O CAPS COMO LUGAR DA LOUCURA? REFLEXÕES SOBRE EXPERIÊNCIA, FORMAÇÃO E PRÁTICA NO CAMPO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8189384


Jonathan Marques Oliveira1
Letícia Camargos de Oliveira2


Resumo

A Constituição Federal de 1988 determina, dentre outras questões, como uma das funções do Sistema Único de Saúde (SUS) a formação de profissionais para atuação em serviços que compõem esse sistema, podendo essa se iniciar durante a graduação por meio de estágios. Assim sendo, compreendendo a formação a partir da experiência como possibilidade de transformação que se faz a partir da atribuição de sentido ao que é vivido de forma única por alguém, esse trabalho se propõe a refletir a partir de uma experiência de estágio em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Deste modo, por meio das vivências de uma estagiária, articulam-se discursos e práticas apreendidas no serviço ao processo sociohistórico da saúde mental e Reforma Psiquiátrica, valendo-se das contribuições de Cornelius Castoriadis para se pensar em um imaginário social da loucura atribuído ao CAPS.

Palavra-chave: Estágio; Psicologia; Experiência; CAPS; Imaginário Social.

Introdução

Este ensaio tem como objetivo abrir espaço à reflexão sobre os processos de formação profissional em Psicologia dentro de serviços públicos de saúde mental, compreendendo tal processo como uma experiência. A reflexão a partir dessa categoria pode acontecer como parte do que Jorge Larossa (2022), entende sobre a experiência ser aquilo que permite a transformação de um ser por meio da atribuição de sentido às suas vivências; sendo necessário, para tanto, um gesto de interrupção no dia a dia, de modo a permitir atenção e reflexão a seu em torno.

Assim, a experiência é vista como um processo de mediação entre a vida humana e o conhecimento, sendo que o saber da experiência “se trata de um saber distinto do saber científico e o saber da informação, e de uma práxis distinta daquela da técnica e do trabalho” (LAROSSA, 2022, p. 30). Tal conceito, fundamental ao se pensar na importância de um processo de formação profissional, aponta para um movimento que vá além da mera aprendizagem de conceitos: um processo que permita-se refletir e dar significado para o que se faz, na possibilidade de que, diante da experiência, o processo possa dar espaço para o inacabado e novo, aquilo que tenciona ser. Daí podermos dizer que parte fundamental da experiência de formação repousa na possibilidade de reflexão, se a mesma intenciona uma formação crítica e contextualizado, pois “a educação crítica considera os homens como seres em devir, como seres inacabados, incompletos em uma realidade igualmente inacabada e juntamente com ela” (FREIRE, 1979, p.36).

Diante disso, a partir de uma experiência de estágio em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), surge a necessidade de se refletir sobre os discursos e práticas vivenciadas e sua relação com o processo sócio histórico em saúde mental e Reforma Psiquiátrica, quando se vivencia a atribuição do CAPS por profissionais e usuários como um espaço destinado à loucura.

Nessa leitura, a retomada de um contexto histórico se faz fundamental para a percepção de que, a partir do processo de Reforma Psiquiátrica brasileira, iniciada na década de 1970 por profissionais de saúde mental, existe uma tendência de acompanhar a compreensão em torno da necessidade de se repensar o fenômeno da loucura, associada até então como ausência de razão e periculosidade (AMARANTE, 1998). Com isso, tendo como referência a experiência de desinstitucionalização realizada por Franco Basaglia na Itália, o processo de Reforma no Brasil traz como prerrogativa a extinção dos manicômios como via de “tratamento” em saúde mental, privilegiando cuidado humanitário e de base comunitária através de serviços como o CAPS (AMARANTE, 1998). A experiência da formação do estágio, como se apresentará neste texto, passa pela compreensão da práxis histórica que culmina no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).

Para além disso, como ainda aponta Paulo Amarante (1998), a Reforma Psiquiátrica não pode ser reduzida a mera mudança de serviços, sendo importante destacar outras dimensões da mesma, como as mudanças na esfera jurídica com a criação da Lei nº 10.216/2001 que garante os direitos das pessoas em sofrimento mental, e a dimensão sociocultural, visando a redução dos estigmas relacionados ao “louco” e o acolhimento da comunidade às pessoas em sofrimento psíquico. Tal garantia, porém, não prescinde de uma reflexão sobre como o conceito de loucura aparece, de fato, na prática social. Assim, sobre essa última dimensão, a partir de discursos e práticas experienciadas no estágio, esse trabalho se propõe a refletir sobre a visão social sobre a loucura articulada ao serviço CAPS, valendo-se da definição de Imaginário Social proposta por Cornelius Castoriadis.

Experiência e Formação – elementos para análise:

A partir de um contexto de formação, entende-se que a experiência de campo constitui-se, junto de outras experiências, parte do processo de formação profissional. Nesse sentido, como aponta Jorge Larrosa (2022, p. 18), “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca”, se constituindo enquanto algo que é vivenciado por cada pessoa de modo único. Diante disso, para experienciar, é necessário que o ser humano esteja aberto ao mundo e atento ao que o cerca, visto que o fluxo da vida cotidiana e suas inúmeras atribuições impedem que esse pare, observe, escute e pense sobre o que está ocorrendo.

A partir disso, o sujeito da experiência seria aquele que se deixa afetar e transformar pelo seu entorno, através de uma atitude receptiva que o deixa “ex-posto”: sujeito à vulnerabilidade, ao risco, marcado, submetido; posto que a vivência da experiência exige a capacidade de se atribuir sentido e se implicar com o que está ao seu redor (LAROSSA, 2022). A partir do estágio, nesse caso, a vivência teórico-prática passa a ser mais que uma parte do percurso acadêmico, mas a própria formação do sujeito enquanto ser.

Nesse sentido, tendo em mente a concepção de experiência proposta por Larrosa, cabe refletir sobre os processos formativos do psicólogo nos serviços públicos de saúde, em especial o trabalho realizado nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), a partir de uma experiência de estágio. Tal experiência é perpassada por um eixo histórico-teórico, um técnico e um vivencial sob os quais se articulam o panorama histórico e social da Reforma Psiquiátrica, a estruturação do campo de estágio a partir da Carta de 1988, as conceituações a respeito dos programas de formação superior e, por fim, a experiência de campo da estagiária enquanto prática e formação.

Assim sendo, a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 200, inciso II, determina que cabe ao Sistema Único de Saúde (SUS) “ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde” (BRASIL, 1988), o que significa que a formação de profissionais de saúde que virão a atuar no SUS deve ser realizada nos serviços que compõem esse sistema, podendo essa ser iniciada durante a graduação por meio de estágios supervisionados e orientados.

Nesse sentido, os estágios de formação têm como compromisso integralizar aspectos teóricos e científicos ao meio social, em ações que visem inserir o estudante à realidade do seu trabalho, visando o aprendizado crítico e participativo (REZENDE, 1986). Para tanto, normativas são necessárias para regular esse processo, sendo que a obrigatoriedade de estágios em algumas carreiras universitárias é instituída pela primeira vez pelo Conselho Federal de Educação (CFE) em 1962, entre os quais se destacam cursos como o de Medicina, Farmácia, Administração, Direito, Psicologia, dentre outros (REZENDE, 1986).

Atualmente, os estágios são regulamentados pela Lei 11.788/2008, que dispõe sobre definições e classificações de estágio, bem como obrigações das partes envolvidas, além de possuírem determinações próprias de cada profissão tais como Resoluções elaboradas pelos Conselhos de classe, e determinações das Diretrizes Curriculares Nacionais (DNCs).

A reflexão teórica que se faz neste ensaio parte deste campo de experiência que é o estágio, na qual a atuação da estagiária parte das orientações contidas nas Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas (os) nos Centros de Atenção Psicossocial elaborada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), que além de apontar possíveis atuações do psicólogo nesse serviço, articula essa prática a aspectos históricos e sociais em torno da loucura e da Reforma Psiquiátrica. A partir disso, compreende-se que ao se inserir no campo de estágio, é necessário refletir sobre seu processo de formação e implicações que nesse possam surgir, de modo que se realize o trabalho de maneira crítica. A formulação da escrita a partir da experiência denota a vivacidade do contexto do estágio, uma vez que “o saber de experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana. De fato, a experiência é uma espécie de mediação entre ambos.” (LAROSSA, 2002, p.30).

O CAPS como lugar da loucura – Reforma Psiquiátrica e Imaginário Social

O advento do Cartesianismo no século XVI proporcionou mudanças profundas na sociedade e nas ciências, que sob a ótica da racionalidade humana, vê o homem como um ser provido de sabedoria. O fenômeno da loucura, visto até o momento como uma fatalidade humana da qual não haveria qualquer tipo de tratamento ou cura, passa a ser compreendido como uma condição de irracionalidade, como a ausência de razão (HEIDRICH, 2007).

Tal visão da loucura, que outrora era renegada à caridade, associada com as mudanças na estruturação do estado e os processos de urbanização e industrialização na Europa, fez com que se adotassem práticas higienistas no sentido de “organizar” a sociedade. Assim, nos asilos, confinavam-se todos que eram vistos como improdutivos ou desviantes, entre os quais os pobres, doentes e os loucos, sendo o marco desse processo de internação, a criação do Hospital Geral de Paris no ano de 1656 (AMARANTE, 1998).

Diante disso, durante os séculos XVII e XVIII a criação de hospitais gerais e as internações se espalharam pelo continente europeu, sendo que a separação dos loucos dos demais excluídos em vistas de fazer do hospital um espaço de cura, viria a ocorrer com a colocação do médico no papel de tratar e controlar esse ambiente, sendo o precursor dessa mudança Philippe Pinel, o fundador da psiquiatria (HEIDRICH, 2007).

A partir da concepção de Pinel sobre o louco como um doente, sem razão, que necessitaria de cuidados em espaços específicos para sua cura, vê-se a criação de diversos hospitais psiquiátricos pela Europa, com o intuito de “proteger” a sociedade da “periculosidade” emanada dos alienados, bem como proporcionar um “Tratamento Moral” por meio da disciplina e ordem impostas pelo médico (JORGE, CARVALHO & SILVA, 2014). Tal ideia foi importada por diversos outros países para além da Europa, inclusive pelo Brasil, sendo o Hospital Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, o primeiro manicômio instalado no país no ano de 1852 (AMARANTE, 2019; CFP, 2013).

Assim sendo, no decorrer do século XIX e até a metade do século seguinte, os manicômios e as terapias à base de eletroconvulsoterapia, insulínico e lobotomia se expandem pelo Brasil, sendo que a realidade das instituições asilares nada tinham a ver com a cura, mas sim com a perpetuação de sofrimento na medida em que aprisionavam, segregavam e torturavam pessoas que eram vistas como “sem-razão” (AMARANTE, 2019).

Encontramos em Cornelius Castoriadis (1922-1997) uma possibilidade de reflexão sobre como as práticas sociais ganham forma a partir de um imaginário social. Filósofo, economista, psicanalista e pensador político grego naturalizado francês. Nascido em

Constantinopla (atual Istambul, Turquia), em uma família grega, mudou-se para Atenas em 1924 com o intuito de escapar da perseguição dos turcos. Importante destacar que as perseguições políticas marcaram a vida do jovem Castoriadis assim como de sua família. Garbatz (2014, p.40) lembra que “numa idade ainda precoce, deu início às suas atividades políticas contra a ditadura que existia no país. Com apenas 15 anos entrou na ala jovem do Partido Comunista Grego. Aos 22 anos, caçado pelas tropas nacionalistas gregas e seus aliados nazistas, tanto quanto pelo braço armado dos gregos stalinistas”.

Na Universidade de Atenas, Castoriadis se formou em Direito e em Economia. Em 1945, ele se mudou para Paris para estudar na École des Hautes Études en Sciences Sociales, onde obteve um doutorado em Economia. Atuou na Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), onde atuou como economista, e mais tarde como Diretor de Estatísticas, Contabilidade Nacional e Estudos sobre o Crescimento. Já na década de 60, volta seus estudos para a filosofia e a linguística, vindo em 1974, formar-se como psicanalista ligado ao grupo dissidente da Escola Freudiana de Jacques Lacan. Voltou para a academia, onde foi eleito para o cargo de Diretor de Estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais em Paris no ano de 1979, cargo que exerce até 1997, ano de seu falecimento.

Foi autor da obra seminal ‘Instituição Imaginária da Sociedade’ e da série ‘As Encruzilhadas do Labirinto’, além de outros escritos frutos de conferências, entrevistas e posicionamentos. Castoriadis nunca abandonou sua postura e suas atividades como revolucionário. Foi um pensador inovador, que evitou os modismos da vida intelectual francesa. Suas obras e pensamento não são limitadas por alguma área específica do saber, tornando-se ainda mais potente dentro das suas reflexões sociais.

Observando o contexto histórico apontado por Amarante, podemos partir da ideia de Castoriadis que defende que toda questão social advém de uma certa crença comum, compartilhada socialmente, que permite que certas práticas existam ou não. Partindo da elaboração da noção de um imaginário social parte instituinte, parte radical, percebido a partir das possibilidades de criação humana tais como a arte, a política e a religião, Castoriadis não nega a existência certo “fisiologismo” nas condições sociais e funções que tais imaginário propõem, mas “mas atesta que a instituição não poderia ser reduzida apenas a explicações dadas pelo funcionalismo e pelo marxismo” (GARBATZ, 2014, p.41). Como também aponta

Prado (2015), para Castoriadis

[…] as instituições – como a família, a religião, a economia, o direito – desempenham funções vitais,funcionais imprescindíveis, sem as quais uma sociedade não sobreviveria. No entanto, as instituições não podem ter sua significação reduzida à dimensão funcional. Nesse sentido, o autor afirma que há uma dimensão simbólica e imaginária importante no que tange à vida social (p.46).

É nesse sentido, portanto, que Castoriadis possui uma visão ampla de ser humano, onde não há cisão entre uma biologicidade e uma produção simbólica cultural. Para o autor, “o ser é criação. O imaginário e a imaginação são o modo de ser que essa vis formandi do ser em geral toma, nesse rebento do ser/ente total que é a humanidade… Se não fosse isto, o ser seria sempre o mesmo. O ser humano não existiria, a vida não existiria etc.” (CASTORIADIS, 1999, p.104). A possibilidade de entender como a loucura coloca-se pré reforma psiquiátrica pode partir da ideia de que naquelas condições sociais, os conceitos fundamentais apontavam para uma ‘perda da razão’, e neste contexto, da humanização permitindo que atrocidades fossem cometidas em nome da ‘ciência’.

Da mesma forma que o imaginário social se mantém, nele também encontram-se as potências de transformação. Castoriadis apresenta o imaginário como uma força potente de onde a sociedade se organiza mas também se desorganiza, na busca de novas formas de ser. O que o autor busca é “capturar o real em sua autoconstituição. O que significa, aqui, o real social. Para capturar, pois, a vida do real social” (CASTILLO, 2022, p.52). Nesse real social,

Castoriadis vê a formação do sentido da práxis humana, o que chama de significação. No autor, porém, a significação adentra o campo da prática humana, e marca os movimentos humanos como um todo – boa parte da obra do autor, por exemplo, apresenta como os movimentos políticos-sociais apresentam as significações presentes neste imaginário. Castillo (2022) ajuda a compreender ao afirmar que

Tais significações são realidades sociais e pessoas que marcam tanto os pensamentos quanto as emoções; quando nos revoltamos, não somos como indivíduos estranhos à sociedade, somos indivíduos que contestam sua sociedade com as significações que essa sociedade colocou à sua disposição. A história social se faz através dos usos que fazemos das significações que ela criou, que são vividas sob o modo da adesão a um ‘imaginário social’ (p.53).

Nesse sentido, acompanhando movimento sociais em território nacional, como a Reforma Sanitária e o processo de Redemocratização, a Reforma Psiquiátrica Brasileira se inicia na década de 1970, com denúncias de trabalhadores que atuavam nos hospitais psiquiátricos sobre cotidiano de trabalho e a realidade das instituições asilares, promovendo abaixo-assinados, notas públicas e diversos outros documentos que tinham como principais críticas às condições de trabalho desses profissionais (salários, formação, pesquisa, demissões e represálias), modelo médico-assistencial e as condições desumanas nas quais as pessoas internadas vivenciavam (AMARANTE, 1998).

Como exemplo de tal situação criticada pelos reformadores, durante a década de 1980, o número de leitos psiquiátricos girava em torno de 85 mil em 313 hospitais no país, se constituindo enquanto o terceiro maior gasto público em internações e como a única forma de acesso para população que não poderia arcar com os custos de consultas psiquiátricas particulares ou aquelas que não eram assistidas pela previdência social (JORGE, CARVALHO & SILVA, 2014); evidenciando, também, a necessidade de criação de um sistema de saúde público voltado para toda a população.

Diante disso, tendo como referência a experiência de Franco Basaglia no processo de desinstitucionalização ocorrida na Itália, profissionais de saúde, entidades, movimentos sociais, associações comunitárias, conselhos federais, dentre outros, promovem eventos em vistas de discutir problemas sociais relativos à saúde mental e alternativas para o modelo manicomial vigente; como o II Congresso Nacional do MTSM, realizado em Bauru (SP) no ano de 1987, com o lema “Por uma sociedade sem manicômios” (BRASIL, 2005).

Foi também em 1987 a criação do primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) na cidade de São Paulo, que juntamente com a experiência exitosa do Núcleo de Apoio Psicossocial (NAPS) na cidade de Santos (SP), tinham como objetivo fornecer serviços substitutivos aos manicômios; tornando-se modelos de referência em saúde mental devido a seu caráter humanitário e comunitário (AMARANTE, 1998). Por conseguinte, tais serviços pouco a pouco foram difundidos no país, sendo que a partir da criação da Lei Paulo Delgado (Lei nº 10.216/2001), são determinados, por lei, o oferecimento de tratamentos nesses serviços, além da garantia dos direitos das pessoas com transtornos mentais (BRASIL, 2005).

A partir disso, criados através das portarias nº 189/91 e 224/92, e reestruturados pelas portarias nº 336/2 e 189/2 (AMARANTE, 2019), os Centros de Atenção Psicossocial são divididos em modalidades de acordo com recomendações mínimas do Ministério da Saúde, tais como número de habitantes da região/cidade, bem como público-alvo: CAPS I, II e III destinado a adultos em sofrimento psíquico, CAPSi voltado para crianças e adolescentes e CAPS AD I, II e III para pessoas em sofrimento psíquico devido ao uso abusivo de álcool e outras drogas (BRASIL, 2005).

Assim, como serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, os CAPS têm como primazia o oferecimento de tratamento em saúde mental de base comunitária, pautado nos direitos humanos, onde os usuários são vistos como sujeitos de direitos e atuantes em seu tratamento (AMARANTE, 2019). Por conseguinte, nos serviços CAPS, dentre as possibilidades de atuação do psicólogo estão a realização de acolhimentos, que são o primeiro contato dos usuários com o serviço onde se privilegia a escuta atenta, prestação de informações e promoção de vínculos; bem como o trabalho com oficinas terapêuticas, entendidas como espaços de integração social e familiar, expressão e reflexão (BRASIL, 2004).

Diante disso, tendo como norteador as Referências Técnicas de Atuação do Psicólogo nesse serviço, o trabalho realizado pelo psicólogo nos CAPS seria o de “tecer novas biografias e produzir novas subjetividades” (CFP, 2013, p.83). Dessa forma, dentro de uma lógica antimanicomial, oposta às formas de aprisionamento e violência às subjetividades, a atuação desse profissional seria o de promover singularidades que são contrárias àquelas impostas pelo meio social, de forma que pessoas em sofrimento psíquico possam se constituir através de suas vivências com dignidade e direitos; principalmente o de ser quem é.

Tal visão compreendida pelo CFP abre margem à reflexão do CAPS como um espaço de realização na qual a pessoa em sofrimento psíquico não é vista como destituída de razão e que por isso deve ser segregada, mas como alguém singular, possuidor de direitos e participante da vida cidadã.

Larrosa (2022, p. 30) afirma que “o saber da experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana”, apontando que para além do trabalho técnico realizado pelo psicólogo no serviço, há uma práxis distinta do saber científico, realizada pelo sujeito da experiência. Ao estar atento ao que acontece à sua volta, o sujeito da experiência elabora sentidos às suas vivências, que são únicas, finitas e singulares, se permitindo ser transformado a partir do momento em que tal elaboração de sentido permite que reflita sobre sua própria existência.

Posto isso, ao se permitir parar e observar cotidiano dos CAPS, pôde-se apreender, questões relacionadas a uma lógica manicomial no sentido de que ideias sobre controle dos corpos, psicopatologização de modos de ser e redução de singularidades a diagnósticos ainda podem estar presentes nos discursos de profissionais e usuários do serviço. Daí podemos pensar, a partir da perspectiva de um imaginário social, não cindido do homem, também passa por uma ideia de não cisão entre indivíduo e sociedade. Castoriadis irá defender que as representações do imaginário social são capacidade criativas que , “[…]Dizem respeito à totalidade da sociedade e, portanto, não são produtos da imaginação individual, pois só cumprirão a sua função na medida em que forem partilhadas e assumidas de forma coletiva pela sociedade constituída” (GABATZ, 2014, p.43).

Aqui, portanto, pode-se pensar que social-histórico e simbólico são indissociáveis, ainda que nem tudo seja símbolo, a sociedade está estruturada como uma rede simbólica onde as ações individuais e/ou coletivas compartilham significados. Pensar a lógica manicomial ou antimanicomial significa explicitar essa rede de significações a partir da prática social que, ainda que não existentes em determinada fisicalidade, adentram as práticas dos serviços.

A vida social representada e tecida pelo afeto e pela intenção está constituída na linguagem que expressa a especificidade de cada grupo ou sociedade, a sua visão de mundo e a forma de reproduzi-lo. Castoriadis (1999) define da seguinte forma:

“[…] As significações imaginárias sociais criam um mundo próprio para sociedade considerada, na verdade elas são esse mundo […] Elas criam uma ‘representação’ […], inclusive da própria sociedade e de seu lugar nesse mundo” (p.288). O ‘lugar da loucura’, dessa forma, não se encontra em uma instituição ou em um profissional, mas num lugar de ser no mundo, onde nos fazemos sujeitos e também vemos outros não serem.

Parte deste imaginário social é o que o filósofo chamava de imaginário radical: o caos/abismo/sem fundo – o magma – onde formas/figuras/imagens estão em permanente e interminável fluxo. O autodesenvolvimento do imaginário radical como sociedade e como história – como social-histórico – faz-se e só pode fazer-se em e pelas duas dimensões do instituinte e do instituído. A instituição, no sentido fundador, é criação originária do campo social-histórico – do coletivo anônimo – que ultrapassa como eidos, toda “produção” possível dos indivíduos ou da subjetividade.(…) A sociedade é obra do imaginário instituinte. Os indivíduos são feitos, ao mesmo tempo que eles fazem e refazem, pela sociedade cada vez instituída: num sentido, eles são a sociedade. (CASTORIADIS, 1992, p.121-123. Grifos do autor). Assim, esse imaginário vai remeter “[…] a qualquer coisa de inventado, tanto no sentido de uma invenção absoluta ou de um deslocamento de sentido, de modo que símbolos que já existem são investidos de outras significações que não suas significações esperadas, normais” (PRADO, 2015, p.47).

Por isso, ao pensar no lugar da loucura nos discursos a partir de uma perspectiva castoridiana, “as significações imaginárias da sociedade penetram na totalidade da vida social, encarnam em instituições particulares conferindo sentido e dinamicidade” (GABATZ, 2014,

p.43). Se podemos entender como os processos sociais se constituem, em Castoriadis parte dessa compreensão parte do entendimento da manutenção do funcionamento de determinadas ideias que possui coesão e dão coesão à sociedade como um todo – aqui falamos da linguagem, poder ou virtudes. Na maneira como se trata a loucura, como lembra Silveira (2009, p.14)

Há uma clara tendência contemporânea de se abordar a loucura institucionalizada, revelando tanto um posicionamento ético como político. Com caráter de denúncia, busca-se romper com o enclausuramento da loucura à lógica manicomial, que aprisiona a noção de doença mental—lógica que se atualiza e nos surpreende em tempos de produção de lógica antimanicomial e de outros sentidos.

A relação do imaginário social e da instituição é parte da compreensão sobre o discurso social uma vez “[…]Dizer que as instituições repousam sobre o imaginário significa dizer que elas sempre fornecem uma ordem dentro da qual certas atividades são plenamente dotadas de sentido e que esse sentido não pode ser relacionado a circunstâncias externas” (DESCOMBES, 2022, p.11). Daí, portanto, que a compreensão de loucura passa pela compreensão da sua fundamentação no imaginário social. Como Silveira (2009,p.28) bem provoca

[…]há que se arriscar a experimentar a análise crítica das formas instituídas, mortificadas, o que sempre nos compromete politicamente. Desse compromisso não há como escapar, pois a política também é um regime de afetabilidade. Com este compromisso e todos os desafios que advêm dele, eis o esboço de alguma certeza: há que se inventar novas rotas para a travessia com a loucura e com o louco… travessia que só está começando e onde novos encontros estão por vir[…]

Tal ação foi provocada a partir da articulação entre os questionamentos sobre o campo e o trabalho de supervisão e orientação de estágio, destacando a importância deste no processo formativo e vivencial do profissional de psicologia. Assim, ao se atentar às estruturas institucionais como a realização de acolhimentos em dupla e aos discursos dos profissionais e usuários em torno daquele como um espaço para a loucura (como para o lugar para a obtenção de laudos e medicação) e do louco como alguém que causa “incômodo”, o sujeito da experiência, passivo, receptivo e atento dá sentido ao seu trabalho, compreendo o mesmo enquanto uma experiência; como algo aberto à transformação (LAROSSA, 2022).

Considerações Finais

Ao contrário da obra de arte, aqui não há edifício terminado e por terminar; tanto e mais que os resultados, importa o trabalho da reflexão e talvez seja sobretudo isto que um autor pode oferecer, se é que ele pode oferecer alguma coisa.” (CASTORIADIS, 1982 In: GABATZ, 2014, p.50).

Pensar a partir da experiência enquanto locus da formação apresenta diante dos indivíduos questões que poderiam ser chamadas de ‘últimas’, visto sua profundidade e efeitos na formação de cada profissional atuante no campo da saúde mental. A partir da leitura histórica e social, tendo em vista que tais movimentos não acontecem em um vazio, mas a partir de um imaginário social profundo, denso e complexo, coloca-se como pergunta final deste ensaio – como a loucura apresenta-se diante de cada trabalhador e trabalhadora do campo da saúde mental?

Tal questão, como apresentado neste ensaio, aparece dentro de uma experiência de estágio no serviço de saúde mental. A estagiária, colocando-se no lugar da reflexão, convida a todos os outros entes envolvidos com ela (isto é, cada um e cada uma de uma sociedade) a pensar se, de fato, a loucura tornou-se algo diferente daquilo que era no início do movimento de Franco Basaglia. Quais lugares os ditos ‘loucos’ podem ocupar? E, especialmente, quais eles não podem ocupar? A possibilidade de um serviço de porta aberta como o CAPS, a partir de uma perspectiva social, não significa apenas não fechar as portas de um local – significa pensar em como, a partir do imaginário social, a ideia de loucura é operacionalizada dentro dos procedimentos institucionais.

É Castoriadis quem ajuda a pensar que o ser humano cria significações na sua prática social onde, num processo dialético, também cria sentidos institucionalizados. Ao pensar no CAPS como ‘lugar da loucura’, o que se tenciona é refletir sobre o fazer social que se assume ao realizar certos discursos ou certas práticas, uma vez que “todo pensamento da sociedade e da história pertence em si mesmo à sociedade e à história. Todo pensamento, qualquer que seja ele e qualquer que seja seu objeto, é apenas um modo e uma forma de fazer social-histórico” (CASTORIADIS, 1982, p.13, grifo nosso).

Se a prática do profissional dentro do serviço de saúde apresenta-se de certa forma, a partir de uma visão “Castoriadiana”, temos um ‘modo e forma de fazer social-histórico”. E se social-histórico, cabe a reflexão sobre qual espaço a psicologia (ou qualquer outra profissão dentro do campo da saúde mental) ocupa nas suas práticas. Dizer do lugar da loucura é também dizer do discurso social que reconhece ou, frequentemente, tira direitos de pessoas. Quando se analisa o lugar da loucura como parte desse imaginário social, inevitavelmente afirma-se a questão política de tal discurso, pois a mesma “é indissociável de uma finalidade e de um projeto político. Mais do que em qualquer outro domínio, a ideia de teoria pura aqui é ficção incoerente” (CASTORIADIS, 1982, p.13).

A história serve como espaço reflexivo, tal como apresentado durante esse ensaio, para localizar qual a prática social ganha forma nos espaços ocupados. A experiência de formação, a partir deste lugar, não é de ‘acumulação’ de saber, mas de transformação do ser que conhece. A partir de uma relação dialógica, o campo e o estagiária/o se colocam como formação, como algo novo, inacabado e potente naquilo que pode trazer. Todavia, o que pode trazer? Acima de tudo, o mais importante é o que se coloca a fazer – como o filósofo grego, referência teórica deste texto, afirma na epígrafe desta conclusão: “tanto e mais que os resultados, importa o trabalho da reflexão”.

Referências

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1 Professor de Psicologia na Fundação Presidente Antônio Carlos (FUPAC), Conselheiro Lafaiete, pedagogo e mestre em Educação. Email para contato: jonathan.oliveira@unipaclafaiete.edu.br

2 Graduanda em Psicologia pela Fundação Presidente Antônio Carlos (FUPAC), Conselheiro Lafaiete. Email para contato: leticia.oliveira.camargos@gmail.com