O EXPRESSIONISMO ONTOLÓGICO: O CONCEITO DE DEUS EM BARUCH DE ESPINOSA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7308963


Autor: Péricles Ayres Schutz1


RESUMO

Baruch de Espinosa, em vão, foi acusado de ateísmo. O presente artigo tem como objetivo investigar, a partir de uma análise dos textos de Espinosa e de seus comentadores, as razões que o levaram a apresentar a definição do que é Deus e a sua respectiva essência de modo muito particular. Há um ponto de ruptura. O pensamento espinosista diferencia-se absolutamente da tradição metafísica e da concepção teológica judaico-cristã de seu tempo. Ele nos oferece não um Deus que está separado do mundo e que é a imagem e semelhança do homem. Mas, um Deus imanente, que expressa toda a potência em cada parte da Natureza. Deus está presente em tudo o que existe. O seu sistema filosófico propõe um novo sentido ontológico de vida para os homens. O desafio é demonstrar como esse Deus, de infinita potência, é capaz de libertar o mundo dessa doutrina de uma ‘ordem cósmica teleológica’ que, em último nível, é ilusória. É por isso que o Deus de Espinosa é capaz de encarar o real como ele verdadeiramente é, em sua dureza material.

Palavras-chave: Deus, Espinosa, Expressionismo, Imanentismo, Metafísica

  1. INTRODUÇÃO

O ateísmo, até o fim dos tempos modernos, era considerado um dos maiores despropósitos para o homem ocidental. Dostoiévski escreveu nos Irmãos Karamázov: “se o Deus não existe, o homem seria o senhor da terra, da criação do mundo”1. A pergunta sobre Deus e a importância da sua fundamentação para a manutenção das tradições está no centro do debate filosófico desde o famoso ‘conhece-te a ti mesmo’ enunciado por Sócrates. Sócrates, foi condenado a tomar cicuta pelos juízes atenienses por tentar corromper a ordem cosmológica de Atenas. Assim, como ele, Espinosa foi condenado pelos religiosos, expulso da comunidade judaica e tido como ateu por se opor a visão de um Deus moral e transcendente.

Ora, a questão metafísica de Deus nos atinge até os dias atuais e, dependendo da fundamentação metódica que se apresenta, relacionamo-la com existência ou não de Deus e sua conexão com o Homem; a partir dessa fundamentação, logicamente, constrói-se todo o conteúdo ontológico que tem a pretensão de justificar e dar sentido à vida humana que ostenta esse deslumbrante grau de mistério.

A investigação desse artigo se orienta pelo caminho lógico racional percorrido pela análise ontológica que Espinosa viabiliza para explicar de maneira sistemática a justificação da existência de Deus. O título Expressionismo Ontológico remete: a) ao problema central do conceito de Deus e da substância que é causa de si mesma; b) a forma como Espinosa criativamente relaciona a infinita potência de Deus com os modos finitos que dele se expressa; e c) ao modo como a compreensão de Deus que se expressa na Natureza atinge a compreensão ontológica de um Homem que valoriza a vida a partir da própria imanência divina.

Para tanto, para que o leitor compreenda em qual conjuntura se apresenta as ideias espinosistas, se abordará inicialmente, de maneira breve, a contextualização e a vida do filósofo Espinosa. Num segundo momento o leitor poderá comparar o conceito de substância descritos por Aristóteles e Descartes a fim de contrastar tais concepções com a representação de uma substância monista, ideia chave para compreender o pensamento de Espinosa.

No terceiro ponto de análise, verificar-se-á a maneira como Espinosa estrutura a substância divina. Distinguir-se-á os atributos dos modos e suas respectivas funções como fundamentação daquilo que em Deus conecta a natura naturans e a natura naturata, isto é, a relação da causa imanente e a produção dos seus efeitos.

Ademais, Espinosa nos mostra um Deus como expressão, o qual inserido num contexto imanente, manifesta-se onipotente, onipresente e onisciente. Deus cria a partir de si a existência dos entes que se relacionam. Deus é compreendido como aquilo cuja essência envolve a existência. De acordo com essa teoria, o homem se subverte e se transforma em manifestação da potência de Deus. Elimina-se o inimigo da visão antropomórfica de um Deus que nos condena ao puro ascetismo que nega as paixões e o corpo.

  1. VIDA DE BARUCH ESPINOSA2

O pensador holandês Baruch de Espinosa foi um divisor de águas para a filosofia moderna do século XVII. Suas obras apresentam uma belíssima e sistemática explicação racional sobre como a metafísica, a epistemologia e a ética estão vinculadas a uma demonstração da existência de Deus. Nascido em Amsterdã, no ano de 1632, no seio de uma família judia, teve uma vida difícil e singular. Aos seis anos de idade sua mãe faleceu. E, em 1654, ainda jovem, teve de assumir os negócios da família junto com seu irmão em decorrência da morte de seu pai. Em seguida, no ano de 1656, Baruch fora expulso da sinagoga devido as suas opiniões teológicas romperem com as ideias judaico-cristãs dos líderes religiosos da sua época. Em virtude disso, abdicou de ser um comerciante judeu e, então, começou a trabalhar como polidor de lentes, profissão a qual dedicou-se até o final de sua vida em 1677.

A atividade comercial de sua família possibilitou que Espinosa possuísse contato e acesso ao que havia de mais importante na literatura de sua época. Aprendeu latim e estudou por conta própria os sistemas filosóficos de Aristóteles, Descartes, Hobbes, Grotius, Maquiavel e boa parte da filosofia escolástica. Familiarizou-se com as teorias metafísicas, políticas e éticas de sua época, e reconheceu que as demonstrações lógicas-racionais não deveriam permanecer a rigor apenas no campo da metafísica, mas que, ao contrário, deveriam se estabelecer em áreas de natureza sociais.

Espinosa, na sua vida adulta, recusa suas riquezas e seus bens materiais e passa a viver de maneira humilde e ascética. Dedica-se a maior parte de seu tempo à reflexão e faz do conhecimento a expressão da singularidade, da superabundância e do poder de sua vida. Por volta de 1660, ainda não comprometido com o seu método geométrico, termina seu primeiro escrito, um resumo de filosofia, no qual apresenta uma ideia daquilo que seria um dos temas centrais de seu pensamento: a tese de uma ética estabelecida a partir da determinação da relação imanente entre Deus e o Homem. Em suma, Espinosa observara que as investigações filosóficas acerca de Deus deveriam partir do incondicionado, e não, de modo inverso, do intelecto humano, que é condicionado, para determinar o conceito de Deus. A realidade é que Espinosa demorou certo tempo para aperfeiçoar suas ideias filosóficas.

Em 1663, mudou-se para Voorburg onde estabeleceu diversos contatos com outros intelectuais e continuou a trabalhar e a escrever. Diante de toda sua inquietação e sua forte oposição ao conhecimento religioso e político de sua época, Espinosa decidiu escrever e elaborar sua primeira obra, o Tractatus teologico-politicus. Nesta obra, o filósofo revela as fragilidades dos pensamentos religiosos como modos de conceber a obediência e a servidão do povo como forma de balizar a liberdade. E, apesar de ter sido publicada de maneira anônima, Espinosa ficou conhecido. Logo, passa a ser perseguido e torna-se, daí em diante, cauteloso.

Sua obra mais admirável, a Ethica, foi concluída em 1675 já na cidade de den Haag. Trata-se da apresentação de seu sistema filosófico. Demonstrada à maneira do método geométrico, é caracterizada por ser uma obra de grande envergadura, crítica ao modelo racionalista cartesiano, que, por sua vez, desaprova tanto a metafísica produzida pelos ideais judaico-cristãos, quanto deprecia a constituição de uma ética que promove a servidão e a inautenticidade humana. Devido a sua imponência, tal obra só é publicada após a sua morte de em 1677.

Por fim, Espinosa começou a elaboração de um outro livro intitulado Tractatus politicus, no ano de 1675. Todavia, sua morte o impossibilitou de concluí-lo. Morreu vítima de tuberculose com 44 anos de idade. E, devido a sua maneira de pensar, Espinosa é apresentado como um daqueles pensadores rebeldes que tentou romper e ultrapassar o status quo político e reacionário da sociedade judaico-cristã de sua época.

  1. A SUBSTÂNCIA CAUSA SUI

Tradicionalmente, o conceito de substância (ουσία), que foi introduzido pela primeira vez na filosofia pela obra Metafísica, de Aristóteles, perpassou por longos séculos de debates até, enfim, chegar em Espinosa. Examinar-se-á os pontos prementes de três decisivos autores sobre suas concepções do conceito de substância, com o intuito de distingui-las e com o objetivo de justificar a importância da caracterização do pensamento espinosista.

O primeiro autor que se debruçou sobre esse tema, como foi enunciado acima, foi Aristóteles. Ele, no capítulo 8 do livro 5 da Metafísica, apresenta quatro peculiaridades que definem o que vem a ser a substância, a saber: a) há coisas que são denominadas de substâncias porque não são predicadas de nenhum sujeito, contudo, o restante do que sobra sempre é predicado delas; b) tudo aquilo que, ao estar presente nas coisas que existem, não são predicadas de um sujeito, são causas de seu ser; c) todas as partes presentes na coisa existente que são definidoras e indicadoras de sua individualidade e sem as quais acarretaria a sua ab-rogação representa aquilo que a determina; d) a essência, cuja fórmula é a definição, também é chamada de substância de cada coisa particular3.

Verifica-se que para o Estagirita a substância é, impreterivelmente, aquilo que é a essência necessária de um ser. De modo geral, é a evidência daquilo que não é, em um ser, uma mera contingência ou acidente. Designa-se que a substância como a essência necessária das coisas que existem é aquilo que indica a estabilidade (aquilo que permanece) no ser. Ou, em outras palavras, aquilo que subsiste independentemente das mudanças que afetam o ser. Logo, a substância se expressa na linguagem e é aquilo que pode converter-se em definição do ser4.

Com efeito, algumas características no conceito que Aristóteles estabelece são de extrema relevância: primeiro, Aristóteles está preocupado em demonstrar que há uma multiplicidade de substâncias nas quais cada uma possui a sua própria causa e essência de ser. Em segundo lugar, determina com o conceito de substância o que no Ser e na sua unidade são idênticos. E, por isso, apresentam uma única e mesma natureza que, por meio da linguagem, oferece de uma maneira lógica a explicação do elo que há entre as formas conceituais metafísicas aos objetos que estão no mundo.

Brevemente, elucida-se que Aristóteles compreende que há no mundo constantes transformações. E para dar razões aos motivos de tais mudanças ele introduz o princípio de causalidade, causa e efeito, como forma de explicar tal constante mutabilidade das coisas. Em cada efeito, há por trás de si, uma causa. E as causas (que podem ser quatro: material, formal, final e eficiente) explicam a origem e a transformação de todos os seres no mundo. Entretanto, para se evitar um regresso ad infinitum dessas relações de causas e efeitos, Aristóteles estabelece uma causa primeira que não poderia ser causada por nada e que, no que lhe concerne, deu origem a todas as outras causas. A causa não causada ele denominou de Primeiro Motor Imóvel. Muito posteriormente, já na Idade Média, Tomás de Aquino, junto à filosofia escolástica, toma emprestada a teoria causal do Primeiro Motor Imóvel de Aristóteles com o objetivo de provar racionalmente a existência e o conhecimento de Deus.

Como se verá adiante, tanto a ideia de uma multiplicidade de substâncias quanto a ideia de uma causa primeira não causada estabelecida por Aristóteles serão confrontadas pela filosofia espinosista.

Outro pensador relevante foi o filósofo racionalista francês René Descartes (1696 – 1750). Contemporâneo a Espinosa, dedicou em sua obra Meditações (1641), estabelecer, a partir da mente humana, a constatação de um princípio de certeza indubitável constituído por um ato de pensamento autorreferente. O sujeito dá-se conta de que a autocerteza de sua existência, que se realiza pelo seu ato de pensar, é o primeiro conhecimento estritamente verdadeiro. Há, inserida nessa ideia, uma clara evidência de que o ente pensante está separado do ente corpóreo. Por isso, o ‘penso, logo existo’ declara a radicalização de um “eu pensante absoluto” que não precisa se referir aos objetos do mundo para conceber a sua própria existência5.

Descartes infere ontologicamente que os Seres podem ser dotados, portanto, de até dois tipos de substancialidade que se contrapõe: a) a res cogitans, que é a substância pensante, imperfeita, finita e dependente e que remete à noção de alma, a qual somente os seres humanos possuem; b) a res extensa, que é a substância que não pensa, a corporeidade, a matéria, que é extensa, imperfeita, finita e também dependente (no caso dos seres vivos é essa substância que exerceria as funções biológicas e efêmeras do ser).

Entretanto, para elucidar notadamente a questão de como o sujeito pensante conheceria, a partir do seu próprio pensar, o mundo material, corpóreo e objetificável da natureza, Descartes teve de recorrer a uma outra substância diferente do sujeito pensante. Esta terceira substância que é entendida como Deus, a res divina (que se caracteriza por ser eterna, perfeita, infinita, independente e pensante), se estabelece, eminentemente, na relação entre a res cogitans e a res extensa. Segundo o pensador Wolfang Bartuschat, Descartes afirma que Deus é uma instância perfeita que compensa a insuficiência que o ‘eu’ tem de se tornar compreensível, a partir de si mesmo, em relação com o mundo que é conhecível6.

O que Descartes faz é romper com a tradição escolástica, que colocava Deus como princípio para a explicação ontológica e gnosiológica do ser humano. A partir de seu pensamento é que se transfere a verdade indubitável de Deus para o cogito, ergo sum. Esse movimento caracteriza-se pela tentativa reversa, de se demonstrar logicamente a existência de Deus a partir do próprio homem, o ser pensante. Para Espinosa, como se verá adiante, esse procedimento é, grosso modo, errôneo em seu princípio, pois o cogito é, para ele, parte de um sujeito finito e condicionado, que, por sua vez, não poderia determinar uma substância divina que é infinita e tem como princípio o incondicionado. Em outras palavras, o que Espinosa subverte na lógica e na metodologia cartesiana é a ideia de que a clareza e a distinção não são suficientes para passarmos de um conhecimento do efeito para o conhecimento daquilo que é causa7.

É na primeira parte da Ethica que Espinosa apresenta sua ontologia e desmembra o termo “Deus” em três conceitos: substância, atributo e modo. O sistema filosófico de Espinosa se fundamenta na ideia de que há somente uma única substância como estrutura própria do ente, a qual é Deus.

Substância é, para Espinosa, “aquilo que existe em si mesmo (in se) e que por si mesmo é concebido (per se), isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado” (Ethica, parte I, def. 3). Ora, “aquilo que é concebido por si mesmo” reverte claramente a ideia de uma pluralidade de substâncias em apenas uma. Espinosa não adere nem ao pluralismo aristotélico e nem ao pensamento cartesiano, mas, inspirado por Plotino, que definira a Inteligência como “obra de sua própria atividade que tem o ser de si mesma e por si mesma”8, oficializa o seu monismo substancial guiado pelo conceito de causa sui9.

Conforme interpreta Bartuschat, para Espinosa a “substância já não é aquilo que tem o ser em si por não ser, à diferença de um acidente, em um outro ao qual é atribuído como um predicado”10. Pelo viés espinosista, inaugura-se o monismo ontológico: há apenas uma única substância, que é causa de si mesma, que se exprime, e que não pode estar em uma relação exterior com um outro ente; a relação da substância só pode ser concebida a partir dela mesma, ou seja, internamente e, por isso, não existiria algo que ela mesma não é; logo, pormenoriza-se que nada existe fora dela.

A pergunta que fica é: como Espinosa explica as relações de mudanças que ocorrem nessa substância que é causa de si mesma? Ou de outro modo, como aquilo que foi tradicionalmente denominado de acidente, que em Aristóteles se configura por ser a determinação exterior à substância, é explicada no sistema espinosista no qual não estabelece relação nenhuma com o exterior?

Pois bem, para Espinosa os acidentes são “afecções” (affectiones) da própria substância, e representam os “modos” da substância que serão esclarecidos de uma melhor maneira no tópico 6. O que é importante elucidar nesse momento é que Espinosa cria condições para estabelecer uma teoria unificada da compreensão de Deus que indica uma relação interna, própria e necessária entre a substância que é a estrutura desse ente (Deus) e os modos (as “afecções”) que existem a partir da sua exclusiva expressão. Logo, conclui-se que os modos são tão necessários quanto a substância.

Afirma-se, portanto, que a substância para Espinosa é a estrutura do ente absolutamente infinito11, Deus, que é causa de si mesma. Além disso, essa estrutura é o que permite descrever a relação de causalidade imanente, isto é, a causa e o efeito interno que existe entre a substância (que é causa) e os modos (que são os efeitos). Por essa concepção, Espinosa consegue ligar uma multiplicidade de modos que são finitos como partes de dentro de uma substância12. Esses “modos” são expressados a partir de infinitos atributos que correspondem à potência produtiva que exprime a essência eterna e infinita de Deus. Há aqui dois níveis de expressões que serão trabalhados em breve, a saber: a expressão da substância que se exprime em seus atributos; e a expressão de cada atributo que exprime um determinado modo.

  1. DO ENTE ABSOLUTAMENTE INFINITO, DEUS

A grande tese do espinosismo, segundo Gilles Deleuze, é a de que “há uma única substância que possui uma infinidade de atributos, Deus sive Natura, sendo todas as “criaturas” apenas modos desses atributos ou modificações dessa substância”13. Subitamente, a ideia de uma natureza divinizada é para Espinosa, em uma interpretação crítica, a denúncia de como a existência de um Deus moral, criador, transcendente e judaico-cristão que possibilitou a formação de uma sociedade de servos. Servos de uma ética e de uma moral que venera a negação da vida por meio, primeiramente, da crença de que a vida que vale a pena ser vivida é a vida após a morte; e em segundo lugar, porque há uma valorização da primazia da consciência (penso, logo existo) em relação ao corpo e as paixões. Com efeito, Espinosa foi escandalosamente acusado tanto de ateísmo quanto de panteísmo e materialismo.

A primeira parte da Ethica, intitulada De Deo, preocupa-se em definir o que é Deus e qual é a sua essência. Diferentemente da concepção judaico-cristã, Espinosa nos apresenta um Deus que não está mais separado do mundo como uma espécie de legislador, déspota que manda e desmanda, julga e decide o destino final do mundo. Não há mais aqui uma visão transcendente e nem antropomórfica da natureza de Deus. Mas então, o que é Deus para Espinosa? Explana no enunciado 6 da definição:

Por Deus compreendo um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância constante de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita.
Explicação: Digo absolutamente infinito, e não infinito em seu gênero, pois podemos negar infinitos atributos àquilo que é infinito apenas em gênero, mas pertence à essência do que é absolutamente infinito tudo aquilo que exprime uma essência e não envolve qualquer negação14.

Há aqui, segundo a pensadora Marilena Chauí, dois momentos que devem ser analisados: em primeiro lugar, a definição revela que Deus é o ser (ens) absolutamente infinito; já no segundo momento, para ela, Espinosa explica o que é esse ser absolutamente infinito e declara que é a substância constante de infinitos atributos. Ou seja, isto quer dizer que há infinitos atributos dos quais cada um exprime uma essência eterna e infinita de Deus15.

Logo, se evidencia que a definição de Deus se distingue daquilo que é cada um de seus atributos. Esta diferença está marcada no esclarecimento entre as expressões “absolutamente infinito” e “infinito em seu gênero”. O “absolutamente infinito” refere-se a Deus como causa de si, enquanto estrutura, isto é, a própria natureza imanente de sua essência que envolve a sua existência; enquanto que a expressão “infinito em seu gênero” diz respeito à condição de que, embora haja infinitos atributos, todos eles não envolvem nenhuma negação de Deus, pois, tudo o que há, formalmente existe na afirmação exatamente intrínseca daquilo que pertence a Deus.

Deus é a causa incausada, isto é, causa imanente16, origem de si mesmo, é o puro ato de sua afirmação, é o ser cuja essência envolve a existência e, nesse sentido, é o ser necessariamente infinito. O infinito é o que constitui sua essência em todas as suas modalidades. Deus é ser produtivo, produz a expressão de si mesmo e é o único que existe, necessariamente, numa relação intrínseca com a sua essência.

Estabelece-se no pensamento espinosista um princípio do incondicionado, caracterizado por um ‘produzir’ que se perfaz no produzido. Deus produz aquilo que de si é produto. Nesse caso, claramente, Espinosa nega não só o transcendente que guarda o mistério da revelação do mundo para si, mas também, nega a efetivação de um idealismo filosófico que propaga e estimula a primazia da consciência sobre o corpo, ou, em outras palavras, do pensamento sobre as paixões. O que ele propõe é um novo modelo de ver o kosmos, de cânone materialista e corpóreo.

Admite-se por Espinosa que tudo devém de Deus e que tudo está contido em Deus. A substância divina produz sua multiplicidade real. Está claro que Deus não é aquele criador que está fora do mundo, mas é aquele que existe devido a própria essência de sua natureza que envolve a capacidade de existir. Deus é potência de ser. E como aquele que produz a partir de si, Deus “é causa eficiente não apenas da existência das coisas, mas também de sua essência”17. Por consequência, a existência das coisas particulares do mundo configura-se como expressão, em um último estágio, dos modos dos infinitos atributos da natureza de Deus que fora exprimida por sua substância infinita.

Ao dizer que tudo que existe, existe ontologicamente em Deus, Espinosa também declara de sobremaneira que Deus não é um ser contingente, mas necessário. Isto significa dizer que tudo o que existe, existe necessariamente. Disso, infere-se que toda a multiplicidade, portanto, que existe, existe somente internamente a Deus e, por isso, toda a existência das coisas que existem são necessárias e não contingentes. Espinosa institui aqui um determinismo que nega uma causa final de Deus. Tudo é determinado pela necessidade da infinita potência da natureza divina de existir.

Essa concepção só pode ser compreendida a partir de um conceito de uma causalidade sui generis que identifica que toda a multiplicidade das coisas que existem conserva-se por força da natureza divina inerente a Deus. Distingue-se, portanto, dois momentos de atividades causais: a) segue-se o momento natura naturans, o qual se encontra no lugar do ser divino, a causa da substância; e b) o momento natura naturata, em que a causa constitutiva dessa substância se apresenta como efeito que contém e se mostra na multiplicidade dos modos das coisas que existem.

Efetivamente, observa-se que a ontologia espinosista atribui tudo o que existe na natureza como efeito da expressão causal da substância divina. Logo, afirma Bartuschat “se uma coisa singular é um produto da causalidade imanente de Deus, então deve entrar nela aquilo que é constitutivo da substância divina: também como efetuada ela precisa ser causa de efeitos”18. Fazemos, portanto, parte da natureza de Deus, sendo modos de sua substância infinita limitados por extensão e tempo.

5. DOS ATRIBUTOS

Os atributos são pensados por Espinosa como meio para se resolver o problema ontológico central da relação entre o uno, a substância divina, e o múltiplo, os modos (infinitos e finitos) correspondentes para cada coisa que existe. Espinosa disserta:

Por atributo compreendo aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo a sua essência19.

Por se tratar de um estatuto complexo há algumas interpretações e hipóteses que são possíveis diagnosticar. Deleuze aponta para os textos do Breve Tratado e da Ética e retira, bem como nos expõe, uma possível formulação que esclarece o conteúdo conceitual dos atributos, a saber:

Os textos espinosistas apresentam três fórmulas que dizem respeito ao conteúdo conceitual dos atributos: primeiro, “à essência dos atributos pertence à existência, de maneira que, fora deles, não existe essência alguma ou ser algum”; segundo, “nós os concebemos somente na sua essência e não na sua existência, não os concebemos de maneira tal que a existência decorra da sua essência”; e terceiro, eles existem “formalmente” e “em ato”, sendo que é possível “demonstrarmos a priori que eles existem”.

Deleuze aqui nos explica que a essência existe sempre num gênero, em tantos gêneros quantos forem os atributos. E ainda afirma que cada atributo é a existência de uma “essência particular” que é eterna e infinita. Ainda, segue que a essência da substância não existe fora dos atributos que a exprimem, de modo que cada atributo exprime uma determinada essência eterna e infinita. Desse modo, o exprimido, que é a essência, não existe fora de suas expressões, isto é, cada expressão é como se fosse a existência do exprimido20.

Com efeito, segundo a interpretação deleuziana, a essência da substância é exprimida por cada atributo, mas como essência da própria substância. Há, portanto, sempre a necessidade desses três termos, a substância (que se exprime), o atributo (que exprime a substância) e a essência (que é exprimida, ou seja, produto da expressão da substância). Encontra-se aqui uma teoria da natureza do infinito, na qual a substância divina infinita convém com os atributos, que são uma infinidade; e que, por sua vez, convém com a essência, que é infinita em cada atributo21. Os atributos, grosso modo, são as sustentações que garantem a potência infinita da substância de se expressar em infinitos modos.

Diferentemente da teoria tomista22, que se baseia em fazer-nos conhecer os atributos de Deus a partir das “criaturas” por analogia, isto é, a posteriori, Espinosa pensa os atributos de modo antagônico, a priori: como formas comuns de Ser que constituem a essência da substância. Isso possibilita ao projeto espinosista resolver a aporia antropomórfica que se dá na relação de Deus, que é infinito, com o homem que é ser finito na teoria do conhecimento do Deus tomista.

Para Espinosa, ao mesmo tempo, os atributos constituem tanto a essência da substância infinita, bem como a essência dos modos infinitos que correspondem a existência das criaturas finitas. Isso, portanto, se resolve por meio da regra da conversibilidade23. Por exemplo, um modo (infinito ou finito) depende de um atributo para existir. Ao homem, que é um modo finito, convém os atributos da extensão (corporeidade) e do pensamento (mente). O homem depende de sua extensão e do seu pensamento para existir. Entretanto, a extensão e o pensamento não dependem da existência do homem, pois são atributos que já existem na essência da substância. Desse modo, é possível perceber que cada atributo é a existência de uma essência que é eterna e infinita. A essência é um grau de potência que pode atuar e produzir efeitos que são resultantes da própria natureza de Deus.

Um outro detalhe importante é que Espinosa, ao apontar que os atributos são aquilo que o intelecto percebe como constituindo a essência de uma substância, se postula que a partir de um único atributo é possível conhecer Deus. Ele se manifesta inteiramente e internamente na relação epistemológica entre os atributos com a substância24. Predica-se que há uma mesma conexão entre ontologia e epistemologia. Ou seja, o conhecimento das coisas que existem é ao mesmo tempo o conhecimento da substância divina que é a fonte da expressão. Podendo a substância ser conhecida a partir de um único atributo, eis a chance do homem de conhecer Deus. Logo, a partir do atributo do pensamento, que é a causa daquilo que é mental, se pode ter o conhecimento de Deus.

Já que nada pode ser, nem concebido sem Deus, é certo que todos os seres da natureza envolvem e exprimem o conceito de Deus, proporcionalmente à sua essência e à sua perfeição; é certo, portanto, que quanto mais coisas conhecemos na natureza, maior e mais perfeito é o conhecimento de Deus que adquirimos25.

Ao se firmar na tese de uma natureza atributivamente determinada pela substância divina, Espinosa expressa o caráter produtivo de Deus em sua teoria que, iminentemente, se apresenta como um Deus que “complica” toda coisa, mas que toda coisa o explica e o envolve. Ao mesmo tempo há a presença do múltiplo no Uno e do Uno no múltiplo. E, por isso, afirma Deleuze, Deus é a natureza “complicativa”26. Portanto, Deus está originalmente articulado como princípio de causalidade produtiva sob atributos infinitamente distintos que conectam o Uno ao que permanece envolvido naquilo que o exprime na impressão do múltiplo que o desenvolve.

6. DOS MODOS FINITOS E INFINITOS

A ideia construtivista de uma substância divina formulada por Espinosa que assegura uma continuidade da univocidade, que emerge da teoria da causa imanente, assegura a relação indireta e direta entre Deus, a substância una, e as coisas que existem como modos, as coisas essencialmente diversas que correspondem a uma multiplicidade de elementos distintos. Entende-se como uma relação indireta porque os modos para existirem precisam primeiro estar contidos naquilo que é deduzido diretamente dos atributos que estão inclusos na substância. Mas, em contrapartida, configura-se também uma relação direta pois toda essa multiplicidade de elementos distintos que existe estão em relação imediata com a própria substância que é causa substantiva dessa vinculação.

Espinosa, sobre os modos, pronúncia:

Por modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual é também concebido27.

Os modos, de maneira geral, são as partes da potência divina que se afirmam na realidade das coisas, são os efeitos. Em outras palavras, os modos são a determinação, a afirmação e o desenvolvimento da substância infinita que, em última instância, se finitiza. Esse movimento é o aspecto da expressão da substância que se explica, se desenvolve e se desdobra. É o movimento da expressão da substância que caracteriza a passagem do Uno para o múltiplo. Em outras palavras, é a manifestação da substância nos atributos e, depois, a manifestação dos atributos nos seus modos.

Deleuze nos expõe que a relação ontológica entre a substância-modos com a relação epistemológica essência-propriedades e a relação física causa-efeito são pontos fundamentais para compreender o espinosismo. Para ele, a relação causa-efeito não é separável de uma imanência pela qual a causa permanece em si para produzir. Ao contrário, a relação essência-propriedades não é separável de um dinamismo mediante o qual as propriedades chegam à infinidade. Ou seja, as propriedades não são deduzidas pelo entendimento que explica a substância, mas, por serem produzidas pela substância, explicam e exprimem o entendimento. Portanto, a substância goza de uma essência que é própria e distinta da essência das propriedades que a deduzimos28.

Os modos diferem da substância tanto em existência quanto em essência, mas, ao mesmo tempo, os modos são produzidos pelos atributos que constituem a própria essência da substância. Consoante a isso, está a proposição dezesseis da primeira parte da Ethica que menciona que da natureza divina de Deus devem se seguir infinitas coisas, de infinitas maneiras29.

Entretanto, para Espinosa, essa passagem da substância infinita para os modos finitos não pode ser imediatamente deduzida dos atributos da substância divina. Isto porque os atributos são conjuntos infinitos e eternos enquanto os modos são de natureza finita. Assim, ele distingue modos infinitos (imediatos ou mediatos), que são infinitos por sua causa e não por sua natureza, dos modos finitos.

Os modos infinitos imediatos30 decorrem de maneira iminente aos atributos, e, por isso, são também infinitos e eternos. Basturchat interpreta que um modo infinito imediato pode ser entendido como a totalidade daquilo que se segue de um respectivo atributo da substância31. Deleuze acrescenta que o modo infinito imediato é compreendido como sendo uma infinidade de partes atuais e inseparáveis umas das outras, como, por exemplo, é o caso das ideias de essências como partes da ideia de Deus, ou os entendimentos como partes do entendimento infinito ou, ainda, as essências de corpo como forças elementares32.

De qualquer forma, Espinosa só resolve a dedução da relação que move os modos infinitos aos finitos quando estabelece que o modo infinito imediato só se transforma em outro modo infinito, o qual ele chama de modo infinito mediato.

O modo infinito mediato33, também se caracteriza por ser infinito e eterno, e pode ser entendido como aquilo que regula as determinações dos modos finitos existentes. Deleuze, explora o seguinte exemplo:

O modo infinito mediato é, para extensão, a faceis totius universi, isto é, o conjunto de todas as relações de movimento e de repouso que regulam desta vez as determinações dos modos como existentes; e sem dúvida, para o pensamento, as relações de ideais que regulam as determinações das ideias como ideias de modos existentes34.

Ao percorrer essa tese, Espinosa justifica a permanente relação entre a substância infinita e eterna que se finitiza nos múltiplos modos das coisas existentes no mundo. Deus, em decorrência da sua infinitude não produz imediatamente um modo finito, mas permanece como causa de vários infinitos modos que se finitizam e que se intermediam nas suas relações. Isto é, cada modo finito está em relação com outros modos finitos. Por exemplo, o ser humano é um modo finito e sempre está em relação com os objetos cognoscíveis do mundo, os quais são os outros modos finitos.

Por fim, Espinosa constata que a questão do conhecimento humano e da orientação da racionalidade humana está situada pela configuração da maneira pela qual os modos finitos se apresentam, sob determinados contextos, ao ser cognoscente individual. O universo, a natureza, os objetos cognoscíveis e até mesmo os seres humanos, sujeitos cognoscentes, são modos existentes perfeitos, pura afirmação da substância divina. Por isso, em cada coisa existente que o sujeito cognoscente conhece, identifica-se ali a potência divina que exprime um modo finito a essência e a natureza de Deus de maneira certa e determinada. Conhecer Deus é conhecer a sua expressão.

7. EXPRESSIONISMO” COMO IMANENTISMO

Espinosa, ao definir o que ele compreende por Deus, apresenta a ideia da expressão: “Por Deus entendo um ser absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita”35. Esse termo foi introduzido por Espinosa para indicar a manifestação da relação de Deus no mundo. Assim, ora o atributo exprime uma certa essência eterna e infinita e, ora cada atributo exprime a essência da substância nos modos que denotam sua realidade.

É a natureza expressiva dos atributos que que designam como que Espinosa passa de uma essência eterna e infinita para uma essência manifestada nos seres e nas coisas que existem. Nesse sentido, afirma Deleuze que Espinosa explica nas demonstrações 19 e 20 que: “cada atributo exprime uma essência, mas enquanto exprime em seu gênero a essência da substância; e como a essência da substância envolve necessariamente a existência, cabe a cada atributo exprimir, com a essência de Deus, sua existência eterna”36. Os atributos ora envolvem e ora explicam a essência da substância de Deus.

Há aqui dois níveis de expressão. No primeiro nível, a substância se exprime em seus atributos, e cada atributo exprime uma determinada essência. Nesse caso, encontra-se uma ‘expressão-produção’: Deus se exprime por si mesmo “antes” de exprimir seus efeitos. Em um segundo nível, cada um dos atributos também se exprime nos modos (que dependem dos atributos), os quais manifestam as determinadas essências que existem. Nessa situação, a expressão não se encontra em um nível de construção de si mesma, mas numa espécie de transformação, ou seja, a mudança do atributo que se exprime37.

A ideia de expressão tem para Espinosa dois aspectos, a saber: a) por um lado o termo exprimir indica a ideia de explicar; b) contudo, por outro lado, o termo exprimir aponta para a ideia de envolver. No primeiro caso, o desenvolvimento daquilo que se exprime, o explicar, designa a manifestação do Uno no múltiplo. Em outras palavras, exprimir é explicar, desdobrar, a manifestação da substância (Uno) nos seus atributos e, depois, dos atributos nos modos (múltiplo). No segundo caso, a expressão é o envolvimento daquilo que na substância (no Uno) permanece implicado em tudo aquilo que se desenvolve nos modos múltiplos da existência. Isto significa que o Uno sempre permanece imanente a tudo aquilo que se manifesta no múltiplo.

O verbo exprimir apresenta em seu significado a ideia de um movimento que tem em suas ações um determinado fim em si mesmo. Logo, é possível observar como o termo ‘expressão’ é, para Espinosa, a característica da substância divina que indica o próprio movimento interno, essencial e constitutivo daquilo que, ao mesmo tempo, desenvolve o Uno no múltiplo, bem como, envolve o múltiplo no Uno. Tangencialmente, o adjetivo ‘imanente’ revela também a relação determinística existente entre a causa e o efeito, não sendo separáveis de uma conversão. Isto é, em uma causa imanente o próprio efeito é “imanado” da causa, ou seja, o efeito está contido na causa38.

Permanece, portanto, nesse movimento o sentido reflexivo, imanente e não transitivo de todas as coisas. Ou em outras palavras, Deus, como causa de si mesmo, permanece em si mesmo do início ao fim, como causa e efeito. Deus, como potência infinita, é o resultado do movimento da causa e do efeito de si mesmo.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A intenção e o objetivo de Espinosa com o seu sistema filosófico é, sobretudo, a de pôr fim à ideia de uma natureza antropomórfica de um Deus pessoal, criador, moral e, que segundo a teologia judaico-cristã, ordena o mundo de fora dele. Rompe-se com a ideia de um Deus transcendente. Ora, o Deus da teologia judaico-cristã é aquele que está no meio de nós observando os nossos atos para que, no final dos tempos, julgue os homens que podem ou não podem entrar no ‘reino dos céus’. Essa perspectiva estabelece uma justificativa moral de uma justiça ideal que os homens deveriam seguir para entrar no paraíso celeste. O transcendentalismo corresponde a uma espécie de ascetismo, o qual desvaloriza a vida verdadeiramente imanente, para valorizar a vida após a morte que se concretizará junto ao lado de Deus em algum outro lugar.

Em compensação, Espinosa pretendeu, por meio da sua filosofia, compreender Deus de modo menos moralista, mais afirmativo e construtivista. Assim como na teologia judaico-cristã, para ele, Deus é onipotente, onipresente e onisciente. Entretanto, a justificativa para que Deus tenha tais características dá-se pelo fato de que Deus participa das relações, dos movimentos e dos encontros que existem no mundo. Deus sendo a realidade, e a realidade sendo aquilo é, não carrega consigo nenhuma ideia de senso de justiça. Logo, ao assumir que Deus é o que é em realidade, afirma-se, consequentemente, que Deus é todos os entes em relação. Deus é amoral, ou seja, é a ordem, mas também é o caos; é o justo, mas também o injusto; é o bom, mas também é o mau; é o belo, mas também o feio.

Portanto, Deus é a única substância, é aquele que se expressa, a partir de si mesmo (causa sui), de infinitos modos na Natureza. Todo o universo está contido em Deus e, ao mesmo tempo, Deus está contido em tudo o que existe na materialidade, a qual está em constante relação. Deus é a totalidade, o eterno, o infinito, o uno, que se expressa de modo iminente e que, ao mesmo tempo, se finitiza nas relações infinitas dos múltiplos entes.

Abre-se uma nova condição de afirmação ontológica para o ser humano. A vida como ela é valoriza-se pela iminência de Deus. Deus participa no Homem. O Homem é a expressão de Deus que se relaciona com a Natureza que também é a expressão de Deus. Concepção panteísta que estabelece Deus em tudo o que existe. Tudo decorre da expressão ontológica da essência de Deus. Viver, em última instância, é expressar-se radicalmente em Deus.

REFERÊNCIAS

ABBAGANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução: Alfredo Bosi. 6ª Edição. São Paulo. Ed. WMF Martins Fontes. 2012.

ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução: Edson Bini. 2ª Edição. São Paulo. Ed. Edipro. 2012.

BORGES, Charles. Deleuze: Ética e Imanência. 1ª Edição. Porto Alegre. Ed. Class. 2017.

CHAUI, Marilena de Souza. Nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa. São Paulo. Companhia das Letras. 1999.

DESCARTES, René. Discurso do Método; As paixões da alma; Meditações; Objeções e respostas. Tradução: J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 5ª Edição. São Paulo. Ed. Nova Cultural (Os pensadores). 1991.

ESPINOSA, Baruch de. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. 1ª Edição. Belo Horizonte. Ed. Autêntica. 2007.

______. Tratado Teológico-Político. Tradução: Diogo Pires Aurélio.1ª Edição. São Paulo. Ed. Martins Fontes. 2003.

DELEUZE, Gilles. Espinosa e o Problema da Expressão. Tradução: Luiz B. L. Orlandi. 1ª Edição. São Paulo. Editora 34. 2017.

______. Espinosa: Filosofia Prática. Tradução: Daniel Lins e Fabien P. Lins. 1ª Edição. São Paulo. Ed. Escuta. 2002.

TRINDADE, Rafael. Espinosa: Deus ou a natureza. Site Razão Inadequada. 2013. Disponível em: https://razaoinadequada.com/2013/07/06/deus-ou-a-natureza/.

BASTURCHAT, WOLFANG. Espinosa. Tradução: Beatriz Avila Vasconcelos. 2ª edição. Porto Alegre. Ed. Artmed. 2010.

1 Trata-se do capítulo IV, Livro XI, da quarta parte (Os Irmãos Karamazóv, trad. Herculano Villas-Boas, 1ª Edição, São Paulo, Martin Claret. 2013, p. 682).

2 A breve biografia de Espinosa que se apresenta neste artigo foi retirada, resumidamente, da obra intitulada “Espinosa”. Ver o capítulo 1 (BARTUSCHAT, Wolfang. Espinosa. Tradução: Beatriz Avila Vasconcelo. 2ª Ed. Porto Alegre. Artmed. 2010, p. 11 – 27).

3 ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução: Edson Bini. 2ª Edição. São Paulo. Ed. Edipro. 2012, p. 144.

4 ABBAGNANO. Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução: Alfredo Bosi. 6ª edição. Editora Martins Fontes. São Paulo. 2012, p.1093.

5 BARTUSCHAT, Wolfang. Espinosa. Tradução: Beatriz Avila Vasconcelo. 2ª Ed. Porto Alegre. Artmed. 2010, p. 29.

6 BARTUSCHAT, Wolfang. Espinosa. Tradução: Beatriz Avila Vasconcelo. 2ª Ed. Porto Alegre. Artmed. 2010, p. 29.

7 DELEUZE, Gilles. Espinosa e o Problema da Expressão. Tradução: Luiz B. L. Orlandi. 1ª Edição. São Paulo. Editora 34. 2017, p. 173.

8 ABBAGNANO. Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução: Alfredo Bosi. 6ª edição. Editora Martins Fontes. São Paulo. 2012, p. 148.

9 Espinosa define a causa de si (causa sui) por “aquilo cuja essência envolve a existência, ou seja, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente” (Ethica, parte I, def. 1). Marilena Chauí alega que ao Espinosa afirmar no Breve Tratado que “[…]“existir por si mesmo” é um proprium de Deus e não um atributo que faça conhecer Sua essência, concluem alguns que causa sui é usada pelo filósofo não para definir um constituinte da essência do absoluto, e sim uma de suas propriedades.” (CHAUI, Marilena de Souza. Nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa. São Paulo. Companhia das Letras. 1999, p. 759).

10 BARTUSCHAT, Wolfang. Espinosa. Tradução: Beatriz Avila Vasconcelo. 2ª Ed. Porto Alegre. Artmed. 2010, p. 51.

11 Na proposição 8 da Ethica Espinosa demonstra que “Toda substância é necessariamente infinita” e segue “não existe senão uma única substância de mesmo atributo, e à sua natureza pertence o existir. À sua natureza, portanto, pertencerá o existir, ou como finita ou como infinita. Ora, não poderá ser como finita, pois (pela def. 2), neste caso, ela deveria ser limitada por outra de mesma natureza, a qual também deveria necessariamente existir (pela prop. 7). Existiram, então, duas substâncias com o mesmo atributo, o que é absurdo (pela prop. 5). Logo, ela existe como infinita.” (ESPINOSA, Baruch de. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. 1ª Edição. Belo Horizonte. Ed. Autêntica. 2007. Parte I, Def. 2, p. 13).

12 BARTUSCHAT, Wolfang. Espinosa. Tradução: Beatriz Avila Vasconcelo. 2ª Ed. Porto Alegre. Artmed. 2010, p. 51.

13 DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia Prática. Tradução: Daniel Lins e Fabien P. Lins. 1ª Edição. São Paulo. Ed. Escuta. 2002, p.23.

14 ESPINOSA, Baruch de. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. 1ª Edição. Belo Horizonte. Ed. Autêntica. 2007. Parte I, Def. 6, p. 13.

15 CHAUI, Marilena de Souza. Nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa. São Paulo. Companhia das Letras. 1999, p. 746.

16 “Deus é causa imanente, e não transitiva, de todas as coisas. Demonstração: Tudo o que existe, existe em Deus, e por meio de Deus deve ser concebido; portanto, Deus é causa das coisas que nele existem, que era o primeiro ponto” (ESPINOSA, Baruch de. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. 1ª Edição. Belo Horizonte. Ed. Autêntica. 2007. Parte I, Prop. 18, p. 43)

17 ESPINOSA, Baruch de. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. 1ª Edição. Belo Horizonte. Ed. Autêntica. 2007. Parte I, Prop. 25, p. 49.

18 BARTUSCHAT, Wolfang. Espinosa. Tradução: Beatriz Avila Vasconcelo. 2ª Ed. Porto Alegre. Artmed. 2010, p. 53.

19 ESPINOSA, Baruch de. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. 1ª Edição. Belo Horizonte. Ed. Autêntica. 2007. Parte I, Def. 4, p. 13.

20 DELEUZE, Gilles. Espinosa e o Problema da Expressão. Tradução: Luiz B. L. Orlandi. 1ª Edição. São Paulo. Editora 34. 2017, p. 44.

21 Ibid., p. 30.

22 A teoria tomista dos atributos é criticada por Espinosa por gerar um pretenso perigo devido ao procedimento do método de analogia. Tal método, por ser a posteriori, coloca um problema na relação entre o finito e o infinito ao declarar que seria possível fazer o conhecimento de Deus a partir das “criaturas”. Cada vez que se procede por analogia, toma-se emprestado caracteres das criaturas para atribuí-las a Deus, seja de maneira equívoca, seja de maneira eminente, o que gera um antropomorfismo. Ver em DELEUZE, Gilles. Espinosa e o Problema da Expressão. Tradução: Luiz B. L. Orlandi. 1ª Edição. São Paulo. Editora 34. 2017, p. 48.

23 Segundo Deleuze essa regra sustenta a tese de que “a essência não é somente aquilo sem o que a coisa não pode ser, nem ser concebida, mas, reciprocamente, aquilo que, sem a coisa, não pode ser e nem ser concebido. É segundo essa regra que os atributos são mesmo a essência da substância, mas não são, de forma alguma, a essência dos modos[…]”. Ver em Ibid., p.49.

24 BARTUSCHAT, Wolfang. Espinosa. Tradução: Beatriz Avila Vasconcelo. 2ª Ed. Porto Alegre. Artmed. 2010, p. 54.

25 Espinosa, Baruch de. Tratado Teológico-Político. Tradução: Diogo Pires Aurélio.1ª Edição. São Paulo. Ed. Martins Fontes. 2003, cap. 4, II, p.69.

26 DELEUZE, Gilles. Espinosa e o Problema da Expressão. Tradução: Luiz B. L. Orlandi. 1ª Edição. São Paulo. Editora 34. 2017, p.19.

27 ESPINOSA, Baruch de. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. 1ª Edição. Belo Horizonte. Ed. Autêntica. 2007. Parte I, Def. 5, p. 13.

28 DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia Prática. Tradução: Daniel Lins e Fabien P. Lins. 1ª Edição. São Paulo. Ed. Escuta. 2002, p.92.

29 ESPINOSA, Baruch de. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. 1ª Edição. Belo Horizonte. Ed. Autêntica. 2007. Parte I, Prop. 16, p. 37.

30 Na proposição 21 Espinosa afirma que “tudo o que se segue da natureza absoluta de um atributo de Deus deve ter sempre existido e ser infinito, ou seja, é, por via desse atributo eterno e infinito.” Ver em ESPINOSA, Baruch de. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. 1ª Edição. Belo Horizonte. Ed. Autêntica. 2007. Parte I, Prop. 21, p. 45.

31 BARTUSCHAT, Wolfang. Espinosa. Tradução: Beatriz Avila Vasconcelo. 2ª Ed. Porto Alegre. Artmed. 2010, p. 57.

32 DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia Prática. Tradução: Daniel Lins e Fabien P. Lins. 1ª Edição. São Paulo. Ed. Escuta. 2002, p.93.

33 Na proposição 22 estipula que “tudo o que se segue de algum atributo de Deus, enquanto este atributo é modificado por uma modificação tal que, por meio desse atributo, existe necessariamente e é infinita, deve também existir e ser infinito” Ver em ESPINOSA, Baruch de. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. 1ª Edição. Belo Horizonte. Ed. Autêntica. 2007. Parte I, Prop. 22, p.47.

34 DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia Prática. Tradução: Daniel Lins e Fabien P. Lins. 1ª Edição. São Paulo. Ed. Escuta. 2002, p.93.

35 ESPINOSA, Baruch de. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. 1ª Edição. Belo Horizonte. Ed. Autêntica. 2007. Parte I, Def. 6, p. 13)

36 DELEUZE, Gilles. Espinosa e o Problema da Expressão. Tradução: Luiz B. L. Orlandi. 1ª Edição. São Paulo. Editora 34. 2017, p.16.

37 Ibid., p.16.

38 Ibid., p. 191.


1 Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2019) e pós-graduação lato sensu em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) (2021). Atualmente é graduando em Filosofia pela Pontífica Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional e Responsabilidade Civil. É membro da comissão organizadora de eventos da graduação em filosofia pela PUC-RS. Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/6627164102629644