se por fazer parte desse patrimônio cultural a que o aluno tem direito, mostrando-se uma obra rica, potente, com todos os contornos de uma narrativa que chama atenção e leva a reflexão de seu conteúdo pelos elementos que a tornam um texto criativo e instigante.
O Documento Curricular do Estado do Pará (2021), etapa do ensino médio, adaptando a BNCC à realidade amazônica, faz referência ao Campo Saberes e Práticas de Língua Portuguesa e suas literaturas e diz que o trabalho de Literatura Brasileira produzida na Amazônia tornou-se um permanente debate de ausências e resistências, o que conduz ao quanto é urgente que essa literatura esteja na sala de aula fazendo parte desse conjunto de conhecimentos a ser adquiridos pelos alunos.
O objetivo desse artigo é analisar o miniconto “Minha Senhora” (1978), de Haroldo Maranhão, pelo viés da Semiótica da Cultura, observando os elementos culturais e simbólicos presentes na narrativa e que revelam o sistema do patriarcado, proposta direcionada para alunos do 1° ano do ensino médio da rede pública.
Os estudos que viabilizaram a construção desse pensamento estão em Antônio Candido (2011) com “O direito à literatura”, em que discorre sobre a importância da literatura na formação humana do indivíduo; Uspenskii (1972) Sobre a Semiótica da Arte, que fala dos símbolos que o leitor pode construir durante a leitura da obra de arte; Semiótica da Cultura e Semiosfera, organizada por Irene Machado (2007), que pensa o sistema de signos como construtores de comunicação e produtor de cultura; e Gerda Lerner (2019), com A Criação do Patriarcado, falando como a mulher foi deixada à margem da construção de símbolos que explicam o mundo e o universo, colocando o feminino como um ser inferior e submisso dentro da construção social, o que, muitas vezes, acaba invisibilizando sua existência.
Para tanto, o trabalho encontra-se organizado em duas seções: a primeira aborda sobre a fundamentação teórica baseada na Corrente Literária Semiótica da cultura, discorrendo sobre o que é o patriarcado e, ainda, como o DECEPA orienta a abordagem do texto literário para o ensino médio. E a segunda abordagem trata da análise da obra sob o viés da Semiótica da Cultura, mostrando a necessidade desse texto literário na escola para reflexão dos alunos do ensino médio, valorizando a literatura local.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A Semiótica da Cultura surgiu nos Seminários de Verão realizados, na década de 60 do século passado, na antiga União Soviética. Machado (2003, p.34) diz que esses encontros foram marcados por ideias e discussões no estilo socrático, resultando nas coletâneas Semeiotike. Trabalhos sobre osSistemasde Signos(TSS), estudos que consolidaram a Escola de Tartu-Moscou (ETM).
Pelo fato da “cultura” ser de carácter polissêmico devido as áreas de conhecimento,
Para a ETM, cultura é memória não-genética, um conjunto de informações que os grupos sociais acumulam e transmitem por meio de diferentes manifestações do processo da vida, como religião, a arte, o direito (leis), formando um tecido, um “continuum semiótico” sobre o qual se estrutura o mecanismo das relações cotidianas. A cultura é, na visão ETM, […] todos os fenômenos que incidem sobre a consciência coletiva. São programas de comportamento que permitem converter acontecimentos em conhecimento. (VELHO, 2009, p. 2)
Para os semioticistas de Tartu-Moscou a cultura é texto, pois uma determinada realidade é transformada em informação codificada na memória coletiva (MACHADO, 2003, p. 38), sendo
A tradução dos mesmos textos para outros sistemas semióticos, a assimilação dos distintos textos, o deslocamento dos limites entre os textos que pertencem à cultura e os que estão além dos seus limites constituem o mecanismo da apropriação cultural da realidade. (LÓTMAN apudVELHO, 2009, p. 254)
Segundo Machado (2003, p.49), entre as noções da semiótica russa, há os sistemas modelizantes em dois níveis: o primeiro grau diz respeito à linguagem natural; e o segundo grau é caracterizado pelos produtos culturais, lembrando que “modelização” vem do campo da informática e da cibernética.
É em 1984, conforme afirma Machado (2007, p.16), que o pesquisador russo Iuri Mikhailovich Lótman cunhou o termo “semiosfera”. Esse termo estabelece os ambientes diversificados de cada cultura em processo dialógico (RAMOS ET AL, 2007, p. 34). Por isso, há tensão como fronteiras entre sistemas culturais, perfazendo a hibridização, o diálogo e novos significados (VELHO, 2009, p.8).
Quais as pretensões dos estudiosos em Semiótica da Cultura? Para que estudar semiótica da Cultura? Ferreira e Zuhkov (2021) esclarecem que o “cerne dos estudos era nada mais do que analisar as formas expressivas, ou os modelos informativos, que apreendem o enorme depósito de conhecimento humano que subjaz à noção de Cultura” (FERREIRA e ZUHKOV, 2021, p.163). Os autores dizem ainda ser a cultura um constructo de linguagens, possuindo variados sistemas de signos de línguas naturais e artificiais manifestas em linguagem secundária.
A literatura faz parte dessa expressão de linguagem secundária e a ela pode ser atribuída, como pontua Uspenskii (1972), o falar sobre obra de arte em geral, considerando ser um texto composto de símbolos a que se atribui conteúdos provenientes de outras esferas culturais, assumindo, assim, uma faceta múltipla e rica, deixando claro ser necessário traduzir os símbolos da arte com associações e representações abstratas.
A obra de arte e a literatura, para Antônio Candido (2011), é um direito, esclarecendo que “Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades em todos os níveis é um direito inalienável” (CANDIDO, 2011, p. 191). Por ser assim, a literatura precisa estar no currículo escolar, dentro da sala de aula, onde esse entendimento do texto literário como fonte de conhecimento pode inserido nas práticas sociais dos discentes, despertando neles criticidade para refletir o meio em que vive.
A semiótica da cultura permite entender a literatura enquanto linguagem que comunica e, mais ainda, um sistema modelizante secundário, entendendo por modelização, como dito em Semiótica da Cultura e Semiosfera, organizado por Irene Machado (2007), como aquilo que “cumpre, igualmente, o desígnio de explicitar a vinculação histórica do sistema que não surge do nada mas elabora e redesenha procedimentos da experiência cultural” (MACHADO, 2007, p.29). O conto “Minha Senhora” de Haroldo Maranhão é esse lugar de questionamento.
A obra literária permite enveredar por sistemas culturais diferentes das do leitor, e também por sistemas nos quais ele está inserido, tendo ou não consciência disso. A literatura, em sua estruturalidade, cria modelos para si, por ser, como foi dito, uma linguagem modelizante secundária, carregando também símbolos advindos daquilo que o autor escolhe para expressar em sua arte, como no caso do patriarcado, por exemplo.
Para Gerda Lerner (2019), o patriarcado é entendido como criação histórica em que homens e mulheres, a mais de 2500 anos, fazem parte, organizados no que ela chama de unidade básica, a família patriarcal, na qual serão formuladas e disseminadas as regras e valores de tal criação.
A estrutura do patriarcado organiza-se para durar e, para isso, cria mecanismos de controle, vigilância e doutrinação que se estende dentro dos vínculos familiares, processo que se firma de forma cultural dentro da compreensão de cultura que Ferreira e Zuhkov expressam como: “a noção de cultura se baseia na língua natural, sistema primário, que se espraia em diversas linguagens e códigos que preservam a totalidade de informação de um povo e os transmite a diferentes grupos sociais” (FERREIRA e ZUHKOV, 2021, p. 163). A família patriarcal é esse núcleo formador e disseminador dos códigos e linguagens presentes no patriarcalismo e dela parte e fixa o sistema da forma que é.
O Documento Curricular Do Estado do Pará (2021) para o Ensino Médio apresenta a necessidade dos jovens de terem contato com as diversas manifestações da linguagem, entre elas a literatura, e que esse conhecimento deve ser aprofundado durante o Ensino Médio, viabilizando ao aluno uma análise crítica dos elementos discursivos, composicionais e formais nas diferentes semioses. Tais discussões encontram-se no Campo Saberes e Práticas do Ensino de Língua Portuguesa e suas Literaturas, dizendo
Cabe ao professor orientar o aluno a desenvolver sua potencialidade interpretativa, crítica e autoral por meio das diversas situações de uso da língua e dos diferentes textos e sentidos que atravessam os campos da área (DECEPA, 2021, p. 119)
As habilidades referidas devem ser desenvolvidas nos três anos que compõem o Ensino Médio, preparando o aluno para ser protagonista, atuante em seu processo de aprendizagem e refletindo em suas práticas enquanto cidadão dentro e fora da escola.
As reflexões do Documento Curricular do Estado do Pará (2021), pautado na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), pontua também as especificidades dos estudos de Língua Portuguesa e suas Literaturas voltadas para região da Amazônia, deixando claro a diversidade cultural e social das juventudes, sendo, portanto, de fundamental relevância para se pensar nas práticas pedagógicas, no ensino e aprendizagem voltadas a essa diversidade, que aparecem fortemente nos estudos literários e sobre eles afirma:
No que diz respeito aos estudos literários o referido campo de saberes e práticas reafirma o fortalecimento do ensino pautado no respeito às diversidades que compreendem a produção literária para além do cânone nacional, priorizando a reflexão sobre o lugar da literatura brasileira produzida na Amazônia no contexto escolar paraense (DECEPA, 2021, p. 122)
O direcionamento para a literatura produzida na Amazônia está em consonância com a ideia de levar em consideração a diversidade cultural e social do discentes, partindo do que lhe é particular, próximo e até mesmo familiar, e indo adiante nesses estudos que buscam dar atenção especial aos conceitos e fundamentos da Teoria Literária.
Entende-se aqui a importância do aluno ter contato com leituras literárias que despertem nele reflexões que ampliem seu conhecimento sobre si e sobre o meio social em que vive, tornando-o capaz de ter um olhar crítico nas leituras desenvolvidas em sala de aula, com os suportes necessários para o entendimento da obra literária e suas especificidades, ajudando em seu desenvolvimento intelectual e social.
“MINHA SENHORA” E O PATRIARCADO
A obra “Minha Senhora” faz parte de uma coletânea de contos intitulada Voo de galinha: peças de um minuto ou dois, ou nem isso; quase todas no formato de carambolas; contos redondos, do escritor paraense Haroldo Maranhão, publicada em 1978. A coletânea é composta de 25 minicontos, incluindo o que aqui será analisado, “Minha Senhora”.
A fundamentação da leitura da narrativa“Minha Senhora” pelo viés da Semiótica da Cultura é viabilizada pelo que afirma Boris A. Uspenskii (1972), no capítulo “Sobre a Semiótica da Arte”, do livro Ensaios de Semiótica Soviética, “A obra de arte pode ser considerada um texto composto de símbolos a que cada um atribui por sua conta e risco um conteúdo” (USPENSKII, 1972, p.31).
“Minha Senhora” é uma obra carregada de significações, um conto, uma breve narrativa que se engrandece pela força do que há na simbologia do que é dito, daquilo que poderia se dizer e do silêncio que muito diz. Irene Machado (2007) afirma que “Para abordagem semiótica da cultura, a linguagem pode ser definida como qualquer sistema de signos que sirva à comunicação e a produção de cultura, no mais amplo sentido do termo” (MACHADO, 2007, 27), demonstrando que linguagem e comunicação constroem os mundos em que se vive, entre esses mundos o Patriarcado, que será observado e alvo de reflexão na obra literária escolhida.
A linguagem presta-se à geração, organização, acumulação e transmissão de informação, mostrando-se um caminho para estruturação de sistemas que organizam a vida em sociedade. No conto “Minha Senhora”, Haroldo Maranhão abre lugar para o próprio texto, com suas significações e os elementos que o constituem, como para mais. O patriarcado surgirá ao longo da narrativa no comportamento das personagens envolvidas no enredo, entendido aqui, de acordo com Gerda Lerner, como uma
criação histórica formada por homens e mulheres em processo que levou quase 2.500 até ser concluído. A princípio, o patriarcado apareceu como Estado arcaico. A unidade básica de sua organização foi a família patriarcal, que expressava e criava de modo incessante suas regras e valores. (LERNER, 2019, p. 460)
O conto inicia do seguinte modo: “Por favor, por favor, minha senhora, guarde a honra de minha filha enquanto vou na esquina comprar cigarros e tomar café” (MARANHÃO, 1978, p.33). A narrativa é construída na voz desse narrador-personagem, com esse pedido inusitado, porém tem em si a própria figura do patriarcado que conduz a história dentro de uma retórica em que as outras personagens femininas: uma, sua filha, precisará ser vigiada com aparência de proteção, justificativa para o seu comportamento opressor e violento ao longo do miniconto, assim como para com a outra personagem feminina, “minha senhora”, que se entende aqui ser sua esposa, a qual é responsável em resguardar a honra da filha.
Durante a história o personagem que representa o poder pater, o chefe de família, é o único que fala, as duas personagens femininas são silenciadas, apenas ouvem as ordens disfarçadas de recomendações. No sistema patriarcalista essa configuração acontece com ambas as partes desenvolvendo seus papéis, opressor e oprimido. De forma naturalizada, Lerner (2019) afirma que:
Por quase quatro mil anos, as mulheres moldaram sua vida e agiram sob o “guarda-chuva” do patriarcado, em particular, uma forma do patriarcado mais bem descrito como dominação paternalista. Essa expressão fala da relação de um grupo dominante, considerado superior, com um grupo subordinado, considerado inferior, em que a dominação é mitigada por obrigações mútuas e direitos recíprocos (LERNER, 2019, p.461)
Dominante e dominado participam do jogo que foi configurado para eles. Desta forma, exercem suas funções organicamente validados pela estrutura social a que pertencem. O narrador-personagem suplica “Eu lhe peço guarde bem honra de minha filha, guarde bem guardada, como eu, que atravesso noites inteiras sem dormir, de faca na cintura e revólver na mão” (MARANHÃO, 1978, p. 33). No contexto patriarcal, a obediência é uma peça fundamental da engenharia que sustenta essa estrutura. A personagem feminina, sempre atenta, ouve em silêncio as ordens que lhe são dadas, evidenciando essa expectativa de submissão, pois “Muitas mulheres acreditam que precisam de um homem protetor, e que isso está ligado a afeto. Existe uma chantagem emocional de perda de afeto da parte dos homens às mulheres que se rebelam” (LERNER, 2019, 20). Coberto pelo manto da suposta proteção, o comportamento do pai de família, o chefe da casa, será justificado todo o exercício violento que fica evidente em tal personagem no decorrer do miniconto, colocando como zelo toda uma retórica para amenizar sua agressividade.
A honra de sua filha está ligada à sexualidade, em ela ser ou não virgem. A castidade feminina estava sobre o controle do sistema patriarcal. Lerner (2019) declara que “A castidade antes e durante o casamento era imposta com rigor sobre as mulheres” (LERNER, 2019, 436). No Brasil, de acordo com o site Migalhas, o Código Civil de 1916 previa, em seus artigos 178 e 219, a anulação do casamento se a noiva não fosse mais virgem, tendo ela que passar por perícia e demais situações constrangedoras se tivesse por objetivo contestar a acusação do marido de colocar em dúvida o que era considerado como honra, casar virgem.
“Mulheres respeitáveis passavam a maior parte da vida dentro de casa, enquanto os homens da mesma classe passavam a maior parte do tempo em espaços públicos” (LERNER, 2019, p. 436). No miniconto, a personagem que representa a figura do pai precisa sair de casa, configurando espaço público, para tomar café e comprar cigarros; enquanto que as personagens femininas ficam em casa, o que representa o espaço privado, a mãe cuidará da honra da filha na ausência do marido.
O controle exercido pelo chefe da família estava intimamente ligado ao que o sistema considera moralidade. Lerner (2019), reportando-se a Aristóteles – que defende o homem como dominante porque controla seus escravos, sua esposa e seus filhos –, diz que a virtude moral difere para homens e mulheres, a coragem do homem revela-se no comando enquanto as mulheres obedecem.
No contexto do patriarcado, a moralidade é muitas vezes vista como um símbolo intrínseco. Tradicionalmente, o pai de família desempenha um papel central nesse sistema, assumindo responsabilidades e atribuindo na prática as funções que lhe são atribuídas. Mesmo que ele delegue algumas dessas funções a terceiros, é importante considerar o peso e a carga das responsabilidades que ele carrega:
Por isso lhe peço que guarde muito bem a honra de minha filha, tenrinha cartilagem por cuja integridade eu posso até morrer, não duvido, mas antes mato, que mato, mato, enfio o punhal, descarrego a mauser na barriga do fi, desculpe, desculpe-me a franqueza da boca (MARANHÃO, 1978, p.33-34)
A preocupação com a “honra” da filha leva-o a manifestar atitudes extremas que seria capaz de cometer, revelando ações agressivas, homicidas, com símbolos denotadores dessa violência, tais como a mauser (revólver) e o punhal.
No texto, o narrador-personagem adota uma postura ameaçadora em relação à sua esposa. Ele justifica suas ameaças alegando estar defendendo a integridade física e moral da filha. Contudo, ele deixa claro que, na sua ausência, se a personagem feminina não obedecer às suas ordens, haverá consequências:
Tome bem conta. Eu sei que vai tomar, com olhos atentos, ali, em cima, por que se desviar os olhos será descuido seu que nunca, nunca perdoaria e certo é que lhe vazasse os olhos, cortasse uma orelha, decepasse seus pés, os dois polegares para que as mãos ficassem estragadas seccionasse seus pés, os dois, tirasse um dos peitos (MARANHÃO, 1978, p. 34)
Observa-se a violência psicológica que é imposta a essa mulher e em momento algum é retrucada, ou há queixas ao comportamento violento e autoritário dele. Ana Silva Scott (2013), no capítulo “Família”, do livro Nova História das Mulheres no Brasil, explica que “Na ordem patriarcal, mulher deveria obedecer a pai e marido, passada da autoridade de um para a do outro, através de um casamento monogâmico e indissolúvel. O domínio masculino era indiscutível” (SCOTT, 2013, p. 14) A vontade do chefe, do patriarca, era soberana e, observa-se no conto que dá a ele, o marido, direitos de punição se suas ordens não forem obedecidas. O autor se vale de elementos de gradação para mostrar passo a passo a sessão de tortura psicológica exercida sobre essa mulher, elementos do próprio texto literário que levam o leitor a esse lugar de dor e sofrimento.
O pedido de desculpa vem logo em seguida, após as ameaças de tortura, procurando amenizar o clima pesado criado por ele: “Desculpe o desabafo minha boa senhora, me desculpe o muito nervoso e esta aflição, que tenho fé e vou em paz, sabendo que cuidará com vigilância e afeto da honra de minha filha” (MARANHÃO, 1978, p.34), deixando a filha sob os cuidados de sua senhora.
Importante chamar atenção aqui para o final da história narrada: “Por favor e caridade, trate desta demanda e dela participe: guarde bem guardada a honra de minha filha infante” (MARANHÃO, 1978, p. 34). Assim como foi falado antes, o patriarcado constitui-se como uma ordem em que a mulher deve obedecer ao pai e depois ao marido. Quando casada, tem-se muito claro que a personagem da filha trata-se de uma criança, uma menina infante, que cresce dentro de um lar opressor em que as leis do sistema patriarcalista são exercidas naturalmente e, pelo exemplo, ensinadas no dia a dia. Sobre isso, Gerda Lerner (2019) afirma que “A família não apenas espelha a ordem do Estado e educa os filhos para que a sigam, mas também cria e sempre reforça essa ordem” (LERNER, 2019, p. 461), dizendo ser a família patriarcal impressionantemente resiliente.
Desta forma, o sistema é mantido com a cooperação de quem é oprimido, subjugado, as mulheres. Simone de Beauvoair, citada no livro de Lerner (2019), declara que “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos” (BEAUVOIR, apud, LERNER, 2019, p.20). Cumplicidade que só é possível porque nesse processo de subordinação pela qual as mulheres passam ensina-se com êxito que elas são inferiores, doutrinando para esse fim.
Diante disso, este trabalho propõe a mediação de leitura literária em sala de aula por meio de elementos temáticos baseado no Documento Curricular do Estado do Pará (2021), que reforça a necessidade para o projeto de formação do leitor de literatura no espaço escolar e para sua formação humana integral. No que se refere ao campo de Saberes e Práticas de Língua Portuguesa e suas Literaturas, este afirma
cabe ao professor orientar o aluno a desenvolver sua potencialidade interpretativa, crítica e autoral por meio das diversas situações de uso da língua e dos diferentes textos e sentidos que atravessam os campos da área” (DECEPA, 2021, p. 119)
Formação que será continuada aos três anos que cabem ao ensino médio. Ademais, sublinha-se que o mesmo documento ressalta ainda a importância da produção literária para além do cânone nacional, valorizando a literatura que se faz na Amazônia, para que ela possa estar presente no contexto escolar paraense. Nas aulas de ensino de língua portuguesa e suas literaturas, de acordo com DECEPA (2021), o estudo do texto literário deve ser ressignificado, dando importância ao estudo da Teoria Literária e superando a fragmentação desses campos, de modo que o letramento literário possa acontecer de forma eficaz.“Minha Senhora”, de Haroldo Maranhão, pertence a esse lugar de leituras que podem estar na sala de aula.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O professor de Língua Portuguesa e suas Literaturas, em suas práticas pedagógicas em sala de aula, precisa voltar-se às necessidades de seus alunos e, junto com documentos oficiais que regem o ensino, refletir sobre suas ações na escola, viabilizando um ensino de qualidade que faça sentido tanto ao professor como ao discente, para que ambos construam juntos um lugar de saberes de crescimento pessoal e intelectual.
O texto literário, como foi visto neste artigo, é uma fonte de reflexão para a formação do aluno, de forma integral, entendendo-o como agente transformador de si e do lugar em que vive. A proposta de análise da obra literária “Minha Senhora”, de Haroldo Maranhão, com uma temática tão relevante para os dias atuais, deixa evidente o quanto é importante pensar nessa perspectiva do conteúdo do patriarcado pelo viés da Semiótica da Cultura, entendendo a literatura como forma de linguagem em constante diálogo com os outros sistemas de signos que servem a comunicação e à produção de cultura.
O presente trabalho levou em consideração a práxis docente apresentada no Documento Curricular do Estado do Pará (2021) para a etapa do ensino médio, prestigiando a diversidade encontrada na Amazônia no ponto de vista literário, em especial a Literatura Paraense.
Portanto, a reflexão sobre a narrativa, as ações do narrador-personagem perpassadas nas falas podem estimular o pensamento crítico pela fruição textual de “Minha Senhora” com a temática do patriarcado que desencadeou uma análise profícua dos estudos feitos por Gerda Lerner (2019) em A criação do Patriarcado, Ana Scott (2013) com Nova História das Mulheres no Brasil, refletindo sobre o que diz Antônio Candido (2011), no capítulo “O direito à literatura”conduzindo pelo viés da Semiótica da Cultura pautados em autores(as) já mencionados(as).
REFERÊNCIAS
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FERREIRA, Raphael, ZHUKOV, Andrey Pavlovitch Zhukov. A cidade no texto literário: uma análise semiótico-cultural de filho da mãe, de Bernardo Carvalho. Belém: EDUEPA, 2021.
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VELHO, A. P. M. A semiótica da cultura: apontamentos para uma metodologia de análise da comunicação. Revista de Estudos da Comunicação, Curitiba, v. 10, n. 23, p. 249-257, set./dez. 2009.
¹Mestranda de Pós-Graduação em Ensino de Língua Portuguesa e suas Respectivas Literaturas da Universidade do Estado do Pará. Atuou como professora de Língua Portuguesa no Programa Mais Educação na Escola Estadual Pinto Marques, no Projovem na Escola Municipal de Ananindeua Eduarda Teixeira e como professora substituta de Literatura da Universidade do Estado do Pará. nubiorum@yahoo,com,br ORCID: 0009-0008-7173-5051. nubiorum@yahoo.com.br
²Mestrando de Pós-Graduação em Ensino da Língua Portuguesa e suas Respectivas Literaturas da Universidade do Estado do Pará. Professor efetivo de Língua Portuguesa da rede estadual de ensino do Pará. joao.reis@escola.seduc.pa.gov.br ORCID: 0009-0006-0390-7152. joao.reis@escola.seduc.pa.gov.br
³Mestranda de Pós-Graduação em Ensino de Língua Portuguesa e suas Respectivas Literaturas da Universidade do Estado do Pará. Professora da Escola de Ensino Fundamental ALFA. renysanolive@rotmail.com ORCID: 0009-0008-4252-2807. renysanolive@hotmail.com
4Docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Língua Portuguesa e Suas Respectivas Literaturas (PPGELL) da Universidade do Estado do Pará (UEPA). ru-98@hotmail.com. ru-98@hotmail.com