O PROCESSO DE LETRAMENTO PARA JOVENS E ADULTOS COM DOENÇA MENTAL, UMA FERRAMENTA PARA A INCLUSÃO SOCIAL
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102412191527
Dolencsko, André Luis[1]
Introdução
A concepção de educação para jovens e adultos apresenta diferentes vertentes e possibilidades de transformação cultural e social. O presente trabalho foi desenvolvido no intuito de articular os conhecimentos e estratégias de reinserção social que as práticas de alfabetização e letramento oferecem a jovens e adultos segregados em instituições psiquiátricas.
As primeiras citações sobre o assunto surgiram na antiga Grécia, período caracterizado pela valorização dos aspectos mitológicos e religiosos e a loucura não era vista como uma doença mental, portanto, passiva de qualquer tipo de tratamento ou preocupação educacional.
Já na Idade Média a loucura se relacionava com os conceitos demonistas apresentados na concepção do Cristianismo. A sociedade nessa época tinha sua vida orientada pelo poder da Igreja, que por sua vez condenava todo comportamento caracterizado como anormal. Visto, portanto, como portador de possessões demoníacas, o doente mental era submetido a tratamentos baseados em espancamentos e torturas, realizados pelos exorcistas ou especialistas da Igreja.
A partir do século XVIII são intensificados os primeiros tratamentos dentro das instituições, uma vez que nesse período houve o avanço sobre os estudos do funcionamento cerebral com os aspectos comportamentais da loucura, voltando-se às ciências neurofisiológicas, a partir da origem dos sintomas e classificação dos distúrbios mentais.
Pessotti (1996) esclarece que as instituições ainda eram organizadas por representantes da Igreja, os quais possuíam algum conhecimento clínico, mas ainda submetiam os doentes mentais a tratamentos que envolviam castigos com chicotadas, medicamentos tradicionais, sangrias e prolongados banhos.
No século XIX, Pinel, considerado o pai da psiquiatria, apresentou em seus estudos a loucura como uma desorganização das funções mentais, além de mudar a concepção de manicômio como um espaço de tratamento.
Os primeiros anos do século XX consolidaram nas instituições a farmacologia como tratamento dos sintomas mais graves. Sua utilização foi tão amplamente difundida, em função da eficácia no comportamento do doente mental, que os tratamentos físicos reduziram significativamente em várias instituições.
Ainda na primeira metade do século XX, surgiu a Psiquiatria Social, com base nos estudos de Freud (FOUCAULT, 2007)), reconhecendo as influências do ambiente para o desenvolvimento do indivíduo, além da participação de diferentes especialistas, dos familiares e de toda a sociedade, a fim de promover uma equidade nas relações humanas. Entretanto, as propostas que seguiram não apresentavam ideais concisos e homogêneos, pois em alguns casos chegava-se a negar a contribuição da psiquiatria para o tratamento da doença mental, justificando a necessidade de isolar, mais uma vez, o indivíduo da sociedade. (Pessotti, 1996).
Por isso os conceitos de Doença e Deficiência Mental devem ser analisados sob dois olhares: o clínico e o educacional já que ainda sofrem grande confusão de esclarecimentos em diferentes áreas do conhecimento.
As definições de doença e deficiência mental pelo olhar da medicina atual estão embasadas em duas grandes obras, o DSM IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e a CID 10 (Classificação Internacional de Doenças), utilizados mundialmente por todos os profissionais.
De acordo com o olhar clínico, a deficiência mental caracteriza-se pelo comprometimento do funcionamento intelectual e leva à restrição em certas habilidades ligadas à comunicação, autonomia, cognição e relações interpessoais. Ressalta ainda que a ocorrência surge antes dos 18 anos sofrendo a interferência de diferentes fatores sociais, biológicos e ambientais, provocando o comprometimento do sistema nervoso central. Já a doença mental ou transtorno mental:
[…] é conceitualizado como uma síndrome ou padrão comportamental ou psicológico clinicamente importante, que ocorre em um indivíduo e que está associado com sofrimento (por ex., sintoma doloroso) ou incapacitação (por ex., prejuízo em uma ou mais áreas importantes do funcionamento) ou com um risco significativamente aumentado de sofrimento atual, morte, dor, deficiência ou perda importante da liberdade. (DSM IV, 1994, p. XXI).
Para o olhar educacional a Deficiência Mental é caracterizada por uma restrição que atinge a natureza física, mental ou sensorial, resultando nas limitações necessárias para o exercício de diferentes funções da vida diária. Além disso, podem ser transitórias ou permanentes, tendo como causas as influências dos diferentes fatores físicos, sociais, econômicos e culturais.
Ressalta ainda que
[…] existe a dificuldade de se estabelecer um diagnóstico diferencial entre o que seja “doença mental” (que engloba diagnósticos de psicose e psicose precoce) e “deficiência mental”, principalmente no caso de crianças pequenas em idade escolar. (BRASIL, 2007, p.15).
Dentro deste campo de diferenciações de conceitos temos os sujeitos envolvidos e o educador que não está limitado apenas ao espaço escolar e encontra-se desafiado a integrar as diferentes identidades sociais e manifestações culturais da vida cotidiana que foram marginalizadas pela história.
O homem não está apenas inserido no mundo, mas também participa dele. A partir de então, o papel da educação é estimular nesse homem a refletir sobre a sua realidade, de forma a transformá-la e recriá-la.
Freire (2006, p. 35) afirma que, “O ser alienado não olha para a realidade com critério pessoal, mas com olhos alheios. Por isso vive uma realidade imaginária e não a sua própria realidade objetiva”.
O papel do educador é se posicionar frente aos desafios da sociedade, respondendo aos problemas de diferentes magnitudes sociais, políticas e econômicas, não impondo a sua ideologia, mas instigando os educandos a construírem o seu pensamento crítico.
Momento que se faz presente no processo de alfabetização e letramento. Pois uma educação transformadora é aquela que mostra as contradições existentes numa sociedade, na seletividade dos conteúdos, dos saberes e das práticas, das desigualdades frente às dificuldades de cada um.
Soares (2008) e Tfouni (1995) definem o conceito de alfabetização como a aquisição da escrita e seus códigos através das diferentes habilidades desenvolvidas nos meios sistemáticos de ensino. Há também duas variáveis que compreendem a alfabetização ou como um processo individual de habilidades linguísticas, ou como um recurso necessário para a representação social.
Sobre a primeira variável, compreende-se que a alfabetização tem uma única finalidade, desconsiderando as transformações que ocorrem nas sociedades e consequentemente a necessidade do sujeito, inserido nela, estar constantemente atualizado. Nesse sentido, alfabetização é um processo de que não se esgota, mas que, conforme afirma Tfouni (1995) possui diferentes “níveis” de desenvolvimento.
Além disso, é importante ressaltar que a alfabetização não se caracteriza apenas pela codificação e decodificação de grafemas e fonemas, mas na inter-relação do código escrito com a oralidade. Ambos revelam-se como sistemas de representação nas sociedades, uma vez que os sujeitos envolvidos no processo educacional trazem na sua história experiências orais, muitas vezes difundidas de geração para geração.
Portanto, valorizar a oralidade nas práticas educacionais é considerar as diferentes variantes da língua e dos aspectos culturais envolvidos, na busca da apropriação do sistema escrito de forma transformadora e consciente, abolindo qualquer prática mecânica e ideológica.
A origem do conceito, segundo Soares (2008, p.6) se relaciona à necessidade de novas estratégias de formação na Educação de Jovens e Adultos “[…] que revelam precário domínio das competências de leitura e escrita, dificultando sua inserção no mundo social e no mundo do trabalho.”.
No Brasil, o conceito de letramento foi introduzido sob a influência da perspectiva psicogenética através dos estudos de Emília Ferreiro, nos quais apresentam que o sujeito ativo nos processos de construção e reconstrução da língua da escrita em interação com as suas práticas sociais.
Entretanto, Soares (2008) esclarece que tais estudos provocaram algumas incompreensões no campo da alfabetização, justificando a necessidade de substituí-la essencialmente pelo letramento.
Dentre essas divergências procurou-se abolir os fundamentos da alfabetização, permeados pelo desenvolvimento do “sistema alfabético e ortográfico”, das relações grafema-fonema, além do “método de alfabetização” relacionado aos aspectos tradicionais de ensino.
Portanto,
A alfabetização, como processo de aquisição do sistema convencional de uma escrita alfabética e ortográfica, foi, assim, de certa forma obscurecida pelo letramento, porque este acabou por frequentemente prevalecer sobre aquela, que, como consequência, perde sua especificidade. (SOARES, 2008, p. 11).
O letramento compõe-se de estratégias voltadas para o contato e experiências com a leitura e escrita, para as práticas sociais, através dos diferentes recursos que envolvem a relação fonema-grafema.
A crítica de Tfouni (1995, p. 24) reflete na necessidade de revisão dos estudos linguísticos, afirmando
[…] que o pensamento dos alfabetizados é ‘racional’, e por um deslizamento preconceituoso coloca também que os indivíduos não-alfabetizados são incapazes de raciocinar logicamente, de fazer inferências, de efetuar descentrações cognitivas […]
A aprendizagem do homem necessita essencialmente do envolvimento de saberes científicos e sistemáticos fundamentais à construção de um agente transformador da realidade. E o processo de aquisição da escrita, da leitura, do conjunto de símbolos e signos deve permear as bases dessa formação.
Além disso, é importante ressaltar que
[…] a aprendizagem da leitura-e-escrita é muito mais que aprender a conduzir-se de modo apropriado com este tipo de objeto cultural (inclusive, quando se define culturalmente o termo ‘apropriado’ ou seja, quando o relativizamos). É muito mais do que isto, exatamente porque envolve a construção de um novo objeto de conhecimento que, como tal, não pode ser observado de fora. (FERREIRO, 1988, p. 66-67).
Nesse sentido, alfabetização e letramento são processos complementares, pois cada um possui suas especificidades, estratégias e métodos que articulados contribuirão para auxiliar nas diferentes ações pedagógicas, encontradas no ambiente educativo, com vistas a atender as demandas de formação dos sujeitos.
2 Método
A pesquisa de campo foi realizada em hospital estadual psiquiátrico localizado na cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
Para o desenvolvimento da pesquisa, foram selecionados quatro alunos internos nesta unidade hospitalar, tendo como critério para seleção, a frequência e permanência durante as atividades de alfabetização, que ocorreu no período de outubro de 2007 a agosto de 2008. Período em que o pesquisador atuou como professor do programa Brasil Alfabetizado[2], do MEC.
A coleta de dados envolveu a pesquisa em prontuários dos pacientes com autorização prévia da comissão ética do hospital de forma a garantir a preservação da identidade, caracterizando-os pela letra E (Educando) seguido de numeração. Foram selecionadas para análise as atividades pedagógicas desenvolvidas durante a pesquisa para a discussão do processo de letramento, garantidos através do respaldo bibliográfico.
Os critérios de análise dos trabalhos estarão pautados em dois aspectos: a presença dos aspectos mecânicos da escrita nas atividades e os resultados que as intervenções pedagógicas proporcionaram para as práticas de letramento e inclusão dos alunos. Os trabalhos apresentados foram selecionados levando-se em consideração os aspectos que mais trouxeram significação educacional para os alunos.
Foram selecionados dois educandos com diagnóstico de Deficiência Mental e dois com Doença Mental, tendo como justificativa as suas inter-relações no contexto das instituições psiquiátricas. Dessa forma, o título apresentado no trabalho traz uma nova vertente de análise acerca das diversas identidades sociais.
É importante ressaltar que o atendimento educacional oferecido aos alunos não tinha como estratégia inicial a aplicação de uma avaliação diagnóstica para que se pudesse analisar o atual estágio de conhecimento da leitura e escrita pelos alunos.
3 Resultado
3.1 Educando 1 (E1)
E1 tinha 52 anos, nasceu na cidade de São Paulo em 1956. A mãe era falecida e o pai não foi localizado. Tem apenas um irmão, pais de dois filhos e professor de música que residia na cidade do Rio de Janeiro e pouco matinha contato.
A primeira internação data de 1964, aos 8 anos de idade, através da Fundação Paulista de Promoção Social do Menor. Junto com o irmão passou por vários lares, abrigos e instituições pelo estado de São Paulo, tendo como justificativas de internação dificuldades financeiras da família, desemprego e problemas de comportamento. Em todas as instituições internadas anteriormente não constava para E1 o diagnóstico de doença mental, mas de problemas relacionados ao tabagismo, hipotireoidismo, câncer de mama (esquerda) e gastrite medicamentosa. De acordo com o seu prontuário clínico o diagnóstico era de Retardo Mental Moderado[3] tendo como tratamento farmacológico o uso de antipsicóticos[4]. Além disso, os registros apontavam observações realizadas pelos médicos e enfermeiros responsáveis pelos cuidados diários, identificando que E1 possuia baixa tolerância à frustração, irritabilidade com mudança rápida e fácil de humor. Contudo, E1 era caracterizado como uma pessoa vaidosa, pois frequentava constantemente o salão de beleza localizado no hospital, justificando a necessidade de estar sempre bonita para o seu parceiro.
Casou-se com o E2 em 2007 e moravam juntos no hospital psiquiátrico. Estavam em processo de ressocialização e transferência para uma casa localizada num bairro da cidade.
E1 também participava com grande frequência e estímulo de atividades manuais como crochê, tricô, fuxico, além de bingos, festas, bailes, assembleias e viagens.
Não constava em seus registros a frequência em escola durante a infância e juventude, mas apenas a curta participação em projetos de alfabetização de jovens e adultos realizados nos últimos anos no atual hospital.
As atividades realizadas:
- Tema gerador: O Homem
Objetivo: Estabelecer os primeiros contatos conhecendo a história de vida de cada educando através de discussão coletiva. Identificar o centro de interesse de cada um com a produção individual de textos, a fim de identificar as palavras geradoras para posterior desenvolvimento.
Figura 1
- Tema gerador: A Escola e a sociedade
Objetivo: Promover a importância da escrita na formação social dos educandos, através da leitura, discussão e produção de textos significativos para cada um.
Figura 2
- Tema gerador: Diversidade regional e moradias
Objetivo: Ampliar os conhecimentos sobre as diferentes culturas existentes no país bem como suas características. Promover o respeito sobre a diversidade social, cultural e econômica através dos direitos e deveres fundamentais.
Figura 3
3.2 Educando 2 (E2)
E2 tinha 62 anos e nasceu em 1946 na cidade de Ribeirão Preto/ SP. Quando criança trabalhou na lavoura e foi vítima de maus tratos do pai, que sofria de dependência de álcool. Presenciou a morte da mãe e dos irmãos por conta da ingestão de veneno provocada por ela. Apenas duas irmãs sobreviveram. O pai faleceu no mesmo dia da morte da mãe e tem como causa desconhecida. Constava que uma das irmãs faleceu há cerca de cinco anos, mas sem data precisa.
Aos 14 anos E2 frequentou o Educandário Quito Junqueira na cidade de Ribeirão Preto/ SP até o seu encaminhamento em 1967, já com 21 anos, para o Hospital do Juquery cidade de Franco da Rocha/ SP. Sem precisar exatamente a data, conforme registro, foi encaminhado em 2006 para o atual hospital, juntamente com sua parceira E1, onde se conheceram em Hospital do Juquery. Teve a irmã localizada em 2007, mas pouco matinha contato.
O diagnóstico de acordo com o seu prontuário clínico permaneceu como Retardo Mental Moderado com dependência institucional, fazendo uso controlado de antipsicóticos. Além disso, utilizava como indicação de tratamento Atividades da Vida Diária (AVD), uma vez que demonstrava grande interesse na participação de atividades domésticas, confecção de tapetes de barbantes.
Não constava nos registros a frequência a escola em sua infância e juventude e assim como E1 freqüentou projetos de alfabetização de curta duração no atual hospital.
As atividades realizadas foram:
- Tema gerador: O Homem
Figura 4
- Tema gerador: Registros da identidade
Objetivo: Reconhecer os diferentes documentos de identificação de cada sujeito bem como as informações apresentadas no sentido de promover a conscientização das práticas da escrita na sociedade.
Figura 5
- Tema gerador: A Escola e a sociedade
Figura 6
3.3 Educando 3 (E3)
E3 tinha 68 anos e de acordo com registros, nasceu em 1940 sem a precisão de localidade. Além disso, não constavam informações sobre o verdadeiro nome e vínculos familiares, embora a equipe do atual hospital tenha realizado constantes pesquisas e investigações em cartórios, hospitais, CAPS e ambulatórios das cidades Cruz Alta, Santo Ângelo e Rio Grande, próximas a Porto Alegre/ RS, onde referiu ter morado.
Os primeiros registros de internação datavam de 1973 quando A3 foi transferido para a cidade de Bauru/ SP depois de internado no Hospital de Água Funda/ SP.
Tinha certa autonomia para atividades de higiene pessoal e orientações diárias, porem E3 é pouco comunicativo e não se relacionava com os outros moradores do setor.
Não possuia perfil de agressividade, embora os registros apontem ter fugido do Hospital Psiquiátrico de Franco da Rocha/ SP em 1967, sendo localizado dias depois através de boletim de ocorrência apresentando-se desnutrido, apático e assustado.
O diagnóstico com base em seu prontuário clínico era de Esquizofrenia[5], realizando o tratamento farmacológico controlado constantemente e tentativas de socialização e comunicação com os moradores do setor.
Não constavam registros em ter frequentado a escola na sua infância ou juventude, nem relata informações relacionadas ao assunto.
As atividades realizadas por E3 foram:
- Tema gerador: A Escola e a sociedade
Figura 7
- Tema gerador: O Homem
Figura 8
- Tema gerador: Danças e comidas típicas
Objetivo: Ampliar os conhecimentos sobre as diferentes culturas existentes no Brasil especificamente em relação às danças e comidas típicas de cada região, realizando um paralelo sobre as festas religiosas presentes no mês de junho.
Figura 9
3.4 Educando 4(E4)
E4 tinha 66 anos e nasceu em 1942 na cidade de Cravinhos/ SP. O pai trabalhou como padeiro e a mãe possuía deficiência visual, além de ser paraplégica. Em 1945, aos 3 anos de idade, E4 passou a morar com a avó e um tio, em função do falecimento do pai por motivos de alcoolismo e internação da mãe em Hospital Psiquiátrico de Lins/ SP por problemas de comportamento e maus tratos no filho. Além disso, alegava que teve um irmão, morto após um ano de vida por ingerir cacos de vidro.
Trabalhou como operário numa cerâmica na cidade de Ribeirão Preto/ SP, de onde retirou sua aposentadoria, além de ter exercido a função de vigia noturno em transportadora e engraxate na rodoviária na mesma cidade.
O primeiro registro de internação data de 1963, aos 21 anos, com o diagnóstico de problemas comportamentais de agressividade e choro compulsivo, além de alegar que ouvia assobios. Esteve internado 13 vezes no atual hospital, e passou por instituições em Brodowski, Araras, Barretos, Mococa, e num asilo na cidade de Ribeirão Preto/ SP. Tais internações não apresentavam registros precisos de entrada e saída.
Mantinha boas relações com os moradores do seu setor, alem de comunicativo, gostava de atividades relacionadas ao cotidiano, como cuidados do jardim e auxílio na limpeza.
Segundo o seu prontuário clínico, o diagnóstico era de Transtorno Afetivo Bipolar[6], tendo como tratamento farmacológico o uso de medicamentos controlados constantemente por médicos e psicoterápico, atividades da vida diária como musicoterapia por conta do comportamento agressivo verbal que apresenta às vezes no cotidiano. Além disso, realizava atividades com certa autonomia fora do hospital, mas com a mediação de sua referência em atividades bancárias e compras ao supermercado.
De acordo com os registros, E4 possuía apenas o primeiro ano de escolarização tendo repetido 8 vezes.
Atualmente E4 e sua parceira estavam em fase de ressocialização e trasferência para a cidade de Matão/ SP, originária da família de sua parceira.
As atividades realizadas foram:
- Tema gerador: O Homem
Figura 10
- Tema gerador: Diferentes povos, diferentes origens.
Objetivo:Ampliar os conhecimentos sobre as diferentes culturas existentes no Brasil especificamente em relação à formação étnica e cultural. Apresentar as várias culturas existentes e a necessidade de respeito sobre cada uma delas. Promover a conscientização às identidades de cada um através da produção textual relatando a história de vida.
Figura 11
- Tema gerador: Danças e comidas típicas
Figura 12
4 Discussão
Com base nas atividades apresentadas por E1 e E2 no início dos trabalhos, ambos com diagnóstico de Deficiência Mental, identificou-se forte característica da escrita mecânica vinculados ao contexto cultural, histórico e social dos quais ambos estiveram submetidos ao longo dos processos de internação. Os conhecimentos das práticas da escrita manifestavam-se ainda restritos em virtude da baixa interação sobre os diferentes contextos sociais de aprendizagem.
Contudo, possuíam uma breve concepção sobre o sistema da escrita, diferenciando-a dos níveis primitivos, com base em desenhos, mas a necessidade de utilização desse sistema voltado às práticas sociais. Assim, revelou-se que nas primeiras atividades
[…] o domínio precário de competência de leitura e de escrita necessárias para a participação em práticas sociais letradas e as dificuldades no processo de aprendizagem do sistema da escrita, ou da tecnologia da escrita – são tratados de forma independente, o que revela o reconhecimento de suas especificidades e uma relação de não-causalidade entre eles. (SOARES, 2008, p. 7)
Tornou-se fundamental na realização das novas atividades a valorização sobre cada trabalho produzido pelos educandos, com vistas a estimulá-los através da auto-estima, uma vez que possuíam resistência em escrever de forma autônoma, sobre a justificativa dos conhecimentos não adquiridos pelo sistema. A produção das atividades estava sempre relacionada ao campo de interesse e direcionada para a formação das práticas sociais dos educandos. Os resultados identificavam-se na dedicação que E1 e E2 apresentavam na busca de novas produções que estivessem relacionadas aos seus objetivos pessoais, tentando ultrapassar as limitações que muitas vezes o tratamento farmacológico e as dificuldades sintomáticas apresentavam-se ao longo dos trabalhos.
As estratégias que nortearam as atividades seguintes pautaram-se na produção autônoma da escrita, uma vez que E1 e E2 apresentavam-se ainda muito dependentes dos aspectos mecânicos. Assim, foram desenvolvidas propostas relacionadas às orientações espaciais, construção da história individual dos educandos e valorização das práticas sociais da escrita, pois,
A construção de um objeto de conhecimento implica muito mais que a mera coleção de informações. Implica a construção de um esquema-conceitual que permita interpretar dados prévios e novos dados (isto é, que possa receber informação e transformá-la em conhecimento); esquema conceitual que permita processos de inferência acerca das propriedades não-observadas de um determinado objeto e a construção de novos observáveis, na base do que se antecipou e do que foi verificado. (FERREIRO, 1988, p. 66)
As ultimas produções realizadas por E1 e E2, já em período de reinserção social, com a parceria da equipe terapêutica, possibilitaram identificar que os objetivos pessoais de cada um, relacionados a formação de agentes transformadores da sociedade, estavam em plena realização a partir das atividades desenvolvidas. Identificou-se, portanto que as múltiplas funções oferecidas pela escrita garantem a formação em práticas sociais também de pessoas acometidas com Deficiência Mental.
Quanto ao desenvolvimento dos trabalhos produzidos por E3 e E4, ambos acometidos com Doença Mental, segundo os diagnósticos apresentados, identificou-se logo no início das atividades que o processo de escolarização já esteve presente em algum momento anterior da história de ambos. Contudo, não existiam registros ou até mesmo eram escassas as informações que ambos abordavam sobre o fato de terem estudado anteriormente, sobretudo ao levar em consideração que E3 quase não se comunicava ou interagia durante as aulas.
A partir das primeiras atividades produzidas por E3 e E4 identificou-se a necessidade de um direcionamento pautado no desenvolvimento das práticas sociais significativas de cada um, aprimorando os padrões ortográficos de norma culta. Tornou-se necessário considerar nesse sentido que
[…] muitos são excluídos das práticas letradas, mesmo sabendo ler e escrever, porque não compartilham o conhecimento necessário para acessar o modo de funcionamento dessas práticas, enquanto outros o são devido a condições adversas, sócio-econômicas, educacionais, ou psíquicas […] (TFOUNI et al., 2008, p. 102).
Para tanto, foram propostas novas estratégias voltadas não apenas para o conteúdo, mas para as possibilidades que o uso da escrita ofereceria para E3 e E4, no sentido de desenvolver as potencialidades de cada um. Durante a realização dos trabalhos grande evolução foi identificada no âmbito da socialização de E3, levando-se em consideração as limitações de aspecto no aspecto cognitivo e emocional.
A valorização da produção escrita de E3 e E4, sobretudo através da contextualização ao cotidiano e ao campo de significado de cada um refletiu sobre a relação que o código possui com a oralidade. Entretanto, tornou-se fundamental desenvolver a compreensão dos diferentes tipos de textos presentes no cotidiano para que o ato da leitura gerasse a experiência como antecedente e possibilitasse a organização lógica e estrutural das idéias propostas na produção.
Na análise das atividades identificou-se que os educandos conseguiram separar claramente a escrita gráfica dos desenhos ou números, grande aspecto que diferencia a alfabetização de jovens e adultos sobre a infantil.
A interação durante todo o trabalho tornou-se fundamental para desenvolver nos educandos aspectos da linguagem oral sobre a importância do papel de cada um na sociedade, uma vez que inserido nela, são capazes de refletir e transformar a história e a cultura. Nas atividades seguintes procurou-se desenvolver o processo de interação sobre os diferentes temas e textos que pudessem estimular os educandos na produção e contextualização das práticas sociais da escrita.
Identificou-se que nas ultimas atividades apresentadas já havia a necessidade de transmissão das ideias na linguagem escrita, mas com o redirecionamento de novas estratégias de desenvolvimento das regras ortográficas.
Nesse sentido, conforme afirma Durante (1998, p. 27) “Mais do que ter acesso à linguagem é necessário que o indivíduo tenha acesso ao modo de pensar e refletir sobre a linguagem nas suas múltiplas funções de uso”. Assim, prosseguir com as estratégias de alfabetização e letramento com processos inerentes e fundamentais para as práticas sociais apresentam-se como ferramentas essenciais na reinserção de jovens e adultos à sociedade.
5 Conclusões
Com base nos aspectos estabelecidos, o presente trabalho teve por objetivo apresentar as possibilidades de reinserção social de jovens e adultos com Doença Mental, segregados ao longo da história a partir das práticas de alfabetização e letramento.
Os diferentes rumos que o trabalho apresentou durante a sua produção, identificaram a necessidade de incluir novas estratégias para identificar todo o contexto histórico e social que os sujeitos estiveram submetidos. A partir das novas ações que o desenvolvimento do trabalho proporcionou, foi possível reformular os conceitos acerca das terminologias de Doença, Deficiência e Transtorno Mental, além de relacioná-las aos estudos de alfabetização e letramento.
Diante disso, novos olhares foram analisados, no sentido de articular minuciosamente os fundamentos necessários para oferecer respaldo bibliográfico, pautados no campo biológico e educacional. Não poderia deixar de considerar também que as necessidades de novos paradigmas precisavam ser apresentadas frente a uma sociedade que ainda encara a diferença como um aspecto excludente e estigmático.
A partir de então, a análise dos trabalhos de campo garantiu toda a contradição quanto à desvalorização das potencialidades presentes nas múltiplas identidades sociais. Pois foi possível confirmar que, através das estratégias de leitura, produção e construção dialogal sobre os diversos temas presentes no contexto atual, as práticas sociais do letramento garantem a organização de uma linguagem clara, fundada nos interesses pessoais e construção da identidade dos educandos.
Tal aspecto apenas foi possível, considerando as necessidades de tecer novos rumos aos estudos bibliográficos durante o desenvolvimento do trabalho, identificando que o processo de alfabetização requer muito mais que o domínio do código escrito. A reinserção social de jovens e adultos segregados ao longo da história em instituições psiquiátricas, demanda também o processo de letramento que possibilita as práticas transformadoras da escrita pautadas no contexto das sociedades atuais.
Nesse sentido, o caráter da reinserção social só foi possível com a articulação dos conhecimentos clínicos e educacionais que respaldaram a produção dos trabalhos no sentido de construir formação da autonomia nos sujeitos envolvidos no projeto.
6 Referências bibliográficas
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World Health Organisation. CID-10 Classification of mental and behavioural disorders. Geneva: World Health Organisation, 1992.
[1] Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Coordenador Geral de Pós-Graduação Stricto Sensu e Lato Sensu pela Universidade Brasil
[2] Programa criado pelo Governo Federal e coordenado pelo Ministério da Educação, com a finalidade de abolir o analfabetismo no Brasil. (BRASIL, 2008).
[3] De acordo com o DSM IV (1994) o Retardo Mental caracteriza-se pelo mau funcionamento intelectual,acompanhado de limitações significativas no funcionamento adaptativo em pelo menos duas das seguintes áreas de habilidades: comunicação, autocuidados, vida doméstica, habilidades sociais/interpessoais, uso de recursos comunitários, auto-suficiência, habilidades acadêmicas, trabalho, lazer, saúde e segurança.
[4] De acordo com o DSM IV (1994) são medicamentos que controlam as “funções psicomotoras” apresentadas pela agitação e relacionadas às alucinações e delírios
[5] Segundo o DSM IV (1994) os sintomas característicos de Esquizofrenia envolvem uma faixa de disfunções cognitivas e emocionais que acometem a percepção, o pensamento inferencial, a linguagem e a comunicação, o monitoramento comportamental, o afeto, a fluência e produtividade do pensamento e do discurso, a capacidade hedônica, a volição, o impulso e a atenção. Nenhum sintoma isolado é patognomônico de Esquizofrenia; o diagnóstico envolve o reconhecimento de uma constelação de sinais e sintomas associados com prejuízo no funcionamento ocupacional ou social.
[6] Com base no DSM IV (1994), é caracterizado por dois ou mais episódios nos quais o humor e o nível de atividade do sujeito estão profundamente perturbados, sendo que este distúrbio consiste em algumas ocasiões de uma elevação do humor e aumento da energia e da atividade (hipomania ou mania) e em outras, de um rebaixamento do humor e de redução da energia e da atividade (depressão). Pacientes que sofrem somente de episódios repetidos de hipomania ou mania são classificados como bipolares.