REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102410231639
Macuxi, Marcela Lacerda[1]
RESUMO: Este estudo trata do caso do Kanaimé ocorrido nas comunidades indígenas do Estado de Roraima, a frente a justiça criminal brasileira. A metodologia aplicada na pesquisa foi exploratória, qualitativa e procedimentos técnicos bibliográficos baseados em livros e artigos científicos.A História do Kanaimé é conhecida e lembrada com temor, mas poucas são as pessoas indígenas dispostas a compartilhar os fatos verídicos que vivenciaram ou que tenham conhecimento de ter ocorrido com amigos ou familiar. Comumente os indígenas povo Macuxi, Taurepang, Ingarikó e os Wapichana afirmam que “O Kanaimé é um personagem mítico que, segundo a cosmovisão destes, é responsável por acontecimentos maléficos. Age principalmente sob o definhamento e morte daqueles que cometem atos reprováveis”. está associado à ideia de justiça para uns e maldade para outros, do fantástico, sobrenatural, da metafísica. É um estado performático, transitório, metamórfico porque se trata de manipulação de poderes. É uma figura muito presente no solo da cultura da região Circum-Roraima que é um território Xamânico, localizado no extremo norte, na tríplice fronteira Brasil-Venezuela-Guiana Em síntese diante da legislação brasileira o caso concreto é tipificado como homicídio e deve ser punido de acordo com a norma do código penal, mas apesar da gravidade dos fatos os índios defendem o seu direito a manterem seus costumes e cultura que lhe priorizam julgar seus próprios pares no âmbito da comunidade, ou seja, resguardar o respeito e preservação das próprias normas indígenas aplicadas pelo pajé é o mais importante que deve ser priorizado para garantir os direitos constitucionais dos índios.
Palavras-chave: Crime. Justiça. Indígena, Mitologia.
ABSTRACT
This study deals with the legend of Kanaimé in indigenous communities in the face of Brazilian criminal justice. The methodology applied was exploratory, qualitative research and technical bibliographic procedures based on books and scientific articles. Historically, in all indigenous communities, the legend of Kanaimé is known and remembered with fear, but few indigenous people are willing to share the true facts that they have experienced or that they know of having happened to friends or family. Indigenous people commonly claim that Kanaimé is an Indian like any other who seeks to satisfy the desire for revenge against another Indian motivated by some enemy. To this end, Kanaimé, also known as Rabudo, prepares a type of drug with medicinal plants to ingest and, after being chemically altered, goes in search of the victim with the sole purpose of taking his life with exquisite cruelty. According to the legend, after consuming the drug that he prepared himself and being mysteriously possessed by an evil spirit, the Indian transforms into some animal from nature and goes in search of his prey. In summary, according to Brazilian law, the specific case is classified as homicide and should be punished according to the rules of the penal code. However, despite the seriousness of the facts, the
Indians defend their right to maintain their customs and culture, which prioritize judging their own peers within the community. In other words, safeguarding respect and preservation of the indigenous norms applied by the shaman is the most important thing that should be prioritized to guarantee the constitutional rights of the Indians.
Keywords: Crime. Justice. Indígenous. Mythology.
INTRODUÇÃO
O Estado de Roraima tem uma população indígena de 25.908 pessoas, representando 4,07% da população total. Preservação cultural e étnica. E 46 % é território indígena, segundo o senso de IBGE 2022.
O presente estudo integra-se às pesquisas realizadas para o desenvolvimento deste artigo sobre as narrativas do Kanaimé. Como apoiadora dos direitos indígenas e indígena Macuxi bacharel em direito e psicologia, bem como especialista em perícia criminal, tracei alguns pontos relevantes quanto as histórias que descrevem a morte de indígenas ao longo dos anos marcadas por requinte de crueldade.
“O Kanaimé é um personagem mítico que, segundo a cosmovisão de determinados grupos indígenas, é responsável por acontecimentos maléficos. Age principalmente sob o definhamento e morte daqueles que cometem atos reprováveis”. O Kanaimé está associado à ideia de justiça para uns e maldade para outros, do fantástico, sobrenatural, da metafísica. É um estado performático, transitório, metamórfico porque se trata de manipulação de poderes. É uma figura muito presente no solo da cultura da região Circum-Roraima que é um território Xamânico, localizado no extremo norte, na tríplice fronteira Brasil-Venezuela-Guiana. Os povos que se comungam dessa cultura são os Macuxi, Taurepang, Ingarikó e os Wapichana. No entanto, Kanaimé é um indivíduo que adquire conhecimentos e saberes Xamânicos, através das rezas que se desenvolve com o espírito de algumas plantas, fazem cultos, alimentam as plantas com sangue, e mantém uma vida de prática, de domínio de orações que levam a capacidade de abrir portais. Esses saberes levam a condição de virar o Kanaimé, que também está muito associado com a ideia do equilíbrio social no campo da justiça, do direito.
Ocorre que a mitologia do Kanaimé, como é conhecida nas comunidades indígenas, segundo pesquisas realizadas nos últimos anos não se trata apenas de mortes que ficaram no passado, mas que na atualidade ainda acontece divide opiniões em relação a crença de o Kanaimé ser humano com espírito maligno, ser um bicho ou até mesmo ser um humano que por meio de rituais malignos incorpora em bichos da natureza para atacar suas vítimas.
Nesse contexto, que debate a autoria de mortes cruéis vale ressaltar que direitos e deveres são peculiares ao caso concreto envolvendo temas como a criminalidade, punibilidade e a valorização dos direitos indígenas como, por exemplo, a credibilidade do folclore e cultura do índio destoando o que é mito ou verdade, e em casos de crimes ocorridos em comunidades indígenas questiona-se a autoria do Kanaimé como ser humano ou bicho, enquanto que familiares lamentam a perda da vítima sem respostas e sem justiça.
Considerando o tema em questão objetivou-se analisar a veracidade dos fatos históricos alegados ao longo dos anos nas comunidades indígenas que até a atualidade são dadas como verdadeiras, bem como promover o questionamento acerca da aplicação da norma legal para impor a investigação desses crimes brutais, pois nesse ponto a análise jurídica apresenta o impasse entre a justiça comum e o direito indígena de solucionar seus problemas na própria comunidade tendo como autoridade o Tuxaua.
Para tanto o presente estudo discorreu sobre a história do Kanaimé e descrevendo suas práticas criminosas, destacando a discussão sobre o direito de investigação e julgamento no caso que envolve indígenas como partes no processo e consequentemente origina a discussão sobre o direito de julgamento na comunidade em que vive.
O discurso também aborda a questão de ser mito ou verdade a autoria dos assassinatos serem cometidos por homem indígena ou por um bicho denominado historicamente como rabudo, o Kanaimé. A metodologia aplicada foi pesquisa exploratória, qualitativa e procedimentos técnicos bibliográficos baseados em livros e artigos científicos voltados para estudos indígenas e direito brasileiro.
1 O QUE É KANAIMÉ?
Várias etnias indígenas têm suas histórias marcadas e relembradas formadas pelos povos a oeste e sudoeste do Monte Roraima, sendo formado por Arekuna, Kamarokoto e Taurepang e todos estes grupos compartilham da mesma mitologia que envolve o Kanaimé, um ser denominado como vingador.
Abandonado por seu pai, We i (o sol), Makunaima passou a vagar faminto pelo mundo primordial (pia daktai) até encontrar wadaka tepuy, “a árvore que todos os frutos continha”, que decidiu cortar. Um forte cataclisma com dilúvios e incêndios sucedeu esse ato imprudente, que também foi responsável por alojar os diversos seres que viviam naquele tempo em seus atuais e respectivos domínios, como serras, bosques, floresta, rios e cachoeiras. Com efeito, o Monte Roraima é o toco que restou de wadaka tepuy, e as pessoas daquele tempo são os ancestrais dos Pemon e Kapon (Monticeli, 2020, pág. 3).
Segundo Monticelli (2020) a figura do Kanaimé é memorizada pelos ancestrais como um vingador que persegue suas vítimas por desafeto ou vingança até tirar suas vidas, incluindo a própria raça indígena que sente-se desprotegida dos perigos oferecidos pelo denominado Rabudo.
De acordo com a histórias contadas por indígenas o Kanaimé é um indígena qualquer considerado inimigo de suas vítimas, e persegue as mesmas quando estão sozinhas e vulneráveis, desprotegidas e sem qualquer condição de se defender. Importa ressaltar que o Kanaimé, apesar de ser um índio, não tem consideração pela vida dos próprios familiares, ou seja, a vítima escolhida pode ser qualquer pessoa indígena ou não, parente ou amigo, branco ou índio será assassinato com requintes de crueldade da mesma forma.
Embora o Kanaimé seja muitas vezes compreendido como um fenômeno espectral, oriundo da malevolência de outsiders e de desconhecidos, os interlocutores de Whitehead, assim como os meus, também afirmam que ele pode ser confrontado e morto. Suas qualidades, portanto, seriam híbridas. Outra consideração de relevância que o autor comenta é que o Kanaimé concebe a si mesmo como alguém que caça por comida. Entre os Taurepáng do Bananal, diz-se que as vítimas desse assassino são por ele compreendidas como “cordeirinhos a serem abatidos (Monticeli, 2020, pág. 3).
O Kanaimé mata suas vítimas com requinte de crueldade, sendo que a mesma sofre devido vários procedimentos feitos em seu corpo ainda com vida, ou seja, língua perfurada com dentes de cobra, anus e barriga dilacerados de forma que são inseridos em seu corpo rabo de iguana, ou de tatu, no ânus através de sucessivas fricções, o agressor busca lesionar o reto da vítima. De acordo com Monticeli (2020) após esses procedimentos, o Kanaimé utiliza um objeto semelhante a um fino graveto para alargar o canal do ânus da pessoa. Com ele alargado, enfia uma puçanga ─ preparado de ervas e plantas mágicas ─ no interior do corpo.
Devido a crueldade praticada com a vítima ainda com vida é possível afirmar que as crenças referentes ao Kanaimé ser um bicho e não homem, não podem ser aceitas e o crime deve ser investigado como caso de homicídio, considerando ainda a possibilidade de ser praticado por um psicopata que age a sangue frio.
Segundo a tese de doutorado de Rabelo Filho (2019) o Kanaimé é “identificado como um ser que só realiza coisas más, vive e se estrutura como qualquer indígena, mas que possui a tendência de se associar a espíritos malignos para violentar, destruir e ceifar a vida de pessoas que andam desacompanhadas”.
Os indígenas também atribuem o ataque do Kanaimé a motivos de vingança e perseguição, e para praticarem o homicídio afirmam que espiritualmente incorporam em animais para realizarem rituais e danças nas sepulturas de suas vítimas. Sendo assim, afirmam que para o ataque se tornam invisíveis bebendo sangue de animais, além de aparecerem em sonhos para atrair suas vítimas e também utilizam drogas e drogas do mato para sentirem seguros das ações que vão praticar, ou seja assassinato. (Rabelo Filho, 2019)
Diante desse contexto importa questionar dois pontos importantes, quais sejam, a competência para julgar o crime de homicídio ocultado sob pretexto de crença indígena e a importância da investigação e participação da psicologia forense com relação ao assassino, ora denominado de Kanaimé.
Para Azevedo (2019), considerando um caso de tentativa de homicídio em terra indígena, a abordagem do direito à diferença deve começar não só na área teórica, mas também na busca de decisões que vão além da ideia implícita no monismo de Estado e no positivismo jurídico, este último, num sentido mais amplo, na intersecção da lei com a legislação vigente, para que abra espaço para outras formas de articular e reconhecer decisões e práticas provenientes dos povos indígenas, bem como seus costumes e tradições.
Como resultado da sociodiversidade e da rearticulação do Direito nos moldes positivados, é possível encontrar no cenário do Judiciário roraimense, de forma particular, um caso jurisprudencial que pode trazer novas luzes sobre a discussão da diversidade e as decisões judiciais penais na temática indígena, apesar das dificuldades no campo jurídico estruturado. Essa pesquisa toca o caso do Primeiro Júri Popular Indígena, processo que tramitou sob o n. 0045.13.000166-7 (numeração única 000166-27.2013.8.23.0045), na Justiça Estadual de Roraima (Azevedo, 2019, 101)
Este cenário é, de certa forma, antitético aos chamados fundamentos modernos de compreensão o Estado como fonte de produção hegemônica de normas jurídicas através da retórica da cidadania. A igualdade e a soberania tentaram forçar a homogeneização cultural – a sobrevalorização da identidade nacional – ou proibir (no sentido de desvio) práticas e comportamentos que não seguiram o manual de valores estabelecido com status legal.
No caso supracitado vítima e réus foram julgados pelo tribunal do júri indígena formado na comunidade de ambos e todos foram condenados de acordo com as regras indígenas, rejeitando a legislação penal brasileira que não foi aceita por nenhuma das comunidades indígenas participantes.
Por ora, mais uma vez, é possível ressaltar a possibilidade da própria comunidade acobertar o assassino denominado como suposto Kanaimé, e por fim fazer justiça pelos próprios meios imputando-lhe penalidades peculiares da comunidade indígena podendo até mesmo deixa-lo impune pelos crimes que cometeu.
No contexto das diferenças culturais indígenas Da Silva Araújo (2019, p. 2) traz a seguinte afirmação:
A literatura indígena contemporânea tem procedência na rebeldia que nasce também da exclusão. O escritor indígena atual problematiza a relação entre ficção e história, tradição rral e escrita, leitura e escrita, autor e leitor para reconstruir o seu lugar enquanto indígena. Trata-se de uma literatura de resistência, de luta pelo reconhecimento do direito às tradições, histórias, culturas, espiritualidade, à terra, respeitando as diferenças
Nas palavras de Azevedo (2019) “o reconhecimento das especificidades indígenas envolve noções peculiares que não se amoldam nas configurações jurídicas formais e demandam o direito à diferença, o que representa uma grande dificuldade no campo jurídico estruturado”.
2 MITO OU VERDADE
Nas comunidades indígenas as histórias sobre ataques de kanaimé são as mais diversas como, por exemplo, nos estudos realizados na tese de doutorado de Araújo (2003, p.137) indígenas entrevistados narram fatos divergentes acerca de quem ou o que é o kanaimé.
Durante sua pesquisa Araújo (2003, p. 137) questiona a uma indígena quem é o Kanaimé e a resposta afirma que este nada mais é do que bandido dos brancos, sendo que tal resposta foi atribuída ao caso ocorrido recentemente no Estado de Roraima no ano de 1999 quando oito Kanaimés foram presos acusados de tentar matar alguns tuxauas.
Em muitos casos o Kanaimé é considerado pelos indígenas como assassino e espírito maligno, assim como também causador de malefícios que conduzem à morte e/ou até mesmo índio praticante de rituais de magia negra determinando a comparação com materiais de outros estudos analisados por Araújo (2003).
Segundo Da Silva Araújo (2019, p. 9) o Kanaimé é o próprio Makunaima que representa o mau:
O pajé, quando poderoso, ao recolher-se em isolamento na floresta após um sonho, é capaz, munido das forças da natureza, de configurar o sentido daquilo que sonhara. Para os indígenas, os pajés poderosos são semelhantes aos próprios Makunaimas, e alguns indígenas associam-nos até mesmo aos kanaimés, considerados seres encantados ocultos, perversos e assassinos, o que nos possibilita a leitura do makunaima como um kanaimé na obra Makunaima en el valle de los kanaimas. Cabe lembrar que a tradução de Makunaima seria o grande mau, numa junção de “maku” com o sufixo aumentativo “ima”.
Portanto, “diferentemente do cristianismo ocidental, os indígenas não têm uma visão dualista. Mitos indígenas promovem uma inter-relação e reaproximação de forças antagônicas como o 10 bem e o mal, o instinto e os valores espirituais”. (Da Silva Araújo, 2019, p. 9).
Comumente os relatos sobre os casos de ataques de kanaimé se resumem ao mesmo como primeiramente causador de uma doença na vítima e posteriormente sua morte. O ataque é descrito da seguinte forma: a vítima após uma surra tem seu pescoço quebrado e suas vísceras são retiradas para que no lugar sejam colocadas folhas verdes introduzidas pelo ânus, e após o ataque a vítima apresenta febre, vômito verde devido as folhas inseridas em sua barriga, pescoço roxo e corpo completamente quebrado vindo a falecer após dois ou três dias, enquanto que após o falecimento o pescoço continua mole, ou seja, não apresenta enrijecimento. (Araújo, 2003, p. 143)
Os indígenas relatam que com o falecimento da vítima ainda é possível ouvir a distância manifestações do kanaimé que segundo a crença ouvem-se gritos de animais, ou seja, os kanaimés entram nos bichos da floresta fazendo alvoroço e aguardam o sepultamento para depois remexer no túmulo e se alimentar do corpo das vítimas.
Segundo as pesquisas realizadas por Carvalho (2016, p. 15) os entrevistados conceituam o Kanaimé nos dias atuais como um bandido que rouba e mata suas vítimas com requintes de crueldade e mata por prazer sem se importar com o valor ou objeto da vítima.
Considerando que o Kanaimé é conhecido por suas atuações no Brasil, Venezuela e Guiana as histórias tem suas semelhanças, mas também acrescentam detalhes em cada versão promovendo dúvidas quanto a verdade dos fatos. A questão de como os mitos intervêm na vida quotidiana de uma comunidade é, sem dúvida, uma Sem dúvida um exercício estimulante e motivador, considerando alguns dos seus aspectos O dia a dia é de extrema importância, principalmente nos relatos coletados comunidades indígenas. O conceito a ser atribuído ao mito é uma tentativa nesse sentido. A explicação das origens ou mesmo um discurso fundador desempenha um papel fundamental na história de um povo (CARVALHO, 2016, p. 21).
Esta tentativa de compreender o papel que o mito desempenha na sociedade, em comunidade é sem dúvida uma das razões para esta impulsiona a preocupação humana em busca de respostas mínimas a respeito sua própria história, o que é e como chegou até aqui, como se deu esse processo de construção em que o mito está presente e é por ele reforçado Histórias. (CARVALHO, 2016, p. 21)
As narrativas carregam e agregam elementos que tornam isso possível compreender a função do mito, não apenas uma representação simbólica, uma lenda, uma fantasia, mas uma construção que torna possíveis histórias não só são semelhantes porque consistem em histórias repetidas, mas também uma repetição de eventos que comprovam sua existência (CARVALHO, 2016, p. 21)
3 UM OLHAR FORENSE
Destaco o caso do Kanaimé no processo criminal de Roraima nº 0090.10.000302-0, que foi decidido muito antes da entrada em vigor da Resolução 287/2019 e que não aplicava nas leis não indígenas uma vez que o réu já era de sua comunidade havia sido sancionado.” O caso envolveu um indígena acusado de homicídio em território indígena. De acordo com a sentença publicada em 2016, embora o indígena já tivesse sido processado e punido em sua comunidade, ele também foi levado ao Judiciário no caso. O juiz de primeira instância reconheceu que o réu já havia recebido a sanção da sua comunidade, portanto o Judiciário não poderia impor qualquer punição adicional. Em recurso, o Tribunal de Roraima considerou que tal não era o caso. poderiam se sobrepor aos indígenas, se assim fosse, seria um caso de bis in idem (Cruz, 2022) neste caso considerar e reconhecer que a punição aplicada pela comunidade foi suficiente para penalizar o réu
Embora no caso brasileiro os direitos dos povos indígenas tenham sido reconhecidos pelo artigo 231 da Constituição de 1988, não houve estabelecimento de uma jurisdição indígena oficial ao lado do Estado, de modo que mesmo que os povos indígenas cometam crimes dentro e contra os territórios indígenas, os membros de suas comunidades podem ser processadas pelo judiciário nacional, que é quase inteiramente composto por pessoas não indígenas. Neste ponto vale ressaltar que na pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Magistratura (.CNJ) sobre o perfil dos juízes brasileiros, apenas 11 se declararam indígenas (Cruz, 2022).
Além disso, quando os povos indígenas são indiciados perante o judiciário, eles estão sujeitos às normas do processo penal brasileiro, que regulam os direitos e garantias dos acusados, bem como sua defesa e seu direito de expressão. Se as regras nele previstas não contemplarem adequadamente a diversidade, quem não demonstrar pertencer à cultura hegemônica será excluído de um processo justo.
O processo penal brasileiro consiste essencialmente no Código de Processo Penal, Decreto Legislativo nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, que prescreve os procedimentos a serem seguidos para determinar a autoria, a culpa e a ilegalidade de um crime. Uma pesquisa neste padrão para os termos “índios” e “povos aborígenes” não contém nenhuma referência a essas palavras. Embora este código remonte a 1941, já sofreu diversas alterações legislativas e, apesar de sua aplicabilidade a crimes cometidos por povos indígenas (dado que não existe jurisdição indígena oficial no Brasil), não dá atenção à questão das diferenças étnicas: Ao aplicar a lei, o sistema de justiça adota uma postura autoritária e etnocêntrica e melhor e ignora os valores e ideias uns dos outros” (CRUZ, 2022)
Embora uma jurisdição indígena independente não seja oficialmente reconhecida no Brasil, esses povos têm seus próprios processos e sistemas de punição para atos ilícitos cometidos por seus membros”, de modo que mesmo que o Estado não reconheça uma jurisdição indígena com sistema próprio como legal, tem “Esse tipo de sistema tem uma existência real dentro dessas sociedades.
Notou-se também que, apesar da diversidade da população nacional e do número de povos indígenas presentes, quando os povos indígenas cometem crimes, mesmo dentro de suas próprias comunidades e contra outros povos indígenas, eles estão sujeitos ao processo penal tradicional, principalmente através de a lei de 1941, que não contém regulamentação específica para essas cidades. (CRUZ, 2022)
As comunidades indígenas, mesmo sem o reconhecimento governamental da aplicação da sua lei e jurisdição como funcionários da sociedade, têm os seus próprios sistemas jurídicos baseados na sua organização social, costumes e tradições. Embora o Brasil não reconheça a jurisdição indígena independente, possui “normas que permitem a aplicação de formas de punição específicas da comunidade aos seus membros no caso de crimes cometidos por povos indígenas (CRUZ, 2022)
Os artigos 56 e 57 do Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973), além de atenuar as penas para crimes cometidos pelos povos indígenas, também dispõem sobre a execução de penas de prisão e de prisão no âmbito de um regime especial de semiliberdade no assistência indígena (Fundação Nacional do Índio – FUNAI), que as sanções criminais ou disciplinares impostas pelos próprios povos indígenas, de acordo com suas instituições, são toleradas pelo ordenamento jurídico, embora o termo “tolerado” tenha caráter discriminatório por representar uma grupo dominante que favorece a aplicação de punições por outro grupo dominado e respeitado, avaliadas e aceitas ou não executadas, representa um paradigma importante no reconhecimento dos direitos dos povos indígenas.
Com base nesse relatório, o Conselho Nacional da Magistratura (CNJ) criou um grupo de trabalho e emitiu a Resolução nº 287, de 25 de junho de 2019, que passou a estabelecer procedimentos para o tratamento de indígenas réus, acusados, condenados ou lesados. A resolução se baseia na autodeclaração, que é o direito do indivíduo de se reconhecer como indígena, direito que pertence apenas ao índio que se sente índio”, e esta definição não corresponde ao Estado.
Outra garantia pela Resolução 287/2019 é a presença de um intérprete da comunidade indígena do interessado, o que representa um elemento importante para a presença dos povos indígenas no âmbito do o processo “A resolução também aborda medidas alternativas à prisão e ao tratamento criminal das mulheres indígenas (CRUZ, 2022).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme observado neste artigo, o processo penal brasileiro, ainda marcadamente monista, tem se voltado cada vez mais para contextos interculturais, particularmente em julgamentos envolvendo povos indígenas. Este tipo de processo, como organizador dos direitos e garantias dos acusados, não pode mais se contentar em meramente representar a cultura hegemônica de uma sociedade predominantemente monista. Assim, as resoluções 287/2019 e 454/2022 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) passaram a introduzir o princípio da interculturalidade no Código de Processo Penal.
Nesse contexto importa ressaltar a necessidade da participação de uma equipe multidisciplinar formada por intérpretes, antropólogos, etnólogos e etnopsiquiatras com conhecimentos especializados para promover a prova cultural da qual o magistrado precisa ter conhecimento e munir de fundamentos na sua decisão. Sendo assim permite-se a interculturalidade na justiça, mas que também ainda precisa de mais pesquisas jurisprudenciais para reforçar a importância da realidade pluriétnica e multicultural brasileira.
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[1] Bacharel em Direito. Acadêmica do Curso de Psicologia da Faculdade Cathedral, 2024. E-mail: marcelita_cruz@homail.com