REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202507081354
Bruno Demani da Cruz1
RESUMO
O cuidado em saúde mental no Brasil foi ressignificado com a Reforma Psiquiátrica, que defendeu a substituição do modelo hospitalocêntrico por uma rede de atenção psicossocial centrada na autonomia e na cidadania. Nesse cenário, os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) acolhem pessoas com transtornos mentais graves, egressas de longas internações, promovendo cuidado em liberdade e reinserção social. Este estudo teve como objetivo analisar a perspectiva do enfermeiro sobre o cuidado em saúde mental nos SRTs. Para isso, realizou-se uma revisão integrativa da literatura científica nacional produzida entre 2008 e 2023. Os estudos selecionados evidenciaram que o enfermeiro desempenha papel central nesses serviços, articulando dimensões assistenciais, educativas, relacionais e gerenciais. A discussão apontou que sua atuação é atravessada por desafios como a fragilidade da formação voltada à saúde mental, a precarização institucional e a sobrecarga de funções, mas também se configura como estratégica para consolidar os princípios da Reforma Psiquiátrica. Concluiu-se que a enfermagem nos SRTs contribui significativamente para a promoção da autonomia dos usuários, a construção de vínculos e a articulação em rede, sendo fundamental para a efetivação de um cuidado ético, territorializado e comprometido com os direitos humanos.
Palavras-chave: Saúde Mental. Serviços Residenciais Terapêuticos. Enfermagem Psicossocial
ABSTRACT
Mental health care in Brazil has undergone significant transformations since the Psychiatric Reform, which sought to replace the hospital-centered model with a psychosocial care network focused on autonomy and citizenship. Within this context, Therapeutic Residential Services (TRS) emerged as substitute devices aimed at hosting individuals with severe mental disorders and long institutionalization histories, with no family or community support. This study aimed to analyze the nurse’s perspective on mental health care provided in TRS. A qualitative integrative literature review was carried out, based on scientific productions published between 2008 and 2023. The results indicated that nursing professionals play a central role in structuring daily routines, supporting psychosocial rehabilitation, and mediating interpersonal relationships within TRS. However, limitations were identified, such as insufficient training, work overload, and institutional precariousness. The discussion highlighted the need to strengthen professional training in psychosocial care, ensure intersectoral
articulation, and promote working conditions that favor the ethical and contextualized exercise of nursing in the field of mental health. The conclusion reinforces the relevance of the nurse’s role in promoting care based on singularity, autonomy, and community reintegration, contributing to the consolidation of deinstitutionalization and the effectiveness of care in freedom.
Keywords: Mental Health. Therapeutic Residential Services. Nursing.
1 INTRODUÇÃO
A transformação das práticas em saúde mental no Brasil foi impulsionada pela Reforma Psiquiátrica, consolidada com a promulgação da Lei nº 10.216/2001, que estabeleceu a substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos por uma rede de atenção psicossocial, descentralizada e orientada pela promoção da cidadania.
Entre os dispositivos criados para viabilizar essa mudança, os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) se destacam por oferecerem moradia assistida a pessoas com transtornos mentais graves, egressas de longas internações e sem suporte familiar ou comunitário. Segundo Saraceno (2001), o cuidado territorializado representa um deslocamento paradigmático em direção à reabilitação psicossocial e à reinserção dos sujeitos na vida coletiva.
Os SRTs não devem ser compreendidos apenas como espaços físicos de moradia, mas como ambientes de convivência e reconstrução de laços sociais, nos quais se busca promover autonomia, escuta qualificada e respeito à singularidade dos usuários. Amarante (2007) ressalta que o cuidado em liberdade exige novas práticas profissionais, que valorizem a construção de vínculos e o exercício da corresponsabilidade entre equipe, usuários e território.
Nesse cenário, o enfermeiro assume papel estratégico, atuando não só na dimensão clínica, mas também na organização do cotidiano, na mediação de relações interpessoais, na supervisão de cuidadores e na articulação com os demais serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Contudo, essa atuação complexa é marcada por desafios relacionados à formação profissional, à sobrecarga de funções e à precarização das condições de trabalho. Estudos como os de Silva et al. (2022) e Kantorki et al. (2014) evidenciam que o cuidado em saúde mental no âmbito dos SRTs exige competências específicas, muitas vezes ausentes na formação tradicional em enfermagem, ainda centrada na lógica hospitalocêntrica. Soma-se a isso a necessidade de articulação intersetorial, planejamento terapêutico singularizado e desenvolvimento de práticas não medicalizantes.
Apesar da relevância da atuação da enfermagem nesses serviços, são escassas as pesquisas que investigam, de forma sistemática, a percepção do enfermeiro sobre sua prática no cotidiano dos SRTs. Faltam estudos que analisem os sentidos atribuídos ao cuidado, os limites enfrentados, as estratégias adotadas e as potências dessa atuação na consolidação do modelo de atenção psicossocial.
Como apontam Calgaro e Souza (2009), compreender a perspectiva dos profissionais que atuam diretamente com os usuários é fundamental para aprimorar as políticas públicas, a gestão dos serviços e os processos formativos na área da saúde mental.
Diante disso, formula-se a seguinte questão norteadora: Como o enfermeiro percebe e desenvolve o cuidado em saúde mental no contexto dos Serviços Residenciais Terapêuticos?
O objetivo geral desta pesquisa é analisar a perspectiva do enfermeiro sobre o cuidado em saúde mental nos Serviços Residenciais Terapêuticos, com base na produção científica publicada entre 2008 e 2023. Os objetivos específicos são: i) Levantar os sentidos atribuídos pelos enfermeiros ao cuidado em SRTs; ii) Identificar os elementos que caracterizam a prática da enfermagem nesse dispositivo; iii) Compreender os principais desafios e contribuições apontados pela categoria na literatura.
A justificativa para este estudo reside na importância de fortalecer a visibilidade da enfermagem no campo da saúde mental, especialmente em serviços como os SRTs, que exigem habilidades complexas, sensibilidade relacional e compromisso ético com o cuidado em liberdade.
2 METODOLOGIA
A metodologia aplicada neste estudo trata-se de uma revisão integrativa da literatura, de abordagem qualitativa e caráter exploratório, fundamentada na proposta metodológica descrita por Mendes, Silveira e Galvão (2008), que permite reunir e sintetizar estudos relevantes, oferecendo uma compreensão ampla, crítica e sistemática sobre o tema investigado.
Esta abordagem se justifica pela necessidade de mapear e analisar o conhecimento científico disponível acerca da atuação do enfermeiro nos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), no campo da saúde mental.
A busca pelos estudos foi realizada nas bases de dados SciELO (Scientific Electronic Library Online) e Google Scholar, entre os meses de abril e maio de 2025. Foram utilizados os seguintes descritores, com base no DeCS (Descritores em Ciências da Saúde) e termos livres: “Serviços Residenciais Terapêuticos”, “Enfermagem”, “Saúde Mental”, “cuidado em liberdade” e “Rede de Atenção Psicossocial”, combinados por meio do operador booleano AND. A estratégia de busca considerou diferentes formas de escrita e sinônimos, visando ampliar a sensibilidade da seleção.
Foram definidos como critérios de inclusão: (1) artigos publicados entre 2008 e 2023; (2) escritos em língua portuguesa; (3) disponíveis em texto completo; (4) com abordagem direta sobre a atuação da enfermagem nos SRTs; e (5) estudos empíricos ou teóricos publicados em periódicos científicos avaliados por pares.
Como critérios de exclusão, foram desconsiderados: (1) estudos duplicados; (2) artigos sem foco na categoria profissional da enfermagem; (3) publicações com caráter meramente opinativo, sem consistência metodológica; e (4) estudos centrados em outros dispositivos da RAPS sem correlação com os SRTs.
Inicialmente, foram identificados 136 artigos, sendo 8 na SciELO e 128 no Google Scholar. Após a aplicação dos critérios de tempo, idioma e disponibilidade, restaram 41 artigos com potencial de inclusão. Desses, 17 foram excluídos após leitura do título e resumo, e outros 7 foram desconsiderados após análise integral do conteúdo, por não atenderem aos critérios temáticos e metodológicos. Ao final, 17 estudos foram selecionados para compor o corpus da análise.
O fluxograma apresentado na Figura 1 sintetiza o processo de triagem dos artigos. A extração de dados incluiu: autores, ano, objetivo, resultados e conclusões. A análise seguiu abordagem temática, conforme proposto por Bardin (2016), com foco na sistematização das evidências acerca do cuidado em saúde mental realizado pela enfermagem no âmbito dos SRTs.
Figura 1 – Seleção de artigos

Fonte: Autoria própria (2025)
3 RESULTADOS
A produção científica voltada aos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) tem ressaltado a importância da enfermagem na consolidação de práticas de cuidado alinhadas aos princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira. Nesse contexto, a atuação do enfermeiro é reconhecida como estratégica para a efetivação de processos de desinstitucionalização e para a promoção da autonomia dos sujeitos em sofrimento psíquico.
Considerando a inserção dos SRTs na rede substitutiva de atenção psicossocial, os estudos incluídos nesta etapa da pesquisa foram analisados com o objetivo de identificar seus propósitos, abordagens metodológicas, principais resultados e conclusões relacionadas ao papel da enfermagem nesse cenário.
O Quadro 1, a seguir, apresenta uma síntese estruturada dos artigos selecionados, evidenciando elementos que contribuem para a compreensão das práticas assistenciais desenvolvidas, dos desafios enfrentados e das potencialidades dos SRTs no campo da saúde mental.
Quadro 1 – Síntese dos estudos selecionados
Autor(es) / Ano | Título do Estudo | Objetivo da Pesquisa | Principais Resultados | Conclusões |
Silva et al. (2022) | A atuação da enfermagem nos serviços de residência terapêutica | Avaliar a importância da enfermagem nos SRTs à luz da literatura recente | A enfermagem contribui para reabilitação psicossocial, rompimento de paradigmas e construção de sujeitos autônomos | O enfermeiro é peça chave para consolidar práticas comprometidas com os princípios da Reforma Psiquiátrica |
Martins (2013) | Possibilidades de atuação da enfermagem em saúde mental: contribuições no processo de implantação das RTs no município de Volta Redonda – Rio de Janeiro (2006-2011) | Analisar a participação da enfermagem na implantação das RTs em Volta Redonda (2006–2011) | A atuação da enfermagem foi decisiva para a consolidação dos SRTs e articulação em rede | A enfermagem contribui efetivamente para a construção de RTs enquanto espaços de cidadania e cuidado territorial |
Ribeiro Neto; Avellar(2009) | Conhecendo os cuidadores de um serviço residencial terapêutico | Conhecer a realidade e os desafios do trabalho dos cuidadores em uma residência terapêutica | Cuidadores aprendem na prática, relatam ausência de formação em saúde e enfrentam situações complexas no cuidado cotidiano | É necessário reconhecer e qualificar o trabalho dos cuidadores como parte essencial do processo de desinstitucionalização |
Silva; Azevedo (2011) | As novas práticas em saúde mental e o trabalho no SRT | Investigar a percepção de cuidadores sobre o trabalho no SRT de Caicó-RN | A equipe de enfermagem adota o enfoque psicossocial, mas enfrenta dificuldades estruturais, de recursos e reconhecimento | O trabalho nos SRTs é marcado por avanços conceituais, mas também por precariedade e ausência de políticas de suporte |
Kantorki et al. (2014) | O cotidiano e o viver no Serviço Residencial Terapêutico | Descrever o cotidiano em um SRT, com ênfase nas relações e mediações promovidas pela equipe | A equipe atua como mediadora no cotidiano dos moradores, promovendo autonomia, escuta e manejo de conflitos | O cotidiano terapêutico demanda mediações qualificadas e equipe engajada na construção de vínculos e redes de cuidado |
Oliveira; Conciani (2008) | Serviços residenciais terapêuticos: novos desafios para a organização das práticas de saúde mental em Cuiabá-MT | Analisar a experiência de implantação de 10 SRTs após o descredenciamento de hospital psiquiátrico em Cuiabá-MT | A implantação das RTs ocorreu por decisão política centralizada; destacou-se a tensão entre autonomia e controle institucional | Os SRTs são potencialmente emancipatórios, mas podem se tornar espaços de controle se não houver participação social ativa |
Silva et al. (2013) | A enfermagem na rede de apoio às residências terapêuticas para moradores com transtorno mental | Descrever a atuação da enfermagem na rede de apoio às RTs no município de Duque de Caxias-RJ | A enfermagem participou do planejamento, implantação e apoio às RTs, sendo reconhecida como essencial na rede | A enfermagem é agente fundamental para o êxito das RTs, articulando cuidado, gestão e apoio intersetorial |
Pessoa Júnior et al. (2017) | Enfermagem e o processo de desinstitucionalização no âmbito da saúde mental: revisão integrativa | Sintetizar o conhecimento produzido sobre a enfermagem no processo de desinstitucionalização | A prática da enfermagem deve ser orientada pela lógica da atenção integral e territorial em saúde mental | Formação e atuação profissional em enfermagem devem estar alinhadas à lógica da desinstitucionalização e cuidado em liberdade |
Calgaro; Souza (2009) | Percepção do enfermeiro acerca da prática assistencial nos serviços públicos extra-hospitalares de saúde mental | Identificar a percepção de enfermeiros sobre a prática assistencial em saúde mental nos serviços substitutivos | Percepção dos enfermeiros indica transição do modelo hospitalocêntrico para práticas humanizadas em rede | O novo modelo assistencial exige do enfermeiro competências específicas para atuação em equipe multiprofissional e rede substitutiva |
Fonte: Autoria própria (2025)
A revisão integrativa conduzida por Silva et al. (2022) reuniu publicações nacionais que tratam da atuação da enfermagem em residências terapêuticas. Os autores identificaram que o enfermeiro exerce papel central na reabilitação psicossocial dos usuários, promovendo autonomia e protagonismo. Concluíram que a consolidação de práticas fundamentadas nos preceitos da Reforma Psiquiátrica requer formação específica, apoio institucional e integração em rede.
A dissertação de Martins (2013), por sua vez, analisou a implantação dos SRTs no município de Volta Redonda (RJ) entre os anos de 2006 e 2011, com base em documentos e entrevistas com profissionais da rede. A autora evidenciou que a enfermagem atuou de forma decisiva na viabilização dos serviços, tanto no planejamento quanto na mediação cotidiana das atividades, contribuindo para a estruturação de dispositivos substitutivos ao modelo hospitalocêntrico. A pesquisa destacou, ainda, a importância do trabalho em equipe e da construção de vínculos com os usuários.
No estudo de Ribeiro Neto e Avellar (2009), realizado por meio de observação participante e entrevistas com cuidadores de uma residência terapêutica, observou-se que esses profissionais, mesmo sem formação específica em saúde mental, assumem responsabilidades significativas na rotina dos usuários. Os resultados indicaram a necessidade de maior suporte institucional e qualificação técnica para o desempenho das funções de cuidado, especialmente no manejo das situações de crise e no fortalecimento da autonomia dos moradores.
A pesquisa de Silva e Azevedo (2011) abordou a percepção de seis profissionais de enfermagem atuantes em um SRT no município de Caicó (RN). As entrevistas revelaram um trabalho centrado no enfoque psicossocial, embora limitado por dificuldades relacionadas à precariedade da estrutura física e à escassez de recursos humanos. A atuação da equipe buscava promover a (re)socialização dos usuários, com foco no cotidiano e nas relações comunitárias, ainda que com desafios evidentes na operacionalização dessa proposta.
O estudo de Kantorki et al. (2014), desenvolvido em Caxias do Sul (RS), descreveu as características do cotidiano dos moradores de um SRT e o papel da equipe profissional nesse contexto. Através da metodologia de análise de redes do cotidiano, identificaram-se categorias como mediação de conflitos, construção de alianças e uso da liberdade como instrumento terapêutico. A presença do enfermeiro foi apontada como fundamental na articulação entre os moradores, na promoção de autonomia e na gestão das rotinas.
Oliveira e Conciani (2008) analisaram a experiência de implantação de dez SRTs em Cuiabá (MT) após o descredenciamento de um hospital psiquiátrico. O estudo documental apontou que a decisão foi conduzida por instâncias políticas locais e que a criação dos serviços implicou novas exigências de gestão e acompanhamento. A autonomia dos moradores foi identificada como variável influenciada por mecanismos institucionais de controle, o que impôs limites à proposta de desinstitucionalização plena.
A pesquisa de Silva et al. (2013) descreveu o papel da enfermagem na rede de apoio às RTs em Duque de Caxias (RJ), evidenciando sua participação em diversas etapas do processo, desde o planejamento até a implantação dos serviços. O estudo destacou o papel articulador do enfermeiro na integração entre os dispositivos da rede substitutiva e na mediação com os usuários.
Pessoa Júnior et al. (2017) realizaram uma revisão integrativa com o objetivo de sintetizar o conhecimento sobre a atuação da enfermagem no processo de desinstitucionalização. Os autores indicaram que as práticas de cuidado têm se alinhado gradativamente aos princípios de integralidade e territorialidade, exigindo do profissional de enfermagem competências específicas para atuação em equipe multiprofissional e em rede.
Por fim, o estudo de Calgaro e Souza (2009) investigou a percepção de enfermeiros atuantes em serviços públicos extra-hospitalares de saúde mental, incluindo SRTs e CAPS. Os resultados apontaram a transição do cuidado centrado na internação para práticas mais humanizadas, ainda que permeadas por desafios relacionados à formação, suporte institucional e reconhecimento da especificidade do campo da saúde mental.
Esses resultados demonstram que, embora com diferentes enfoques metodológicos e contextos de aplicação, os estudos convergem ao reconhecer o enfermeiro como elemento central na estruturação e efetivação dos SRTs enquanto dispositivos de cuidado em liberdade.
A seguir, na seção de discussão, serão aprofundadas as implicações desses achados à luz da literatura especializada e das diretrizes da política nacional de saúde mental.
4 DISCUSSÃO
A atuação do enfermeiro nos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), no contexto da saúde mental, exige práticas que ultrapassam os limites tradicionais da enfermagem clínica e se inscrevem na lógica da atenção psicossocial. O cuidado em saúde mental nesses dispositivos substitutivos se ancora em princípios como a autonomia, a singularidade e a construção de vínculos.
Nesse cenário, a enfermagem assume papel fundamental na efetivação das diretrizes da Reforma Psiquiátrica, contribuindo para a consolidação de um modelo de cuidado em liberdade, centrado no sujeito e no território.
Os estudos analisados nesta revisão evidenciam que o enfermeiro é um dos principais mediadores do cuidado nos SRTs, sendo responsável tanto por ações assistenciais quanto pela organização do cotidiano dos usuários. O cuidado em saúde mental praticado por esses profissionais se constrói em meio à convivência, à escuta ativa, à supervisão de atividades de vida diária e à promoção da autonomia, o que exige a articulação de competências técnicas, relacionais e éticas.
Amarante (2007) já indicava que a superação do hospital psiquiátrico não se resume à substituição física, mas implica uma reconstrução simbólica do cuidado. Nessa perspectiva, o enfermeiro deixa de ser um executor de prescrições para tornar se um facilitador de processos terapêuticos singulares, envolvendo-se diretamente na vida cotidiana dos moradores dos SRTs. Isso implica lidar com situações imprevisíveis, com conflitos interpessoais, com crises psíquicas e com a reconstrução de projetos de vida historicamente interrompidos pela institucionalização.
Os SRTs, por abrigarem sujeitos que passaram longos períodos em hospitais psiquiátricos, concentram experiências de ruptura, sofrimento e exclusão social. O cuidado em saúde mental nesses espaços demanda sensibilidade para reconhecer as marcas da institucionalização e promover estratégias que estimulem a autonomia, a convivência e a reconstrução da identidade. Nesse processo, o enfermeiro desempenha papel estratégico, pois é com ele que os usuários mantêm vínculos constantes, compartilhando a rotina, as dificuldades e os avanços terapêuticos.
Martins (2013) reforça que o cuidado praticado nos SRTs é também de natureza educativa e relacional. O enfermeiro participa da mediação de conflitos, da construção de rotinas, do incentivo à participação dos moradores nas decisões coletivas e da articulação com a rede de serviços. Essa atuação não se restringe à dimensão técnica do cuidar, mas envolve aspectos subjetivos que demandam escuta qualificada, paciência e abertura à alteridade.
Silva et al. (2022) destacam que, em muitos serviços, o enfermeiro é o profissional de referência para os moradores, exercendo funções de apoio emocional e supervisão dos cuidadores. A ausência de outros profissionais de nível superior torna a enfermagem a principal interface entre o SRT e o restante da RAPS, o que amplia ainda mais suas atribuições.
A elaboração e condução do Projeto Terapêutico Singular (PTS) torna-se, muitas vezes, responsabilidade do enfermeiro, que precisa equilibrar os princípios da atenção psicossocial com as condições reais de trabalho e as demandas institucionais.
Entretanto, os estudos também evidenciam que a formação dos enfermeiros ainda é um desafio significativo para a consolidação do cuidado em saúde mental nos SRTs. Pessoa Júnior et al. (2017) apontam que os currículos dos cursos de graduação em enfermagem permanecem centrados na lógica biomédica, hospitalar e prescritiva, com pouca ênfase nas práticas psicossociais, nos direitos humanos e na clínica ampliada. Isso compromete a capacidade do profissional de atuar com segurança e criticidade em serviços que exigem um novo olhar sobre o cuidado. Essa lacuna na formação inicial é agravada pela ausência de espaços contínuos de educação permanente nos serviços. Muitos enfermeiros relatam que aprendem a atuar nos SRTs a partir da experiência cotidiana, por meio da tentativa e erro, sem apoio institucional ou supervisão técnica adequada. Como alerta Yasui (2010), a consolidação da atenção psicossocial exige rupturas epistemológicas com o modelo tradicional, o que demanda investimento formativo constante e políticas públicas que valorizem as práticas em saúde mental.
Além da formação, os desafios estruturais enfrentados nos SRTs também impactam diretamente a prática da enfermagem. Kantorki et al. (2014) evidenciam que a sobrecarga de funções, a escassez de recursos materiais e humanos e a indefinição de papéis são realidades comuns nesses serviços. Muitas vezes, o enfermeiro se vê responsável por tarefas administrativas, pela coordenação da equipe, pela mediação de conflitos e pelo gerenciamento da casa, acumulando funções que extrapolam sua formação original.
Ribeiro Neto e Avellar (2009) também destacam que a ausência de cuidadores qualificados e a alta rotatividade de funcionários dificultam a construção de vínculos duradouros com os usuários. Nesse contexto, o enfermeiro precisa assumir o papel de formador e supervisor, orientando os demais trabalhadores sobre práticas de cuidado, manejo de crises, organização do espaço e ética profissional. Essas funções, embora fundamentais, não são devidamente reconhecidas nem valorizadas pelas gestões institucionais.
Outro ponto relevante abordado na literatura diz respeito à articulação da enfermagem com os demais dispositivos da RAPS. Silva et al. (2013) indicam que o enfermeiro atua como elo entre o SRT e unidades básicas de saúde, CAPS, serviços sociais, centros de convivência e instituições educacionais. Essa articulação é fundamental para garantir a integralidade do cuidado, ampliar o acesso a direitos e evitar a reatualização de práticas segregadoras. No entanto, muitos serviços enfrentam dificuldades para manter essa conexão, seja por barreiras logísticas, ausência de transporte público, precarização da rede ou desarticulação entre as políticas públicas.
Oliveira e Conciani (2008) apontam que, em alguns municípios, os SRTs foram implantados sem planejamento territorial adequado, o que compromete sua inserção na comunidade e dificulta o trabalho em rede. Isso afeta diretamente o cuidado em saúde mental, pois reduz as possibilidades de circulação dos moradores, o acesso a serviços complementares e a participação em espaços coletivos. O enfermeiro, nesse cenário, precisa se desdobrar para compensar essas ausências, assumindo responsabilidades que extrapolam seu campo de atuação e sobrecarregam sua rotina.
A presença de cuidadores ou acompanhantes terapêuticos sem formação específica, contratados por prefeituras ou organizações sociais, é outra realidade frequente. Ribeiro Neto e Avellar (2009) relatam que esses trabalhadores, muitas vezes, não possuem preparo técnico nem compreensão sobre os princípios da reforma psiquiátrica. A supervisão e capacitação desses profissionais recaem sobre o enfermeiro, que precisa garantir a qualidade do cuidado, preservar os direitos dos usuários e evitar práticas coercitivas ou institucionalizantes.
A dinâmica do trabalho em equipe também é objeto de análise. Embora as diretrizes do SUS enfatizem a composição horizontal e a co-responsabilidade entre os profissionais, Campos (2000) e Schein (2001) reconhecem que, na prática, a construção do trabalho coletivo enfrenta resistências. A falta de protocolos compartilhados, os conflitos de atribuição e a hierarquização das funções comprometem a qualidade do cuidado e geram desgaste emocional entre os profissionais, especialmente na enfermagem, que permanece na linha de frente da assistência.
A convivência entre os moradores também representa uma dimensão sensível do cuidado em saúde mental. Muitos usuários chegam aos SRTs com histórico de isolamento, violência institucional e ruptura de vínculos. A mediação de conflitos, a construção de regras coletivas e o acolhimento das singularidades fazem parte do cotidiano dos enfermeiros, que precisam conciliar a escuta empática com a garantia de convivência segura e com respeito. Cecílio (2009) enfatiza que o cuidado se produz no microespaço das relações, exigindo sensibilidade e ética do encontro.
Calgaro e Souza (2009), ao investigarem a percepção de enfermeiros em serviços substitutivos, identificaram a valorização da escuta e da construção de autonomia como aspectos centrais do trabalho. Essa proximidade com os usuários permite que o enfermeiro acompanhe os processos de transformação subjetiva, de reconstrução de autoestima e de reinvenção da vida cotidiana. O vínculo estabelecido entre profissional e morador é terapêutico em si, funcionando como dispositivo de reabilitação psicossocial.
A centralidade do Projeto Terapêutico Singular (PTS) é outra dimensão do cuidado em saúde mental destacada nos estudos. O enfermeiro, por estar inserido na rotina dos moradores, possui informações privilegiadas sobre seus hábitos, necessidades, desejos e dificuldades. Isso o qualifica a participar da elaboração e acompanhamento do PTS, contribuindo para a construção de estratégias personalizadas, não medicalizantes e orientadas à autonomia.
Por fim, cabe destacar que o SRT não deve ser entendido apenas como uma casa ou abrigo, mas como um espaço político de cuidado, onde se disputa o sentido da loucura, da cidadania e do pertencimento social. Rotelli et al. (1990) lembram que a desinstitucionalização não se resume à mudança de endereço, mas requer transformações na lógica do cuidado. A enfermagem, ao ocupar esse espaço com compromisso ético e político, contribui para consolidar práticas de saúde mental baseadas na liberdade, na corresponsabilidade e na dignidade.
Neste contexto, a discussão dos estudos evidencia que a atuação do enfermeiro nos SRTs se configura como um processo complexo, relacional e ético, no qual o cuidado em saúde mental é construído no cotidiano, na escuta, na convivência e na articulação com a rede.
Para que esse trabalho se efetive de forma integral, é fundamental o reconhecimento institucional da enfermagem, a garantia de formação adequada e o fortalecimento das condições de trabalho nesses dispositivos. O cuidado em liberdade, tão defendido pela reforma psiquiátrica, passa pela prática cotidiana do enfermeiro, que se reinventa a cada encontro com o sofrimento psíquico no território.
5 CONCLUSÃO
A análise da produção científica sobre os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) evidencia que o cuidado em saúde mental, quando realizado sob a perspectiva da enfermagem, adquire contornos singulares, exigindo práticas interdisciplinares, sensibilidade relacional e compromisso ético com os princípios da Reforma Psiquiátrica.
O enfermeiro, inserido no cotidiano desses serviços, torna-se um agente fundamental para a construção de espaços de cuidado em liberdade, onde o sujeito em sofrimento psíquico é reconhecido em sua integralidade e singularidade.
Os estudos analisados revelam que a atuação da enfermagem nos SRTs vai além do cuidado clínico tradicional, abrangendo dimensões como a mediação de conflitos, o fortalecimento da autonomia dos moradores, a organização da rotina, o apoio à reinserção social e a articulação com os demais pontos da Rede de Atenção Psicossocial. Essa multiplicidade de funções torna a prática do enfermeiro complexa e desafiadora, exigindo formação específica, suporte institucional e condições adequadas de trabalho.
Ao mesmo tempo, a perspectiva do enfermeiro sobre seu fazer cotidiano nos SRTs revela tensões importantes, como a sobrecarga de responsabilidades, a ausência de cuidadores qualificados, as dificuldades de articulação em rede e os limites impostos por estruturas físicas e logísticas precárias.
Ainda assim, mesmo diante desses obstáculos, os relatos demonstram que a presença cotidiana do enfermeiro favorece o vínculo com os usuários, a escuta qualificada e o desenvolvimento de projetos terapêuticos centrados no sujeito e no território.
Compreender essa atuação é essencial para valorizar o papel da enfermagem nos serviços substitutivos e para qualificar o cuidado em saúde mental oferecido à população. A consolidação dos SRTs como espaços efetivos de reabilitação psicossocial passa, necessariamente, pela valorização da equipe de enfermagem, pelo investimento em formação continuada e pela ampliação das políticas públicas voltadas à atenção psicossocial.
Conclui-se que o cuidado exercido pelo enfermeiro nos SRTs constitui uma prática potente, que se concretiza na convivência diária, na mediação do sofrimento e na reconstrução de trajetórias de vida. Essa prática deve ser reconhecida como central na política de saúde mental brasileira e fortalecida como estratégia de promoção de cidadania, autonomia e dignidade.
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1Bacharel em Enfermagem pela Universidade Salgado de Oliveira. Especialização em Auditoria em Enfermagem, Enfermagem do Trabalho e Enfermagem em Infectologia pela Faculdade Facuminas de Pós-graduação. Especialização em Enfermagem em Unidade de Terapia Intensiva pela Faculdade Venda Nova do Imigrante.