REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202503251835
Carlos Augusto Moura Santos Filho
Resumo: Este artigo discute o papel do médico de família e comunidade (MFC) na atenção primária à saúde (APS) do Sistema Único de Saúde (SUS), com foco em sua formação, prática clínica e as perspectivas para sua consolidação como pilar da ESF. Utilizando uma revisão narrativa baseada em estudos acadêmicos e documentos oficiais, explora-se como o MFC contribui para a integralidade e resolutividade da APS, os obstáculos enfrentados na capacitação profissional e as políticas necessárias para sua expansão. Os resultados mostram avanços nas residências médicas e iniciativas como o Programa Mais Médicos, mas revelam barreiras persistentes, como a escassez de especialistas, a desvalorização profissional e as desigualdades regionais. Conclui-se que o fortalecimento do MFC demanda investimentos robustos em formação, incentivos salariais e estratégias de equidade na distribuição de profissionais.
Palavras-chave: Atenção primária à saúde, médico de família e comunidade, SUS, formação médica, Estratégia Saúde da Família.
1. Introdução
A atenção primária à saúde (APS) é o alicerce do Sistema Único de Saúde (SUS), concebida para assegurar acesso universal, cuidado contínuo e coordenação eficiente da assistência (Starfield, 2002). Nesse contexto, o médico de família e comunidade (MFC) assume uma posição estratégica, especialmente na Estratégia Saúde da Família (ESF), ao atuar como elo entre os serviços de saúde e as necessidades da população, promovendo a longitudinalidade e o vínculo comunitário (Brasil, 2017). Sua prática abrange desde a prevenção de doenças até o manejo de condições crônicas, sendo essencial para reduzir a sobrecarga em níveis mais complexos do sistema.
Apesar de sua relevância, o Brasil enfrenta dificuldades históricas para consolidar o MFC como especialidade predominante na APS. A formação insuficiente, a desvalorização profissional e a distribuição desigual de médicos são problemas crônicos que comprometem a cobertura e a qualidade do cuidado. Políticas públicas, como o Programa Mais Médicos (Brasil, 2013) e a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), têm tentado enfrentar essas questões, mas os resultados ainda estão aquém do necessário para atender à demanda populacional. Este artigo examina o papel do MFC na APS do SUS, analisando sua formação, atuação e as perspectivas para seu fortalecimento, com base em evidências da literatura e diretrizes oficiais.
2. Metodologia
Este estudo adota uma revisão narrativa fundamentada em seis fontes publicadas entre 2002 e 2023, escolhidas por sua pertinência ao tema. Foram incluídos documentos oficiais do Ministério da Saúde (Brasil, 2013; Brasil, 2017) e artigos científicos disponíveis em plataformas como SciELO e a Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (RBMFC). A seleção priorizou estudos que abordassem a formação, a prática e os desafios do MFC no SUS, excluindo textos focados exclusivamente em outras especialidades. A análise qualitativa concentrou-se em aspectos como capacitação profissional, desempenho na ESF, barreiras estruturais e políticas de incentivo, utilizando uma abordagem descritiva e interpretativa.
3. Resultados e Discussão
3.1 Formação do Médico de Família e Comunidade
A formação do MFC no Brasil tem se beneficiado da expansão das residências médicas, que se tornaram o principal canal para o desenvolvimento de competências específicas da especialidade. Norman e Tesser (2015) destacam que esses programas capacitam os profissionais para o cuidado integral, incluindo o manejo de doenças prevalentes, a promoção da saúde e a comunicação efetiva com os pacientes. No entanto, a oferta de vagas ainda é limitada, e a graduação médica frequentemente negligencia a medicina de família, focando em especialidades hospitalares e deixando lacunas no preparo para a APS (Anderson & Rodrigues, 2011).
O Programa Mais Médicos (Brasil, 2013) foi uma resposta emergencial à carência de médicos na APS, mas sua abordagem inicial priorizou a alocação de profissionais em detrimento da formação especializada. Isso resultou em um contingente de médicos com preparo heterogêneo, o que compromete a qualidade do atendimento em longo prazo (Savassi et al., 2021). Além disso, a falta de investimento em educação permanente dificulta a atualização contínua dos MFCs, essencial para lidar com as demandas dinâmicas do SUS, como o aumento de doenças crônicas não transmissíveis e os desafios de saúde pública em comunidades vulneráveis.
3.2 Atuação na Estratégia Saúde da Família
Na ESF, o MFC desempenha um papel multifacetado, atuando como coordenador do cuidado e integrando ações preventivas, diagnósticas e terapêuticas. Segundo Starfield (2002), essa prática resolve até 80% dos problemas de saúde na APS, reduzindo a necessidade de encaminhamentos desnecessários e otimizando os recursos do sistema. Coelho Neto, Antunes e Oliveira (2019) reforçam que a longitudinalidade e o vínculo com a comunidade fortalecem a confiança dos pacientes, melhorando a adesão a tratamentos e a eficácia das intervenções preventivas, como vacinação e rastreamento de doenças.
Todavia, a realidade prática revela limitações significativas. A ausência de equipes multiprofissionais completas, a sobrecarga de trabalho e a infraestrutura precária em muitas unidades de saúde comprometem o desempenho do MFC, especialmente em regiões periféricas e rurais (Anderson & Rodrigues, 2011). A PNAB (Brasil, 2017) posiciona o MFC como protagonista da ESF, mas a implementação desigual entre os estados evidência disparidades estruturais: enquanto grandes centros urbanos lidam com alta demanda e rotatividade de profissionais, áreas remotas sofrem com a escassez absoluta de especialistas, prejudicando o acesso ao cuidado.
3.3 Desafios e Barreiras
Entre os principais desafios, destaca-se a desvalorização profissional. Savassi et al. (2021) apontam que salários pouco competitivos, aliados a condições de trabalho adversas, como longas jornadas e falta de suporte técnico, afastam médicos da APS. A formação de preceptores qualificados também é insuficiente, o que impacta a qualidade do treinamento em residências e perpetua a carência de especialistas (Norman & Tesser, 2015). Outro problema crítico é a distribuição geográfica desigual: a concentração de MFCs nas regiões Sul e Sudeste contrasta com a baixa densidade no Norte e Nordeste, refletindo as iniquidades históricas do SUS (Anderson & Rodrigues, 2011).
Culturalmente, a medicina de família enfrenta resistência no meio médico brasileiro. Muitos profissionais ainda priorizam especialidades de alta tecnologia ou maior prestígio social, subestimando o impacto estratégico do MFC na redução de custos e na promoção da equidade em saúde (Coelho Neto et al., 2019). Essa percepção é agravada pela falta de campanhas de valorização da especialidade e pela ausência de incentivos consistentes para atrair jovens médicos à APS.
3.4 Perspectivas de Fortalecimento
Para consolidar o papel do MFC, é imprescindível a adoção de políticas públicas abrangentes. Uma evolução do Programa Mais Médicos, com foco em formação contínua e integração às residências, poderia alinhar o provimento de médicos à qualificação profissional (Savassi et al., 2021). A inserção da medicina de família nos currículos de graduação, como defendem Anderson e Rodrigues (2011), estimula o interesse precoce pela especialidade, enquanto a capacitação de preceptores fortaleceria a base pedagógica das residências.
A valorização profissional também é um pilar essencial. Melhorias salariais, benefícios adicionais e condições de trabalho dignas são medidas que podem reter MFCs no SUS e atrair novos talentos (Coelho Neto et al., 2019). Além disso, o uso de tecnologias, como a telemedicina, tem potencial para ampliar o alcance do MFC em áreas remotas, oferecendo suporte diagnóstico e educacional (Norman & Tesser, 2015). Investir em infraestrutura básica, como unidades de saúde equipadas e equipes multiprofissionais completas, complementaria essas estratégias, garantindo um ambiente propício à prática qualificada.
4. Conclusão
O médico de família e comunidade é um elemento indispensável para a APS no SUS, oferecendo um modelo de cuidado integral, resolutivo e centrado na população. Contudo, sua consolidação enfrenta barreiras como a escassez de especialistas, a desvalorização profissional e as disparidades regionais. Superar esses desafios exige políticas que ampliem as residências médicas, melhorem as condições de trabalho, promovam a equidade na distribuição de profissionais e integrem a medicina de família à formação acadêmica. Estudos futuros devem investigar o impacto dessas intervenções na cobertura, na qualidade da APS e na satisfação tanto dos profissionais quanto dos usuários do SUS.
Referências
- BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 set. 2017. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html. Acesso em: 18 mar. 2025.
- ANDERSON, M. I. P.; RODRIGUES, R. D. Formação de especialistas em Medicina de Família e Comunidade no Brasil: dilemas e perspectivas. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 6, n. 18, p. 25-31, jan./mar. 2011. DOI: 10.5712/rbmfc6(18)248. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/248. Acesso em: 17 mar. 2025.
- COELHO NETO, G. C.; ANTUNES, V. H.; OLIVEIRA, A. A prática da Medicina de Família e Comunidade no Brasil: contexto e perspectivas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 35, n. 1, e00170917, 2019. DOI: 10.1590/0102-311X00170917. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/RzNmviHqmLhPHZp6gfcdC6H/?lang=pt. Acesso em: 18 mar. 2025.
- NORMAN, A. H.; TESSER, C. D. Prevenção quaternária: as bases para sua operacionalização na relação médico-paciente. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 10, n. 35, p. 1-10, 2015. DOI: 10.5712/rbmfc10(35)1023. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/1023. Acesso em: 17 mar. 2025.
- SAVASSI, L. C. M. et al. Formação, Ensino e Pesquisa na Medicina de Família e Comunidade e na Atenção Primária à Saúde no Brasil: situação atual, desafios e perspectivas. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 18-27, jan./dez. 2021. DOI: 10.5712/rbmfc16(1)3249. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/3249. Acesso em: 18 mar. 2025.
- STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília, DF: UNESCO: Ministério da Saúde, 2002. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_primaria_equilibrio_necessidades.pdf. Acesso em: 17 mar. 2025.