REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202411300930
Larissa Fernandes de Souza¹; Victor Guilherme Pereira¹; Valéria Carvalho Fernandes¹; Sélen Jaqueline Souza Ruas¹; Álvaro Parrela Piris¹; Joice Fernanda Costa Quadros Pimenta¹; Claudia Cristina Teixeira²; Mirela Lopes de Figueiredo²; Davidson Gonçalves Soares²; Daniella Fagundes Souto²; Carla Rodrigues Pereira²; Amanda Alves de Jesus¹; Matheus Siega Nepomuceno³; Ive Rhayane Cangussu Leite¹; Elisângela de Oliveira Neres⁴; André Silva Borém⁴; Márcia Beatriz Lima Pimenta⁵; Márcia Oliveira da Silva².
RESUMO
Objetivo: Analisar o enfrentamento da pandemia e do luto em indivíduos que perderam membros da sua rede socioafetiva em decorrência da Covid-19. Método: Estudo transversal, com abordagem qualitativa, conduzido com 14 indivíduos enlutados durante a pandemia. Foram realizadas entrevistas individuais, semiestruturadas e gravadas, precedidas pela aplicação de questionário socioeconômico e demográfico. Resultados: Os discursos foram submetidos a análise de conteúdo de Bardin, sendo levantadas duas dimensões temáticas: transtornos de medo, ansiedade e sofrimento psicológico no decurso da pandemia da Covid-19 e luto prolongado associado às restrições impostas pela pandemia. Considerações finais: Enfrentar a pandemia apresenta desafios significativos diante da intensa propagação de Fake News camufladas pelo processo de infodemia. Os profissionais de saúde e suas respectivas instituições de atenção à população possuem um papel vital em transmitir informações de saúde seguras e científicas às comunidades. Além disso, ressalta-se que vivenciar o luto durante o contexto pandêmico imprime restrições importantes nas etapas que vão desde a hospitalização ao processo pós-funeral. Reconhecer as distinções de vulnerabilidade social é fundamental para compreender os mecanismos e as repercussões deste processo na saúde biopsicossocial e pública.
Palavras-chave: Saúde Mental; Luto; Covid-19; Pandemias.
ABSTRACT
Objective: To analyze coping with the pandemic and grief in individuals who lost members of their socio-affective network as a result of Covid-19. Method: Cross-sectional study, with a qualitative approach, conducted with 14 individuals bereaved during the pandemic. Individual, semi-structured and recorded interviews were conducted, preceded by the application of a socioeconomic and demographic questionnaire. Results: The speeches were subjected to Bardin’s content analysis, raising two thematic dimensions: fear disorders, anxiety and psychological suffering during the Covid-19 pandemic and prolonged mourning associated with the restrictions imposed by the pandemic. Final considerations: Facing the pandemic presents significant challenges in the face of the intense spread of Fake News camouflaged by the infodemic process. Health professionals and their respective population care institutions play a vital role in transmitting safe and scientific health information to communities. In addition, it is noteworthy that experiencing grief during the pandemic context imposes important restrictions on the stages ranging from hospitalization to the post-funeral process. Recognizing the distinctions of social vulnerability is fundamental to understanding the mechanisms and repercussions of this process on biopsychosocial and public health.
Keywords: Mental Health; Bereavement; Covid-19; Pandemics.
RESUMEN
Objetivo: Analizar el afrontamiento de la pandemia y el duelo en individuos que perdieron miembros de su red socioafectiva a consecuencia de la Covid-19. Método: Estudio transversal, con enfoque cualitativo, realizado con 14 personas en duelo durante la pandemia. Se realizaron entrevistas individuales, semiestructuradas y grabadas, precedidas de la aplicación de un cuestionario socioeconómico y demográfico. Resultados: Los discursos fueron sometidos al análisis de contenido de Bardin, planteando dos dimensiones temáticas: trastornos de miedo, ansiedad y sufrimiento psicológico durante la pandemia de la Covid-19 y duelo prolongado asociado a las restricciones impuestas por la pandemia. Consideraciones finales: Enfrentar la pandemia presenta importantes desafíos ante la intensa difusión de Fake News camufladas por el proceso infodémico. Los profesionales de la salud y sus respectivas instituciones de atención a la población juegan un papel vital en la transmisión de información de salud segura y científica a las comunidades. Además, se destaca que vivir el duelo en el contexto de la pandemia impone restricciones importantes en las etapas que van desde la hospitalización hasta el proceso post-funeral. Reconocer las distinciones de la vulnerabilidad social es fundamental para comprender los mecanismos y repercusiones de este proceso en la salud biopsicosocial y pública.
Palabras clave: Salud Mental; Aflicción; Covid-19; Pandemias.
INTRODUÇÃO
No ano de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a instauração do cenário pandêmico da Covid-19 (Coronavirus Disease 2019), em função da rápida disseminação do SARS-CoV-2, agente etiológico da doença infecciosa(1-2). Diante disso, na tentativa de evitar a sobrecarga dos sistemas de saúde, inúmeras estratégias de contenção comunitária da transmissão do novo coronavírus foram implementadas por governantes de diferentes países(2-4).
Nessa direção, a principal medida desempenhada no contexto global foi o isolamento social horizontal, estratégia que preconizava a restrição de atividades sociais em espaços públicos em detrimento da permanência das pessoas em suas residências, independentemente da idade ou de participação em grupos de risco(5). Consequentemente, estudos apontam que houveram incertezas, inquiridas principalmente pela população, sobre como seria realizado o controle da doença e a imprevisibilidade da duração do isolamento social, sendo levantados debates acerca da repercussão desse problema de saúde pública para a condição psicossocial da população, difundidos, intensamente, nos meios de comunicação no Brasil e no mundo(6-8).
Ainda nessa perspectiva, a OMS alertou que o impacto de uma pandemia na saúde mental é, geralmente, mais intenso entre os que vivem em situação de vulnerabilidade psicossocial, condição econômica precária ou em pessoas idosas(9). Destaca-se que um estudo realizado em 194 cidades na China constatou que 53,8% das pessoas entrevistadas classificaram o impacto psicológico da Covid-19 como moderado ou grave e, somado a isso, registrou relatos de sintomas moderados ou severos de ansiedade (28,8%), depressão (16,5%) e estresse (8,1%), com diferenças significativas para o sexo feminino(10). Adicionalmente, um estudo desenvolvido em Portugal demonstrou que, comparado com o período anterior ao da pandemia, os jovens apresentaram índices mais elevados de estresse e de depressão durante o contexto pandêmico(11).
Considera-se que essa situação de saúde pública é traumática e estressante, pois, em linhas gerais, as pandemias reverberam em perdas de um contingente significativo da população mundial. Além disso, a exigência da adesão às estratégias de prevenção e contenção da doença alteram o padrão de vida da população e repercutem em dimensões econômicas, políticas e sociais. Por conseguinte, alterações emocionais, cognitivas, comportamentais, luto e fatores estigmatizante, são aspectos, frequentemente, enfrentados no decurso da pandemia da Covid-19(7-11).
Outro aspecto recorrente no contexto da pandemia é a ocorrência de adoecimento e óbitos de diferentes indivíduos em um mesmo núcleo familiar ou social, o que ocasiona estressores adicionais ao processo de despedida e à adaptação ao luto. As repercussões negativas geradas nessas circunstâncias são potencializadas conforme a fase do ciclo de vida e as funções desempenhadas na família pela pessoa que faleceu(5-6). À vista disso, este estudo objetivou analisar o enfrentamento da pandemia e do luto em indivíduos que perderam membros da sua rede socioafetiva em decorrência da Covid-19.
MÉTODOS
Estudo transversal, exploratório e descritivo, com abordagem qualitativa, o qual seguiu as recomendações do Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ). A pesquisa foi desenvolvida em municípios localizados ao norte do estado de Minas Gerais (MG). Participaram desta investigação indivíduos que perderam membros de sua rede socioafetiva em decorrência da Covid-19, com o diagnóstico confirmado da doença e/ou associado a suas complicações à saúde.
Definiu-se como critérios de inclusão no estudo: indivíduos com idade ≥ 18 anos, que perderam um ou mais membros de sua rede socioafetiva após quadro confirmado da Covid-19 e, por fim, que possuíam acesso a meios de comunicação virtual para participação na pesquisa. A amostra foi intencional, sendo aplicado a técnica de Snowball para escolha dos entrevistados, na qual seguiu o seguinte percurso: o primeiro participante foi selecionado por indicação dos pesquisadores, sendo um indivíduo que apresentava características que correspondem aos critérios de inclusão e, de modo semelhante, o entrevistado indicou outro potencial participante que também se enquadrava nos mesmos requisitos estabelecidos e, assim, sucessivamente. Desta forma, durante o período de fevereiro a maio de 2021, foram entrevistados 14 indivíduos utilizando a mesma estratégia proposta.
Para coleta de dados, inicialmente, foi utilizado um questionário socioeconômico e demográfico, de autoria própria, considerando as seguintes características para avaliação: sexo, idade, escolaridade, estado civil, cor da pele (autorreferida), atividade laborativa, ocupação/profissão, renda familiar, número de pessoas que residem com o entrevistado e número de filhos. Adicionalmente, foram realizadas entrevistas individuais, semiestruturadas e gravadas, com a finalidade de analisar o enfrentamento do luto e, além disso, identificar e compreender os fatores que impulsionam o sofrimento e a angústia de pessoas que perderam entes queridos após o diagnóstico da infecção causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2).
Em decorrência do contexto pandêmico, com o intuito de eliminar o risco de contágio do coronavírus de 2019, o estudo foi conduzido por meio de plataformas eletrônicas/virtuais. Nessa direção, os indivíduos foram recrutados a participarem da pesquisa por meio de ligações telefônicas e encaminhou-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) via e-mail ou software de comunicação de preferência da participante. Utilizou-se como recurso o Google Forms para o envio remoto do TCLE, no qual o sujeito obteve acesso às informações do estudo para se decidir e registrar sobre sua concordância em participar da investigação.
As entrevistas foram agendadas conforme anuência e conveniência prévia dos participantes. Após responder ao questionário socioeconômico e demográfico, as participantes foram entrevistadas por meio de softwares de comunicação, com a utilização dos recursos de vídeo conferência, gravação de áudio e escrita de textos, conforme preferência e disponibilidade da participante.
Para fins metodológicos, com a finalidade de proporcionar o anonimato e preservar a identidade do participante, utilizou-se como pseudônimo o termo ‘entrevistado’ para se referir aos participantes, sendo considerado a ordem da investigação (entrevistado 1 – E1 – ao entrevistado 14 – E14). As entrevistas foram sistematizadas, transcritas e estruturadas por semelhança de objeto de estudo. Desenvolveu-se uma leitura/releitura flutuante das falas, com a interpretação de sentidos e mensagens explícitas e/ou implícitas, sendo submetidas à análise de conteúdo, como proposto por Bardin(12). Foram extraídas dimensões temáticas ou categorias com significados de interesse científico, agregadas por similaridades e analisadas com base nos pressupostos da teoria metodológica e científica.
O estudo respeitou os preceitos éticos e de humanização para o desenvolvimento de pesquisas em Seres Humanos, determinados pela Resolução nº466/2012. Assegurou-se, a cada participante, o consentimento para a participação, a garantia de anonimato e a possibilidade de desistência sem ônus pessoal. A pesquisa conta com aprovação em Comitê de Ética e Pesquisa (CEP), com deferimento de parecer consubstanciado integrado à Plataforma Brasil de nº 4.935.194 (CAAE: 40831320.6.0000.5141).
RESULTADOS
Foram entrevistados 14 indivíduos que perderam membros da sua rede socioafetiva em função da Covid-19. O grupo avaliado é relativamente heterogêneo, sendo predominantemente do sexo feminino (71,4%). Registrou-se que a faixa-etária entre 18 a 38 anos foi a mais prevalente (64,3), com média de idade de 33,85 (DP: 15,96). Quanto à escolaridade, 9 (64,3%) indivíduos apresentavam 13 anos ou mais de estudo. No que tange ao estado civil, 8 (57,1%) entrevistados relataram possuir companheiro. Em relação a cor da pele, 6 (42,9%) participantes se declararam pardos. Para mais, a maioria informou trabalho regular (50,0%) e renda familiar entre 1 a 3 salários-mínimos (50,0%). Essas e outras características demográficas, sociais e econômicas do grupo são apresentadas na tabela 1.
Tabela 1. Caracterização socioeconômica e demográfica da amostra, Minas Gerais, Brasil, 2021.
Após as análises dos discursos, duas dimensões temáticas foram levantadas: transtornos de medo, ansiedade e sofrimento psicológico no decurso da pandemia da Covid-19 e luto prolongado associado às restrições impostas pela pandemia.
DISCUSSÃO
Transtornos de medo, ansiedade e sofrimento psicológico no decurso da pandemia da Covid-19
Historicamente, a humanidade se aflige com o fim da existência. Em alguns cenários, como o da pandemia da Covid-19, os registros de óbitos em massa geram, consequentemente, ainda mais transtornos psicológicos relacionados ao medo do adoecimento. Ressalta-se que desde os primeiros relatos de casos de infecção por coronavírus de 2019, a população mundial recebeu diversas informações por meio da mídia e das redes sociais sobre o processo patológico causado em função do vírus (1-4,13).
A sociedade está interconectada e inserida em um contexto globalizado de constante exposição às informações, as quais são propagadas em um fluxo extremamente acelerado. Esse fenômeno, denominado como infodemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), no cenário da pandemia, é responsável por desencadear inseguranças e hesitações em incontáveis pessoas, essencialmente, quando ocorre a propagação de informações sobre a Covid-19 de caráter duvidoso, sem registros de fonte científica ou, até mesmo, totalmente falsas(14-15).
Na maioria dos casos, essas Fake News trazem informações que afligem e confundem a população e, portanto, colabora com o surgimento de sentimentos de angustia, principalmente diante de um contexto pandêmico(16). Além disso, por conseguinte, esse processo afeta a educação sobre saúde da população, o que reflete, negativamente, na adoção de medidas preventivas com o intuito de encerrar a cadeia de transmissão da doença (17-18). Nesse sentido, os entrevistados declararam que receberam inúmeras informações falsas relacionados aos sintomas da doença, prevenção, medicamentos, vacinas e registro de número de óbitos, conforme expressado nas falas a seguir:
E1 – Todos os dias tinha uma notícia diferente, não sabíamos no que acreditar. Recebemos muitas notícias falsas para usar vários medicamentos que iriam prevenir a doença.
E5 – Eu recebia mensagens dizendo para não usar máscara, porque ela não resolvia nada e que na verdade poderia me sufocar, me deixando doente. Teve um tempo que eu não sabia se deveria usar.
E9 – Vi muitas notícias falsas sobre o número de óbitos. Isso me deixava aflito e ansioso, pois sempre pensava na minha família.
E12 – Diziam que qualquer mal estar que eu sentisse era por causa da covid. Também recebi notícias que vacina causava a doença por deixar a pessoa com os sintomas, então eu demorei muito tempo para me vacinar por insegurança.
Estudos internacionais também registraram a disseminação de informações falsas associadas ao vírus, medicamentos, tratamento e prevenção, o que repercutiu em dificuldades ainda mais intensas para o enfrentamento e controle da doença(16). Adicionalmente, outros estudos desenvolvidos na França e Espanha, que avaliaram a interferência das Fake News na vacinação contra a Covid-19, constataram um alto grau de hesitação e insegurança, essencialmente naqueles que relataram não serem capaz de detectar as falsas informações(19-20).
Salienta-se que outros fatores como a limitação de recursos e métodos de tratamento, a capacidade do coronavírus em sofrer mutações e, por fim, o colapso nos sistemas de saúde globais – que operaram além da sua capacidade diante da intensa sobrecarga – são aspectos que intensificam o surgimento de sentimentos como aflição, ansiedade e sobrecarga mental no decurso da pandemia(1-4,21-22).
E2 – Eu e minha família ficamos muito aflitos, porque é uma doença que não tem tratamento, os sintomas são agressivos, os hospitais estão lotados e não recebem mais ninguém.
E4 – Eu sentia muito estresse e ansiedade por saber que pode vir novas ondas dos vírus após sofrer mutações, ainda mais porque os hospitais estavam lotados. Um pesadelo que não acaba mais.
E10 – Os hospitais lançavam comunicados que todos os leitos estavam ocupados, atingindo sua capacidade máxima. Eu pensava e se eu ou alguém da minha família pegar a covid, o que iriamos fazer? Foi muito angustiante.
O registro da ocorrência desses sentimentos é congruente com a literatura, pois, estudos internacionais observaram o aumento de ansiedade, depressão e sofrimento psicológico em função da pandemia e suas repercussões negativas na sociedade(21,23).
Somado a isso, outras pesquisas conduzidas na América, Ásia e Europa apontam que a exposição a esses fatores, principalmente quando associado a vivência do luto, é um fator traumático determinante que intensifica o surgimento de alterações emocionais e psíquicas no contexto da pandemia da Covid-19(24-28). Destaca-se que os entrevistados relataram que seus familiares receberam a confirmação do diagnóstico da Covid-19 a partir da sintomatologia sugestiva e testes laboratoriais. Neste estudo, percebe-se que após diagnóstico, os entrevistados sentiram-se angustiados, apresentando medo de serem contaminados ou por outros membros da rede socioafetiva, principalmente, após a necessidade de hospitalização, rápida piora do quadro clínico e a evolução para óbito de pessoas queridas, conforme observado nas falas a seguir:
E3 – Eu não sabia o que fazer. Foi um impacto que abalou muito o meu psicológico, principalmente após a internação da minha irmã. Mesmo sabendo que esse vírus poderia custar a vida dela, nunca imaginava que ela não conseguisse resistir. Tive muito medo de perder mais alguém.
E6- Eu e minha família ficamos muito abalados, aconteceu tudo muito rápido. Pouco tempo depois da entrada no hospital, recebemos a notícia que ele havia piorado muito. Após a morte dele ficamos traumatizados e com medo de perder mais alguém… sim, isso fez nós dobramos os cuidados preventivos.
E7 – Quando deixamos ela internada no hospital, tive muito medo de perder ela e também de pegar a doença. Foi a pior angústia que senti na vida.
E11 – Os sintomas não estavam tão fortes, mas de repente eu e minha família ficamos muito abalados pela rápida piora e óbito. Havia muita esperança de melhora e retorno dele para as nossas vidas, mas depois de tudo, sentíamos muito medo por nossa família.
E14 – Quando os sintomas iniciaram deixaram todos na família desesperados. Ver alguém que você ama parecendo que está sendo sufocado por falta de ar é umas piores sensações. Senti muito medo dessa doença.
Vale ressaltar que o medo – mecanismo de defesa adaptável e fundamentado na sobrevivência do humana – é capaz de influenciar no comportamento de saúde da população, na medida em que influencia uma maior e constante adoção de cuidados preventivos e, consequentemente, reflete em um menor risco de contaminação e de propagação da doença. Por outro lado, pode se tornar um fator prejudicial à saúde mental, pois quando o medo assume um caráter crônico ou desproporcional, torna-se um componente, potencialmente, preditivo para o desenvolvimento de alterações psiquiátricas que dificultam a convivência e aceitação do luto (26-28).
Luto prolongado associado às restrições impostas pela pandemia
O luto é um processo complexo e heterogêneo, o qual transcorre e se manifesta de múltiplas maneiras, sujeito a sofrer processos de variação e modificação psicocultural. Vivenciar um luto inesperado e sem despedida dos seus entes queridos é um fator traumático que afligiu muitas famílias no decurso da pandemia da Covid-19 (5,24-25). Além disso, o processo de enfrentamento do luto é permeado por sentimentos de culpa e/ou impotência que geram impactos negativos na saúde psicológica das famílias e prejudica a aceitação e a convivência com a perda, principalmente, quando inesperada. Entende-se que o processo de luto seja bem-sucedido é necessário o reconhecimento de uma realidade fundamentalmente alterada(5,26-27).
Nessa direção, as famílias enlutadas das vítimas da Covid-19 estão entre os grupos sociais mais vulneráveis do ponto de vista psicológico frente à pandemia(5-8,28). Estudos internacionais revelaram que, diante a necessidade de distanciamento social, as famílias das vítimas foram, obrigatoriamente, impossibilitadas de acompanhar ou visitar, presencialmente, seus entes queridos durante o processo de hospitalização, sendo necessário utilizar plataformas de comunicação virtual para falar com os familiares e receber notícias referentes ao quadro clínico. Adicionalmente, os autores alertam que as restrições funerárias prejudicaram o ato de despedir-se tradicionalmente conforme cada cultura e, por consequência, esse fator pode desencadear a um transtorno de luto prolongado e dificuldade em conviver com a situação, especialmente entre as famílias mais vulneráveis(29-31). De modo congruente com a literatura, este estudo registrou discursos de indivíduos que vivenciaram essa situação, conforme expressado nas falas a seguir:
E1 – É uma ausência muito grande, uma dor que não passa. Não tive a oportunidade nem de me despedir dele. Não consigo ser eu mesmo após a perda dele.
E6 – Desde a internação não pude nem sequer vê-lo. Sinto muita angústia e tristeza. Não tenho vontade de seguir em frente sem ele. É difícil de ter até o apoio da família, pois precisamos nos proteger mantendo o isolamento.
E7 – É como se tivesse tirado uma parte de mim, não consigo acreditar no ocorrido, não esperávamos que pudesse acontecer. Tive depressão… é uma dor que parece que não vai passar nunca.
E9 – Está sendo muito difícil, ainda mais porque a pandemia não acabou e não podemos deixar de tomar as medidas de prevenção. Sinto que o espaço deixado por ele, nada ocupará ao longo dos anos.
E13 – Sinto um vazio enorme no peito, sem conseguir lidar com a perda… foi muito difícil para minha família não poder fazer um velório e enterro digno para despedir dele.
Considera-se que a natureza inesperada e, muitas vezes, rápida das mortes por Covid-19, associado com as restrições de vida e fatores estigmatizantes impostos pela pandemia, tornam complexo o processo de luto e dificultam a adoção de estratégias eficazes para lidar com a perda em comparação com períodos não pandêmicos(26-28,30-31). Restrições relacionadas à pandemia, como o distanciamento social e indisponibilidades de atividades comunitárias, atrapalham a busca por medidas de enfrentamento consideradas adaptativas após uma perda e, por outro lado, aumentam as estratégias de evitação, tal como uso de substâncias, negação da perda e isolamento/solidão. Estudos revelaram que esses comportamentos foram associados a um enfrentamento do luto menos saudável no contexto da pandemia(32).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo possibilitou analisar os fatores estressores relacionados ao enfrentamento da pandemia e do luto em famílias vítimas da Covid-19, e discutir os potenciais impactos na saúde mental descritos na literatura. Considera-se que enfrentar a pandemia representa desafios significativos diante da intensa propagação de Fake News camufladas pelo processo de infodemia. Nessa perspectiva, considerando a continuidade da pandemia e potenciais situações semelhantes no futuro, os profissionais de saúde e suas respectivas instituições de atenção à população possuem um papel vital em transmitir informações de saúde seguras e científicas às comunidades.
Além disso, ressalta-se que vivenciar o luto durante o contexto pandêmico imprime restrições importantes – em função da necessidade de isolamento social – nas etapas que vão desde a hospitalização ao processo pós-funeral. Reconhecer as distinções de vulnerabilidade social dos diversos grupos populacionais é fundamental para compreender os mecanismos e as repercussões deste processo na saúde biopsicossocial e pública.
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¹Faculdade de Saúde e Humanidades Ibituruna.
²Universidade Estadual de Montes Claros.
³Universidade Norte do Paraná.
⁴Centro Universitário do Norte de Minas.
⁵Centro Universitário do Distrito Federal.