O CONTRATO DE MÚTUO EM ROMA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7888181


João Antonio Sampaio Camelo


RESUMO

Tendo em vista a necessidade de se conhecer as origens do contrato de mútuo e de especificá-lo em sua raiz romana, pesquisa-se sobre a evolução desta modalidade de empréstimo em Roma, a fim de delimitar o seu conteúdo nos diversos períodos do direito romano. Para tanto, é necessário recorrer às fontes originais do direito romano e à doutrina especializada sobre o tema. Realiza-se, então, uma pesquisa de caráter eminentemente bibliográfico e comparativo. Diante disso, verifica-se que o mútuo romano foi um contrato real, não formal, unilateral e gratuito, protegido pela condictio e voltado para a transmissão de bens fungíveis a outrem, ficando este obrigado a restituir àquele algo do mesmo gênero e espécie, o que não impediu os romanos de reconhecer a existência de tipos especiais e de esboçar regras específicas para estes casos.

Palavras-chave: Direito romano. Mútuo romano. Mútuos especiais.

ABSTRACT

Observing the need to know the origins of the loan agreement and to specify it in its Roman root, we research the evolution of this type of contract in Rome, in order to delimit its content in the different periods of Roman Law. For that, it is necessary to resort to the original sources of Roman law and the specialized doctrine on the subject. A research of an eminently bibliographical and comparative character is then carried out. In view of this, it is argued that the Roman loan was a real, non-formal, unilateral and free contract, protected by the condictio and aimed at the transmission of fungible goods to others, who are obliged to return something of the same kind, which it did not prevent the Romans from recognizing the existence of special types and drawing up specific rules for these cases.

Keywords: Roman law. The loan contract in Rome. Specific loan agreements.

1  INTRODUÇÃO

Em Roma, o contrato de mútuo é tido como uma modalidade de empréstimo pelo qual alguém (o mutuante) transfere a propriedade de um bem fungível a outrem (o mutuário), esperando que este restitua algo do mesmo gênero e espécie daquilo que foi objeto do negócio. Esta é a estrutura básica deste contrato e a maneira pela qual ele foi legado ao mundo ocidental, persistindo até a atualidade.

O presente trabalho tem como objeto identificar as características básicas desse negócio e as regras que constituem a sua dinâmica, indagando a respeito dos seus requisitos, da ação que tutelava o mútuo, da sua classificação contratual, da onerosidade ou gratuidade desta modalidade de empréstimo, de suas formas especiais, entre outras questões.

Para tanto, mobilizou-se uma pesquisa de caráter eminentemente bibliográfico, fincada na leitura direta dos textos romanos sobre o contrato de mútuo – notadamente, o Corpus Iuris Civilis – e no estudo comparativo das colocações e posições dos principais especialistas no assunto. Assim, optou-se por dividir a presente pesquisa em várias seções, começando com um breve histórico do mútuo e passando para o delineamento do regime jurídico deste contrato, das suas formas de tutela, da sua classificação básica e das suas modalidades especiais.

Como se sabe, o direito romano constitui a raiz de grande parte das figuras que compõem o direito ocidental. Portanto, conhecer a cultura jurídica romana é conhecer as origens do direito vigente e uma forma de compreender melhor os institutos jurídicos atuais, especialmente no caso do mútuo, o qual representa um tipo de relação muito comum na antiguidade.

2  CONCEITUAÇÃO BÁSICA, ETIMOLOGIA E BREVE HISTÓRICO DO MÚTUO ROMANO

O significado do vocábulo mutuum (mútuo) é descrito por Gaio[1], em suas

Institutas, da seguinte forma:

“De contratos reais, ou contratos criados pela entrega de uma coisa, temos um exemplo no empréstimo para consumo, ou empréstimo em que se transfere a propriedade da coisa emprestada. Isso se relaciona com coisas que são estimadas por peso, número ou medida, como dinheiro, vinho, óleo, milho, bronze, prata, ouro. Neles transferimos a nossa propriedade com a condição de que o destinatário nos transfira de volta, no futuro, não as mesmas coisas, mas outras coisas da mesma natureza: e este contrato é chamado de Mutuum, porque algo de meu se torna tuum”.

Com efeito, segundo o jurisconsulto romano, fala-se em mutuum porque algo de “meu” (meo) faz-se “teu” (tuum). Tentar atingir o significado dos vocábulos jurídicos pela via etimológica era uma prática relativamente comum aos jurisconsultos da época clássica. Já os estóicos encorajaram tal exercício, justamente por acreditarem que as palavras tinham uma origem natural. Porém, atualmente, não é unânime que essa citação de Gaio esteja, realmente, correta em seu intuito.[2]

Atualmente, tem-se considerado que a palavra mutuum provém de mov, vocábulo do qual se originam movere e mutare (significando troca ou de mudança de lugar)[3].

De qualquer forma, por mútuo, no direito romano, entende-se, basicamente, um empréstimo de consumo (e não de uso!). Um bem fungível terá a sua propriedade transferida a um terceiro (o mutuário), o qual ficará obrigado a restituir o mutuante (aquele que faz o empréstimo) não o objeto mutuado, mas outro bem do mesmo gênero – tudo isso dentro de um prazo previamente estabelecido ou, se não houver, a qualquer momento, por solicitação do credor.[4]

Trata-se de um instituto antiquíssimo tanto na história de Roma como na vida de outras civilizações antigas, entre as quais destacam-se, principalmente, a civilização babilônica, com o Código de Hamurabi, e a civilização grega. Nestas sociedades, inclusive, os empréstimos não raramente vinham acompanhados de juros, prática, como veremos, muito limitada e recheada de vicissitudes em Roma – só completamente proibida entre os hebreus.[5]

Em Roma, o certo é que, no período monárquico e nos primeiros tempos da república, aquela sociedade rural, de economia agrícola e praticante da pecuária, não distinguia os diferentes tipos de empréstimos atualmente conhecidos e classificados. A sua proteção era confiada à deusa Fides (responsável pela guarda não só do mútuo, mas também dos contratos bilaterais de bona fides). Os empréstimos de uso (comodato), de guarda (depósito) e de consumo (mútuo), que geralmente versavam sobre os produtos mais rudimentares, eram o mesmo. A elevação do mútuo ao nível de figura jurídica só se efetivou na parte final da república ou no início do principado, dentro da noção edital de credere, quando o pretor criou as actiones in factum para tutelar o comodato é o penhor. A sua proteção jurídica, por sua vez, entra na noção de condictio sine causa, ou seja, o devedor insolvente deveria restituir o valor mutuado porque, do contrário, seria um enriquecimento sem causa. A partir daí, há toda uma evolução histórica que ficará mais clara do decorrer deste trabalho.[6]

3  O REGIME JURÍDICO-ROMANO DO MUTUUM

Antes de adentrar no regime jurídico desta figura obrigacional, é preciso ter em mente que o mútuo possui dois elementos estruturantes e alguns requisitos subalternos. Os elementos estruturantes do mútuo são a datio (ou seja, a efetiva transmissão da propriedade do bem mutuado) e a conventio (isto é, o acordo de vontades pelo qual as partes reconheciam a obrigação de restituir o mutuante de um bem idêntico ao objeto mutuado).[7]

3.1  A datio como elemento estruturante do mútuo romano

Neste sentido, o mútuo supõe a datio, ou seja, a efetiva transferência da propriedade de um bem fungível. Porém, isso traz algumas implicações, pois, como para transferir a propriedade de um bem é preciso antes ter a sua propriedade e, além disso, ter condições jurídicas para fazê-lo, os romanos logo entenderam que, se o mútuo supõe a datio, é preciso, com efeito, que o mutuante seja proprietário do objeto mutuado e que ele tenha capacidade jurídica para transmitir o bem a um terceiro, sob pena de não haver qualquer modificação no campo jurídico.[8]

A propósito, veja-se este fragmento de Ulpiano[9]:

“Quem dá o empréstimo para consumo deve ser o proprietário; e isso não é contradito pelo fato de que os filiusfamilias e os escravos obriguem emprestando moedas de seu pecúlio; pois esse é o mesmo tipo de caso em que você dá dinheiro sob meu comando; então, a ação recai sobre mim, embora as moedas não sejam minhas”.

Não obstante, é válido destacar que Gaio ensina não poderem a mulher e o pupilo alienar (e, assim, mutuar) res mancipi sem a autorização do tutor, podendo, no entanto, as mulheres realizarem a alienação de res nec mancipi sem qualquer autorização (o que não era permitido aos pupilos).[10]

Observe-se o que diz Gaio[11] a respeito:

“Devemos observar, a seguir, que nem uma mulher nem um pupilo podem alienar uma res mancipi sem a autorização de seu tutor: nem mesmo um pupilo pode alienar uma res nec mancipi sem tal autorização, embora uma mulher o possa”.

“Portanto, uma mulher que empresta dinheiro sem a autorização do tutor transmite a propriedade para o mutuário, uma vez que o dinheiro é uma res nec mancipi, impondo-se, assim, uma obrigação contratual ao mutuário”.

“Tendo em vista que um tutelado que empresta dinheiro sem a autorização de seu tutor não transmite a propriedade e, portanto, não impõe uma obrigação contratual ao mutuário, ele pode, então, recuperar o dinheiro, se existir, por meio de reivindicação, isto é, reclamando-o como proprietário quiritário; enquanto uma mulher só pode trazer uma ação pessoal de dívida. Se um tutelado pode manter uma ação contra o mutuário no caso de o dinheiro ter sido gasto por ele, é um assunto controverso, pois um tutelado pode adquirir o direito de ação contra uma pessoa sem a autorização de seu tutor”.

É necessário ressaltar, ademais, que, no período medieval, foram elencadas duas exceções à exigência de ter capacidade jurídica para conferir o mútuo. A primeira delas é a hipótese de posterior aquisição do bem pelo mutuário. A segunda, refere-se à hipótese do mutuário de boa-fé que já consumiu o bem.[12]

Quanto à primeira exceção, é preciso sublinhar que as fontes em que as escolas medievais fundamentam a sua constatação são dois fragmentos do Digesto. Eis os trechos:

“Quem dá o escravo de outro a título de pagamento é liberado pela usucapião do escravo”.[13]

“Se as moedas de outrem forem pagas, sem o conhecimento ou vontade de seu dono, elas permanecem como propriedade daquele a quem pertenciam; caso tenham sido misturadas, está escrito nos livros de Gaius [Cassius Longinus] que caso a mistura seja tal que não possam ser identificadas, elas se tornam propriedade de quem as recebeu em pagamento, de modo que seu [antigo] proprietário adquira uma ação por furto contra o homem que as deu”.[14]

Percebe-se, no entanto, que ambos os fragmentos se referem não ao empréstimo de bem fungível para o seu consumo, mas ao pagamento de dívidas. Com efeito, erraram as escolas medievais ao aplicarem tais fontes ao mútuo, numa espécie de analogia que ignora a especificidade dessa figura jurídica em relação às obrigações em geral: o mútuo só se constitui com a datio, de modo que, antes dela, não há mutuum e, dessa forma, não há semelhança que justifique a referida analogia.[15]

A segunda exceção à exigência de ter capacidade jurídica é a hipótese de o mutuário, de boa-fé, já ter consumido o bem. Com efeito, se já o tiver feito de boa-fé, o mútuo se convalida. Trata-se de um expediente da época justinianeia. No período clássico, não há fontes que indiquem a convalidação do empréstimo pelo consumo de boa-fé.[16]

Devemos observar a seguir que nenhum pupilo de qualquer sexo pode alienar qualquer coisa sem a autoridade de seu tutor. Consequentemente, se um pupilo tenta emprestar dinheiro sem tal autoridade, nenhuma propriedade é transmitida e não se impõe qualquer obrigação contratual; portanto, o dinheiro, se existir, pode ser recuperado por ação real. Se o dinheiro que ele tentou emprestar foi gasto de boa-fé por quem as recebeu, este pode ser demandado pela ação pessoal chamada condictio; se tiver sido gasto de má-fé, o pupilo demandá-lo-á pela actio ad exhibendum”.17

Com efeito, é necessário haver a autorização do tutor para que a mulher ou o menor possa alienar bens e, mais especificamente, conferir mútuo. Porém, se o mutuário já consumiu o bem e agiu de boa-fé, o mútuo será convalidado e o mutuante deverá valer-se da condictio (a ação própria do mútuo) para satisfazer o seu crédito. Agindo o suposto mutuário de má-fé, não haverá mútuo, cabendo a actio exhibendum (a equivalente justinianeia da clássica reivindicatio). Excetua-se, assim, a necessidade de se ter capacidade jurídica.[18]

Ainda sobre a datio, enquanto elemento estrutural do mútuo, vale destacar que ela poderia ser operada diretamente pelo paterfamilias ou, a seu mando (iussum), por um escravo ou filiusfamilias. Inclusive, o pater poderia tomar empréstimo através do filius e do servus, figurando como mutuário. No caso de conferir mútuo por meio do escravo ou do filiusfamilias, o pater poderia demandar o mutuário mobilizando uma actio translativa. Se tomasse empréstimos de consumo por meio deles, poderia o mutuante demandar o dominus através de uma actio quod iussu, também translativa. Não se trata aqui de representação, mas de mera substituição, pois não há acordo de vontades, mas uma natural consequência do estado de sujeição em que o filius e o servus se encontram diante do pater.[19]

Mas, e se o mútuo fosse concedido pelo filius ou servus sem a ordem ou o consentimento do pater? Neste caso, não há mútuo e o objeto supostamente mútuo continua a fazer parte da propriedade do pater. Porém, pode ser que o aparente mutuário já tenha consumido o bem. Neste caso, já se observa alguma controvérsia. As escolas medievais defendem que o consumo de boa-fé convalida o mútuo, alegando, inclusive, que a ação a ser manejada pelo mutuante, em busca de seu crédito, é a condição ex mutuo. Entretanto, esta posição vem sendo contestada.[20]

Veja-se a seguinte citação de Paulo[21]:

“Se um escravo fugitivo empresta dinheiro a ti, o seu dono pode apresentar uma condictio contra ti? Certamente, um escravo meu com licença para administrar seu pecúlio fará um empréstimo válido para consumo, emprestando a ti; mas no caso de um empréstimo feito por um fugitivo ou por outro escravo agindo contra a vontade de seu senhor, a propriedade das moedas não passará para o destinatário. Qual é o resultado? As moedas podem ser reivindicadas se ainda existirem, ou uma actio ad exhibendum pode ser movida se elas tiverem deixado de ser possuídas por meio de fraude; se tu as usaste sem má-fé, posso apresentar uma condictio contra ti”.

É preciso sublinhar que Paulo fala expressamente que, se não houve consentimento do dono, não há mútuo, de modo que a condictio supramencionada não pode ser a condictio ex mutuo da qual falam os medievais, mas a condictio sine causa, voltada para inibir o enriquecimento sem causa. O pater, quando vê um bem do seu patrimônio ser dado em mútuo a um terceiro de boa-fé e ser consumido por ele sem o seu consentimento, deve manejar uma condictio sine causa e não uma condictio ex mutuo, pois não há mútuo.[22]

Sublinhe-se que, no mútuo, a datio, ou seja, a transmissão da propriedade, pode se dar de várias maneiras, inclusive por delegação, por traditio longa manus ou por tradictio brevi manu.[23]

Veja-se esta citação de Ulpiano24: “Onde, na sua ausência e sem o seu conhecimento, dou as minhas moedas como se fossem suas, Aristo escreve que a condictio sobrevém para você”.

Com efeito, se alguém der mútuo em nome de outrem, a condictio surgirá para este último. Igualmente, se o devedor der o bem devido a um terceiro, a título de mútuo do credor, este último poderá exigir a restituição através da condictio.

Observe-se o seguinte fragmento de Ulpiano25:

“Eu fiz um depósito contigo de dez moedas. Mais tarde, permiti que tu as usasses. Nerva e Próculo dizem que também antes de serem utilizadas posso reclamá-las com a condictio como dadas a ti em mútuo; e isso é correto, como Marcelo também considera, porque a intenção inicia a posse. Assim, o risco é transferido para quem buscou o empréstimo para consumo, e a condictio corre contra ele”. Trata-se da tratdictio brevi manu, ou seja, uma forma de entrega do bem meramente espiritual ou ideal. Em termos práticos, ocorre, por exemplo, quando o depositário de um bem passa a gozar do direito de usá-lo para consumo, havendo, neste caso, não mais um depósito, mas um mútuo, sujeito à condictio.26

3.2  A conventio como elemento estruturante do mútuo romano

Além da datio, ou seja, da efetiva transmissão da propriedade, o mútuo romano exigia a conventio, ou seja, o acordo de vontades relativo a um empréstimo de uso, com a consequente necessidade de restituição.27

Neste sentido, confira-se este trecho de Paulo28:

“Além disso, não basta, para se criar uma obrigação, que o dinheiro pertença ao doador e se torne propriedade de quem o recebe, mas também que seja dado e aceito com o propósito de que se constitua tal obrigação. Portanto, se alguém me deu seu dinheiro com a intenção de fazer um presente, então, mesmo que tenha pertencido ao doador e tenha se tornado meu, não estarei vinculado a ele, porque isso não foi negociado entre nós”.

Trata-se de elemento controverso no âmbito doutrinário, pois, se não restam dúvidas de sua necessidade no período propriamente justinianeu, há quem indague se os juristas romanos clássicos, seguindo a Lei das Doze Tábuas, se importavam com esse fator. Ihering, o principal defensor desta posição, diz que os juristas romanos clássicos seguiam, implicitamente, a máxima in principio erat verbum, querendo significar, com isso, que só a palavra tinha relevância para realização de negócios. Os seguidores de Ihering dedicados ao estudo das interpolações passaram a defender, então, que a vontade é um expediente grego que só teve efetiva relevância no mundo jurídico romano na época das escolas orientais pós-clássicas, de modo que, no período anterior, o que contava era a palavra. Vícios da vontade como o dolo e a fraude estavam completamente legalizados.[29]

Veja-se, com efeito, alguns trechos de Ihering[30]:

“O apego à palavra é um desses fenômenos que, no direito como em outros ramos, caracterizam a imaturidade do desenvolvimento intelectual. A frente da história do direito poder-se-ia escrever esta epígrafe – In princípio erat verbum. A palavra, quer escrita, quer solenemente expressa (fórmula), aparece, nos povos jovens, com um tanto de mistério, a que a fé ingênua atribúe uma força sobrenatural. Em parte alguma, porém, essa crença foi tão profundamente sentida como na antiga Roma. (…) Alguém era obrigado a transferir a propriedade dum escravo (dare); mas se este adoecia e morria por falta de cuidados ou assistência médica, seria o devedor responsável por isso? Não, porque era obrigado a dare e não a facere. Um vendedor consentiu, no caso de evicção da coisa, a stipulatio dupli; uma parte foi reivindicada; será ele o responsável? Não, porque para este assunto e para todos os outros, os termos do contrato se limitavam, estritamente, à extensão da obrigação; sutis est, diz Cícero (de off. III, 16), falando da obrigação do vendedor, segundo a lei das XII tábuas, ea praeslari, quae sunt língua nuncupata“.

Contudo, remeter a consideração da vontade para as escolas orientais não é uma posição acertada e as fontes demonstram isso.

Leia-se, por exemplo, este trecho de Ulpiano[31]:

“Há uma palavra geral, o termo conventio, relacionada a tudo o que foi acordado por aqueles que fazem algum contrato ou acordo entre si; pois assim como aqueles que são reunidos e vêm de diferentes lugares para o mesmo lugar são considerados como estando juntos, então aqueles que, por diferentes movimentos da mente, concordam em uma coisa formam uma única opinião [pode-se dizer que surgem juntas]. Além disso, é tão verdade que a palavra conventio tem um significado geral que Pédio claramente diz que não há contrato, nenhuma obrigação que não consiste em conventio, seja ele alcançado pela entrega de algo ou pelo uso de certas palavras. Pois uma estipulação, que é feita pelo uso de certas palavras, é nula a menos que haja conventio”.

Observa-se que Ulpiano refere-se a Pédio e lhe atribui a afirmação de que a conventio, por sua generalidade, é elemento comum a qualquer tipo de obrigação. Ora, Pédio é um jurista do século I d. C. Logo, não há falar-se que no período clássico a única coisa a ser levada em consideração seria a palavra (verba).[32]

Sem querer aprofundar esta discussão, insta frisar que o binômio verba- voluntas já tinha grande importância na época clássica e, com o desenvolvimento do direito romano, a vontade só ganhou força contra a palavra isoladamente considerada. O período de Pédio (isto é, entre o final do século primeiro e o início do século segundo) foi justamente o momento em que esta discussão já se tinha consolidado, de modo que é natural ver em Paulo e em sua exigência relativa à conventio no mútuo, transcrita acima, uma simples consequência lógica desta tendência.33

A vontade já constituía um importante elemento para os jurisconsultos clássicos. As exceções (e mesmo ações) contra os vícios de vontade não podem ser consideradas simples interpolações. Atualmente, é largamente reconhecido que os romanos, de fato, já reconheciam exceções contra o dolo e contra a coação, por exemplo.[34]

3.3  Características do mútuo romano

Além de seus elementos estruturantes (a datio e a conventio), insta frisar outros traços de suma importância a respeito deste contrato, quais sejam: a necessidade de o objeto mutuado ser um bem fungível; as exigências relativas à restituição; o prazo da restituição; e os respectivos riscos.

3.3.1  O objeto do contrato de mútuo e a sua necessária fungibilidade

O mútuo é um empréstimo de consumo, ou seja, o bem objeto do mutuum será consumido pelo mutuário ou por outra pessoa. Com efeito, não poderá mais ser restituído no sentido mais estrito do termo. Por isso, o mútuo não transmite, simplesmente, a posse do bem, mas a propriedade. Ora, mas como haverá a restituição? Pois bem, para que seja possível a restituição de um objeto que será consumido, é necessário que seja um bem fungível, ou seja, um bem identificável apenas pelo gênero ao qual pertence.[35]

A propósito, confira-se esta observação de Paulo[36]:

“No caso do empréstimo para consumo, não esperamos receber exatamente o que foi concedido (pois, neste caso, seria um empréstimo para uso ou depósito), mas sim algo do mesmo tipo. Se alguma vez esperarmos algo de outro tipo, como, por exemplo, vinho por milho, a transação não será empréstimo para consumo”.

Leia-se, também, o seguinte trecho de Gaio[37]:

“De contratos reais, ou contratos criados pela entrega de uma coisa, temos um exemplo no empréstimo para consumo, ou empréstimo em que se transfere a propriedade da coisa emprestada. Isso se relaciona com coisas que são estimadas por peso, número ou medida, como dinheiro, vinho, óleo, milho, bronze, prata, ouro. Neles transferimos a propriedade de nossa propriedade com a condição de que o destinatário nos transfira de volta no futuro não as mesmas coisas, mas outras coisas da mesma natureza: e este contrato é chamado de Mutuum, porque algo de meum se torna tuum”.

Observe-se, por fim, outra citação, agora das Institutiones de Justiniano38:

“Os contratos reais, ou contratos celebrados por entrega, são bem exemplificados pelos empréstimos para consumo, ou seja, empréstimo de coisas que são estimadas por peso, número ou medida, por exemplo, vinho, óleo, milho, moeda cunhada, cobre, prata ou ouro: coisas pelas quais transferimos nossa propriedade com a condição de que o destinatário nos transfira, no futuro, não as mesmas coisas, mas outras coisas da mesma espécie e qualidade; e este contrato é denominado mutuum, porque algo de meum ou meu torna-se tuum ou teu. A ação que dá origem é chamada de condictio”.

3.3.2  A restituição no mútuo romano

A restituição deve se dar, em princípio, por um bem do mesmo gênero que o que foi mutuado, sob pena de não haver mútuo, pois, neste caso, não seria um empréstimo para consumo (mútuo), mas para uso (comodato) ou guarda (depósito).[39]

A este respeito, confira-se esta observação de Paulo[40]:

“No caso do empréstimo para consumo, não esperamos receber de volta aquilo que foi concedido (então seria um empréstimo para uso ou depósito), mas sim algo do mesmo tipo. Se alguma vez esperarmos algo de outro tipo, como, por exemplo, vinho por milho, a transação não será empréstimo para consumo”.

Ademais, se o mútuo versar sobre dinheiro, a restituição será pelo mesmo valor nominal recebido. Com efeito, imagine-se que Fulano transfere, a título de mútuo, dez denários para Sicrano, os quais, no momento da transferência, valiam, por unidade, oito quilos de pão, mas, à época da restituição, passam a valer menos. Nesta situação, Sicrano não será impelido a compensar Fulano com mais denários, sendo obrigado apenas a restituir o exato número de moedas que recebeu.41

Sublinhe-se, ainda em relação ao mútuo de valor pecuniário, que, embora a restituição seja pelo valor nominal, as partes podem limitá-la a certa espécie monetária.[42]

A restituição não obriga pagar a mais que o objeto mutuado, mas pode, por convenção das partes, se dar por menos, adquirindo o mutuário, a título de doação, o valor não devolvido.43

Veja-se, neste sentido, este fragmento de Paulo[44]:

“Se eu der dez para você e fizer um pacto de que vinte são devidos a mim, nenhuma obrigação além dos dez surge. Pois uma obrigação não pode ser contraída com a entrega de alguma coisa, exceto na medida em que foi entregue”.

Observe-se este trecho de Ulpiano[45]:

“Se eu lhe der dez sob o entendimento de que você deve nove, Próculo sustenta acertadamente que a conclusão automática da lei é que você não deve mais do que nove. Mas se o entendimento é de que você deve onze, a opinião de Próculo é que a condictio não tutela mais de dez”.

3.3.3  O prazo da restituição no mútuo romano

De início, é provável que o mútuo não tivesse um prazo durante o qual o credor não poderia cobrar a restituição, tendo em vista a própria forma rústica de vida que levada a sociedade romana em seus primeiros séculos de existência. Com o ius praetorium, no entanto, passou-se a admiti-lo: as partes, através de um pacto, poderiam fixar um prazo dentro do qual o mutuário não estava obrigado a restituir o devido. Se o mutuário fosse demandado, teria, então uma exceção: a exceptio pacti, de criação pretoriana.[46]

Caso não tenha sido fixado qualquer prazo pelas partes, o mútuo poderia ser cobrado a qualquer tempo pelo credor. Sublinhe-se que, no período justinianeu, mesmo sem pacto, o juiz poderia conceder ao mutuário uma espécie de prazo equitativo.[47]

3.3.4   Os riscos no mútuo romano

Em regra, os riscos relativos à integridade do bem dado em mútuo obedecem ao princípio res perit domino. Porém, o mútuo tem por objeto um bem fungível e, como visto, se não se tratar de um bem fungível, não há mutuum. Com efeito, levando em conta que o gênero não perece, não há riscos a suportar e, assim, o princípio mencionado resta sem utilidade para o contrato em análise.[48]

Neste sentido, observe-se as Intitutiones de Justiniano[49]:

“Uma pessoa a quem uma coisa é emprestada para uso está sujeita a uma obrigação real e está adstrita à ação de um empréstimo para uso. A diferença entre este caso e um empréstimo para consumo é considerável, pois aqui a intenção não é tornar o objeto emprestado propriedade do mutuário, que, portanto, é obrigado a restituir a mesma coisa. Novamente, se o recebedor de um empréstimo para consumo perder o que recebeu por algum acidente, como incêndio, queda de um prédio, naufrágio ou ataque de ladrões ou inimigos, ele ainda permanece vinculado; mas o tomador do empréstimo para uso, embora seja responsável pelo maior cuidado em guardar o que lhe é emprestado – e não é suficiente que ele tenha mostrado tanto cuidado quanto costuma dedicar a seus próprios assuntos, se apenas alguém pudesse ter sido mais diligente na responsabilidade por isso -, não tem que responder por perdas ocasionadas por incêndio ou acidente fora de seu controle, desde que não tenha ocorrido por culpa própria”.

3.3.5  A gratuidade do mútuo e a possibilidade de se cobrar juros

A romanística é pacífica em dizer que o mútuo é um contrato gratuito não lucrativo, tendo em vista que não implica juros nem aumento patrimonial.[50]

Havia a possibilidade de o mútuo implicar juros? A resposta é um pouco complexa. Na verdade, o mútuo, em si mesmo, não poderia gerar juros, pois ele supõe a datio (ou seja, é um contrato real). Com efeito, o mútuo é sempre gratuito e não lucrativo. Porém, nada impedia que as partes, paralelamente ao mútuo, fizessem uma stipulatio pactuando juros. Assim, para haver algum tipo de recompensação patrimonial, era necessário fazer um contrato a parte.[51]

Por isso, o mútuo e os respectivos juros eram protegidos por ações distintas: o primeiro era tutelado pela condictio e o segundo, pela actio ex stipulatu.[52]

Veja-se, neste sentido, o seguinte fragmento de Paulo[53]:

“Se eu der dez para você e fizer um pacto de que vinte são devidos a mim, nenhuma obrigação além dos dez surge. Pois uma obrigação não pode ser contraída com a entrega de alguma coisa, exceto na medida em que foi entregue”.

Cite-se este trecho de Africano[54]: “(…) Ele [Juliano] respondeu que não são devidos juros sobre o dinheiro que é emprestado, a menos que seja realizada uma estipulação”.

Acrescente-se que, para evitar maiores trabalhos e simplificar as relações intersubjetivas, era possível fazer uma stipulatio englobando tanto a obrigação de pagar juros, como a obrigação de restituir o capital, de modo que, neste caso, seria necessária apenas uma única ação de tutela: a actio ex stipulatu.[55]

Sublinhe-se que, se os juros e a restituição fossem objeto de uma mesma stipulatio e, assim, se encontrassem tutelados pela mesma ação (a actio ex stipulatu), haveria, apenas, uma única obrigação e não duas.

Confira-se, a propósito, a seguinte passagem do Digesto: “(…) Pois quando emprestamos dinheiro e também estipulamos, só há uma obrigação, ou seja, uma obrigação verbal”.

Ressalte-se, ademais, que não se trata de um mútuo feito através de um stipulatio. É errôneo afirmar tal proposição. Poder-se-ia falar, no máximo, em uma novatio. Contudo, nem este parece ser o melhor entendimento, pois a datio poderia ocorrer antes ou depois da stipulatio, de modo que a transferência da propriedade pouco importava para a existência da obrigação de restituição. Assim, não se trata de mútuo, mas, simplesmente, de uma stipulatio, de um contrato formal, e não de um contrato real. Portanto, se a obrigação de restituir e de pagar juros fossem estabelecidas por meio de uma estipulação, não haveria, tecnicamente, mutuum.56

Verifique-se, a respeito, duas citações do Digesto (a primeira de Ulpiano e a segunda de Pompônio):

“Quando alguém adianta dinheiro sem fazer uma estipulação e, na mesma negociação, celebra uma estipulação de forma posterior, há um só contrato. O mesmo vale se a estipulação vier primeiro e o dinheiro for entregue depois”.[57]

“Quando estipulamos tendo-se dado dinheiro em mútuo, não creio que a obrigação nasça com a entrega do dinheiro e que depois se renove com a estipulação, porque faz-se isto para que tenha validade só a estipulação e tem de entender-se que se faz a entrega mais para cumprir a estipulação”.[58]

Esta possibilidade de fazer uma stipulatio prevendo a obrigação de restituição e de juros antes mesmo da efetiva transferência do bem mutuado poderia causar um grave problema: o credor teria a possibilidade de impetrar uma actio ex stipulatu contra o devedor, sem lhe ter realizado a datio. Para driblar esta dificuldade, o ius pretorium (a possibilidade de o pretor valer-se de seu poder de mando para criar ações e exceções) estabeleceu uma exceção em favor do devedor que ainda não recebeu a propriedade do bem.[59]

Leia-se, com efeito, a seguinte citação de Gaio[60]:

“Se estipulamos que me tens de pagar uma quantia em dinheiro emprestado e depois não tá entrego, posso certamente processar-te pelo dinheiro e, pela lei civil, tu me deves pagar, estando vinculado à estipulação; mas seria iníquo que tu fosses condenado por este motivo, e, portanto, está estabelecido que tu deves defender-se contra a minha reclamação com a exceção de dolo mau”.

Ademais, é necessário indagar: havia limites para os juros? Trata-se de uma questão multisecular e extremamente delicada no direito romano. Os juros eram perigosos, pois, por exemplo, a Lei das XII Tábuas previa a possibilidade de escravização do devedor insolvente (ou seja, a sua capitis deminutio maxima). Com efeito, não demorou muito para se tentar limitar os juros. Destaca- se, primeiramente, a Lex Genucia de Foenore, de 342 a.C., e a Lex Cornelia Pompeia de Foenore, de 88 a.C. Esta última estabeleceu o chamado usurae centesimae (também chamado usurae calendarie, porque os juros vencem no primeiro dia do mês), fixado como teto a alíquota de 12% ao ano.[61]

No século III, também encontramos uma nova tentativa de limitação dos juros, com a proibição da chamada usura e ultra sortis summam, isto é, dos juros que ultrapassam o valor do capital em dívida. Sublinhe-se que Caracala determinou que tal inexigibilidade recai, apenas, sobre os juros não pagos, e não sobre os juros que já foram pagos. Ademais, ainda no século III, foi proibido o anatocismo, ou seja, a incidência de juros sobre juros.[62]

A este respeito, veja-se o que diz Ulpiano[63]: “Juros acima do dobro e juros sobre juros não podem ser estipulados ou exigidos e, se pagos, podem ser recuperados. Da mesma forma, juros sobre juros futuros”.

Ressalte-se que havia a possibilidade de as partes estabelecerem cláusula penal ou fixar juros de mora, os quais não poderiam ser superiores aos juros legais [64]

Neste sentido, leia-se o que estabelece Pompônio[65]:

“Quando tomamos a estipulação de uma taxa legítima de juros em prestações mensais, se o principal não for pago, embora a obrigação de pagar o principal seja levada a tribunal, ainda assim a penalidade continua a acumular porque o dinheiro ainda não foi pago de fato”.

Confira-se, também, Ulpiano[66]:

“No mesmo livro, Papiniano relata sua resposta de que se as partes concordarem em que o vendedor seja devido em dobro se o preço não for pago no prazo, esta cláusula especial é evidentemente uma evasão das constituições imperiais, porque excede a taxa de juros legal”.

O imperador Gordiano também possui uma constituição imperial[67] gravada no Codex, confirmando a limitação aos juros moratórios:

“Como você alega que sua esposa tomou a quantia de mil auréolas com esta condição, qual seja, a de que, se dentro de certo prazo ela não pagasse a dívida, voltaria com a pena de quatro vezes o que recebeu, o teor da lei não permite que a condição deste contrato ultrapasse a pena de legítimos interesses.”.

Quanto ao período justinianeu, ensinar Dajczak[68]:

Como resultado de esta experiencia jurídica se fijaron unas tasas de interés máximo y se admitió la responsabilidad penal por excederlas. En el derecho justinianeo, la tasa máxima general de intereses admisibles se estableció en un 6% anual (C. 4, 32, 26, 2). Justiniano accedió a la prohibición – discutida desde el período republicano – del cobro de intereses que superasen el capital principal (supra duplum), como también a la prohibición del cobro de intereses sobre el inrerés (lo que se conoce como astatocismo»). También prohibió la capitalización, es decir la agregación al saldo de los intereses generados por el capital principal durante el plazo establecido (C. 4. 32, 28pr.)”.

3.3.6  O mútuo romano como contrato

Antes de tudo, confira-se algumas citações do Digesto:

“Labeo, no primeiro livro do Edito do Pretor Urbano, estabelece que algumas coisas agantur, algumas coisas gerantur, algumas coisas contrahantur; (…). Um contrato, entretanto, é algo que envolve uma obrigação de ambos os lados, o que os gregos chamam de sinalagma, como compra ou venda, aluguel ou sociedade”.[69]

“(…) Onde, por exemplo, te dei uma coisa para que me desses outra, ou dei para que tu fizesses alguma coisa, isto é, no dizer de Ariston, um sinalagma e daí surge uma obrigação civil”.[70]

Labeão e Aristão são juristas pertencentes ao século I d.C. e é partir deles que, já de modo mais ou menos incontroverso, os doutos entendem que o contrato, como conventio (acordo de vontades), passou a existir enquanto fonte de obrigações, embora haja vozes que digam se tratar de um texto pós clássico.[71]

Contudo, Labeão nada fala a respeito do mútuo, e Aristão se limita aos contratos do tipo do ut des e do ut facias.[72] Com efeito, cabe indagar: sabendo que o mútuo remonta a períodos imemoriais da sociedade romana, qual era a sua natureza? Era um contrato? Não o sendo, era algum outro tipo de obrigação?

O fato é que o mútuo aparece indubitavelmente como contrato em um fragmento do século III, o qual diz expressamente que não há mútuo sem intenção (animus), ou seja, sem acordo de vontades (conventio) – o que faz do mútuo um contrato.[73]

Observe-se, nessa linha, o supramencionado fragmento de Paulo[74]:

“Além disso, não basta que se crie uma obrigação de que o dinheiro pertença ao doador e se torne propriedade do recebedor, mas também que seja dado e aceito com o propósito de que se constitua uma obrigação. Portanto, se alguém me deu o seu dinheiro com a intenção de fazer um presente, então, mesmo que tenha pertencido ao doador e tenha se tornado meu, não estarei vinculado a ele, porque não foi isso que foi negociado entre nós.

Assim, fica clara a natureza do mútuo na época de Paulo: nesta etapa, o mútuo já era considerado um contrato. Entretanto, sempre foi esta a sua natureza?

Segundo Álvaro D’Ors, aquilo que se entende por mútuo pertencia, antes de ser tido como contrato, a uma categoria especial de obrigação: o chamado creditum. Esta categoria específica englobava as obrigações unilaterais de objeto certo e protegidas por ações de direito estrito, contrapondo-se às obrigações de objeto incerto, protegidas pelas ações de boa-fé, principalmente no que tange às obrigações bilaterais. Ademais, estas obrigações de matriz creditícia só nasciam de três formas: através de uma datio, de uma stipulatio ou de uma expensilatio (especificadas abaixo).[75]

Ora, o mútuo, além de nascer de uma datio, era uma obrigação unilateral de objeto certo e era tutelado por uma ação de direito estrito (a condictio). Logo, nesta linha, o mútuo era, de fato, um creditum (e não um contrato).[76]

Acrescente-se que D’Ors não se deixa dissuadir pela alegação de que os romanos já enxergavam o mútuo como um contrato real, referentemente na famosa quadripartição dos contratos (em contratos convencionais, contratos reais, contratos verbais e contratos literais) que é encontrada em   passagens do Digesto. Para o romanista, as passagens em que a conhecida divisão aparece são sempre espúrias e, quando não o são, atribuem-se sempre a Gaio. Com efeito, concluiu o autor que a mencionada classificação é uma criação de Gaio e, assim, é estranha aos outros jurisconsultos clássicos, sendo tal confusão a responsável pela identificação entre creditum e contractus (e, consequentemente, entre mútuo e contrato).[77]

Ademais, D’Ors observa que Gaio só incluiu um único contrato na categoria de contrato real: o mútuo. Os outros contratos que passaram a ser tidos como contratos reais (o comodato, o penhor, a fidúcia e o depósito) não foram assim reconhecidos por Gaio, mas apenas pelos seus seguidores no período pós-clássico, os quais, por meio de uma ampliação da noção de datio (de modo a albergar não apenas a transmissão da propriedade, mas também a transferência da posse ou a simples detenção), começaram a incluí-los como tais (como contratos reais).[78]

Federico Fernández de Buján não concorda, entretanto, com este posicionamento, defendendo uma posição mais ponderada: para o romanista, Gaio não faz uma quadripartição de contratos, mas enumera diferentes formas de se criar uma obrigação.[79]

Já Sebastião Cruz apregoa que, antes da Lex Calpurnia, só o mútuo pecuniário era considerado como creditum. Isso pela origem etimológica do termo creditum, que conjuga as palavras cretum e dare, que se traduz por “dar”. Já o vocábulo cretum é o particípio passado do verbo cerno, o qual, por sua vez, significa “separar” ou “dividir”. Logo, cretum quer dizer “separado” ou “dividido”, isto é, significa algo “certo” e “distinto”. Assim, creditum é “dar coisa certa” e corresponde, segundo Cruz, ao mutum do. Por isso, segundo Cruz, creditum e mútuo são uma única e mesma coisa. O autor ainda acrescenta que, nesta noção de obrigações creditícias, a fides é também um elemento central, junto ao cretum e ao dare.[80]

Ainda nesta linha, observe-se que, por força da Lex Silia, as obrigações creditícias eram protegidas pela legis actio per condictionem, vulgarmente chamada de condictio. Esta ação, segundo Cruz, só tutelava o mútuo pecuniário (que, segundo ele, era a única modalidade de creditum). Entretanto, posteriormente, com a promulgação da Lex Calpurnia, ela (a condictio) passou a proteger qualquer bem certo (passando a chamar-se condictio certae rei). Isso fez com que o mútuo deixasse de ser sinônimo de creditum, pois, como a condictio (a ação específica do creditum) foi conceitualmente alargada, também a noção de obrigação creditícia sofreu igual modificação, passando a englobar a datio, a stipulatio e a expensilatio.[81]

Ademais, ainda segundo Cruz, creditum e contractus não eram idênticos, mas distintos. Só com a quadripartição dos contratos, que, segundo ele, fora operada por Gaio (séc. III d. C.), e com a noção de conventio, ambos os institutos foram igualados.[82]

Porém, contra D’Ors e Cruz, Santos Justo sublinha a seguinte passagem de Ulpiano83 citando Pédio (já acima mencionada):

“Há uma palavra geral, o termo conventio, relacionada a tudo o que foi acordado por aqueles que fazem algum contrato ou acordo entre si; pois assim como aqueles que são reunidos e vêm de diferentes lugares para o mesmo lugar são considerados como estando juntos, então aqueles que, por diferentes movimentos da mente, concordam em uma coisa formam uma única opinião [pode-se dizer que surgem juntas]. Além disso, é tão verdade que a palavra conventio tem um significado geral que Pédio claramente diz que não há contrato ou obrigação que não consiste em conventio, seja ela alcançada pela entrega de algo ou pelo uso de certas palavras. Pois uma estipulação, que é feita pelo uso de certas palavras, é nula a menos que haja conventio”.

Segundo Justo, é curioso notar que Pédio menciona que não existe nenhuma obrigação em que não haja conventio, a qual constitui o elemento primordial de todo contrato. Assim, considerando o papel da vontade nas obrigações em geral, o romanista entende que creditum e contractus já coincidiam na época clássica e não tem fundamento as posições de Cruz e D’Ors. Ademais, influenciado por Carlo Alberto Maschi, o romanista português considera que a quadripartição é o culminar de um processo de construção doutrinal e não uma criação de Gaio.84

Porém, Justo admite ser plausível que a separação entre creditum e contractus realmente fosse verídica nos primórdios da época clássica, ou até mesmo antes, afirmando que, anteriormente à Lex Silia e à Lex Calpurnia, o mútuo era considerado apenas como creditum e estava sob a tutela da condictio sine causa, ou seja, a ação que protegia o enriquecimento sem causa.85

Albanese também tende a ter uma posição diferente daquela sustentada por Álvaro D’Ors, defendendo que creditum e contractus já eram o mesmo na época clássica. O renomado romancista apoia tal conclusão numa citação que Ulpiano (séc. III) faz de Celso (séc.I), na qual este supostamente já entendia a noção de credere com uma generalidade tal que englobava os contratos de boa- fé.[86]

Veja-se as palavras de Ulpiano[87] mencionadas por Albanese:

“Foi porque ele queria incluir uma grande quantidade de leis relacionadas a contratos diferentes que o pretor escolheu a rubrica ‘coisas creditadas’, porque ela abrange todos os contratos celebrados com base na fé do outro. Pois, como Celsus diz no primeiro livro de suas perguntas, ‘crédito’ é um termo geral”.

4  A TUTELA JURÍDICA DO MÚTUO ROMANO

Como exposto acima, parte importante da romanística considera que o mútuo nem sempre foi tido como contrato, havendo, no entanto, divergências com relação ao momento em que o segundo passou a englobar o primeiro. De qualquer forma, sustenta-se, de modo veemente, que, antes de tal identificação ocorrer, o mútuo era tido como creditum e a sua tutela jurídica se exercia pela condictio sine causa, ou seja, pela ação que tutelava o enriquecimento sem causa. Como sustenta o professor Santos Justo, não parece ser razoável que esta identificação tenha ocorrido no final da época clássica, devendo ter acontecido em algum momento mais cedo.[88]

O fato é que, com a promulgação da Lex Silia (séc. III a. C.), o mútuo passou a ser tutelado pela legis actio per condictionem (também chamada de condictio), a qual se encarregava da proteção dos créditos de dinheiro contado (certae pecunia). Posteriormente, com a Lex Calpurnia (séc. III a. C.), a proteção desta ação foi estendida para os créditos de qualquer coisa certa (certae res).[89] Leia-se, a propósito, o seguinte trecho de Gaio[90]:

“Esta forma de processo estatutário foi criada pela lex Silia e pela lex Calpurnia, sendo prescrita pela lex Silia para a recuperação de quantias determinadas, e estendida pela lex Calpurnia para a recuperação de qualquer coisa certa”.

Ressalte-se que, se houvesse juros (se, contra o empréstimo de consumo relativo a um bem fungível, corressem juros), a condictio não os protegeria. Os juros, como restou esclarecido, só poderiam ser previstos através de um contrato (abstrato) a parte: a stipulatio. Com efeito, também a sua defesa deveria se dar por outro expediente, qual seja, a ação de tutela da stipulatio: a legis actio per iudicis arbitrive postulationem, no período das legis actiones, a qual foi posteriormente substituída pela actio ex stipulatu, na etapa do processo clássico das fórmulas.[91]

No período clássico, é preciso sublinhar a seguinte divergência entre os romanistas:

“(…) a partir de certo momento as fontes da época clássica passaram a falar da actio certae creditae pecuniae. Em consequência, há quem entenda que a tutela do mútuo foi assegurada pela actio certae creditae pecuniae e pela condictio certae rei, a que se recorria para a restituição, respectivamente de certa pecunia e de outras res igualmente certae; e quem considere que a actio certae credítae pecuniae substituiu a condictio, quer porque o termo pecunia adquiriu um significado amplo, passando a compreender não só o dinheiro, mas também todas as outras coisas, quer porque seria estranho que, mantendo-se separada a actio certae acredite pecuniae, o termo pecunia conservasse o seu significado, primitivo e restrito de dinheiro contado, quer porque seria também estranho que só a diversidade de objectos exigisse duas acções com fórmulas diferentes”.[92]

Finalmente, no período pós-clássico, que se desenvolveu do século III até o século VI d. C., apenas duas ações são mencionadas para a defesa do mútuo: a condictio (certae rei), voltada para a proteção do mútuo de dinheiro, e a condictio triticaria, a qual se mobilizam para a tutela de outros bens fungíveis mutuados que não tivessem conteúdo pecuniário.[93]

Confira-se, neste sentido, as Instituciones de Justiniano[94]:

“Os contratos reais, ou contratos celebrados por entrega, são bem exemplificados pelos empréstimos para consumo, ou seja, empréstimo de coisas que são estimadas por peso, número ou medida, por exemplo, vinho, óleo, milho, moeda cunhada, cobre, prata ou ouro: coisas pelas quais transferimos nossa propriedade com a condição de que o destinatário nos transfira, no futuro, não as mesmas coisas, mas outras coisas da mesma espécie e qualidade; e este contrato é denominado mutuum, porque algo de meum ou meu torna-se tuum ou teu. A ação que dá origem é chamada de condictio”.

Verifique-se, também, esta passagem de Ulpiano[95]:

“A condictio certi está disponível para todas as reclamações decorrentes de qualquer causa ou obrigação sobre coisa certa; (…) pois podemos usar a condictio para fazer reivindicações sob qualquer tipo de contrato cujo objeto seja certo, desde que a obrigação seja imediata. Mas enquanto a obrigação for suspensa até certo tempo ou contra uma condição, não poderá interpor uma condictio”.

Leia-se, por fim, este outro trecho de Ulpiano[96]:

“Aquele que processa por uma quantia certa de dinheiro usa a ação sob a rubrica si certum petetur. Porém, se a ação for por outras coisas, ele processa pela condictio triticari”.

Ademais, sublinhe-se que a condictio era uma ação de direito estrito, ou seja, o juiz estava limitado a condenar o mutuário pelo que foi objeto de empréstimo, não podendo conceder nada além disso.[97]

Atente-se, ainda, para o fato de que, se o mutuário for, de qualquer forma, vítima de danos pelo mutuante, ele terá de recorrer à esfera extracontratual, mobilizando a actio doli ou a actio legis Aquiliae.[98]

5  CLASSIFICAÇÃO BÁSICA DO CONTRATO DE MÚTUO ROMANO

Há diferentes formas de se classificar os contratos do direito romano. As duas formas mais usuais são a classificação que as próprias fontes fornecem em seus textos, plasmada na famosa quadripartição dos contratos acima mencionada (da qual se extrai a noção de contratos reais, contratos verbais, contratos literais e contratos consensuais), e a divisão dos contratos oriunda dos manuais modernos de direito romano (podendo-se falar, contemporaneamente, em contratos unilaterais e bilaterais, em contratos onerosos e gratuitos, etc.).[99]

O mútuo, sob a ótica desses critérios de classificação, pode ser predicado como um contrato real, unilateral, gratuito e não formal. A seguir, ver-se-ão os fundamentos destas afirmações.

5.1  O mútuo romano como um contrato real e não formal

Os contratos reais são aqueles que não se perfectibiliza senão quando a efetiva transmissão da propriedade do bem efetivamente ocorre, sendo o mútuo, como afirmam as fontes, um exemplo típico desta modalidade negocial.[100] Confira-se, neste sentido, o que diz o jurisconsulto Gaio[101]:

“De contratos reais, ou contratos criados pela entrega de uma coisa, temos um exemplo no empréstimo para consumo, ou empréstimo em que se transfere a propriedade da coisa emprestada. Isso se relaciona com coisas que são estimadas por peso, número ou medida, como dinheiro, vinho, óleo, milho, bronze, prata, ouro. Neles transferimos a nossa propriedade com a condição de que o destinatário nos transfira de volta, no futuro, não as mesmas coisas, mas outras coisas da mesma natureza: e este contrato é chamado de Mutuum, porque algo de meum se torna tuum”.

Observe-se, também, esta passagem das Institutiones[102] de Justiniano:

“Os contratos reais, ou contratos celebrados por entrega, são bem exemplificados pelos empréstimos para consumo, ou seja, empréstimo de coisas que são estimadas por peso, número ou medida, por exemplo, vinho, óleo, milho, moeda cunhada, cobre, prata ou ouro: coisas pelas quais transferimos nossa propriedade com a condição de que o destinatário nos transfira, no futuro, não as mesmas coisas, mas outras coisas da mesma espécie e qualidade; e este contrato é denominado mutuum, porque algo de meum ou meu torna-se tuum ou teu. A ação que dá origem é chamada de condictio”.

Sublinhe-se que este fragmento das Institutiones diz, logo na primeira frase, que a obrigação de restituir o bem mutuado é contraída pela simples datio. Com efeito, por dispensar forma solene e por exigir apenas a datio (e, também, a conventio, como visto acima), o mútuo era tido como um contrato não formal.[103]

5.2  O mútuo romano como um contrato unilateral e gratuito

Os contratos unilaterais são aqueles em que apenas uma das partes assume obrigações. Ora, no mutuo, pelo menos em princípio, só o mutuário possui a obrigação de restituir ao mutuante o bem emprestado (que, como visto, deverá ser do mesmo gênero e quantidade – tantundem). Logo, o mútuo é um contrato unilateral.[104]

Ademais, o mútuo é um contrato gratuito. Veja-se, a respeito, o que diz D’Ors[105] sobre o assunto:

Aunque el mutuario adquiere como propietario la disponibilidad de lo recibido, su patrimonio no se enriquece con la cantidad recibida, pues la debe: y tampoco el mutuante se empobrece, pues adquiere un crédito (nomen) en lugar de la cantidad entregada al mutuario. Por eso el mutuo no es un negocio lucrativo; pero si es gratuito, ya que el mutuario no tiene que dar nada a cambio de la disponibilidad sobre la cantidad recibida”.

Mais uma vez, Gaio[106] é esclarecedor quanto à estrutura obrigacional do mútuo:

“De contratos reais, ou contratos criados pela entrega de uma coisa, temos um exemplo no empréstimo para consumo, ou empréstimo em que se transfere a propriedade da coisa emprestada. (…) Neles transferimos a nossa propriedade com a condição de que o destinatário nos transfira de volta, no futuro, não as mesmas coisas, mas outras coisas da mesma natureza: e este contrato é chamado de Mutuum, porque algo de meum se torna tuum”.

Quanto à inexistência de juros (e, consequentemente, de contraprestação), cite-se este trecho de Africano[107]: “(…) Ele [Juliano] respondeu que não são devidos juros sobre o dinheiro que é emprestado, a menos que seja realizada uma estipulação”. Com efeito, para haver juros, era preciso fazer um contrato em apartado, não sendo possível estabelece-los no âmbito do próprio mútuo.

Assim, o mútuo é contrato unilateral e gratuito, pois só o mutuário tem a obrigação de restituir e, mesmo que haja a previsão de juros, estes pertencem não ao contrato de mútuo, mas a uma stipulatio.[108]

6  MÚTUOS ESPECIAIS DO DIREITO ROMANO

O mútuo possui algumas figuras ou modalidades que fogem à regra. Destacam-se, principalmente, o foenus nauticum, o mútuo para atletas e o mútuo de cidades.

O foenus nauticum (ou pecunia traiectia) consistia em uma modalidade de empréstimo de dinheiro a comerciantes com a finalidade de que estes adquirirem mercadorias do outro lado do mar e as trouxesse de volta, para vendê-las e restituir o mutuante com juros.[109]

Confira-se, neste sentido, o seguinte fragmento de Modestino[110]:

““Um empréstimo transmarino consiste em dinheiro transportado para o exterior. Se for gasto onde foi emprestado, não é transmarino. Mas os bens comprados com o dinheiro estão na mesma posição? Depende se eles são transportados a risco do mutuante. Em caso afirmativo, o empréstimo é transmarino”.

É necessário sublinhar que os riscos do transporte das mercadorias corriam contra o mutuante, desde o dia em que as partes acordaram o empréstimo.[111]

A propósito, leia-se este trecho do Digesto[112]: O risco de um empréstimo transmarino é do credor a partir do dia em que for acordado que o navio deve partir”.

Contudo, embora os riscos sempre corressem contra o mutuante e isso justificasse a concessão de juros mais altos, estes últimos (os juros) não eram essenciais e indispensáveis à constituição ou existência do foenus nauticum.[113] Veja-se, com efeito, este ensinamento presente no Digesto[114]:

“Não faz diferença se um empréstimo transmarino não é concedido por conta e risco do credor ou o risco deixa de ser do credor após a data fixada e o cumprimento da condição”.

Como dito, o foenus nauticum poderia justificar a cobrança de juros com uma alíquota superior àquela estabelecida por lei como limite para o comum dos casos.[115]

Neste sentido, observe-se o seguinte a seguinte Constituição Imperial[116]:

“Já que você diz que deu dinheiro sob a condição de que seja devolvido a você na cidade sagrada, e você confessa que o risco incerto, que geralmente é assumido pela navegação marítima, não correspondia a você, não há dúvida de que você não pode exigir juros do montante emprestado além do que é legal”.

Sublinhe-se, ademais, que o foenus nauticum poderia ser feito quer por um simples pactum, sendo tutelado pela actio certae creditae pecuniae, quer por meio de uma stipulatio, sendo tutelado por uma actio ex stipulatu. Ressalte-se que, se os juros não fossem objeto de estipulação (caso em que também seriam tutelados pela actio ex stipulatu), seriam provavelmente protegidos por uma actio in factum.[117]

É válido registrar que, caso fosse convencionado, o mutuante tinha o seu crédito garantido pela hipoteca do barco, pelo penhor sobre as mercadorias ou por uma cláusula penal.[118]

Diferentemente do foenus nauticum, em que a restituição e o pagamento dos juros dependiam do retorno do barco, havia também a possibilidade de se conceder mútuo para atletas. Em Roma, o desporto era muito valorizado e, por isso, bastante disputado. Com efeito, era necessário fazer uma grande preparação e isso, naturalmente, exigia grandes custos. Assim, não era incomum a concessão de empréstimos a juros para atletas. Nesta hipótese, os riscos correm inteiramente à custa do mutuante, que só seria reembolsado, com os respectivos juros (os quais, pelo alto risco envolvido, poderiam, também, ultrapassar o teto legal), se o atleta patrocinado obtivesse a vitória.[119]

Confira-se, a este respeito, este texto do Digesto[120]:

“(…) Não há dúvidas de que o mesmo ocorre se eu emprestar uma grande soma para um pescador que quer comprar equipamentos sob a condição de devolver o dinheiro caso ele obtenha sucesso na pesca ou se eu der dinheiro emprestado a um atleta para que ele se sustente e compita com chances de vitória, sob a condição de me restituir caso triunfe”.

Ademais, é preciso destacar que a prática do mútuo era observada mesmo fora do âmbito estritamente privado, pois as cidades concediam mútuo pecuniário aos seus cidadãos, sempre envolvendo o pagamento juros.[121]

Veja-se, com efeito, este fragmento do Digesto[122]: “Mesmo um simples pacto dá à ciadade o direito a juros sobre o dinheiro que emprestam”.

Finalmente, é preciso destacar a concessão de empréstimos por parte dos bancos. A atividade bancária foi muito desenvolvida em Roma, desempenhando diversas funções que vão desde a verificação da idoneidade de moedas até o consentimento de mútuos. Os bancos aferiram renda de diversas formas, sendo algumas das principais: a) a percepção do preço de custódia, no caso depósito regular (aquele em que o cliente do banco faz um depósito com a simples intenção de deixá-la sob a proteção ou guarda do estabelecimento bancário, sem receber juros e esperando ser restituído pelo mesmo objeto depositado); b) a captação de juros, no caso de mútuos bancários – o que só era possível em razão dos chamados depósitos irregulares (que, por serem onerosos e por possuírem uma ação própria, não se confundiam com o mútuo). Os depósitos irregulares são entendidos como a transmissão da propriedade de bens fungíveis ao banco, que, comprometendo-se em restituir bens do mesmo gênero, poderia usá-los, aliená-los e conceder empréstimos através deles. Adquirindo estes bens a título de depósito, o banco os emprestava contra o pagamento de juros maiores do que aqueles que prometeu aos depositantes, o que trazia uma grande lucratividade para o negócio bancário. Não era preciso pactuar ou estipular os juros para que eles fossem devidos, pois, com o tempo, criou-se uma ficção jurídica que presumia a estipulação de juros para os mútuos bancários. No tempo de Justiniano, sabe-se que a alíquota máxima era de oito por cento.[123]

Observe-se a seguinte colocação de Paulo[124] a respeito dos juros do mútuo bancário: “(…) era exatamente como se ele tivesse estipulado certa quantia em dinheiro para cada mês e acrescentado juros pelo atraso no pagamento dessas prestações”.

Confira-se, também, a seguinte colocação de Justiniano[125]:

“(…) mas como demos uma lei para que quem se encontra à frente de estabelecimentos bancários não prestasse juros superiores a 8% e nos manifestaram que costumavam emprestar com juros também sem escrito, mas que, quanto aos juros, não se lhes considerava crédito por se ter contraído o mútuo sem documento escrito e sem se ter interposto estipulação (com respeito ao que vulgarmente se diz que não é conveniente que sem estipulação correm juros, ainda que sejam muitos os casos em que, não se tendo estipulado os juros, nascem ainda que só de pacto e por vezes também se extinguem não em virtude de pacto, mas espontaneamente), por isso mandamos também que se lhes dêem não só em virtude de estipulação, mas também não tendo mediado escrito, os juros que ali lhes concede que estipulem, isto é, até 8%”.

7  CONCLUSÃO

Diante do exposto no decorrer do presente trabalho, pode-se chegar às seguintes afirmações fundamentais: a) o mútuo é um contrato real, não existindo enquanto não houver a datio do bem objeto de empréstimo; b) o mútuo, além da transmissão do bem, demanda que haja acordo entre ambas as partes, sendo necessário haver a conventio; c) o mútuo versa sobre bens fungíveis, pois se trata de um empréstimo de consumo; d) o bem mutuado, que pode ser dinheiro ou qualquer outra coisa fungível, deverá ser restituído por algo do mesmo gênero e espécie; e) o prazo de restituição é de livre negociação entre as partes, presumindo-se, na falta pacto, que o mutuante poderá exigi-la de imediato (salvo, no período justinianeu, quando fosse considerado que deveria existir, pelo menos, um prazo equitativo); f) os riscos corriam sempre contra o mutuário, que continuava obrigado à restituição – mesmo porque o gênero não perece; g) o mútuo era um contrato gratuito, devendo os juros serem objeto de um contrato a parte (a stipulatio); h) o mutuante era tutelado pela condictio, observando-se que o mutuário, em caso de prejuízo, deveria recorrer à esfera extracontratual, mobilizando a actio doli ou a actio legis Aquiliae; i) o mútuo era um contrato real, não formal, unilateral e gratuito; j) havia tipos especiais de mútuo e os juros correlatos a estes empréstimos peculiares poderiam, muitas vezes, ultrapassar o teto normal, destacando-se, dentre tais, o mútuo concedido por bancos, a pecunia traiectia, o mútuo conferido em favor de atletas e os empréstimos feitos pelas cidades.

REFERÊNCIAS

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[1] GAIO. Gai Institutiones: Or Institutes of Roman Law by Gaius. Trad.: E. Poste. 4.ª ed. Oxford: Oxford, 1904. (Conferir original: G. 3, 90).

[2] “Some of jurists’ etymologies were absurd, as for instance Gaius’s explanation of mutuum (a loan) in Inst. 3, 90” (KELLY, John Maurice. A Short History of Western Legal Theory. New York: Oxford University Press, 1999. p. 51). Ver também: JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. Algumas notas romanas no direito português. Revista da Universidade Lusíada do Porto, Direito, Lisboa, n. 4, p. 74, 2011.

[3] “(…) l’etimologia più accreditata fa derivare il sostantivo, che forse originariamente indicava la cosa data al mutuo, da ‘mov-‘, da cui ‘movere’, ‘mutare’, nel senso, per l’appunto, di cosa da ‘scambiare’, e poi di ‘scambio’” (GIUFFRÈ, Vincenzo. La «Datio Mutui». Prospettive Romane e Moderne. Napoli: Casa Editrice Jovene, 1989. p. 30).

[4] “A entrega, com a consequente transferência da propriedade, de uma coisa fungível, especialmente dinheiro, com a obrigação para aquele que a recebe de restituir igual quantidade de coisa fungível do mesmo gênero e qualidade, chama-se mútuo. O credor que empresta chama-se mutuante; o devedor que toma emprestado chama-se mutuário” (MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano. 8.ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1995. p. 121). Ver também: JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 73.

[5] “A maior parte dos direitos antigos conheceram o empréstimo a juros: Egipto, Mesopotâmia, Hebreus, Grécia, Roma. O Código de Hamurabi consagra-lhe vários artigos: a taxa de juro usual é de 20% para o empréstimo de dinheiro, 20 a 33% para o empréstimo em cevada; o juro usurário é punido pela perda do crédito (art.° 91.0). Os Hebreus também conheceram o empréstimo a juros; mas o Antigo Testamento proíbe-o, pelo menos entre Hebreus, e sobretudo relativamente aos pobres: «Se tu emprestares dinheiro a alguém do meu povo, ao pobre que está contigo,… não lhe exigirás juros» (Êxodo, XXII, 24; no mesmo sentido: Levitico, XXV, 37). Os romanos não proibiram o juro, mas tiveram tendência a limitar a sua taxa. Na época da Lei das XII Tábuas, esta taxa pode atingir 100% ao ano, como aliás em muitas sociedades arcaicas. Medidas restritivas são muitas vezes tomadas sob a República (abolição das dívidas, supressão do juro), mas levam a uma rarefacção do dinheiro em detrimento de quem pede emprestado, o que acarreta o seu afrouxamento. Sob o Império, o dinheiro tornou-se abundante, o que baixou naturalmente a taxa de juro: o máximo legal é então fixado em 12%. Sob a influência da doutrina canónica (infra), os imperadores cristãos vão esforçar-se por baixar esta taxa; mas nunca proibiram inteiramente o empréstimo a juros. Distinguem o juro normal que é permitido e o juro excessivo, a usura, que é o único proibido. Justiniano fixa a taxa máxima de juro em 6%, mas prevê numerosas excepções em função da situação social das partes e da utilidade da operação; para o empréstimo de géneros e o empréstimo marítimo (nauticum foenus, empréstimo de grande «risco»), o máximo é fixado em 12%” (GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito.

[6] .ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. p. 766).

[7] “Non v’è dubbio che la povertà della vita condotta dall’agglomerato umano che viveva sull’isola Tiberina e d’intorni nel primo secolo e mezzo dalla sua concrezione, il tipo di attività produttive a cui era generalmente dedito (pastorizia ed agricoltura estensiva, oltre che prestazioni di servigi alle correnti di traffico fluviali e transfluviali con imposizione di ‘tributi’, che sostituì la pratica originaria dei taglieggiamenti) e la conseguente tendenza a conservare l’abitudine atavica all’autarchia del gruppo familiare o para-familiare rendevano il prestito estremamente raro: sia che si trattasse di fare usare all’amico o al vicino un attrezzo da lavoro, un animale, oppure uno strumento domestico di cui avesse temporancamente bisogno; sia, ed ancor più, che si trattasse di dargli cose che egli avrebbe consumato (animali da gregge, derrate, metalli) per poi restituirne altrettante della medesima natura. Il ‘prestito d’uso’, anche quando divenne più frequente per il moltiplicarsi dei beni di cui ci si circondava e l’infittirsi dei legami sociali fra soggetti sempre più numerosi, fu tenuto per molti sccoli ancora fuori della sfera d’interesse del ius” (GIUFFRÈ, Vincenzo. La «Datio Mutui». Prospettive Romane e Moderne. cit. p. 25). Ver também: JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 106.

[8] “(…) A datio had to take place on account of which ownership of the object(s) lent passed to the borrower. (…) Furthermore, even with regard to mutuum proper the consensual element came to be increasingly emphasized in the course of time. It is obvious that not every datio could give rise to a condictio. Perhaps the property had been transferred in order to enrich the recipient permanently (as in the case of a donation), to discharge an obligation or, for instance, to give a dowry. Thus, to classify a transaction as mutuum, we need not only the transfer of fungible things but also some sort of understanding between the parties that this specific transfer takes place in order to effect a loan, i.e., that the recipient has to restore the value of what is being transferred to him” (ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. Roman Fundations of the Civilian Tradition. Reimpressão. Cape Town: Juta, 1992. p. 153-156).

[9] “A datio rei consiste na transferência da propriedade de dinheiro ou de outras coisas fungíveis. Sem ela, o contrato de mútuo não se considera perfeito, como, a propósito de dinheiro emprestado por um pupilo sem o consentimento do seu tutor (…). Do mesmo modo, não existe mútuo se a coisa for alheia (…)” (JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p.

[10] ).

[11] ULPIAN in JUSTINIANO. The Digest of Justiniano. Tradução: Alan Watson. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1988. v. 1. p. 357. (Conferir original: D. 12, 1, 2, 4).

[12] JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 77.

[13] GAIO. Gai Institutiones: Or Institutes of Roman Law by Gaius. Trad.: E. Poste. cit. (Conferir original: G. 2, 80; G. 2, 81; G. 2, 82).

[14] “Se non che (…) hanno creduto di dovere ammettere che la mancanza di proprietà nel tradente, se impedisce la formazione iniziale del mutuo, non ne impedisce la convalidazione successiva (reconciliatio mutui) in due ipotesi: 1) Quando l’accipiente divenga in seguito proprietario per altra via; ad es. perchè compia l’usucapione del denaro o perchè questo vada confuso nel suo patrimonio (commixtio). 2) Quando l’accipiente abbia consumato in buona fede il denaro o gli altri generi ricevuti” (LONGO, Carlo. Corso de Diritto Romano. Il mutuo. Milão: Dott. A. Giuffrè – Editore, 1947. p. 16).

[15] PAUL in JUSTINIAN. The Digest of Justiniano. Tradução: Alan Watson. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1988. v. 4. p. 225. (Conferir original: D. 46, 3, 60).

[16] JAVOLENUS in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 4. p. 225.

(Conferir original: D. 46, 3, 78).

[17] LONGO, Carlo. Corso de Diritto Romano. Il mutuo. cit. p. 17.

[18] JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 77. 17 (Conferir original: I. 2, 8, 2).

[19] JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 77-78. LONGO, Carlo. Corso de Diritto Romano. Il mutuo. cit. p. 14-19.

[20] “Al ser un prėstamo del valor, la transferencia de éste, sin entrega material de monedas, puede constituir un mutuo: a) Por una dación indirecta, a través de tercera persona, basada en una autorización dc prestar (iussum credendi): i) cuando el mutuante recibe la autorización de prestar a un hijo o esclavo del autorizante, y queda obligado a restituir el mismo autorizante: ii) cuando un acreedor autoriza a su deudor que preste a un tercero lo que debe al autorizante (delegatio), y la entrega a este tercero extingue la deuda y el tercero se obliga a restituir como mutuario al autorizante que delegó; iii) cuando una persona autoriza que otra preste a un tercero: surgen entonces dos mutuos: uno entre el autorizante como mutuante y cl que recibió la cantidad como mutuario, y otro mutuo entre el que entregó la cantidad como mutuante y el que le dio el iussum como mutuario” (D’ORS. Derecho Privado Romano. 8.ª ed. Pamplona: Universidad de Navarra Ediciones, S. A., 1991. p. 446). “(…) Com efeito, o paterfamilias ou dominus podia ordenar (iussum) a um filho ou escravo que mutuasse coisas (fungíveis) a determinada pessoa ou, pelo contrário, contraísse um mútuo. Na primeira hipótese, o mutuante (pater ou dominus) podia demandar o mutuário através duma actio translativa; na segunda, o mutuário podia demandar o pater ou dominus com a actio quod iussu, igualmente translativa. Não existe aqui uma relação de representação, mas de mera substituição: não há nenhuma relação voluntária entre representado e representante, mas um efeito do estado de sujeição em que um filius ou servus se encontra em relação a potestas do paterfamilias ou do dominum” (JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 78-79).

[21] JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 79.

[22] PAUL in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 1. p. 359. (Conferir original: D. 12, 1, 11, 2).

[23] LONGO, Carlo. Corso de Diritto Romano. Il mutuo. cit. p. 26.

[24] “(…) para que se formasse o mútuo, era mister, a princípio, que o mutuante entregasse efetivamente a coisa ao mutuário; posteriormente, por exigências naturais do crédito, admitiu-se que o mútuo podia constituir-se sem a entrega efetiva da coisa (mas mediante a traditio brevi manu ou a traditio longa manu – vide nº 154, II, c), e por intermédio, não do mutuante e do mutuário, mas de pessoas que agiam por delegação deles – assim, havia contrato de mútuo nas seguintes hipóteses, em que, propriamente, o mutuante não transferia a propriedade da coisa ao mutuário” (ALVES, Moreira. Direito Romano. 18.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018). “The creditor (“ego“) has ordered his debtor to pay party (“tu“) to whom he wished to lend it. A contract of mutuum is thereby created between the creditor and the third party, even though the latter has not received his money from the creditor/lender” (ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. Roman cit. p. 159). “Al ser un prėstamo del valor, la transferencia de éste, sin entrega material de monedas, puede constituir un mutuo: a) Por una dación indirecta, a través de tercera persona, basada en una autorización dc prestar (iussum credendi) (…) b) Por una conversion en crédito (sin novación) de una cantidad adeudada por otra causa, p. ej., el precio de un alquiler que el inquilino, de acuerdo con el arrendador, retiene como prestado (abire in creditum), c) Por la dacion de un objeto distinto, de modo que quede en crédito el precio obtenido por la venta del mismo (el llamado contrato de «mohatra»)‘” (D’ORS. Derecho Privado Romano. cit. p. 446-447). Ver também: JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 80. Confira-se,

[25] “No entanto, se a conventio é considerada, no direito justiniano, um elemento estruturante do mútuo, a sua afirmação nos tempos mais recuados não tem sido pacífica. Com efeito, partindo do princípio destacado por IHERING de que in principio erat verbum, parte significativa da romanística, que se dedicou ao estudo das interpolações, considerou que a relevância atribuída à voluntas no campo dos negócios jurídicos só ocorreu nas escolas orientais da época pós- clássica. Até aí, a iurisprudentia romana só considerava as palavras (verba) no seu significado comum e, por isso, a interpretação das fontes era estritamente literal. Embora constituíssem o elemento propulsor de qualquer negócio jurídico, a vontade das partes desaparecia, não se indagando. Ou seja, não havia lugar para a consideração de anomalias como o dolo e a fraude que, na perspicaz observação de IHERING, estavam legalizados. De resto, a própria Lei das XII

Tábuas dispunham: “conforme o que for expresso em palavras, assim seja direito” (JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 82).

[26] IHERING, R. von. O Espírito do Direito Romano. Tradução: Rafael Benaion. Rio de Janeiro: Alba Editora, 1943. vol. III. p. 95-102.

[27] ULPIAN in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 1. p. 62.

(Conferir original: D. 2, 14, 1, 3).

[28] JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 83. 33 Ibidem.

[29] “O pretor, no entanto, admitia meios conducentes, no ius honorarium, à retirada de eficácia dos negócios jurídicos em que havia dolus malus. Eram os seguintes: a) a exceptio doli (exceção de dolo), que o pretor concedia à vítima do dolo para tornar ineficaz, iure honorario, o negócio jurídico que ainda não tivesse sido executado; e b) a actio doli (ação de dolo, criada pelo jurisconsulto Aquilio Gallo, contemporâneo de Cícero), que o pretor concedia à vítima de dolo, para anular os efeitos do negócio jurídico, quando este já tivesse sido executado: tratava-se de ação penal, exercitável, dentro de um ano, apenas contra o autor do dolo, e que tinha como objetivo compeli-lo a restituir o que recebera, ou a indenizar o prejudicado; como o réu, que era condenado na actio doli, incorreu em infamia, o pretor somente admitia a utilização desta actio na falta de outra (por exemplo, uma ação de boa-fé) para alcançar o seu objetivo” (ALVES, Moreira. Direito Romano. 18.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018). “A divergência entre a vontade interna e a manifestação externa pode advir da coação por parte de alguém: vi metusque causa (D. 4.2.1). Trata-se de pressão física ou psíquica, ilegal, exercida por alguém contra o agente, a fim de que este pratique, contra sua vontade, um ato jurídico. O direito antigo, o ius civile, formalístico e rígido, não levou em consideração essa circunstância determinante daquela manifestação. Para aquele direito importava mais a forma externa do ato que a vontade interna da parte: tamen coactus volui – “embora coagido, quis” (D. 4.2.21.5). Foi o pretor, um tal Octavio, em 80 a.C., que introduziu regra, com o fito de invalidar os atos jurídicos praticados em consequência de coação. Previu tanto a coação física quanto a moral. A primeira consiste em forçar fisicamente alguém a praticar um ato contra a sua vontade (vis). A segunda é a ameaça, causadora de medo (metus) no sujeito, impedindo-o, assim, à prática do ato contra a sua vontade: quod metus causa gestum erit, ratum non habebo (D. 4.2.1). Com base nessa regra, o pretor concedeu uma ação, a in integrum restitutio, para anular os efeitos de tais atos e restabelecer a situação anterior. Concedeu, também, uma exceção processual contra aquele que pretendesse fazer valer um direito decorrente do ato coagido. Uma outra disposição do edital do pretor considerou a coação como delito, punindo-a com o quádruplo do valor do negócio. A ação penal se chamava actio quod metus causa” (MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano. cit. p. 54).

[30] “O mutuum é a figura-base do negócio de crédito, em que alguém confia (credere) a outrem um capital para que o use. Sendo contrato real, consiste na dação em propriedade a quem a recebe de uma QUANTIA EM DINHEIRO (ou (…) de outras coisas fungíveis), com o acordo de RESTITUIR a MESMA moeda-quantia (ou a mesma quantidade de coisas fungíveis do mesmo género), G. 3, 90; Paul. D. 12, 1, 2 pr.” (KASER, Max. Direito Privado Romano. cit. p. 231). Ver também: ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. cit. p. 153-154.

[31] PAUL in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 1. p. 357. (Conferir original: D. 12, 1, 2, pr.).

[32] GAIO. Gai Institutiones: Or Institutes of Roman Law by Gaius. cit. (Conferir original: G. 3, 90). 38 JUSTINIAN. The Institutes of Justinian. cit. (Conferir orignial: I. 3, 14, pr.).

[33] KASER, Max. Direito Privado Romano. cit. p. 231. Ver também: ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. cit. p. 153-154.

[34] PAUL in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1988. v. 1. p. 357. (Conferir original: D. 12, 1, 2, pr.). 41 JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 108.

[35] Ibidem. 43 Ibidem.

[36] PAUL in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 1. p. 67. (Conferir original: D. 2, 14, 17, pr.).

[37] ULPIAN in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit.. v. 1. p. 66.

(Conferir original: D. 12, 1, 11, 1).

[38] “Of the above-mentioned incidental provisions, the fixing of a date for repayment of the capital is obviously of particular interest to a borrower. A loan transaction can hardly achieve its purpose if the capital has to be repaid immediately after it has been handed over by the lender to the borrower. Yet this was, strictly speaking, the case where the mutuum was not accompanied or reaffirmed by a stipulation. For it was the datio that gave rise to the obligation to repay the capital, and this obligation came into effect immediately. The due date for repayment could, at least originally, not be deferred by the parties because whatever they might have agreed upon informally could not be considered in iure civili. This result was less inconvenient than it sounds, because mutuum was used, at first, between friends or neighbours for the purposes of short-term loans without interest. Here, social ties arising from amicitia and humanitas were strong enough to prevent the creditor from (ab-)using his formal position and bringing the condictio immediately. For commercial loan transactions the formal, but very dangerous, nexum was available. When it disappeared during the period of the Republic, mutuum took over this function too and became the universal loan transaction. But in the commercial context it was, in actual practice, always accompanied by a stipulation containing all the special arrangements of the parties” (ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. cit. p. 156). Ver também: JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 108.

[39] JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 109.

[40] “Three obvious inferences can be drawn from what has been said so far. Whereas not every loan of fungibles can be classified as a mutuum (in the case of fungible objects which are ordinarily used without being consumed, the lender will often want to get back the thing itself and not only its equivalent in kind; already, therefore, a transfer of ownership to the borrower is not envisaged by the parties), non-fungible objects cannot be the object of a mutuum: the borrower’s obligation presupposes the existence of an equivalent in kind. Secondly, as both ownership and possession pass to the borrower and as a contractual obligation does not come into existence without this transfer having taken place, risk problems cannot arise. If the borrower loses the money or the goods received, this is entirely his own affair and does not have effect on his obligatio arising from the mutuum: ‘et is quidem any qui mutuum accepit, si quolibet fortuito casu quod accepit amiserit, veluti incendio, ruina, naufragio aut latronum hostiumve incursu, nihilo minus obligatus permanet.’ This is entirely in accordance with the natural principle of casum sentit dominus (or res perit suo domino): it is the owner who has to bear the risk of accidental loss or destruction and, except by way of insurance, he cannot shift the risk onto somebody else’s shoulders” (ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. cit. p. 154).

[41] JUSTINIAN. The Institutes of Justinian. Tradução: J. B. Moyle. cit. (Conferir orignial: I. 3, 14, 2).

[42] “Strictly speaking, mutuum was thus a unilaterally binding, gratuitous contract” (ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. cit. p. 154). “Aunque el mutuario adquiere como propietario la disponibilidad de lo recibido, su patrimonio no se enriquece con la cantidad recibida, pues la debe: y tampoco el mutuante se empobrece, pues adquiere un crédito (nomen) en lugar de la cantidad entregada al mutuario. Por eso el mutuo no es un negocio lucrativo; pero si es gratuito, ya que el mutuario no tiene que dar nada a cambio de la disponibilidad sobre la cantidad recibida” (D’ORS. Derecho Privado Romano. cit. p. 447).

[43] “In commercial practice, however, few people were (and still are) prepared to make loans on an entirely altruistic basis. Yet, if the lender wished to receive interest on the capital loaned, he had to extract from the borrower a promise in the form of a stipulation, i.e., the parties had to enter into a separate, additional contract” (ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. cit. p.

[44] ). Ver também: D’ORS. Derecho Privado Romano. cit. p. 448.

[45] JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 99.

[46] PAUL in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 1. p. 67. (Conferir original: D. 2, 14, 17, pr.).

[47] AFRICANUS in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 2. p. 121. (Conferir original: D. 19, 5, 25, pr.).

[48] “This is in fact what usually happened; and since a stipulation had to be made anyway, if the loan was to be given for interest, the parties usually took the opportunity to incorporate the principal debt as well, so that the borrower’s obligation to return the capital was very often reaffirmed by way of stipulation” (ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. cit. p. 155). “Protezione processuale. È diversa per i due negozi, corrispondentemente al regime sostanziale. II mutuo reale gratuito è azionabile nel processo per legis actiones mediante la legis actio per condictionem (lege Silia per i debiti da certa pecunia; lege Calpurnia per i debiti di omnis certa res) e, nel processo formulare, mediante la condictio (actio certae creditae pecuniae e certae rei). L’obbligazione di corrispondere interessi, nascente necessariamente da stipulatio, è azionabile, nel processo per legis actiones, attraverso la legis actio per iudicis arbitrive postulationem (ciò tipicamente; né ha rilevanza la concorrenza di altre legis actiones, non però quella per condictionem, in seguito al sovrapporsi di alcune più recenti ad altre più antiche); nel processo formulare mediante l’actio ex stipulatu” (MASCHI, Carlo Alberto. La gratuità dei mutuo classico em Studi in onore di Giorgio Balladore Pallieri I. Milão: Unicersità Cattolica del Sacro Cuore, 1978. vol. I. p. 297). Ver também: KASER, Max. Direito Privado Romano. cit. p. 232. 56 JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 100.

[49] ULPIAN in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 4. p. 212. (Conferir original: D. 46, 2, 6, 1).

[50] POMPONIUS in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 4. p. 212.

(Conferir original: D. 46, 2, 7, 1).

[51] JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 100.

[52] GAIO. Gai Institutiones: Or Institutes of Roman Law by Gaius. Trad.: E. Poste. cit. (Conferir original: G. 4, 116 a).

[53] Para maiores desenvolvimentos, ver: ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. cit.

p. 166-170; JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 101; GILISSEN, John.

Introdução histórica ao direito. cit. p. 766.

[54] Ibidem.

[55] ULPIAN in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit.. v. 1. p. 382.

(Conferir original: D. 12, 6, 26, 1).

[56] JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 103.

[57] POMPONIUS in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 4. p. 178.

(Conferir original: D. 45, 1, 90).

[58] ULPIAN in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. Philadelphia:

University of Pennsylvania Press, 1988. v. 2. p. 90. (Conferir original: D. 19, 1, 13, 26).

[59] GORDIANO in JUSTINIANO. Cuerpo del derecho civil romano. Tradução: D. Ildefonso L. García del Corral. Barcelona: Jaime Molinas, 1892. Segunda Parte. Tomo 1. p. 485. (Conferir original: C. 4, 32, 15).

[60] DAJCZAK, Wojciech. Derecho Romano de Obligationes. Santiago de Compostela: Andavira Editora, 2018. p. 213. Veja-se, a este respeito, a mencionada constituição de Justiniano: “E por isso ordenamos que as pessoas ilustres, ou aqueles que as superam, não têm o direito de estipular juros, em qualquer contrato, pequeno ou grande, por mais de um terço do número percentual mensal; e que aqueles que dirigem lojas, ou estão envolvidos em alguma negociação legal, moderam sua estipulação em até 8% ao ano; Mas nos contratos de empréstimo marítimo, ou nas entregas de espécies a juros, é lícito especificá-los apenas até um por cento ao mês, sem exceder esse valor, embora isso fosse permitido nas leis antigas; e que todas as outras pessoas podem estipular como juros apenas metade de um por cento ao mês, e que esse montante de juros não é de forma alguma aumentado em todos os outros casos em que costumam exigir juros sem estipulação” (JUSTINIANO. Cuerpo del derecho civil romano. Tradução: D. Ildefonso L. García del Corral. Barcelona: Jaime Molinas, 1892. Segunda Parte. Tomo 1. p. 487) – (Conferir original: C. 4, 32, 26, 2).

[61] ULPIAN in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 4. p. 449.

(Conferir original: D. 50, 16, 19, pr.).

[62] ULPIAN in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 1. p. 63. (Conferir original: D. 2, 14, 7, 2).

[63] “Embora não faça parte do âmbito deste estudo – no direito justinianeu a natureza de contrato real está perfeitamente consolidada -, a própria ideia de contrato tem gerado discussões que se encontram longe de estarem resolvidas. Com efeito, a romanística encontra-se profundamente dividida, sobretudo quanto à época em que a figura jurídica contractus, entendida como conventio, foi consagrada como fonte de obrigações: há, fundamentalmente, quem a reconhece já na época clássica e quem entenda que se trata duma elaboração das escolas orientais, na época pós-clássica. No meio destas divergências, parece incontroverso – controversa é apenas a autenticidade deste fragmento, defrontando-se quem o considera genuíno e quem contesta a sua autenticidade: para os primeiros, o texto é clássico; para os segundos, é pós-clássico – que a noção de contractus, como acordo de vontades, surge em LABEÃO e em ARISTÃO (…)” (JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 87-88).

[64] JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 88.

[65] Para maiores desenvolvimentos, ver: ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. cit. p. 156-157; JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 88.

[66] PAUL in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 4. p. 155. (Conferir original: D. 44, 7, 3, 1).

[67] D’Ors defende que, na época clássica, simplesmente não havia a categoria dos “contratos reais”, mas, sim, a figura do creditum, asseverando que “(…) la obligación crediticia es, en la época clásica, una obligación de dare un certum (incluso una res certa individualmente determinada), que puede nacer de una datio, de una stipulatio o de una expensilatio, y esta sancionada por la condictio, esto es, una accion de derecho estricto – y perfectamente unilateral, a la que se aproximan, como acciones cuasi crediticias, las acciones in factum propias de la pecunia constituta, del comodato y de la prenda” (D’ORS, Alvaro. Creditum y Constractus. Anuario de historia del derecho español, n.º 26, p. 201-202, 1956). Ver também: JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 89.

[68] Alvaro D’Ors distingue entre creditum e contractus, concluindo que “para los clásicos el mutuo no era un contractus”, assim como “tampoco lo eran los otros negocios crediticios, incluyendo la stipulatio certi y la expensilatio” (D’ORS, Alvaro. Creditum y Constractus. cit. p. 194).

[69] “Mi manifestacion de 1948 acerca del problematico carácter clásico de Gayo se relacionaba con la critica de la cuatriparticion de los contratos – re contrahitur obligatio, verbis, litteris, consensu -, que, según creo haber probado en mi comunicacion a aquel Congresso de Verona, no vuelve a aparecer en la jurisprudencia clásica, y, solo partiendo de la mera hipotesis, podemos atribuir a un modelo pre-gayano. En mi opinión, la cuadritriparticion de los contratos, que sólo en Gayo aparece, es una invención gayana, que hubo de tener el más resonante éxito entre los autores postclásicos, que la completaron, y entre los compiladores justinianeos, que la transmitieron a la posteridad” (D’ORS, Alvaro. Creditum y Constractus. cit. p. 184).

[70] “Gayo no habló para nada, a propósito de esta cuatripartición, ni del comodato, ni de la prenda, pero tampoco de la fiducia ni del depósito. Los seguidores de Gayo iban a ser quienes completaran su cuatripartición, colocando esas figuras (a excepción de la fiducia, de la que ya no sentían necesidad de hablar) dentro del primer miembro, del contrato real, lado del mutuo, del que el caso de la solutio indebiti, una vez creada la categoría de las variae causarum figurae y, luego, del cuasicontrato, tendia inevitablemente a desligarse . Naturalmente, esta extensión de la datio, propia del mutuo, a los nuevos contratos reales no se pudo hacer sin un notable relajamiento del concepto mismo de datio, que vino a significar, no ya una adquisición de propiedad, de res en el especial sentido de propiedad sobre la misma, sino una entrega de posesión, como ocurre en el caso de la prenda, o incluso de simple detención, como ocurre en los otros dos casos del comodato y del depósito” ” (D’ORS, Alvaro. Creditum y Constractus. cit. p. 186).

[71] “Mucho se ha discutido, y mucho todavía se debatirá, en la doctrina romanista acerca del tenor literal de este pasaje, que no se acomoda al pensamiento recogido en las obras jurisprudenciales de los juristas de su tiempo. Creemos que, a pesar de la expresión utilizada, Gayo no está, técnicemente, refiriendo un elenco de categorias contractuales, sino solamente enuncia una relación de causas generadoras de una obligación. Es en este sentido por lo que dice contrahitur obligatio. Por tanto, no se trataría realmente de cuatro modalidades de contrato, sino tan solo de cuatro causas de las que surgiría el vínculo obligatorio. De ser esto así, habría sido la doctrina romanística y más tarde la dogmática moderna las que realizaron la transposición del texto gayano del ámbito de la clasificación de las fuentes de las obligaciones, en donde lo situó Gayo, al ámbito de la clasificación de los contratos. Así: – donde la obligación surge re, la doctrina habla de contratos reales (…) – donde la obligación surge verbis, la doctrina habla de contratos verbales (…) donde la obligacion surge literis, la doctrina habla de contratos literales (…) – donde la obligación surge consensu, la doctrina habla de contratos consensuales” (BUJÁN, Federico Fernández de. Sistema Contratual Romano. 3.ª ed. Madrid: Dykinson, 2007. p. 116).

[72] “O primitivo significado de creditum (credere) é o de uma datio pecuniae em mútuo. Diz FORCELLINI: «Ratione habita etymi, credere significat pecuniam mutuam vel fenori dare, et haec videtur esse prima et proprie huius notio». A sua etimologia seria a de cretum dare, derivada de (…) mutuum do (…). Cretum é o particípio passado de cerno, que, por sua vez, significa separar, distinguir bem (mediante os sentidos, sobretudo a vista); e com esta significação o empregam Cícero, Virgílio, Ovídio, Plínio, Lucrécio. Portanto cretum é algo visível, claro, bem distinto; logo um certum. Desta forma, creditum, credere, é um composto da mesma raíz de cernocretumcertum e do verbo dare. Credere (cred tum feste unbedingte Geldschuld), com o significado de pecuniam certam dare em mútuo, aparece em várias fontes. (…) No conceito de creditum estão incluídas três ideias: a ideia de dare (- ditum); a ideia de certum; e a ideia de fides. Desta forma creditum é uma «datio rei certae cum fide» ou «cum fiducia», isto é, aum fide ou fiducia de que será devolvida essa datio” (CRUZ, Sebastião Costa. Da Solutio. Coimbra: Coimbra, 1962. v. I. p. 155-159).

[73] “A princípio, o creditum abrangia apenas o mútuo pecuniário, como se deduz da Lex Silia (GAIUS IV 19) – isto, em virtude de a condictio ou actio certae creditae pecuniae ser a actio fundamental do creditum, como se demonstrará a seguir, § 94 – e como se deduz também de POMPONIUS (D. 46,3,80) e ainda de vários textos atrás citados. Logo, o objeto do creditum, de início, era só pecunia, (quae numeratur). Depois da Lex Calpurnia, que estendeu a condictio – repita-se, é a actio creditícia por antonomásia – a omnes res (géneros e objectos não-genéricos), o creditum começou a abranger também omne certum. Há, pois, uma extensão do objecto do creditum. (…) Na época clássica, verificamos serem três as causas do creditum: – a datio; – a stipulatio; – a expensilatio” (CRUZ, Sebastião Costa. Da Solutio. cit. p. 161-177).

[74] “Por aqui se vê já a diferença entre creditum e contractus. O creditum era causado, como ficou dito no texto, não só pela stipulatio e pela expensilatio, mas sobretudo pela datio pecuniae numeratae. Ora os clássicos nunca chamaram contractus nem ao mútuo nem à stipulatio nem a expensilatio. Os textos que falam destas figuras como contractus não são clássicos. Hoje está isso bem demonstrado. (…) Mas GAIUS, apoiado nas causas do creditum datio, stipulatio e expensilatio – e acrescentando o elemento ex consensu, inventou, como demonstrou D’ORS em 1948, a célebre qualificação das obrigações ex contractu (…). Esta «cuartipartición», como lhe

[75] “In sintesi: per Celso ed Ulpiano sono (o hanno per oggetto, se si vuole: ma chiarirò il mio pensiero al riguardo) res creditae edittali tutti quei contractus nei quali una parte – richiesta dalla controparte di dare alcunchè – dà quanto le è chiesto, aderendo alla proposta negoziale (adsentiri rei = dar il próprio assenso all’affare), seguendo l’altrui lealtà (alienam fidem sequi) e nella prospettiva di riavere ciò che essa ha dato (recipere quid)” (ALBANESE, Bernardo. Scritti Giuridici. Il Circulo Giuridico «L. Sampaio», Palermo, n. 6, volume XLVII, p. 1294, 1991).

[76] ULPIAN in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1988. v. 1. p. 357. (Conferir original: D. 12, 1, 1, 1).

[77] “Quegli autori hanno interpretato tale condictio come azione da contratto (condictio ex mutuo), e ne hanno dedotto che la nullità del contratto deve ritenersi sanata. Ma sí tratta di una falsa interpretazione. La condictio che in caso di consumazione del denaro accordano i testi al tradente non è l’azione da contratto, ma è anche qui l’azione extracontrattuale da arricchimento ingiusto” (LONGO, Carlo. Corso de Diritto Romano. Il mutuo. cit. p. 18). Observe-se que o professor Santos Justo não concorda que a identificação do crédito e do contrato possa ter ocorrido no final do período clássico, conforme as suas próprias palavras: “No entanto, já abordámos a doutrina de PÉDIO de que ‘não há nenhum contrato, nenhuma obrigação, que em si não contenha convenção…’. Ora, a referência de ULPIANO a PÉDIO é, no nosso entendimento, um sinal de autenticidade porque seria absolutamente incompreensível que os compiladores de Justiniano (ou algum jurista anterior) tivessem mantido e alterado aquela citação, transmitindo um pensamento errado. Por isso, e de acordo com a nossa posição (acima expressa) de que a ênfase dada à vontade nos negócios jurídicos já se encontra na época clássica, a doutrina de MASCHI afigura-se-nos mais correcta” (JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 94). Porém, o professor português não rejeita, absolutamente, a teoria do creditum, afirmando que a separação entre crédito e contrato deveria ter acontecido em algum momento mais primevo do direito romano, de acordo com o que apregoa na seguinte citação: ““Recuando mais no tempo (antes das leges Silia e Calpurnia), quando o mútuo não passava de simples creditum e, portanto, ainda não tinha sido elevado a figura contratual, a sua tutela teria sido obtida com o recurso a uma condictio sine causa de carácter extracontratual fundada no enriquecimento injusto do devedor que não restituíu a coisa recebida” (JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 110).

[78] “Protezione processuale. È diversa per i due negozi, corrispondentemente al regime sostanziale. II mutuo reale gratuito è azionabile nel processo per legis actiones mediante la legis actio per condictionem (lege Silia per i debiti da certa pecunia; lege Calpurnia per i debiti di omnis certa res) e, nel processo formulare, mediante la condictio (actio certae creditae pecuniae e certae rei)” (MASCHI, Carlo Alberto. La gratuità dei mutuo classico em Studi in onore di Giorgio Balladore Pallieri I. cit. p. 297).

[79] GAIO. Gai Institutiones: Or Institutes of Roman Law by Gaius. Trad.: E. Poste. cit. (Conferir original: G. 4, 19).

[80] “L’obbligazione di corrispondere interessi, nascente necessariamente da stipulatio, è azionabile, nel processo per legis actiones, attraverso la legis actio per iudicis arbitrive postulationem (ciò tipicamente; né ha rilevanza la concorrenza di altre legis actiones, non però quella per condictionem, in seguito al sovrapporsi di alcune più recenti ad altre più antiche); nel processo formulare mediante l’actio ex stipulatu” (MASCHI, Carlo Alberto. La gratuità dei mutuo classico em Studi in onore di Giorgio Balladore Pallieri I. cit. p. 297).

[81] JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 111.

[82] “No direito justinianeu, o mútuo é tutelado por duas acções: a condictio (certae rei) e a condictio triticaria, a que se podia recorrer para obter a restituição, respectivamente, de dinheiro e de outras coisas fungíveis mutuadas” (JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 109).

[83] JUSTINIANO. Cuerpo del derecho civil romano. Tradução: D. Ildefonso L. García del Corral.

cit. Segunda Parte. Tomo 1. p. 102. (Conferir original: I. 3, 14, pr.).

[84] ULPIAN in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson cit. v. 1. p. 358.

(Conferir original: D. 12, 1, 9, pr.).

[85] ULPIAN in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 1. p. 391.

(Conferir original: D. 12, 1, 9, pr.).

[86] “Thus, especially, a claim for interest could not be enforced. The condictio was, after all, an actio stricti iuris. The judge therefore did not have any discretion to give effect to informal, ancillary agreements between the parties, or to equitable considerations; he could only condemn the borrower in as much as the latter had received from the lender. Strictly speaking, mutuum was thus a unilaterally binding, gratuitous contract” (ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. cit. p. 154).

[87] “Por isso, no direito romano não se pode falar em obrigações eventuais do mutuante. Se, por culpa deste, o mutuário sofresse algum prejuízo (assim, por exemplo, se a coisa objeto do mútuo contivesse vício oculto que causasse dano ao mutuário), este somente poderia obter o ressarcimento do prejuízo por via extracontratual, por meio da actio doli (ação de dolo), ou da actio Legis Aquiliae (ação de dano aquiliano)” (ALVES, Moreira. Direito Romano. cit.).

[88] “Si conforme a la terminología de la dogmática moderna, denominamos contrato a cualquiera de los negocios que pueden reconducirse a alguna de las formas de contraer obligaciones que hemos destacado en el pasaje de Gayo, 3, 89, podemos referir otras clasificaciones de los contratos. De las distintas clasificaciones, destacamos las siguientes: Contratos unilaterales y bilaterales. Contratos onerosos y gratuitos. Contratos de buena fe y de derecho estricto” (BUJÁN, Federico Fernández de. Sistema Contratual Romano. cit. p. 111).

[89] “Assim, contrato real é o que se constitui com a entrega de uma coisa; verbal, o que se constitui com a prolação de palavras solenes; literal, o que se constitui mediante a utilização de forma escrita; e consensual, o que, para constituir-se, demanda apenas o consentimento das partes. O contrato de depósito, por exemplo, é um contrato real, porque, para constituir-se, não basta que depositante e depositário concordem em celebrá-lo, mas é necessário ainda que o depositante entregue ao depositário a coisa objeto do depósito. (…) O mútuo (nas fontes: mutuum, mutui datio) é o contrato pelo qual alguém (mutuo dans: mutuante) transfere a propriedade de coisa fungível a outrem (mutuo accipiens: mutuário), que se obriga a restituir outra coisa da mesma espécie, quantidade e qualidade. Trata-se de contrato real, unilateral, gratuito, de direito estrito (stricti iuris)” (ALVES, Moreira. Direito Romano. cit.).

[90] GAIO. Gai Institutiones: Or Institutes of Roman Law by Gaius. Trad.: E. Poste. cit. (Conferir original: G. 3, 90).

[91] JUSTINIANO. Cuerpo del derecho civil romano. Tradução: D. Ildefonso L. García del Corral. cit. Segunda Parte. Tomo 1. p. 102. (Conferir original: I. 3, 14, pr.).

[92] JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 104.

[93] “Con considerable desacierto la doctrina distingue entre contratos unilaterales y bilaterales. Ya hemos señalado que todos los contratos son por definición bilaterales, pues, precisan el concurso de las voluntades de dos o más personas. Cuando se diferencia entre unilateralidad y bilateralidad se hace referencia al hecho de que los efectos que surgen de la relación contractual afecten o alcanzen a una sola o a las dos partes contratantes. La compraventa es el ejemplo más paradigmático de contrato bilateral, pues, de ella surgen, siempre, obligaciones tanto para el vendedor como para el comprador. Por el contrario, el mutuo es unilateral porque, en principio, sólo surgen obligaciones para quien recibe en mutuo nunca para el mutuante que da” (BUJÁN, Federico Fernández de. Sistema Contratual Romano. cit. p. 111).

[94] D’ORS. Derecho Privado Romano. cit. p. 447.

[95] GAIO. Gai Institutiones: Or Institutes of Roman Law by Gaius. Trad.: E. Poste. cit. (Conferir original: G. 3, 90).

[96] AFRICANUS in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 2. p. 121.

(Conferir original: D. 19, 5, 25, pr.).

[97] Thus, especially, a claim for interest could not be enforced. The condictio was, after all, an actio stricti iuris. The judge therefore did not have any discretion to give effect to informal, ancillary agreements between the parties, or to equitable considerations; he could only condemn the borrower in as much as the latter had received from the lender. Strictly speaking, mutuum was thus a unilaterally binding, gratuitous contract. (…) In commercial practice, however, few people were (and still are) prepared to make loans on an entirely altruistic basis. Yet, if the lender wished to receive interest on the capital loaned, he had to extract from the borrower a promise in the form of a stipulation, i.e., the parties had to enter into a separate, additional contract” (ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. cit. p. 154-155).

[98] ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. cit. p. 181-182.

[99] MODESTINUS in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 2. p.

[100] . (Conferir original: D. 22, 2, 1, pr.).

[101] “(…) el riesgo del capital prestado, o de la mercancía comprada com él, durante la travesia del transporte por mar, es aquí del mutuante” (D’ORS. Derecho Privado Romano. cit. p. 449).

Ver também: KASER, Max. Direito Privado Romano. cit. p. 232.

[102] MODESTINUS in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 2. p.

[103] . (Conferir original: D. 22, 2, 3, pr.).

[104] JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 113.

[105] PAPINIAN in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 2. p. 185. (Conferir original: D. 22, 2, 4, pr.).

[106] DAJCZAK, Wojciech. Derecho Romano de Obligationes. cit. p. 270. Ver também: KASER, Max. Direito Privado Romano. cit. p. 232.

[107] DIOCLECIANO e MAXIMIANO in JUSTINIANO. Cuerpo del derecho civil romano. Tradução:

D. Ildefonso L. García del Corral. cit. Segunda Parte. Tomo 1. p. 489. (Conferir original: C. 4, 33, 2).

[108] “O foenus nauticum podia ser acordado na forma de stipulatio e, se assim fosse, o mutuante seria tutelado pela correspondente actio ex stipulatu. Não se tendo recorrido à stipulatio, o credor podia utilizar a actio certae creditae pecuniae. Quanto aos juros, podiam ser reclamados pela actio ex stipulatu se tivessem sido acordados em stipulatio e, não sendo o caso, é provável que o credor pudesse recorrer a uma actio in factum” (JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 112). “Embora esse instituto seja objeto de grande controvérsia entre os romanistas (é ele de origem grega, mas não se sabe – as fontes não são claras a respeito – se o direito romano o acolheu como era praticado na Grécia), tudo indica, que, no foenus nauticum, como o risco da perda do dinheiro ou da mercadoria corria por conta do mutuante (e não do capitão do navio ou do mercador), e como esse risco era grande em virtude da precariedade da navegação antiga, se admitiu, a título de compensação, que, para a estipulação de juros, não era necessária, como no mútuo, a celebração de stipulatio usurarum, mas bastava um simples pactum, que seria tutelado pela própria ação que sancionava o foenus nauticum” (ALVES, Moreira. Direito Romano. cit.).

[109] JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 114.

[110] ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. cit. p. 186-187.

[111] SCAEVOLA in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 2. p. 185.

(Conferir orginal: D. 22, 2, 5, pr.).

[112] JUSTO, António dos Santos. O mútuo no direito romano. cit. p. 114.

[113] PAUL in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 2. p. 185. (Conferir orginal: D. 22, 1, 30, pr.).

[114] JUSTO, António dos Santos. Algumas Considerações Sobre a Banca em Roma (História e Direito). Boletim de Ciências Económicas, Coimbra, volume LVII, tomo II, p. 1676-1686, 2014.

[115] PAUL in JUSTINIAN. The Digest of Justinian. Tradução: Alan Watson. cit. v. 1. p. 363. (Conferir original: D. 12, 1, 40).

[116] JUSTINIANO apud JUSTO, António dos Santos. Algumas Considerações Sobre a Banca em Roma (História e Direito). cit. p. 1686. (Conferir orginal: N. 136, 4).