O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA (BPC/LOAS) PARA PESSOAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA: CRITÉRIOS LEGAIS, DESAFIOS NA CONCESSÃO E JURISPRUDÊNCIA CONTEMPORÂNEA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202505311053


Isabella dos Santos Brito1
Natana Monteiro Barbosa da Silva Santos2
João Lucas Bispo Lino Vasconcelos3


RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar o direito das pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) à obtenção do Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal, e regulamentado pela Lei nº 8.742/1993 (LOAS). A partir de uma abordagem qualitativa e bibliográfica, o trabalho examina os fundamentos legais, doutrinários e jurisprudenciais que sustentam a concessão do benefício a pessoas com deficiência, com destaque à inclusão do autismo nesse escopo jurídico, especialmente após a promulgação da Lei nº 12.764/2012 (Lei Berenice Piana). São discutidos os desafios enfrentados pelos requerentes do BPC com TEA, como a rigidez do critério de renda per capita, a falta de aplicação efetiva da avaliação biopsicossocial prevista na Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), bem como a necessidade de políticas públicas inclusivas. A análise considera ainda decisões paradigmáticas do STF e STJ que apontam para a flexibilização do critério econômico, bem como a importância de uma interpretação que priorize a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial. Ao final, conclui-se que a efetividade do BPC para pessoas com TEA exige mais do que o reconhecimento legal: requer capacitação institucional, sensibilidade social e ações governamentais efetivas, que respeitem a singularidade de cada indivíduo do espectro. 

Palavras-chave: Autismo; Benefício de Prestação Continuada; Pessoa com Deficiência.

1. INTRODUÇÃO 

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 marcou uma ruptura paradigmática ao estabelecer a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, consagrando os direitos sociais como instrumentos essenciais à cidadania. Nesse contexto, a assistência social foi elevada à categoria de política pública indispensável, voltada à proteção de grupos em situação de vulnerabilidade, como as pessoas com deficiência, incluindo aquelas diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), condição neurológica que impacta significativamente aspectos sociais, cognitivos e afetivos, dificultando o pleno acesso aos direitos fundamentais. 

Diante da complexidade e heterogeneidade do espectro autista, impõem-se políticas públicas integradas que garantam apoio multiprofissional contínuo, educação inclusiva, saúde especializada e proteção socioassistencial. O Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal e regulamentado pela Lei nº 8.742/1993 (LOAS), surge como ferramenta de justiça social ao assegurar um salário mínimo mensal à pessoa com deficiência em situação de vulnerabilidade econômica. 

A Lei nº 12.764/2012 (Lei Berenice Piana) consolidou o reconhecimento jurídico do autismo como deficiência, garantindo às pessoas com TEA acesso aos mesmos direitos das demais pessoas com deficiência, inclusive ao BPC. Contudo, a efetivação desse direito esbarra em entraves, como a rigidez do critério de renda familiar per capita inferior a 1/4 do salário mínimo e a ausência da adequada avaliação biopsicossocial prevista na Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015). 

As famílias de pessoas autistas enfrentam dificuldades práticas, como exigência de documentos desproporcionais, falta de capacitação de avaliadores e entraves na obtenção de laudos médicos aceitos pelo INSS, evidenciando a distância entre a norma e sua aplicação. A jurisprudência do STF e do STJ vem flexibilizando o critério econômico, entendendo que a comprovação de miserabilidade deve ser analisada conforme o caso concreto. Para Sarlet (2017), “a dignidade da pessoa humana deve ser o fio condutor da interpretação dos direitos sociais”, enquanto Iamamoto (2013) critica a lógica de focalização que exclui os mais vulneráveis da proteção socioassistencial. 

Assim, este artigo analisa os critérios legais e desafios para a concessão do BPC às pessoas com Transtorno do Espectro Autista, destacando contradições entre norma e prática, bem como o papel fundamental da doutrina e jurisprudência na efetivação desses direitos. Parte-se da premissa de que, embora o ordenamento jurídico brasileiro seja robusto, sua eficácia depende da articulação de políticas públicas, capacitação institucional e compromisso político com a inclusão. A metodologia utilizada é qualitativa e bibliográfica, com pesquisa doutrinária, legislativa e jurisprudencial, buscando contribuir para o debate jurídico e social sobre a garantia de direitos fundamentais a um dos grupos mais historicamente negligenciados. 

2. FUNDAMENTOS JURÍDICOS E NORMATIVOS DO DIREITO À ASSISTÊNCIA SOCIAL PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA 

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 instituiu um novo paradigma ao reconhecer a assistência social como um dos pilares da seguridade, ao lado da saúde e da previdência (art. 194). No art. 203, inciso V, estabelece o Benefício de Prestação Continuada para pessoas com deficiência e idosos com mais de 65 anos, desde que comprovem não possuir meios de subsistência nem apoio familiar. 

A regulamentação veio com a Lei nº 8.742/1993 (LOAS), que define os princípios da Política Nacional de Assistência Social. De acordo com a LOAS, a assistência deve ser prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição, tendo como foco a superação das desigualdades sociais e a promoção da cidadania (BRASIL, 1993). 

Nesse contexto, a assistência social atua como mecanismo de redistribuição de renda e promoção do mínimo existencial. Sarlet (2017, p. 99) enfatiza que “os direitos sociais, entre os quais se incluem a assistência, são indispensáveis à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana”. 

A proteção das pessoas com deficiência foi reforçada pela Emenda Constitucional nº 45/2004 e pela incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), com status constitucional (Decreto nº 6.949/2009). O Brasil, assim, passou a adotar o modelo biopsicossocial, que considera não só aspectos clínicos, mas também fatores sociais e ambientais que dificultam a plena participação na sociedade. A deficiência passou a ser entendida como “resultado da interação entre pessoas com impedimentos e as barreiras comportamentais e ambientais” (ONU, 2006, art. 1º). 

A Lei Brasileira de Inclusão (LBI – Lei nº 13.146/2015) consolidou esse modelo, determinando, no art. 2º, §1º, que a avaliação da deficiência seja realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar, considerando fatores físicos, psíquicos, sociais e ambientais. Esse dispositivo reformulou a análise da elegibilidade ao BPC, superando critérios exclusivamente médicos ou econômicos. 

Para Iamamoto (2013), a adoção dessa visão ampliada da deficiência reflete uma mudança de paradigma na política assistencial brasileira, que deve deixar de operar sob a lógica da focalização restritiva e da caridade, para assumir um compromisso com a justiça distributiva e a proteção integral. Segundo a autora: “A assistência social deve assegurar o direito à vida com dignidade, atuando na redução das desigualdades e não se restringindo à lógica da focalização e da seletividade restritiva.” (IAMAMOTO, 2013, p. 45). 

Especificamente sobre o TEA, a Lei nº 12.764/2012 (Lei Berenice Piana) instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA, reconhecendo o autismo como deficiência e garantindo o acesso aos benefícios legais, inclusive ao BPC. O art. 1º, §2º, é claro: “A pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais” (BRASIL, 2012). 

Apesar desse reconhecimento, persistem obstáculos para a obtenção do benefício, principalmente devido à rigidez do critério econômico — renda familiar per capita inferior a 1/4 do salário mínimo. A jurisprudência, contudo, vem flexibilizando tal exigência. No Recurso Extraordinário nº 580.963/PR, o Supremo Tribunal Federal assentou que é possível conceder o BPC mesmo quando a renda familiar ultrapassa esse limite, desde que comprovada a vulnerabilidade social. 

De igual modo, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.648.621/PR (Tema 1123), entendeu que “o critério econômico previsto no art. 20, §3º, da LOAS não pode ser aplicado de forma absoluta”, devendo ser considerada a condição concreta de miserabilidade. 

Além disso, reconhece-se que os custos adicionais com o cuidado da pessoa com deficiência como medicamentos, terapias, transporte e alimentação especial devem ser considerados redutores da renda familiar. Isso é especialmente relevante para pessoas com TEA, cujo tratamento requer acompanhamento contínuo de diversos profissionais especializados. 

Neste sentido, Sarlet (2017, p. 108) afirma que “o mínimo existencial constitui o conteúdo essencial do princípio da dignidade da pessoa humana, englobando os meios materiais mínimos para uma vida digna”. Assim, o BPC deve ser interpretado como parte do núcleo essencial dos direitos fundamentais, sendo vedadas medidas que inviabilizem sua concretização. 

Portanto, o direito ao BPC das pessoas com deficiência, e especialmente das pessoas com TEA, possui sólido respaldo normativo, desde a Constituição até os tratados internacionais de direitos humanos. No entanto, sua efetividade demanda adequada interpretação das normas, qualificação técnica das equipes avaliadoras e compromisso político com a promoção da igualdade material. 

3. DIGNIDADE E IDENTIDADE, CONTEXTO HISTÓRICO, CONCEITO E DIAGNÓSTICO  

O Transtorno do Espectro Autista é definido pela Organização Mundial da Saúde como um conjunto de condições caracterizadas por algum grau de comprometimento na interação social, na comunicação e na linguagem, além de padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades. Tais manifestações, geralmente evidentes na infância, tendem a persistir ao longo da vida. A configuração desse conceito, no entanto, demandou um longo percurso até sua atual definição. 

O termo “autismo” foi inicialmente utilizado por Paul Eugen Bleuler, em 1911, ao descrever sintomas da esquizofrenia como uma “tendência para colocar a própria fantasia acima da realidade e para se entrincheirar nela” (Bleuler, 2005). Posteriormente, Léo Kanner, em 1943, analisou onze crianças, identificando nelas uma “incapacidade de se relacionarem de maneira normal com pessoas e situações, desde o princípio de suas vidas” (Kanner, 1943). 

Em 1944, Hans Asperger publicou “Autistic Psychopathy in Childhood”, descrevendo crianças com desafios na interação social, comportamentos repetitivos e interesses restritos, mas com habilidades intelectuais destacadas e sem prejuízos significativos na linguagem ou cognição. Asperger estudava uma forma mais branda de autismo, posteriormente conhecida como Síndrome de Asperger, enquanto Kanner focava no autismo clássico. 

Em 1952, a Associação Americana de Psiquiatria (APA) lançou a primeira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), marcando um avanço na sistematização diagnóstica. O DSM-I não contemplava uma categoria específica para o autismo, cujos sintomas eram classificados como esquizofrenia ou psicose infantil. Apenas na década de 1980, com o DSM-III, surgiu a categoria de Transtornos Globais do Desenvolvimento, incluindo o autismo como subcategoria, desvinculando-o da psicose infantil. 

A mudança mais significativa ocorreu com o DSM-V, que unificou os diferentes subtipos do Transtorno Autista, Síndrome de Asperger e Transtorno Global do Desenvolvimento sob o conceito único de TEA, com distintos níveis de gravidade. Conforme o DSM-V (2014), essa alteração visou melhorar a sensibilidade e a especificidade dos critérios diagnósticos, além de identificar alvos mais precisos de tratamento. 

Os sintomas desses transtornos representam um continuum único de prejuízos com intensidades que vão de leve a grave nos domínios de comunicação social e de comportamentos restritivos e repetitivos em vez de constituir transtornos distintos. Essa mudança foi implementada para melhorar a sensibilidade e a especificidade dos critérios para o diagnóstico de transtorno do espectro autista e para identificar alvos mais focados de tratamento para os prejuízos específicos observados (DSM-V, 2014). 

Outro instrumento fundamental é a Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID), elaborada pela OMS, essencial para a codificação, diagnóstico e coleta de dados epidemiológicos. O autismo não constava inicialmente na CID. A oitava edição (CID-8), de 1965, classificou-o como forma de esquizofrenia, e a nona, como psicose infantil. Apenas com a CID-10 o autismo foi reclassificado como transtorno global do desenvolvimento (Bosa, 2002). 

A CID-11, publicada em 2022, consolidou todos os subtipos sob a categoria única de TEA, eliminando classificações como autismo infantil, atípico e Síndrome de Asperger. Introduziu também “especificadores” que permitem detalhar comorbidades, nível intelectual e habilidades linguísticas, refletindo a diversidade do espectro e facilitando tanto o diagnóstico quanto às intervenções terapêuticas. 

Os manuais classificatórios subdividem o TEA em três níveis de gravidade: nível 1, que “exige apoio”; nível 2, “apoio substancial”; e nível 3, que “exige apoio muito substancial”. Tais categorias são baseadas na intensidade dos prejuízos observados na comunicação social e nos comportamentos restritos e repetitivos. 

O diagnóstico do TEA é predominantemente clínico, exigindo avaliação minuciosa dos sintomas e informações de familiares. Segundo o Dr. José Salomão Schwartzman, em entrevista ao Dr. Drauzio Varella, sinais atípicos podem surgir entre os 4 e 6 meses, embora não seja possível um diagnóstico definitivo nessa fase. Entre 12 e 18 meses, é possível identificar indicadores mais concretos, como ausência de resposta ao nome, falta de compartilhamento de atenção, preferência pelo isolamento e comportamentos repetitivos (Varella, 2011). 

As características do TEA mudam com o desenvolvimento, tornando o diagnóstico precoce essencial para garantir intervenções adequadas e oportunas, com impacto significativo na qualidade de vida. Como destaca o Dr. Schwartzman, esse diagnóstico permite a adoção de medidas que favoreçam o desenvolvimento de habilidades e a inclusão social. 

3.1 AUTISMO SOB A LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO 

Historicamente, pessoas com TEA foram excluídas das políticas públicas e invisibilizadas socialmente. Durante décadas, prevaleceu a visão estritamente clínica ou psiquiátrica, reduzindo o autista à condição de paciente, e não de sujeito de direitos, o que atrasou sua proteção jurídica e social. O ordenamento jurídico brasileiro, por muito tempo, omitiu-se diante das especificidades do espectro, dificultando o acesso a direitos fundamentais como saúde, educação e assistência. 

O marco de mudança ocorreu com a promulgação da Lei nº 12.764/2012 (Lei Berenice Piana), que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA. Esta norma conferiu aos autistas o reconhecimento legal como pessoas com deficiência (art. 1º, §2º), estendendo-lhes todos os direitos previstos na legislação, especialmente os princípios da dignidade da pessoa humana, igualdade material e inclusão social. 

Esse avanço não foi apenas legislativo, mas também simbólico, rompendo com a cultura de exclusão e capacitismo. Como afirma Sarlet (2017), a dignidade da pessoa humana é o “valor-fonte” do ordenamento jurídico, impondo ao Estado e à sociedade o dever de criar condições para o florescimento dos indivíduos vulneráveis. 

A lei define diretrizes interdisciplinares para garantir direitos às pessoas com TEA, promovendo articulação entre saúde, educação, assistência social, cultura e trabalho. Entre os direitos assegurados estão o diagnóstico precoce, tratamento multiprofissional, proteção contra abusos e inclusão educacional. Contudo, sua efetividade esbarra na escassez de profissionais capacitados, na resistência à inclusão e na falta de recursos públicos. 

Complementando a proteção, a Lei nº 13.977/2020 (Lei Romeo Mion) criou a Carteira de Identificação da Pessoa com TEA (CIPTEA), facilitando o acesso prioritário a serviços públicos e privados, especialmente para aqueles cujas deficiências não são fisicamente perceptíveis. A CIPTEA representa um avanço no enfrentamento de constrangimentos e discriminações. 

Além das legislações específicas, normas gerais também asseguram direitos aos autistas: a LOAS (Lei nº 8.742/1993), regulando o BPC; a Lei nº 10.048/2000, que garante atendimento prioritário; a Lei nº 10.098/2000, sobre acessibilidade; e a Lei nº 13.370/2016, que permite a flexibilização da jornada de servidores com dependentes deficientes. Mais recentemente, as Leis nº 14.624/2023 e nº 14.626/2023 instituíram o cordão de girassol para identificação de deficiências ocultas e garantiram assentos reservados no transporte público. 

Como observa Bobbio (2004), os direitos humanos não se afirmam apenas por sua proclamação, mas pela sua efetiva aplicação. Assim, afirmar que a pessoa com TEA têm direitos não basta; é necessário assegurar condições materiais e institucionais para sua realização, superando a morosidade administrativa, a desinformação, o preconceito e a precariedade dos serviços. 

A doutrina contemporânea reforça a necessidade de uma abordagem biopsicossocial das deficiências, como propõe a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Esse paradigma substitui a lógica assistencialista pela inclusão como dever do Estado e direito do indivíduo. Para pessoas com TEA, significa reconhecer a diversidade do espectro e estruturar políticas públicas que garantam suporte ao longo de toda a vida, do diagnóstico à inserção no mercado de trabalho e na sociedade. 

Iamamoto (2013) destaca que a assistência social deve se pautar pela cidadania e justiça social, não pela caridade ou seletividade restritiva. Nessa perspectiva, o BPC/LOAS é fundamental para assegurar sobrevivência e autonomia a pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade, sendo, para muitos autistas, a única fonte de renda, especialmente diante da sobrecarga de mães solo e cuidadores que deixam o trabalho para prestar cuidados integrais. 

Outro desafio é a educação inclusiva, ainda marcada por resistência institucional. Apesar de a LDB (Lei nº 9.394/1996) garantir atendimento especializado e o Estatuto da Pessoa com Deficiência determinar matrícula obrigatória em escolas regulares, na prática há deficiência na formação de professores e falta de profissionais de apoio, como intérpretes e psicopedagogos. 

No mercado de trabalho, embora a Lei nº 8.213/1991 estabeleça a reserva de vagas para pessoas com deficiência, sua aplicação em relação aos autistas é limitada. Muitos empregadores desconhecem como adaptar o ambiente ou oferecer suporte adequado, o que evidencia a necessidade de campanhas de conscientização, formação adaptada e fiscalização. 

Cristiano Chaves de Farias (2022) salienta que “o direito, por si só, não transforma a realidade; é necessário que seja cumprido, exigido e aplicado com sensibilidade e justiça social”. No contexto do TEA, essa observação revela a importância da luta contínua, estratégica e fundamentada para assegurar direitos. 

O Judiciário tem sido essencial na consolidação desses direitos, sobretudo quanto à cobertura de tratamentos por planos de saúde, concessão do BPC e garantia de matrícula escolar. As decisões recentes do STJ e do STF reforçam a necessidade de interpretação ampla dos direitos fundamentais, com base na dignidade da pessoa humana e na vedação ao retrocesso social. 

Em síntese, o ordenamento jurídico brasileiro avançou significativamente na proteção das pessoas com TEA, especialmente com as Leis nº 12.764/2012 e nº 13.977/2020. Contudo, a efetividade desses direitos depende da atuação conjunta do Estado, da sociedade civil e dos operadores do Direito, para que os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade se concretizem plenamente. 

3.2 DOS DIFERENTES NÍVEIS DO ESPECTRO AUTISTA 

Conforme mencionado anteriormente, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) apresenta uma tabela que classifica os níveis do autismo em três diferentes categorias, cada uma com suas especificidades. Inicialmente, é crucial destacar que essa divisão do espectro não deve ser confundida com graus de intensidade; não se pode falar em autismo “leve”, “moderado” ou “grave” (APA, 2014). Classificar o espectro dessa maneira leva a análises reducionistas e errôneas. Afirmar que uma pessoa que está no nível 1 de suporte possui autismo “leve” pode gerar a falsa impressão de que ela não requer os suportes adequados. Da mesma forma, rotular alguém como tendo autismo “grave” pode sugerir uma incapacidade total, o que é igualmente equivocado. 

O autismo é considerado um espectro devido à sua vasta gama de sintomas e diferentes níveis de manifestação. No Nível 1, que “exige apoio”, as pessoas podem apresentar dificuldades em iniciar interações sociais, demonstrando um interesse reduzido em atividades dessa natureza. No aspecto comportamental, essas pessoas exibem inflexibilidade que causa interferência significativa em um ou mais contextos, com resistência a mudanças de atividade e problemas de organização e planejamento (APA, 2014). As pessoas que estão no Nível 1 podem ser mais difíceis de serem diagnosticadas devido ao “masking” (mascarar, em tradução livre), uma estratégia utilizada por muitos que estão no espectro para ocultar suas características autísticas, buscando adaptar-se aos padrões sociais considerados “típicos”. 

Essa adaptação voluntária ao comportamento esperado socialmente, embora muitas vezes eficaz na infância, pode gerar efeitos adversos na vida adulta, como exaustão emocional, crises de ansiedade e depressão. Fred Volkmar, um dos maiores especialistas em TEA, explica que esse “mascaramento” pode ser altamente prejudicial quando ocorre em ambientes escolares ou profissionais que não oferecem acolhimento ou compreensão das diferenças cognitivas (VOLKMAR, 2018). 

No Nível 2, denominado “exigindo apoio substancial”, os indivíduos com autismo apresentam déficits graves nas habilidades de comunicação social, tanto verbal quanto não verbal. Mesmo com suporte, essas dificuldades persistem, afetando significativamente sua capacidade de iniciar interações sociais e de responder adequadamente a estímulos sociais externos. Além disso, enfrentam dificuldades em lidar com mudanças, e os comportamentos restritos ou repetitivos são observados com frequência o suficiente para serem notados por outras pessoas (APA, 2014). Em comparação com o Nível 1, os desafios enfrentados no Nível 2 são mais acentuados, requerendo um suporte mais intensivo. Neste nível, os traços autísticos são mais perceptíveis, com interesses mais restritos e estereotipias mais evidentes. Pode haver atraso na fala, uso de sentenças incompletas e comunicação descontextualizada. 

Autores como Volkmar reforçam que, mesmo nos níveis de suporte mais altos, é possível desenvolver habilidades expressivas por meio de terapias personalizadas e persistentes. O neurodesenvolvimento, ainda que distinto, apresenta plasticidade, o que implica dizer que com apoio adequado é possível obter ganhos funcionais importantes em diferentes áreas da vida. 

No Nível 3, denominado “exigindo muito apoio substancial”, as pessoas com autismo apresentam déficits graves nas habilidades de comunicação social, tanto verbal quanto não verbal. Elas têm uma dificuldade significativa em iniciar interações sociais e respondem minimamente às tentativas de interação de outras pessoas, além de recorrerem a abordagens pouco convencionais para satisfazer suas necessidades, respondendo apenas a interações muito diretas. Demonstram comportamento inflexível e extrema dificuldade em lidar com mudanças, além de exibirem comportamentos restritos e repetitivos. O sofrimento para mudar o foco ou as ações é evidente nesse nível (APA, 2014). 

A classificação do autismo em níveis é uma ferramenta essencial para compreender a complexidade do espectro autista, permitindo a personalização das intervenções necessárias para cada indivíduo. Ela facilita a compreensão da variabilidade dentro do espectro e auxilia instituições de saúde a garantir a disponibilização adequada de recursos. Além disso, a classificação simplifica o processo diagnóstico e melhora a comunicação entre profissionais de saúde, famílias e indivíduos com TEA. 

Como enfatiza Ingo Wolfgang Sarlet (2017), a dignidade da pessoa humana exige que o Estado e a sociedade reconheçam e respeitem as necessidades específicas de cada indivíduo. No caso das pessoas com TEA, isso se traduz na obrigatoriedade de fornecimento de tratamentos individualizados e adequados a cada nível de suporte. A padronização de práticas, desconsiderando os graus de necessidade, configura violação aos direitos fundamentais dessas pessoas. 

É importante ressaltar que o nível de suporte não define completamente a pessoa no espectro. Existem indivíduos no Nível 3 que conseguem realizar atividades que exigem alto nível intelectual, mas que têm dificuldades com tarefas básicas do cotidiano. Além disso, o autismo não é uma condição fixa e imutável; é possível que a pessoa transite entre diferentes níveis de suporte ao longo da vida, dependendo de suas circunstâncias e do desenvolvimento de suas habilidades. Neste sentido, não é possível esgotar todas as características do TEA neste capítulo. Cada indivíduo é único, apesar das características comuns que possam compartilhar. O tratamento deve ser personalizado, avaliando-se caso a caso, para que o portador possa alcançar uma vida plena e exercer suas capacidades respeitando sua singularidade. 

Como reforça Marilda Iamamoto (2013), o acesso ao tratamento adequado deve ser compreendido como um direito social e não como um privilégio. Políticas públicas eficazes e bem financiadas são indispensáveis para que todas as pessoas autistas, independentemente do nível de suporte necessário, tenham assegurado o direito à saúde, à educação e à participação social plena. 

Portanto, compreender os diferentes níveis do espectro autista não é apenas uma questão de diagnóstico clínico. Trata-se de uma ferramenta vital para o desenho de políticas públicas inclusivas, justas e eficazes, que reconheçam as múltiplas dimensões da deficiência e garantam o desenvolvimento pleno de todas as pessoas com TEA. 

3.3 ENTENDIMENTO DOUTRINÁRIO E JURISPRUDENCIAL NAS MÚLTIPLAS QUESTÕES JURÍDICAS ENVOLVENDO PESSOAS COM AUTISMO 

Para Bobbio (2004), o importante não é fundamentar os direitos do homem, mas sim protegê-los, não basta proclamá-los. Seguindo esse raciocínio compreende-se que tão somente declarar os direitos, afirmando-os em documentos oficiais, não é suficiente para garantir a sua efetividade. 

Embora o ordenamento jurídico brasileiro tenha progredido significativamente na proteção dos direitos das pessoas com TEA e o tema esteja sendo amplamente discutido, a aplicação prática desses direitos exige uma abordagem sensível e criteriosa. À medida que se avança em termos de direitos e proteção, é essencial realizar uma análise minuciosa de como o ordenamento jurídico, por meio de leis, doutrina e jurisprudência, aborda e implementa essas questões na prática. Este capítulo, portanto, passará à análise desses instrumentos e de sua aplicação. 

Por ser um transtorno de origem neurológica, que influencia significativamente o desenvolvimento social, comunicativo e comportamental dos indivíduos, os portadores necessitam de uma assistência médica abrangente e contínua. A Lei 12.764/2012, em seu artigo 2°, estabelece as diretrizes da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA), destacando, em seu inciso III, a necessidade da atenção integral às demandas de saúde, visando o diagnóstico precoce, o atendimento multiprofissional, e o acesso a medicamentos e nutrientes (Brasil, 2012). 

Dados do Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA) mostraram que o Brasil realizou, em 2021, 9,6 milhões de atendimentos ambulatoriais a pessoas com autismo, sendo 4,1 milhões ao público infantil com até 9 anos de idade (Ministério da Saúde, 2022). Esses dados confirmam que o TEA é uma questão de saúde pública, exigindo uma abordagem abrangente e coordenada para atender às necessidades crescentes dessa população. 

Diante desse cenário é crucial reconhecer que muitas famílias ainda enfrentam obstáculos consideráveis para acessar o tratamento adequado, tanto pelo sistema público quanto pelo privado, sobretudo por meio de planos de saúde. Essas dificuldades se manifestam de diversas formas, desde restrições até a falta de qualificação dos profissionais de saúde, devendo, portanto, ser amparada por diversas áreas do direito, a exemplo do direito civil, consumerista, previdenciário, dentre outros. 

Nesse sentido, um dos desafios mais comuns é a limitação de cobertura, onde muitos planos de saúde não oferecem integralmente os serviços essenciais para o tratamento do autismo, como terapias comportamentais intensivas, terapia ocupacional e fonoaudiologia. 

Atualmente, o tema em questão tem sido objeto de intensos debates. Uma recente decisão proferida pela quarta turma do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que as operadoras de planos de saúde que recusarem injustificadamente o fornecimento de tratamento a beneficiários autistas estão sujeitas ao pagamento de indenização por danos morais. O STJ julgou da seguinte forma: 

A Segunda Seção desta Corte, no julgamento dos EREsp n.o 1.889.704/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgado aos 8/6/2022, reafirmou o dever da operadora do plano de saúde em custear, de forma ilimitada, as sessões de tratamento para os beneficiários com diagnóstico de ‘Transtorno do Espectro Autista’ (AgInt no Aglnt no AREsp 1.696.364/SP, Relator Ministro MOURA RIBEIRO, Terceira Turma, julgado em 29/8/2022, DJe de 31/8/2022). 3. Nas hipóteses em que há recusa injustificada de cobertura, por parte da operadora do plano de saúde, para o tratamento do segurado, causando-lhe abalo emocional, esta Corte Superior admite a caracterização de dano moral, não se tratando de mero aborrecimento. 

A reafirmação da obrigação das operadoras de planos de saúde em fornecer os tratamentos necessários, sem limitações injustificadas, e o reconhecimento dos danos morais decorrentes da recusa indevida, representam um avanço significativo na proteção dos direitos. O tratamento do TEA é multidisciplinar, abrangendo diversas áreas, como terapias comportamentais intensivas, terapia ocupacional e fonoaudiologia. A cobertura oferecida pelos planos de saúde é fundamental para garantir o acesso aos cuidados essenciais. 

Como em todas as áreas da medicina, um grama de prevenção vale um quilo de cura! (Volkmar, 2018). Essa máxima destaca a importância do atendimento integral e do acesso à saúde, tanto pública quanto privada. A disponibilização desses serviços com profissionais qualificados é essencial para assegurar diagnósticos precoces, tratamentos eficazes e intervenções multidisciplinares. Somente por meio de um sistema de saúde inclusivo e abrangente será possível garantir o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas com TEA e suas famílias. 

Outro campo que merece destaque é o da educação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) n° 9.394/96, em seu art. 4º, inciso III, assegura o atendimento educacional especializado aos educandos, estabelecendo que é dever do Estado garantir o “atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino” (BRASIL, 1996). 

De acordo com dados do Censo Escolar de 2023, foram registradas mais de 1,7 milhão de matrículas na educação especial, sendo que 35,9% dessas matrículas correspondem a alunos com Transtorno do Espectro Autista (Brasil, 2023). Diante dessa realidade, cresce a preocupação com a qualidade da aprendizagem desses alunos, questionando-se se há profissionais devidamente capacitados e se a educação é oferecida de forma inclusiva. Quando realizada adequadamente, a inclusão desses indivíduos no ambiente escolar proporciona diversos benefícios, promovendo o desenvolvimento cognitivo e psicossocial, além de aprimorar suas habilidades sociais, emocionais e acadêmicas. 

Em junho de 2023, o Supremo Tribunal Federal, por decisão unânime, declarou inconstitucional a Lei n° 2.151/2017 do Estado do Amapá. Esta lei restringia a definição de pessoas com deficiência e eximia as instituições de ensino locais da obrigação de receber esses alunos e fornecer educação inclusiva. Uma lei estadual não pode divergir da definição estabelecida por convenção internacional, que foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro como norma constitucional (Constituição Federal de 1988, art. 5º, § 3º). Além disso, deve respeitar a legislação federal que prevê uma avaliação biopsicossocial realizada por uma equipe multiprofissional e interdisciplinar (Lei n° 13.146/2015, art. 2º, § 1º). Foi firmado o seguinte entendimento (Brasil, 2023): 

É inconstitucional lei estadual que (a) reduza o conceito de pessoas com deficiência previsto na Constituição, na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de estatura constitucional, e na lei federal de normas gerais; (b) desconsidere, para a aferição da deficiência, a avaliação biopsicossocial por equipe multiprofissional e interdisciplinar prevista pela lei federal; ou (c) exclua o dever de adaptação de unidade escolar para o ensino inclusivo. 

Ao declarar a inconstitucionalidade da Lei n° 2.151/2017 do Estado do Amapá, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a supremacia dos princípios constitucionais e internacionais sobre legislações estaduais que tentam restringir direitos fundamentais. Essa decisão, de grande relevância, aplica-se a todos os estados brasileiros, proporcionando maior segurança jurídica e assegurando o acesso das pessoas com deficiência a uma educação inclusiva e de qualidade. 

Contudo, as dificuldades de acesso a recursos e serviços adequados para lidar com o TEA e suas necessidades específicas ainda são recorrentes. Um exemplo recente desses desafios é destacado na matéria do G1, que aborda as dificuldades enfrentadas por portadores de TEA e suas famílias na educação. Nela, são discutidos obstáculos como a falta de capacitação dos profissionais da educação para lidar com alunos autistas, a escassez de recursos especializados e a burocracia muitas vezes complexa para obtenção de apoio governamental (g1, 2024). 

Outra questão de grande relevância que merece atenção é a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Após a equiparação estabelecida pela Lei nº 12.764/2012, que reconhece o portador do TEA como pessoa com deficiência para todos os fins legais, surge o direito a esse benefício, conforme previsto na Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS). Essa medida, essencial para garantir a subsistência do beneficiário e promover sua inclusão social e bem-estar, tem o propósito de reduzir disparidades econômicas e sociais ao proporcionar uma base financeira estável que permite viver com dignidade e autonomia. 

Diante das dificuldades enfrentadas para o acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) por pessoas com autismo, como mencionado anteriormente, surgem diversas barreiras que dificultam a concessão do benefício. Estas incluem desafios relacionados à obtenção da documentação comprobatória, falta de capacitação dos profissionais responsáveis pela avaliação da deficiência e dificuldades na interpretação da legislação por parte dos requerentes e seus familiares. Essas questões têm impactado significativamente a efetivação do direito ao BPC para essa parcela da população. Neste contexto, uma importante decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) lança luz sobre a questão e reforça os direitos das pessoas com autismo em relação ao benefício: 

Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, a legislação que disciplina a matéria não elenca o grau de incapacidade para fins de configuração da deficiência, não cabendo ao intérprete da lei a imposição de requisitos mais rígidos do que aqueles previstos para a sua concessão. REsp 1.962.868-SP, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 21/3/2023, DJe 28/3/2023.  

Diante dos desafios identificados nas áreas em análise, é imprescindível destacar que esta avaliação não engloba a totalidade dos direitos, mas sim os mais prementes. Nota-se que o ordenamento jurídico no geral, têm empenhado esforços para salvaguardar os direitos dos portadores do espectro. Contudo, é evidente a carência de uma ampla gama de políticas públicas e profissionais mais atuantes para que essa proteção se consolide efetivamente. Ainda há significativos avanços a serem realizados na tutela dos direitos dessas pessoas em variados contextos, demandando um compromisso contínuo com a justiça e a equidade. 

4. A AVALIAÇÃO BIOPSICOSSOCIAL E OS CRITÉRIOS RESTRITIVOS DO BPC 

A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), ao inovar no tratamento jurídico da deficiência, incorporou em seu texto o conceito de avaliação biopsicossocial como parâmetro para aferição das condições de vida e limitações enfrentadas pelas pessoas com deficiência. Essa diretriz está consagrada no §1º do art. 2º, que dispõe: “A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará: I – os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; II – os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais; III – a limitação no desempenho de atividades; e IV – a restrição de participação” (BRASIL, 2015). 

Essa abordagem multidimensional representa um avanço significativo em relação à concepção médica tradicional, pois reconhece que a deficiência não se resume a um diagnóstico clínico, mas se relaciona com o ambiente social, econômico e cultural em que o indivíduo está inserido. Todavia, o desafio persiste na efetivação prática dessa norma. Embora a avaliação biopsicossocial seja prevista como critério legal, ela não é, na maioria das vezes, realizada de forma padronizada e interdisciplinar, o que compromete a análise justa e sensível das condições do requerente do Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS). 

A aplicação automática do critério de renda familiar per capita inferior a 1/4 do salário mínimo, sem levar em conta os aspectos biopsicossociais da deficiência, tem sido reiteradamente criticada por juristas, assistentes sociais e membros do Judiciário. Conforme destaca Sarlet (2017), a aplicação rígida de critérios objetivos sem considerar a dignidade da pessoa humana representa grave afronta ao princípio constitucional da máxima proteção. Para o autor, “a dignidade da pessoa humana constitui valor-fonte de todos os direitos fundamentais e parâmetro de interpretação e aplicação das normas jurídicas, sobretudo no campo dos direitos sociais” (SARLET, 2017, p. 125). 

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado esse entendimento. No julgamento do Recurso Extraordinário 580.963/PR, o STF reconheceu que o critério econômico de 1/4 do salário mínimo pode ser relativizado, desde que haja prova da condição de miserabilidade ou de vulnerabilidade da família do requerente. O relator, Ministro Gilmar Mendes, destacou que a aplicação mecânica da norma viola o princípio da dignidade humana e não atende ao objetivo de proteção integral previsto na Constituição Federal. 

Além disso, a Primeira Seção do STJ, ao julgar o Tema Repetitivo 1.123 (REsp 1.648.621/PR), firmou a tese de que a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo não é o único parâmetro para a concessão do BPC, devendo o julgador considerar outros elementos da condição socioeconômica do núcleo familiar. Assim, o entendimento jurisprudencial reforça que a avaliação da vulnerabilidade deve ser feita de forma ampla, criteriosa e humana, respeitando as peculiaridades de cada caso. 

Entretanto, a realidade vivenciada pelas famílias de pessoas com TEA revela que muitas vezes os laudos técnicos, perícias médicas e visitas domiciliares são pautados em critérios padronizados e insensíveis às especificidades do espectro. A ausência de capacitação das equipes multiprofissionais e a inexistência de um protocolo único de avaliação biopsicossocial têm comprometido a efetividade do direito ao BPC, especialmente para indivíduos com deficiências invisíveis, como os níveis 1 e 2 do autismo. 

Cabe lembrar que o Decreto nº 6.214/2007, alterado pelo Decreto nº 8.805/2016, já previa a avaliação social e médica como condição para a concessão do benefício. Com a entrada em vigor da LBI, a expectativa era de aprimoramento do processo, o que ainda não se concretizou plenamente. A regulamentação da avaliação biopsicossocial, prevista pelo Decreto nº 10.502/2020, continua sendo objeto de críticas e questionamentos por parte de entidades da sociedade civil e de operadores do Direito. 

Em síntese, a avaliação biopsicossocial constitui um instrumento imprescindível para garantir a justiça material na análise dos pedidos de BPC por pessoas com TEA. Sua implementação efetiva demanda investimento público, formação continuada das equipes técnicas, padronização dos critérios e sensibilização dos órgãos responsáveis. Mais do que uma exigência legal, trata-se de um imperativo ético e constitucional para assegurar que os direitos fundamentais não sejam negados por interpretações burocráticas e reducionistas da norma jurídica. 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

O presente artigo buscou analisar o direito das pessoas com TEA ao Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS), enfrentando os critérios legais estabelecidos, os desafios práticos na sua concessão e os caminhos trilhados pela jurisprudência e doutrina para garantir a efetivação desse direito fundamental. Verificou-se que, apesar de o ordenamento jurídico brasileiro oferecer uma base sólida de proteção às pessoas com deficiência incluindo as com TEA, reconhecidas como tal desde a promulgação da Lei nº 12.764/2012, ainda persistem barreiras que inviabilizam a fruição plena e equitativa desse benefício assistencial. 

Foi possível identificar que os entraves não decorrem apenas da letra da lei, mas, sobretudo, da forma como ela é interpretada e aplicada pelos órgãos administrativos, especialmente pelo INSS. A exigência de comprovação de renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo tem se mostrado um critério demasiadamente rígido e dissociado da realidade das famílias com pessoas autistas, que enfrentam elevados custos com terapias, transporte, medicamentos e apoio escolar. A ausência de regulamentação efetiva e uniforme da avaliação biopsicossocial, conforme exigido pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), também tem sido um fator determinante para a denegação indevida de benefícios. 

A jurisprudência dos tribunais superiores a exemplo do STF no julgamento do RE 580.963/PR e do STJ no REsp 1.648.621/PR tem sinalizado para a relativização do critério econômico, determinando que a análise da vulnerabilidade seja realizada de forma ampla, levando-se em conta o contexto familiar, social e as especificidades da deficiência. Essas decisões representam importantes avanços na consolidação de uma jurisprudência comprometida com os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade material e da proteção integral. 

Do ponto de vista teórico, autores como Ingo Wolfgang Sarlet, Marilda Iamamoto e Norberto Bobbio reforçam a necessidade de superação das abordagens meramente formais da cidadania. Para Sarlet (2017), a dignidade é o núcleo axiológico dos direitos fundamentais e deve orientar toda interpretação normativa, enquanto Iamamoto (2013) argumenta que a assistência social deve operar com base na justiça redistributiva e não sob a lógica da caridade ou da focalização excludente. Bobbio (2004), por sua vez, nos recorda que a eficácia dos direitos não se mede pela sua proclamação, mas sim pela sua efetiva proteção. 

Além disso, os múltiplos níveis do espectro autista demonstram que a deficiência não pode ser compreendida de forma homogênea. A diversidade de manifestações e necessidades exige políticas públicas personalizadas, avaliações técnicas qualificadas e uma escuta atenta das famílias e indivíduos autistas. A legislação brasileira, por meio da Lei Berenice Piana, da LBI e de outras normas complementares, já reconhece essa complexidade; contudo, sua implementação ainda demanda esforços articulados entre as esferas do Executivo, Legislativo, Judiciário e sociedade civil. 

Diante do exposto, conclui-se que a efetivação do direito ao BPC para pessoas com TEA depende da superação de obstáculos normativos, operacionais e culturais. É urgente a institucionalização plena da avaliação biopsicossocial, com formação de equipes multiprofissionais capacitadas, bem como a revisão dos critérios econômicos à luz dos custos reais de vida e das condições de vulnerabilidade enfrentadas pelas famílias autistas. Somente com medidas concretas, sensibilidade institucional e compromisso político será possível tornar realidade a promessa constitucional de uma vida digna para todas as pessoas, independentemente de suas condições neurológicas, sociais ou econômicas. 

Assim, este estudo reforça a necessidade de uma atuação jurídica, legislativa e assistencial pautada na promoção da equidade, da inclusão e da justiça social, reconhecendo que as pessoas com TEA não precisam de favores, mas da concretização de seus direitos. 

REFERÊNCIAS 

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1Bacharelanda em Direito pela Faculdade Ages de Senhor do Bonfim
2Bacharelanda em Direito pela Faculdade Ages de Senhor do Bonfim
3Advogado, Coordenador de NPJ e professor na Faculdade Ages de Senhor do Bonfim