O JUIZ DAS GARANTIAS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7674363


Letícia Ábrego Barbosa¹
Rogério Alves Dias²


RESUMO

O presente artigo analisará, por uma ótica garantista, a implementação da figura do juiz das garantias, instituto que surgiu com o advento da Lei 13.964/2019 – também conhecida como “Pacote Anticrime” – no processo penal brasileiro, com a intenção de questionar a sua real necessidade, forma de aplicação e constitucionalidade. Por ser uma figura já conhecida e implementada em outros países, é indispensável uma análise de Direito Comparado para trazer os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais neles adotados.

Palavras-chave: Juiz das Garantias. Garantismo Penal. Direito Comparado. Direito Penal. Processo Penal. Direito Constitucional. Inquérito Policial. Investigação Preliminar.

INTRODUÇÃO

Na intenção de aperfeiçoar a legislação penal e processual penal, a Lei 13.964/2019, também conhecida como “Pacote Anticrime”, foi sancionada pelo Presidente da República Jair Bolsonaro em 24/12/2019 e deveria ter entrado em vigor 30 dias após a sua publicação, no dia 23/01/2020. Ocorre que, após algumas reviravoltas no cenário político-institucional, foi concedida Liminar na Medida Cautelar nas ADI’s 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 pelo Min. Luiz Fux em 22 de janeiro de 2020, para suspendê-la. Sendo assim, encontra-se suspensa (por prazo ainda indeterminado, tendo em vista que sucessivas decisões judiciais têm postergado a entrada em vigor do dispositivo) a eficácia do artigo 3º-A, que prevê a implementação do instituto que será discutido no presente artigo.

Nada obstante a suspensão do dispositivo, o artigo abordará um tema que merece reflexão, tendo em vista a inovação que representa para o sistema jurídico brasileiro.

A supracitada lei trouxe diversas modificações importantes, mas uma delas gerou grande polêmica no meio jurídico e acadêmico em torno da sua real necessidade e conveniência. Trata-se do juiz das garantias. Muito embora ele tenha sido introduzido com essa lei, já havia proposta de inclusão do instituto na reforma do Código de Processo Penal (PLS 156/2009)³, ou seja, antes mesmo de haver um dispositivo concreto tratando da figura do juiz das garantias, que já era discutida e debatida pelo legislador brasileiro.

Ademais, embora somente conste agora do Código de Processo Penal, o juiz das garantias já estava sendo implementado em alguns estados, o que significa que era possível encontrar, então, figuras similares em lugares específicos como é o exemplo do Estado de São Paulo que implementou o instituto há 36 anos.

A despeito das críticas tecidas contra o instituto, em uma visão garantista, o juiz das garantias surge para suprir uma demanda do sistema de justiça brasileiro e prevenir eventual parcialidade dos magistrados. Operações como a Lava Jato e, em especial, ações que envolviam a colaboração premiada, por exemplo, deram ainda mais espaço para a criação e a implementação dentro do ordenamento de uma figura como a do juiz das garantias.

Percebe-se, portanto, que a função do juiz das garantias é atuar como garantidor dos direitos do acusado no âmbito do processo penal. Desse modo, o presente artigo buscará evidenciar de que maneira o escopo da figura do juiz das garantias se coaduna o sistema constitucional brasileiro, assim como qual será o impacto de seu estabelecimento em nosso país.

1 – DA NECESSIDADE DE OBSERVAÇÃO E APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS 

O sistema processual penal brasileiro, em função do disposto no artigo 129, I, da Constituição Federal, assume a feição de um sistema acusatório e parte da premissa de que o processo é uma relação jurídica triangular composta por juiz, acusação e réu, sendo o órgão julgador inerte. A inércia, aliás, tem por objetivo/finalidade resguardar a imparcialidade do juiz. De acordo com o modelo persecutório penal brasileiro, portanto, há uma distinção clara entre acusador e julgador, em proteção aos princípios processuais constitucionais.

Os principais princípios processuais trazidos pela CF/88, decorrentes da cláusula geral do due processo of law (art. 5º, LV, CF/88), são: contraditório, ampla defesa, publicidade, juiz natural, promotor natural, motivação (art. 93, IX) e paridade de armas (igualdade).

A igualdade entre as partes somada à inércia e imparcialidade do juiz são os principais pilares que estruturam o modelo acusatório, mas para que ele seja instaurado sem que o devido processo legal seja ferido, outros princípios também são essenciais, como por exemplo, os princípios do contraditório e ampla defesa, liberdade dos meios de prova, livre convencimento motivado ou persuasão racional, publicidade, oralidade e concentração, juiz natural e etc. Nesse caso, é necessário explicar como cada um deles se aplica no processo penal brasileiro.

Antes, porém, de adentrar na figura dos princípios mencionados, é necessário observar que a junção de todos eles e até mesmo de outros princípios formam o devido processo legal, um dos princípios constitucionais mais importantes e que está previsto no artigo 5º, LIV, da Constituição Federal conforme elencado abaixo:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;” (grifo nosso)

Segundo Miguel Reale, princípios são “verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade”. Por conta disso, o princípio do devido processo legal é o princípio processual fundamental da ordem jurídica brasileira.

Nesse sentido, Nelson Nery Júnior afirma que o devido processo legal “nada mais é do que a possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo pretensão e defendendo-se do modo mais amplo possível”.⁶ Importante ressaltar também a existência do substantive due process of law, ou seja, a aplicação desse princípio abrange não só o direito processual como também o direito material.

Após essa pequena introdução, passa-se ao exame dos princípios acima mencionados, com a intenção de contextualizá-los com o modelo acusatório brasileiro, a fim de demonstrar a necessidade de observação e aplicação de todos eles para que o devido processo legal seja assegurado.

1.1 Princípios do contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV, da CF)

Um dos principais princípios do direito brasileiro está previsto no artigo 5º, LV, da Constituição Federal, que consagra “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

            O Professor Doutor Aury Lopes Jr., renomado jurista e criminalista, assevera que o princípio do contraditório⁷:

“O contraditório pode ser inicialmente tratado como um método de confrontação da prova e comprovação da verdade, fundando-se não mais sobre um juízo potestativo, mas sobre o conflito, disciplinado e ritualizado, entre partes contrapostas: a acusação (expressão do interesse punitivo do Estado) e a defesa (expressão do interesse do acusado [e da sociedade] em ficar livre de acusações infundadas e imune a penas arbitrárias e desproporcionais). É imprescindível para a própria existência da estrutura dialética do processo.”

De acordo com a lição do autor, portanto, o contraditório se consubstancia no elemento primordial que deve nortear o sistema acusatório brasileiro, sendo imperioso que o acusado não seja julgado sem que o Estado-juiz lhe oportunize a chance de participar efetivamente do processo, produzindo as provas que julgar pertinentes para a sua defesa e tendo acesso a todos os elementos da acusação (inclusive provas).

1.2 Princípios da motivação das decisões judiciais (Art. 93, IX, da CF)

No que se refere ao princípio da motivação das decisões judiciais, que está previsto no artigo 93, IX, da Constituição Federal, dispondo que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.

O princípio da motivação é uma das principais garantias do cidadão contra os arbítrios do Estado, na medida em que obriga os órgãos públicos a demonstrarem as razões que os impeliram a tomar determinada decisão. É a partir da motivação que o acusado, no processo penal, toma conhecimento dos elementos de convencimento que o magistrado adotou para condená-lo.

Em perspectiva completa, a fundamentação judicial permite que o recorrente saiba sobre quais fundamentos deverá recair sua peça recursal. Dessa forma, a motivação é, assim, princípio basilar do Estado Democrático de Direito.

1.3 Princípio do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII, da CF)

O princípio do juiz natural advém de garantias constitucionais e está presente no artigo 5º, XXXVII e LII, da Constituição Federal, em que prevê que “não haverá juízo ou tribunal de exceção e que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Gustavo Badaró evidencia que “o escopo ou a finalidade do juiz natural é assegurar a imparcialidade do julgador”⁸, ou seja, o princípio do juiz natural visa efetivar a necessária imparcialidade naquele indivíduo que é o principal responsável pela análise de um processo, estabelecendo-se um julgador previamente constituído em tal função, e, obviamente, atendendo em todo esse processo o princípio da legalidade.

Nesse mesmo sentido, Nucci aduz que “inicialmente, estabelece-se o juiz competente para determinadas causas; após, concretizando-se a infração penal, busca-se o juízo certo, sem qualquer escolha ardilosa ou de má-fé. Dessarte, o juiz natural impede que sejam criados tribunais ad hoc e que juízes que tenham interesse em determinada causa não possam julgá-la.

1.4 Princípio da imparcialidade

Por último, mas não  menos importante – até porque todos os princípios tratados aqui são essenciais, advindos da própria Constituição Federal – é  de suma importância abordar o princípio da imparcialidade, lembrando que este não possui previsão constitucional expressa (a não ser no próprio juiz natural) e por conta disso é necessário buscar a contribuição das convenções internacionais de direitos humanos, jurisprudências de cortes internacionais e até mesmo pactos relevantes.

Gustavo Badaró afirma a importância de analisarmos a imparcialidade em um contexto objetivo e apresenta a seguinte conclusão¹⁰:

“A imparcialidade objetiva do juiz resta evidentemente comprometida quando o magistrado realiza pré-juízos ou pré-conceitos sobre o fato objeto do julgamento. Aliás, a imparcialidade é denominada “objetiva” justamente porque deriva não da relação do juiz com as partes, mas de sua prévia relação com o objeto do processo.”

Sendo assim, torna-se imprescindível tratar sobre questões como imparcialidade e juiz das garantias, o que será feito mais precisamente ao final do texto e após algumas reflexões extremamente necessárias sobre o tema, visando sempre a aplicação de todos os princípios anteriormente mencionados nessa breve introdução do tema.

2 – REFLEXÕES ACERCA DO JUIZ DAS GARANTIAS COM O ADVENTO DA LEI 13.964/2019 E SEUS IMPACTOS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

2.1 Conceito e fundamentos

Nos projetos de reforma do Código de Processo Penal, a figura do juiz das garantias já surgia e vinha sendo questionada. Inclusive, grande parte dos magistrados, em especial da Justiça Federal, tem certa oposição a ele por entenderem que existe uma dificuldade de implementação desse instituto.

Frise-se que o juiz das garantias é o juiz que possui o dever de atuar como verdadeiro garantidor de direitos do acusado no processo penal e de assegurar que a imparcialidade do juiz que irá julgar o mérito prevaleça.

Ele é um juiz, portanto, que terá competência única e exclusivamente para cuidar da fase chamada de pré-processual, que é uma fase de investigação, ou seja, ele vai ser o responsável por gerenciar toda essa fase até que o inquérito policial seja concluído e apresentada a denúncia para um magistrado comum que vai julgar o processo.

2.2 Objetivos

Importante acrescentar que de acordo com o CPP, a investigação policial dá-se por meio do inquérito policial, que é remetido, pela lei, ao juiz, para que ele abra vista ao Ministério Público, cabendo a este verificar se é caso de oferecer a denúncia, devolver os autos do inquérito para a delegacia ou se é caso de requerer o arquivamento.

A título de exemplo, vamos supor que o Ministério Público venha a oferecer a denúncia ao juízo e o processo então é destinado, por sorteio, ao juiz da 5ª Vara Criminal da comarca X. Uma vez oferecida a denúncia, esse juiz decide se é  caso de recebê-la (nesse caso, o processo é instaurado e segue em frente) ou rejeitá-la. Se ocorrer a rejeição da denúncia, nasce para o Parquet a possibilidade de recorrer em sentido estrito (Recurso em sentido estrito-RESE, art. 581 do CPP).

Em um primeiro momento, o juiz pode rejeitar uma denúncia ou queixa por ausência das condições da ação, por falta dos pressupostos processuais ou até mesmo por falta de justa causa, mas desde logo ele pode entender (embora a lei não faça previsão) que a conduta é atípica. Se o juiz rejeitar a denúncia em função da atipicidade da conduta, significa que não há, por exemplo, possibilidade jurídica do pedido ou falta de interesse em agir. Não existe razoabilidade quando um juiz recebe a denúncia somente pelo fato de que a lei não fez previsão para hipóteses de atipicidade.

No tocante ao RESE, o recurso subirá para o Tribunal que, ao analisar a admissibilidade e o mérito do recurso que sustentava a impropriedade da decisão combatida, poderá reformá-la. Obviamente, o acórdão que reforma a decisão de rejeição da denúncia passa a configurar o recebimento da peça acusatória, ou seja, interrompe a prescrição e substitui a decisão proferida pelo magistrado da 5ª Vara Criminal e o processo é instaurado, conforme exemplo citado. Sendo assim, após todo esse processo, de acordo com a lei, os autos retornam para o mesmo juiz que havia se pronunciado no sentido da atipicidade da conduta, ou seja, o juiz que desde o início da ação penal entendia pela atipicidade da conduta terá, então, que conduzir todo este processo e ao final proferir sentença.

A crítica que deve ser  observada quanto a esse procedimento consiste na viabilidade e necessidade de um juiz que entendeu de modo diferente do Tribunal dever continuar a cuidar do caso, pois sabendo-se que atipicidade é mérito e que dificilmente ele mudaria de ideia quanto a esse ponto, seria mais adequado que um novo juiz assumisse a causa e talvez, sendo assim criada uma espécie de prevenção negativa.

Em uma situação como essa, em que o Tribunal reforma a decisão, recebendo a denúncia então rejeitada, o mais adequado seria a redistribuição do feito para outro juiz diferente do que havia se manifestado sobre o mérito da questão. Caso assim não fosse, o juiz que proferiu a primeira decisão (de atipicidade) seria de certa forma parcial e não conseguiremos dizer se essa parcialidade pode prejudicar/atrapalhar o restante da ação penal.

Com isso, é possível perceber que não se trata só de uma questão de proteção do réu, mas também da acusação e das partes de um modo geral, pois a imparcialidade do julgador é imprescindível para o julgamento da causa nos sistemas acusatórios estabelecidos por Estados Democráticos de Direito. Perceba-se que mesmo o viés do juiz sendo pela atipicidade da conduta, o que resultaria na absolvição do réu, a sociedade também tem direito a um juiz imparcial no momento da aplicação de penas.

Esse exemplo demonstra claramente que, no momento em que um juiz se manifesta de alguma forma sobre o mérito, está comprometida a sua imparcialidade para julgamento, ressaindo daí, justamente a necessidade de se criar um juiz diferente para análise da denúncia.

O que se quer do juiz das garantias, nesse sentido, é um juiz que vá atuar antes da instrução probatória. Ele é um juiz que, obviamente, se diferencia por não ter a sua imparcialidade comprometida porque não vai proferir a sentença, sendo este pronunciamento de competência de um outro juiz, que fundamentará sua decisão com base nas provas que foram colhidas durante a fase de instrução.

2.3 Da figura do juiz das garantias frente ao inquérito policial e uma análise do artigo 3º-C, da Lei 13.964/2019

Ao analisar a Lei 13.964/2019, chama atenção um ponto específico, constante do artigo 3º-C, §3º, que assim dispõe:

“Art. 3º-C A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código.
(…)
§ 3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado.”

Esse artigo consagra um grande avanço e ao mesmo tempo aborda a questão da exclusão física dos autos do inquérito ou da não inclusão dos autos do inquérito. Essa medida é muito importante porque traz a necessidade de se debater o que são atos de investigação e atos de prova.

Atos de investigação são aqueles atos realizados na fase pré-processual, ou seja, no inquérito policial, e são feitos pela polícia ou pelo Ministério Público, sem jurisdicionalidade porque são praticados pela autoridade policial, com limitação de defesa e contraditório, com restrição de publicidade, e, portanto, tem uma função endoprocedimental apenas por estarem dentro de um processo.

Esses atos servem, primeiro, para justificar as medidas internas da própria investigação, ao próprio procedimento investigatório como, por exemplo, um pedido de busca e apreensão, um pedido de quebra de sigilo bancário/fiscal/telefônico, uma prisão preventiva ou temporária. Tudo isso vai ser feito com base nesses atos de investigação porque são medidas de natureza cautelar, provisória, temporária.

A investigação como um todo serve para apurar a fumaça de autoria, o “fumus commissi delicti” (fumaça da prática de um delito), e também da materialidade para que o Ministério Público decida se vai denunciar ou arquivar aquele processo. Em suma, a investigação não serve para condenar ou absolver ninguém, senão para decidir se haverá acusação a uma pessoa ou não. Uma vez que o órgão acusa, aí sim se dá origem aos atos de prova.

No que se refere aos atos de prova, é preciso entender primeiro o que é a prova. Prova é o que se produz no processo diante do juiz em contraditório pleno, respeitando os princípios da ampla defesa, da publicidade e se destina ao juiz e à sentença que vai decidir pela condenação ou absolvição do acusado.

Como os atos de investigação têm uma função limitada, eles podem e admitem restrição de contraditório e ampla defesa. Já para condenar ou absolver, e, nesse caso espacialmente para condenar, é preciso ter jurisdicionalidade, ou seja, a presença do modelo acusatório composto pelo juiz, com observância dos princípios da ampla defesa e do contraditório de maneira plena.

Cabe ainda firmar uma crítica à redação arcaica do artigo 155, do Código de Processo Penal, que tem uma ligação direta com o posicionamento dos juízes nesse caso. Vejamos: 

“Art. 155.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.”

Quando se lê “exclusivamente”, podemos interpretar a utilização dessa palavra no texto do artigo como uma tentativa de “fraude”, pois na ausência de provas suficientes para a condenação no processo, o juiz segue buscando. Ora, se existem provas suficientes, ele condenaria com base na prova, mas se não tem, absolveria, ou seja, a partir dessa análise, é possível notar que ele quer condenar mesmo quando não tem prova suficiente no processo.

O juiz então busca o inquérito na investigação preliminar – que, como já observamos, não serve para isto – na intenção de buscar aqueles elementos para somar investigação com processo e poder finalmente condenar.

Importante ressaltar que quando um juiz usa termos como “cotejando os elementos de prova com os atos do inquérito” ou “os atos do inquérito são corroborados” e esse tipo de recurso linguístico do “corrobora”, “cotejando”, a impressão que fica é a de como se ele estivesse dizendo que não tem prova produzida em contraditório e é por isso que deve buscar no inquérito, essa coisa híbrida e mal formada que nós temos para condenar. A única maneira que nós temos para garantir que uma pessoa vai ser julgada com base na prova é ter somente a prova para decidir.

Logo, não deixar que os elementos do inquérito contaminem de maneira consciente ou não o julgador é a melhor saída e é por isso que o artigo 3º-C em seu § 3º avança quando diz que “os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, (…)”, ou seja, todos esses atos de investigação que ficam sob competência do juiz das garantias, como é o caso do inquérito, ficarão acautelados na sua própria secretaria.

Por fim, na segunda parte ele estabelece que os autos ficarão “(…) à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado”.

O que o dispositivo apresenta é o seguinte: tudo o que foi feito na fase pré-processual, ou seja, quando o juiz da garantias, por exemplo, recebe a denúncia e em um segundo momento ratifica o recebimento, não absolve e então encaminha para o juiz do processo, isso significa que ele não “pega” todo o inquérito e manda para o juiz do processo porque agora a prática mudou, a lei mudou e para isso é necessário haver uma mudança cultural para que as práticas também mudem, se atualizem, renovem.

A partir de agora, o juiz das garantias, na função de saneador, vai separar apenas algumas peças como a denúncia, a decisão que recebeu recebimento da denúncia, a decisão que decretou uma prisão cautelar e que depois o juiz do processo vai ter que revisar, vai separar o necessário junto com as provas técnicas repetíveis e fazer uma espécie de dossiê (podemos inclusive dizer que são autos apartados) para então remeter ao juiz do processo todo o resto.

Nesse caso, aquelas testemunhas que foram ouvidas na época da investigação, por exemplo, não vão mais “contaminar o processo”, pois tais informações vão ficar acauteladas no cartório do juiz das garantias à disposição das partes para terem acesso, mas não vão mais integrar os autos na intenção de que o juiz tenha a máxima originalidade cognitiva e julgue com base naquilo que é produzido na audiência, bem na frente dele e não com base em peças que compõem o inquérito. Essa é uma mudança processual que exige uma mudança radical de cultura e das práticas que precisam ser interiorizadas.

Por fim, cabe demonstrar que existe então uma possível forma de burlar as regras por parte do Ministério Público no seguinte exemplo: o Ministério Público pode dizer que, já que não juntaram essas testemunhas do inquérito no processo, vão tirar cópia para juntar como se fossem documentos, mas o que acontece é que ele não pode fazer isso porque essa ação seria uma clara violação ao disposto no artigo como regra e seria então uma ilegalidade. A redação diz que as peças não poderão ser apensadas ao processo nem pelo juiz e nem pelas partes e a violação desse dispositivo gera nulidade processual.

3 – O JUIZ DAS GARANTIAS COMO FORMA DE PRESERVAR A APLICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CIDADÃO

3.1 ADI 6.298 e a seus impactos

As discussões acerca do juiz das garantias no Supremo Tribunal Federal fizeram com que emergissem diversas críticas (tanto positivas quanto negativas) e contradições apontadas por boa parte dos juízes e principalmente juízes federais.

Ao se manifestar sobre o tema, o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), Fernando Mendes, ressaltou o seguinte em uma entrevista para o site Conjur¹¹:

“Em relação ao juiz de garantias, tema mais polêmico do pacote, embora a posição da Ajufe fosse contrária ao instituto, uma vez incorporado ao Processo Penal pela Lei 13.964/19, o importante agora é a sua regulamentação. Ela terá de ser uniforme. Não faz sentido ter juiz de garantias apenas nas Capitais e para os crimes de colarinho branco. Se o instituto é importante, tem se ser aplicado para todos, seja nos processos da lava jato, seja nos processos de crimes comuns, que são milhares e que tramitam no interior do país e que precisam ter as mesmas garantias. A Justiça Federal terá de redesenhar a estrutura de sua competência penal para tornar isso possível e Ajufe vai colaborar nessa agenda”. (grifo nosso)  

Do mesmo modo, a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), divulgou uma nota onde também se posiciona contra a figura do juiz de garantias. Vejamos:

A implementação do instituto “juiz de garantias” depende da criação e provimento de mais cargos na Magistratura, o que não pode ser feito em exíguos trinta dias, prazo da entrada em vigor da lei. A instituição do “juiz de garantias” demanda o provimento de, ao menos, mais um cargo de magistrado para cada comarca — isso pressupondo que um único magistrado seria suficiente para conduzir todas as investigações criminais afetas à competência daquela unidade judiciária, o que impacta de forma muito negativa todos os tribunais do País, estaduais e federais”. (grifo nosso)

Menciona-se, também, alguns trechos importantes retirados diretamente da ADI 6.298 na qual o Ministro Luiz Fux, relator das ações ajuizadas contra vários dispositivos da Lei, suspende por tempo indeterminado a eficácia das regras do Pacote Anticrime que instituem a figura do juiz das garantias.

Segundo notícia publicada no site do Supremo Tribunal Federal em 22 de janeiro de 2020¹², o ministro afirma em sua decisão “que a implementação do juiz das garantias é uma questão complexa que exige a reunião de melhores subsídios que indiquem, “acima de qualquer dúvida razoável”, os reais impactos para os diversos interesses tutelados pela Constituição Federal, entre eles o devido processo legal, a duração razoável do processo e a eficiência da justiça criminal.”.

Além disso, entende o ministro, em análise preliminar, que “a regra fere a autonomia organizacional do Poder Judiciário, pois altera a divisão e a organização de serviços judiciários de forma substancial e exige completa reorganização da Justiça criminal do país, preponderantemente em normas de organização judiciária, sobre as quais o Poder Judiciário tem iniciativa legislativa própria”.

Em relação às questões de autonomia financeira (uma das críticas mais relevantes feitas pelas pessoas que não concordam com a implementação desse “novo” juízo), o ministro salientou que “a medida causará impacto financeiro relevante, com a necessidade de reestruturação e redistribuição de recursos humanos e materiais e de adaptação de sistemas tecnológicos sem que tenha havido estimativa prévia, como exige a Constituição. Ele salientou a ausência de previsão orçamentária inclusive para o Ministério Público, cuja atuação também será afetada pelas alterações legais”.

Por fim e a título de informação processual, a notícia também explica que “com a decisão, fica revogada liminar parcialmente concedida pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli, que, entre outros pontos, prorrogava o prazo para implementação do juiz das garantias por 180 dias.”.

Além do Ministro Luiz Fux, o ex Ministro da Justiça, Sérgio Moro e magistrados (principalmente federais) também são contra a implementação do juiz das garantias no sistema penal brasileiro.

3.2 Das contradições existentes entre Europa e Brasil

Para fortalecer a aplicação do garantismo no âmbito do processo penal, criou-se na Espanha, o juiz das garantias onde é processualmente conhecido como um juiz instrutor que preside a fase investigativa do processo. Importante ressaltar que esse juiz atuará na fase que antecede o processo penal acusatório e sua participação se encerrará ao término da investigação criminal. A fim de ilustrar esse sistema para que a distinção entre a fase de investigação e a fase de instrução e julgamento (como seria aqui no Brasil) seja estabelecida demonstrando que cada fase é presidida por um juiz e que cada um tem a sua devida competência. O artigo 622 do Código de Processo Penal espanhol que prevê que Practicadas las diligencias decretadas de oficio o a instancia de parte por el Juez instructor, si éste considerase terminado el sumario, lo declarará así, mandando remitir los autos y las piezas de convicción al Tribunal competente para conocer del delito.”

Segundo uma coluna de opinião com o tema “Juiz das garantias trará estrita legalidade ao processo penal” escrita por Cecília Mello e Celso Cintra Mori, em fevereiro de 2020, o direito comparado é essencial na análise da implementação do juiz de garantias em nosso país.

Em seu texto, os autores ressaltam a eficiência e o modus operandi desse juiz ou de algo bem similar a ele em países como Itália, Portugal e Alemanha como podemos observar abaixo em alguns trechos¹³:

“Na Itália, o artigo 328 do Código de Processo Penal prevê, desde 1989, o juiz das apurações preliminares (giudice per le indagini preliminari), em substituição ao antigo juiz de instrução. Contrariamente ao anteriormente existente juiz de instrução, que tinha iniciativa probatória, o juiz das apurações preliminares italiano é um juiz de garantia da legalidade dos procedimentos que se tornem necessários em relação ao acusado.
(…)
Em Portugal o juiz de instrução, previsto no artigo 17 do Código de Processo Penal de 1987, exerce todas as funções jurisdicionais de investigação, mas deixa de ter jurisdição sobre o caso quando o processo é remetido ao juiz que terá competência para julgá-lo.
(…)
Na Alemanha, o Código de Processo Penal (Seção 162) prevê a função do juiz investigador que tem competência para tomar as decisões da fase preliminar do processo, que possam afetar os direitos fundamentais dos investigados. Faz parte das suas funções controlar as atividades dos outros órgãos de investigação. (…)”

Ainda na notícia, os autores aproveitam para tratar sobre questões que divergem diretamente em pontos específicos do posicionamento do Ministro Luiz Fux, como, por exemplo, questões que versem sobre a matéria financeira e apresentam dados numéricos que demonstram que o argumento utilizado por ele sequer é viável, mas sim contraditório:

“Suponha-se que o Brasil tenha 8 mil juízes criminais e 8 milhões de procedimentos penais. O custo de remuneração desses 8 mil juízes e dos atos e materiais necessários para conduzir 8 milhões de processos deverão ser os mesmos, quer o trabalho entre eles seja dividido por processo, cada juiz presidindo as duas fases de mil processos até à sentença de primeira instância, quer o trabalho entre eles seja dividido por fases do processo, de forma que cada juiz cuidará de uma única fase de dois mil processos. Evidentemente, e não se pode desconhecer a necessidade de organização das estruturas administrativas, tudo dependerá da reorganização dos serviços judiciários que devem ser feitas pelos respectivos tribunais para adaptação à nova metodologia de condução do processo penal.” (grifo nosso)

Diferente do que foi abordado pelo Ministro, não podemos nos utilizar de questões puramente organizacionais para deixar de implementar um instituto que veio apenas na intenção de melhorar ainda mais o sistema acusatório em que vivemos. Precisamos compreender que um bom trabalho não depende só do estudo do magistrado que está por trás da decisão, mas também do ambiente em que ele vive. Não podemos aceitar que a desorganização do sistema sirva como justificativa plausível para dar continuidade à inquéritos policiais de má qualidade, prisões de inocentes e ausência do respeito às garantias e direitos fundamentais principalmente daqueles que estão sendo acusados.

            Como forma de apresentar um bom exemplo a ser seguido, apresenta-se aqui o posicionamento do magistrado, Dr. William Douglas, juiz titular da 4ª Vara Federal de Niterói, responsável pelo premiado “Processo Eficaz”¹⁴. A metodologia aplicada pelo Dr. William consiste em:

“(…) um conjunto de práticas de natureza organizacional e processual que têm como objetivo garantir, no exercício de nossas atividades judicantes, o atendimento aos princípios da finalidade, celeridade e eficiência, promovendo o resgate da credibilidade do Poder Judiciário, através do aumento da produtividade e da qualidade dos serviços por nós prestados.”

Sabendo disso, conseguimos notar que claramente o que falta no judiciário não é uma questão financeira, mas sim de pura organização interna das Varas, na busca pela otimização do tempo, celeridade e eficiência, juízes e funcionários precisam estar sempre em sintonia. O magistrado precisa compreender que ocupar uma posição como essa não é somente para sentenciar e decidir durante um litígio, mas sim de atuar também como coordenador, como gestor do seu ambiente de trabalho.

3.3 Da necessidade de implementação do juiz das garantias no Brasil

Discute-se sobre garantismo, mas poucas são as pessoas que realmente se aprofundam no tema, na intenção de descobrir o seu real significado, qual a melhor maneira de aplicá-lo (principalmente levando em consideração o momento em que vivemos atualmente no Brasil), o que torna ainda mais necessária a abordagem desse tema dentro deste último capítulo.

Segundo Luigi Ferrajolli, grande jurista italiano e um dos principais teóricos do Garantismo e/ou Garantismo Penal, este instituto é composto por “técnicas previstas no ordenamento jurídico para possibilitar a máxima efetividade de todas as normas em plena coerência com os princípios constitucionais”¹⁵.

A propósito, Ferrajoli também afirma que a imparcialidade para o juiz deve ser “um hábito intelectual e moral”, razão pela qual não deve ter o magistrado qualquer “interesse acusatório”. Para o autor, “a função judicial não pode ser contaminada pela promiscuidade entre juízes e órgãos da polícia, que só devem ter relações – de dependência – com a acusação pública.”¹⁶

Partindo desse princípio e entendendo um pouco mais o que significa garantismo e como ele cerca a figura desse juiz, verifica-se que garantismo e imparcialidade se tornam a essência dessa figura que é a protagonista deste estudo.

De acordo com os ensinamentos de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho¹⁷, “é preciso que fique claro que não há imparcialidade, neutralidade e, de consequência, perfeição na figura do juiz, que é um homem normal e, como todos outros, sujeito de sua sociedade e à sua própria história”.

A figura do juiz das garantias existe, nesse sentido, para resguardar exatamente a imparcialidade do julgador. Com isso, o que o Pacote Anticrime estabelece é um juiz que vai atuar na fase de inquérito (na forma do artigo 10, § 1º, do Código de Processo Penal), o que é fundamental, pois o juiz estaria exercendo ali uma forma de controle externo sobre a forma de atuação do Ministério Público, ou seja, as garantias do indiciado seriam também observadas em sua atuação para verificar se elas estariam sendo respeitadas ou não, dentre elas, por exemplo, a duração razoável do processo que também alcança o inquérito policial.

Da mesma forma, o juiz das garantias deveria primar pelas garantias do indiciado em fase inquisitorial e ser ele o responsável para determinar medidas cautelares. Isso significa que qualquer medida cautelar realizada na fase inquisitorial seria determinada e prorrogada por esse juiz, de forma que o juiz que for conduzir a instrução probatória e ao final proferir sentença, não se comprometa com a fase de investigação ou com as medidas cautelares ali definidas.

A instituição do juiz de garantias no processo penal está inserida em uma discussão do juiz imparcial, ou seja, para garantir que o juiz seja imparcial em um julgamento processual penal.

A imparcialidade é uma qualidade do juiz que se coloca de forma paritária e isonômica entre as partes na intenção de medir as discussões que são travadas por elas no decorrer do processo. Então, não é o tipo de juiz que vai tentar substituir a atividade do acusador ou determinar produção de prova porque precisa necessariamente ocupar uma posição equidistante.

Ocorre que, o Código de Processo Penal brasileiro foi aprovado em 1941, possui uma estrutura inquisitória que dá ao juiz várias atribuições para atuar sem ser provocado pela parte. Assim, o juiz ainda hoje pode decretar, por exemplo, medidas cautelares em desfavor do réu de ofício durante o processo, pode determinar a realização de diligências probatórias de ofício e pode condenar o réu quando o Ministério Público pede a sua absolvição, ou seja, existem várias possibilidades e funções que são operadas pelo juiz que fazem com que ele tenha uma atuação mais “protagonista”.

Diante da escolha da Constituição Federal de 1988 pelo sistema acusatório, há uma tentativa de sempre precisar compatibilizar o Código de Processo Penal com esse sistema. A tendência ou pelo menos a tentativa do legislador ordinário desde que a Constituição foi aprovada até hoje, ou seja, 30 anos depois, é de tentar adequar o código em questão a um modelo que a Constituição aprovou e isso é sempre feito em cada reforma.

A discussão sobre esse juiz que atua na fase de investigação surge porque existem várias diligências investigativas que são produzidas nas investigações policiais que interferem ou invadem de alguma forma os direitos fundamentais de algumas pessoas que estão sendo investigadas e é evidente que há um interesse público muitas vezes na persecução penal que justifica que pessoas que estão sendo investigadas tenham seus direitos restringidos, mas para restringir o direito fundamental de uma pessoa investigada, é necessário que haja autorização de um juiz.

O juiz atua na intenção de deferir ou autorizar que direitos fundamentais das pessoas que estão sendo investigadas sejam eventualmente atingidos. Essas pessoas, obviamente, gozam da presunção de inocência, ou seja, têm que ser investigadas em um ambiente que tenha o mínimo possível de restrição de direitos e o juiz tem que agir garantindo esses direitos.

Para o Brasil, a posição a ser ocupada pelo juiz das garantias é fundamental e com muita organização interna, sua viabilidade aumenta ainda mais. Além do mais, a Ordem dos Advogados do Brasil, bem como o Presidente do Supremo Tribunal Federal, que possui competência constitucional para organizar o judiciário (art. 96, II, “d”, da Constituição Federal), são figuras importantíssimas para a adoção desse instituto.

Como bem observado anteriormente, temos no Brasil uma linha inquisitorial forte onde um único juiz pode se apropriar de funções que cabem ao Ministério Público e ao delegado de polícia, muitas vezes por autorização legislativa e seguindo um modelo que eu também entendo ser ultrapassado e antiquado.

O mundo caminha ao sistema acusatório que agora foi reconhecido de certa forma na nossa legislação com a aprovação do Pacote Anticrime, ou seja, até que se entre em vigor essa alteração, o Brasil está inserido em um modelo que prestigia exageradamente a figura do juiz que investiga, processa e julga, no qual as partes acabam exercendo talvez uma função muitas vezes “figurativa”. A ideia do sistema acusatório é a de separar essas funções e isso já vinha sendo feito ao redor do mundo e também aqui na reforma anterior que chegou a ser discutida, mas acabou não avançando. 

Falar sobre juiz das garantias é também compreender que, o fato de termos uma violência crescente em face da macrocriminalidade não significa necessariamente impunidade. Além do mais, o garantismo sequer deveria ser considerado como um “aliado” da impunidade, apesar de muitos pensarem dessa forma. Garantismo não pode ser considerado um sinônimo da impunidade, pois é por meio dele que princípios, como o da imparcialidade, tomam força.

Boa parte dos profissionais do meio jurídico se dizem contra falas e posicionamentos garantistas, mas a crítica está justamente no seguinte: como havia dito anteriormente, o garantismo está inteiramente conectado com valores e princípios que norteiam a nossa constituição e os nossos direitos e garantias fundamentais quanto cidadãos, mas infelizmente essa mesma porcentagem de profissionais só “mudam de ideia” e abraçam posicionamentos como esse que deveriam estar sempre presentes no nosso dia a dia quando precisam ou quando são vítimas de sistema que sempre existiu, mas que nem todos sentem na pele.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A figura do juiz das garantias no Código de Processo Penal, ao contrário do que dizem os magistrados federais, por exemplo, parece algo que dê margem a inconstitucionalidades ou que gere um gasto financeiro muito acima do previsto, mas sim algo que vem para preservar o sistema acusatório, garantir realmente aquilo que um sistema acusatório teria como inspiração.

Sabemos que aqueles autores que possuem um pensamento conhecido como garantista defendem a figura do juiz das garantias porque uma das premissas de um Processo Penal garantista é exatamente a figura de um juiz imparcial.

Toda a teoria garantista, que surge no fim do século XX, por meio de Luigi Ferrajoli e que é fortemente sustentada por diversos autores e estudiosos do Direito Penal como um todo, busca  preservar um sistema acusatório isento e no momento em que se faz uma análise do processo penal brasileiro e daquilo que dispõe o Código de Processo Penal nos seus muitos artigos – um código arcaico e de 1941 -, por mais que tenha sofrido reformas, são reformas pontuais e que transformam esse código em uma junção do que podemos chamar de “retalhos” que acabam muitas vezes não casando com os momentos atuais em que vivemos.

O que nós temos são reformas que surgem, alteram determinado dispositivo, mas sem alterar outros que com este guardam uma certa afinidade ou relação, então essa junção de “retalhos” acaba não combinando, gerando uma certa dificuldade até mesmo no aprendizado e na compreensão dessa matéria, de interpretação dos institutos – como é o caso do juiz das garantias -, dando espaço então para infinitos recursos que chegam até o Supremo Tribunal Federal e acabam gerando também uma frustração no próprio intérprete. 

Dessa maneira, o juiz de garantias serviria para trazer mais confiabilidade às decisões – principalmente às condenatórias – porque pelo menos o juiz que está sentenciando não estaria contaminado pelos atos da investigação que foram realizados naquele momento.

O legitimador vem com uma solução interessante diante de um modelo que nós temos e que é muito pautado em provas produzidas na investigação. Em momento algum ele tira do juiz suas funções ou enfraquece o papel do judiciário, não tira do juiz esse papel que é fundamental para garantir os direitos das pessoas investigadas e determina uma função simples que melhora o processo no sentido de assegurar que o juiz atuará de forma mais imparcial e ponderada no processo penal. Além disso, aumenta as chances da defesa de ter as suas teses defensivas consideradas, como por exemplo, o reconhecimento uma ilegalidade que ocorreu na fase de investigação, muitas vezes com participação do próprio juiz – não que ele tenha tido dolo em fazer isso, mas isso pode acontecer – ou seja, tudo vem para aprimorar.

Não acreditamos ser possível que a aplicação dessa figura no processo penal venha a beneficiar crimes de colarinho branco, por exemplo. O juiz vem para cuidar das fases iniciais do processo e deliberar sobre questões principais que agregam (ex: prisões temporárias, interceptações telefônicas, etc). Entende-se isso muito mais como um fundamento retórico, no sentido de que as pessoas se convencem  e que isso é uma coisa indesejada e inconveniente do que realmente um problema de fato.

Não existe problema algum em ter um colega de profissão – até porque seria um juiz auxiliando o outro – que vai controlar a parte de investigação, receber a denúncia e encaminhar para um novo juiz. Isso significa que ele vai colher a prova que não tem contato com aquela investigação que em sua maioria ocorre sem que o acusado tenha direito de defesa, ou seja, ele vai assistir a prova e o outro juiz vai julgar. Um juiz controla a investigação e o outro faz o julgamento e é unicamente isso, ou seja, ele vai continuar sendo julgado pelo mesmo judiciário que já realiza os julgamentos. Me parece muito que a crítica vem em cima de uma insegurança perante os colegas e demais magistrados e não sobre a questão organizacional em si.

Além disso, a questão da celeridade processual também é uma crítica que, não nos parece viável, pois, por exemplo, em duas cidades próximas que possuem um juiz em cada, o juiz de garantias da cidade A é o juiz comum da cidade B e vice-versa. Existem infinitas soluções para questões de logística, mas tudo se limita a uma questão puramente organizacional e de maneira alguma deveria levantar questões como as relacionadas ao número de cargos de juízes, volume processual em uma vara, aumento dos gastos e questões similares. O juiz das garantias surge para somar e literalmente garantir que direitos fundamentais, principalmente em questões probatórias, sejam respeitados para assim dar início a um sistema acusatório justo, evitando assim até mesmo um encarceramento em massa.

REFERÊNCIAS

1. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-abr-12/limite-penal-projeto-reforma-cppao-projeto-lei-anticrime.

2. Disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/em-sao-paulo-juiz-de-garantias-ja-funciona-ha-36-anos-24174858.

3. REALE, Miguel. Filosofia do direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

4. NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 6. ed. [S. l.]: Revista dos Tribunais, [S.d.]

5. LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17ª edição. São Paulo. Saraiva Educação, 2020.

6. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. p. 11

7. NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 457;

8. Disponível em http://www.badaroadvogados.com.br/ano-2011-direito-ao-julgamento-por-juiz-imparcial-como-assegurar-a-imparcialidade-objetiva-no-juiz-nos-sistemas-em-que-nao-ha-a-funcao-do-juiz-de-garantias.html

9. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-25/advocacia-exalta-juiz-garantia-magistratura-mostra-receosa

10. Disponível em  https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=435253&ori=1

11. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-fev-03/opiniao-juiz-garantias-trara-estrita-legalidade-processo-penal

12. Disponível em https://www.premioinnovare.com.br/proposta/processo-eficaz-2334/print

13. FERRAJOLI, Luigi Derecho como sistema de garantias. 5ª. Edição. Madri. Ed. Trotta, 2006, p. 25.

14. FERRAJOLI, Luigi, Derecho y Razón – Teoría del Garantismo Penal, Madrid: Editorial Trotta, 1998, 3ª. edição, p. 580, 582 e 583 (tradução livre);

15. O novo papel do juiz no processo penal, in COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Coord.). Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro-São Paulo: Editora Renovar, 2001, p. 15;


³Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-abr-12/limite-penal-projeto-reforma-cppao-projeto-lei-anticrime. Acesso em 20 de dezembro de 20224

⁴Disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/em-sao-paulo-juiz-de-garantias-ja-funciona-ha-36-anos-24174858. Acesso em 20 de dezembro de 2022.

⁵REALE, Miguel. Filosofia do direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

⁶NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 6. ed. [S. l.]: Revista dos Tribunais, [S.d.]

⁷LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17ª edição. São Paulo. Saraiva Educação, 2020.

⁸BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. p. 11

⁹NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 457;

¹⁰Disponível em http://www.badaroadvogados.com.br/ano-2011-direito-ao-julgamento-por-juiz-imparcial-como-assegurar-a-imparcialidade-objetiva-no-juiz-nos-sistemas-em-que-nao-ha-a-funcao-do-juiz-de-garantias.html. Acesso em 22 de dezembro de 2022.

¹¹Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-25/advocacia-exalta-juiz-garantia-magistratura-mostra-receosa. Acesso em 23 de dezembro de 2022.

¹²Disponível em  https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=435253&ori=1. Acesso em 23 de dezembro de 2022.

¹³Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-fev-03/opiniao-juiz-garantias-trara-estrita-legalidade-processo-penal. Acesso em 27 de dezembro de 2022.

¹⁴Disponível em https://www.premioinnovare.com.br/proposta/processo-eficaz-2334/print. Acesso em 29 de dezembro de 2022.

¹⁵FERRAJOLI, Luigi Derecho como sistema de garantias. 5ª. Edição. Madri. Ed. Trotta, 2006, p. 25.

¹⁶FERRAJOLI, Luigi, Derecho y Razón – Teoría del Garantismo Penal, Madrid: Editorial Trotta, 1998, 3ª. edição, p. 580, 582 e 583 (tradução livre);

¹⁷O novo papel do juiz no processo penal, in COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Coord.). Crítica à Teoria Geral
do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro-São Paulo: Editora Renovar, 2001, p. 15;


¹Assessora Jurídica. Bacharela em Direito pelo UniCEUB.

²Advogado. Doutorando do Programa de Doutorado do UniCEUB. Mestre em Ciência Política, com área de concentração em Direitos Humanos, Cidadania e Violência. Especialista em Direito Público. Professor Universitário (graduação e pós-graduação).