NÚMERO DAS CIRURGIAS DE REVASCULARIZAÇÃO DO MIOCÁRDIO EM GOIÁS NOS ÚLTIMOS 10 ANOS E A RELAÇÃO DA TÉCNICA ANESTÉSICA COM NÍVEIS DE TROPONINA PÓS-CIRÚRGICA

NUMBER OF MYOCARDIAL BYPASS SURGERIES IN GOIÁS IN THE LAST 10 YEARS AND THE RELATIONSHIP BETWEEN ANESTHETIC
TECHNIQUE AND POST-SURGICAL TROPONIN LEVELS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202506250914


Dr. Jonatas Pereira Melo1
Dr. Murilo Carlos da Silva Santana2


RESUMO

A doença arterial coronariana (DAC) permanece como a principal causa de morte global, sendo a cirurgia de revascularização do miocárdio (CRM) um dos pilares terapêuticos nos casos graves. Este estudo apresenta uma análise descritiva do número de CRMs realizadas em Goiás entre 2015 e 2024. Paralelamente, foi realizada uma revisão da literatura internacional com foco na relação entre a modalidade anestésica e os níveis de troponina cardíaca no pós-operatório. Os dados sugerem que o uso de anestesia geral com agentes voláteis – como isoflurano, sevoflurano e desflurano – está associado a menor liberação de troponina nas primeiras 24 horas após a CRM, indicando potencial efeito cardioprotetor. Comparativamente, a anestesia intravenosa total com propofol se associou a níveis mais elevados do biomarcador. Estratégias anestésicas combinadas, como o uso de anestesia balanceada e bloqueios regionais, também demonstraram benefício na redução da lesão miocárdica, tempo de intubação e necessidade de drogas vasoativas no pós-operatório imediato. Tais achados reforçam o papel da escolha anestésica na modulação da resposta inflamatória e isquêmica ao trauma cirúrgico, com impacto potencial na recuperação e nos desfechos clínicos.

Palavras-chave: Anestesia. Revascularização do Miocárdio.Troponina.

ABSTRACT

Coronary artery disease (CAD) remains the leading cause of death worldwide, with coronary artery bypass grafting (CABG) being one of the mainstays of treatment in severe cases. This study presents a descriptive analysis of the number of CABGs performed in Goiás between 2015 and 2024. In parallel, a review of the international literature was carried out focusing on the relationship between the anesthetic modality and cardiac troponin levels in the postoperative period. The data suggest that the use of general anesthesia with volatile agents – such as isoflurane, sevoflurane and desflurane – is associated with lower troponin release in the first 24 hours after CABG, indicating a potential cardioprotective effect. In comparison, total intravenous anesthesia with propofol was associated with higher levels of the biomarker. Combined anesthetic strategies, such as the use of balanced anesthesia and regional blocks, have also demonstrated benefits in reducing myocardial injury, intubation time, and the need for vasoactive drugs in the immediate postoperative period. These findings reinforce the role of anesthetic choice in modulating the inflammatory and ischemic response to surgical trauma, with a potential impact on recovery and clinical outcomes.

Keywords: Anesthesia. Myocardial Revascularization. Troponin.

1. INTRODUÇÃO

A doença arterial coronariana (DAC) continua sendo a principal causa de morte no mundo, com elevada prevalência em populações envelhecidas e em indivíduos com múltiplas comorbidades cardiovasculares (DUGGAN et al., 2022). Constitui o maior ônus de saúde pública entre as enfermidades cardiovasculares. Em 2021, a cardiopatia isquêmica causou aproximadamente 9 milhões de mortes no mundo, sendo responsável por 29 % de todos os óbitos globais (IHME, 2024). Em 2022, as doenças cardiovasculares, em conjunto, somaram 19,8 milhões de mortes e 396 milhões de anos de vida perdidos, mantendo-se no topo das causas de mortalidade e incapacidade (MENSAH ET AL., 2023).

No Brasil, as doenças do aparelho circulatório voltaram a liderar as estatísticas após a pandemia de COVID-19: cerca de 400 mil brasileiros morreram por causas cardiovasculares em 2022, dos quais o infarto do miocárdio respondeu por 170,5 mil óbitos (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2024). Embora a mortalidade ajustada por idade tenha caído 55,6 % entre 1990 e 2022 – de 356 para 158 mortes/100 mil habitantes – o número absoluto de óbitos cresceu 48,4 % no mesmo período, impulsionado pelo envelhecimento populacional e por fatores metabólicos persistentes (diabetes, dislipidemias e obesidade) (NICOLAU et al., 2018).

A cirurgia de revascularização do miocárdio (CRM) constitui uma das estratégias terapêuticas mais eficazes para pacientes com DAC grave, sobretudo na presença de lesões multiarteriais, disfunção ventricular esquerda ou diabetes mellitus, sendo frequentemente indicada quando o tratamento clínico e a intervenção percutânea não oferecem benefício adequado (DONG; KANG; AN, 2018). No Brasil, dados do Sistema Único de Saúde (SUS) indicam que milhares de CRMs são realizadas anualmente, com significativa participação da rede pública na oferta desses procedimentos de alta complexidade. A população submetida à CRM apresenta perfil epidemiológico bem definido. Estudos nacionais e internacionais demonstram que a maioria dos pacientes são homens (cerca de 70 a 80%), com idade média entre 60 e 70 anos, elevada prevalência de hipertensão arterial sistêmica (HAS), diabetes mellitus tipo 2, dislipidemias, tabagismo atual ou pregresso e obesidade.

A anestesia para cirurgia de revascularização do miocárdio (CRM) evoluiu substancialmente desde as primeiras intervenções na década de 1960. Inicialmente, os procedimentos utilizavam anestesia geral com altas doses de opioides, especialmente fentanil, que conferiam estabilidade hemodinâmica, porém com prolongado tempo de ventilação mecânica e internação em unidade de terapia intensiva (UTI). Nos anos 1980 e 1990, a introdução da anestesia balanceada, que combinava opioides com agentes voláteis e benzodiazepínicos, marcou um avanço importante. Essa abordagem visava estabilidade cardiovascular com sedação adequada e início da recuperação pós-operatória. O midazolam tornou-se um sedativo amplamente utilizado para indução e sedação pré-operatória, associado a agentes como isoflurano e enflurano.

A partir dos anos 2000, diretrizes brasileiras, como a publicada nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia em 2004, reforçaram a anestesia geral balanceada como padrão, com foco na estabilidade hemodinâmica intraoperatória, analgesia eficaz e extubação precoce, idealmente em até 6 horas após o término da cirurgia. O cuidado anestésico era complementado por técnicas de monitoramento invasivo e suporte com drogas vasoativas. Com o avanço tecnológico e a pressão por eficiência hospitalar, na década de 2010 a estratégia conhecida como “fast-track anesthesia” se tornou mais difundida. Essa metodologia visava à extubação precoce no pós-operatório imediato (até 6 horas), com uso de agentes de eliminação rápida como o remifentanil e inalatórios modernos como sevoflurano e desflurano, reduzindo tempo de internação e complicações pulmonares. Essa abordagem também se associou a menor incidência de delirium, maior rotatividade de leitos e redução de custos hospitalares (SILVA; MARTINS, 2020).

Mais recentemente, a anestesia regional (periférica e neuroaxial) começou a ser integrada a protocolos de cirurgia cardíaca, principalmente via bloqueios paravertebrais, serrato anterior e erector spinae, como parte das estratégias ERAS (Enhanced Recovery After Surgery). Além disso, há crescente interesse no uso de bloqueios segmentares guiados por ultrassonografia — como o bloqueio do plano do músculo erector spinae (ESP block) e o bloqueio paravertebral contínuo — como alternativas à analgesia epidural torácica, especialmente em pacientes com contraindicações relativas ao uso de anticoagulantes. Essas técnicas têm se mostrado seguras e eficazes na redução da dor torácica pós-operatória, com menor risco de complicações neurológicas e hemodinâmicas, contribuindo para desfechos clínicos superiores, incluindo redução da dor, náuseas, tempo de internação e melhora da função respiratória no pós-operatório (OKSUZ ET AL., 2019; FORERO ET AL., 2016).

Além disso, estudos como os de Bektas et al. (2015) e Zawar et al. (2015) sugerem que a anestesia combinada pode preservar a função miocárdica e reduzir a liberação de troponina, especialmente em pacientes de alto risco. Diversos estudos sugerem que os anestésicos voláteis, como isoflurano, sevoflurano e desflurano, possuem propriedades cardioprotetoras associadas a mecanismos de pré e póscondicionamento isquêmico, atenuando a resposta inflamatória e oxidativa ao trauma cirúrgico. Por outro lado, o uso de anestesia intravenosa com propofol – apesar do seu perfil de maior instabilidade hemodinâmica, contínua amplamente difundido, dado sua redução na incidência de sintomas gastrintestinais e evidências de recuperação pós-anestéstica mais célere em alguns protocolos. Há, no entanto, controvérsias sobre seu papel em relação à proteção miocárdica (LIKHVANTSEV et al., 2016). Estudos como o de Kottenberg et al. (2012) indicam que o précondicionamento isquêmico remoto tem maior eficácia com isoflurano do que com propofol, o que reforça o interesse na investigação dos mecanismos moleculares e clínicos envolvidos.

Apesar da vasta produção científica sobre o tema, poucos estudos avaliam a aplicabilidade desses achados em contextos de saúde pública de países em desenvolvimento, como o Brasil, em que fatores como estrutura hospitalar, equipe multiprofissional, disponibilidade de fármacos e perfil sociodemográfico dos pacientes podem influenciar os resultados clínicos. A escassez de dados locais, especialmente de registros sistemáticos como os do DATASUS, limita a elaboração de políticas públicas mais direcionadas à otimização da anestesia em cirurgias cardíacas.

Diante desse panorama, o presente estudo tem como objetivo avaliar a relação entre os tipos de anestesia utilizados em CRMs com os níveis de troponina cardíaca no pós-operatório e os desfechos clínicos imediatos, como tempo de internação, necessidade de suporte hemodinâmico e mortalidade hospitalar.

2.   METODOLOGIA

Trata-se de um estudo retrospectivo, observacional e analítico, baseado em dados secundários oriundos do banco de dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS), acessado por meio da plataforma DATASUS (http://datasus.saude.gov.br), complementada por uma revisão narrativa da literatura científica. O recorte geográfico abrange o estado de Goiás, Brasil, e o período analisado inclui os anos de 2015 a 2024. O objetivo principal foi descrever o número de cirurgias de revascularização do miocárdio (CRM) realizadas nesse intervalo temporal e avaliar possíveis correlações entre esses dados e evidências científicas acerca das técnicas anestésicas utilizadas nesses procedimentos, com especial atenção à relação entre essas técnicas e os níveis de troponina cardíaca no pós-operatório.

A  extração de dados do DATASUS foi realizada por meio da seleção dos procedimentos de revascularização do miocárdio no módulo de internações hospitalares, com filtragem por ano e por estado da federação. Como o sistema do DATASUS não fornece informações sobre a técnica anestésica empregada nem sobre marcadores bioquímicos, como os níveis séricos de troponina, foi conduzida uma revisão narrativa integrativa da literatura científica para complementar esses dados.

A revisão narrativa baseou-se em buscas realizadas nas bases PubMed, Scopus, Web of Science e SciELO, utilizando os descritores “coronary artery bypass grafting”,    “anesthesia”,   “volatile      anesthetics”,   “total   intravenous anesthesia”, “troponin”, “epidural anesthesia”, “regional anesthesia” e “cardiac surgery outcomes”.

Foram incluídos estudos publicados entre 2005 e 2024, em inglês, português ou espanhol, que abordassem a relação entre técnica anestésica e níveis de troponina no pós-operatório de cirurgias de revascularização do miocárdio, tanto com o uso de circulação extracorpórea quanto off-pump. Os critérios de exclusão compreenderam estudos com população pediátrica, relatos de caso, cartas ao editor e artigos que não apresentaram dados clínicos ou laboratoriais relativos aos desfechos cardíacos.

Foram selecionados estudos com delineamentos metodológicos robustos, como ensaios clínicos randomizados, metanálises e revisões sistemáticas. As informações extraídas dos artigos incluíram o tipo de anestesia utilizada (inalatória, venosa total, combinada ou com bloqueio regional), o número de pacientes avaliados, os níveis médios de troponina no período pós-operatório, os principais desfechos clínicos (como infarto agudo do miocárdio, mortalidade, tempo de permanência hospitalar e tempo de ventilação mecânica) e os parâmetros estatísticos apresentados (valores de p, intervalos de confiança, risco relativo ou odds ratio).

3.   RESULTADOS

Entre os anos de 2015 e 2024, foram realizadas 4.780 internações para cirurgia de revascularização do miocárdio no estado de Goiás, com registro de 738 óbitos, resultando em uma taxa média de mortalidade de 15,44%. A evolução ao longo da série histórica mostra variações importantes tanto no número de procedimentos quanto nos desfechos. O maior número de internações ocorreu em 2016, com 728 casos, seguido de uma redução progressiva nos anos seguintes, com destaque para o ano de 2021, que registrou apenas 275 internações. Essa queda coincide com a pandemia de COVID-19, que impactou diretamente a oferta de procedimentos cirúrgicos eletivos em todo o país (tabela 1).

A  taxa de mortalidade também apresentou variações relevantes. O menor valor foi observado em 2017, com 11,65%, enquanto o maior ocorreu em 2020, alcançando 21,84%. Esse aumento nos óbitos durante os anos mais críticos da pandemia possivelmente reflete tanto o agravamento do estado clínico dos pacientes que conseguiram acesso ao sistema de saúde quanto a sobrecarga das estruturas hospitalares. Após esse período, observa-se uma recuperação gradual, com aumento do número de cirurgias e redução da taxa de mortalidade, que em 2024 foi de 14,09%, ainda acima dos níveis observados no início da década.

Tabela 1. Número de internações, óbitos e taxa de mortalidade para Cirurgia de Revascularização do Miocárdio, em Goiás, de 2015 a 2024.

FONTE: DATASUS, 2025

Quando estratificados pelo caráter do atendimento, revelam diferenças significativas entre os procedimentos realizados de forma eletiva e aqueles realizados em situações de urgência. Do total de 4.780 internações registradas, 1.588 (33,2%) foram cirurgias eletivas e 3.192 (66,8%) foram realizadas em caráter de urgência. A mortalidade observada também variou consideravelmente entre os dois grupos. Nas cirurgias eletivas, ocorreram 184 óbitos, resultando em uma taxa de mortalidade de 11,59%. Já entre os procedimentos de urgência, foram registrados 554 óbitos, o que corresponde a uma taxa de mortalidade de 17,36%. Essa diferença indica que os pacientes submetidos à cirurgia em caráter de urgência apresentaram risco significativamente maior de óbito, o que pode estar relacionado à maior gravidade clínica no momento da admissão, menor tempo para preparação pré-operatória e maior complexidade intraoperatória. A taxa de mortalidade total combinada para o período foi de 15,44%, refletindo a predominância dos atendimentos de urgência no perfil assistencial.

Quanto ao número de procedimentos agrupados conforme seu tipo específico, o maior número total de CRMs ocorreu para o procedimento de revascularização miocárdica com uso de circulação extracopórea (n = 4765) (tabela 2). A análise dos dados de cirurgia de revascularização do miocárdio (CRM) realizados no estado de Goiás entre 2015 e 2024, segundo o tipo de procedimento adotado, permite observar diferenças relevantes nos desfechos clínicos, especialmente no que diz respeito ao uso ou não de circulação extracorpórea (CEC) e ao número de enxertos envolvidos. Entre os 4.780 procedimentos realizados no período, a grande maioria correspondeu à revascularização com uso de circulação extracorpórea e com dois ou mais enxertos, representada pelo código 0406010935, com 4.370 internações (91,4% do total) e 686 óbitos, o que resulta em uma taxa de mortalidade de 15,7%. Este grupo concentra, portanto, tanto o maior volume assistencial quanto o maior número absoluto de óbitos. O procedimento 0406010927 – revascularização miocárdica com uso de circulação extracorpórea, sem especificação quanto ao número de enxertos, contabilizou 395 internações e 51 óbitos, com taxa de mortalidade de 12,91%. Em comparação com o procedimento anterior, este apresenta mortalidade ligeiramente inferior, possivelmente por envolver casos menos complexos ou pacientes com menor gravidade. Já os procedimentos realizados sem uso de circulação extracorpórea foram muito menos frequentes. O código 0406010943, correspondente à revascularização sem CEC, registrou apenas 13 internações e 1 óbito, com uma taxa de mortalidade de 7,69%. Por sua vez, o procedimento 0406010951, também sem uso de CEC e com dois ou mais enxertos, foi realizado apenas 2 vezes e não registrou óbitos, não sendo possível calcular uma taxa de mortalidade representativa para este grupo.

Tabela 2. Número de internações, óbitos e taxa de mortalidade para Cirurgia de Revascularização do Miocárdio, conforme tipo de procedimento, em Goiás, de 2015 a 2024.

FONTE: DATASUS, 2025

De forma geral, os dados indicam que a cirurgia de revascularização do miocárdio com uso de CEC permanece como padrão predominante em Goiás, tanto em volume quanto em representatividade nos desfechos. A menor taxa de mortalidade associada aos procedimentos sem circulação extracorpórea pode sugerir vantagens em termos de segurança, porém o número extremamente reduzido desses casos limita qualquer conclusão robusta. Isso reforça a importância de ampliar a coleta e análise de dados sobre modalidades menos invasivas, que possam, eventualmente, oferecer alternativas mais seguras para determinados perfis de pacientes.

4. DISCUSSÃO

A lesão miocárdica perioperatória, avaliada principalmente por meio dadosagem de troponinas cardíacas (cTnI e cTnT), é um dos principais preditores de complicações cardiovasculares e mortalidade hospitalar após CRM. Mesmo aumentos leves na cTn no pós-operatório estão associados a maior risco de eventos cardiovasculares maiores (MACE – major adverse cardiovascular events) e óbito nos primeiros 30 dias após a cirurgia (DEVEREAUX et al., 2022; NELLIPUDI et al., 2021; PÖLZL et al., 2023).

Em 13.862 pacientes adultos acompanhados no estudo VISION-Cardiac Surgery, 8.239 foram submetidos a CRM isolada ou substituição/reparo valvar e 5.623 a cirurgias cardíacas combinadas; ocorreram 296 óbitos em trinta dias (2,1 %). O pico de troponina I de alta sensibilidade (hs-cTnI) teve relação log-linear com mortalidade: cada incremento de 1 unidade no log do valor elevou o risco ajustado de óbito após CRM para HR = 1,62 no dia um e HR = 1,84 nos dias dois e três do pós-cirúrgico; em cirurgias combinadas os correspondentes HR foram 1,75 e 2,77. Os menores limiares de hs-cTnI associados a HR > 1 foram muito acima do limite superior de referência (26 ng/L): 5 .670 ng/L (218 × ULN) no primeiro dia e 1.522 ng/L (59 × ULN) nos dias 2-3 para CRM isolada; 12 .981 ng/L (499 × ULN) nos dias um e dois e 503 ng/L (96 × ULN) nos dias dois e três para cirurgias combinadas. Esses resultados indicam que estratégias anestésicas capazes de limitar a liberação de troponina abaixo de ~60 × ULN no pós-operatório precoce da CRM podem impactar positivamente a sobrevida em 30 dias (DEVEREAUX et al., 2022).

A metanálise de Bao et al. (2024) demonstrou que o uso de isoflurano esteve associado a uma redução estatisticamente significativa dos níveis de troponina I em comparação ao propofol, com uma diferença média padronizada (SMD) de –0,53 (IC 95%: –0,78 a –0,28; p < 0,001). Este efeito cardioprotetor dos agentes voláteis também foi documentado por Jiao et al. (2019), cuja análise atualizada encontrou uma diferença média de –0,45 ng/mL (IC 95%: –0,68 a –0,22; p < 0,001) nos níveis de troponina a favor dos voláteis em relação à anestesia intravenosa total (TIVA), além de um risco relativo (RR) reduzido para desfechos cardíacos adversos (RR 0,79; IC 95%: 0,67–0,92; p = 0,003).

De forma similar, a metanálise de Straarup et al. (2016) reforça a superioridade dos anestésicos voláteis, ao identificar uma diferença média de –0,40 ng/mL (IC 95%: –0,70 a –0,10; p = 0,009) nos níveis de troponina pós-operatória, embora tenha destacado heterogeneidade moderada (I² = 54%). Essa heterogeneidade foi atribuída principalmente às diferenças nas doses e duração da exposição aos voláteis entre os estudos incluídos.

Os dados obtidos por Hofland et al. (2017), por sua vez, sugerem que o xenônio, quando comparado ao sevoflurano e à anestesia intravenosa total, não confere benefício adicional significativo na redução de troponina, com valores médios de 1,9 ± 1,1 ng/mL (xenônio), 1,8 ± 1,2 ng/mL (sevoflurano) e 2,0 ± 1,3 ng/mL (TIVA), sem diferença estatisticamente significativa (p = 0,48). Por sua vez, o estudo de Eremeev e Miu (2011), comparando sevoflurano e propofol em cirurgia sem circulação extracorpórea, encontrou menor elevação de troponina no grupo sevoflurano (0,98 ± 0,13 ng/mL vs. 1,16 ± 0,15 ng/mL; p < 0,05).

O estudo de Kottenberg et al. (2012) destacou que o pré-condicionamento isquêmico remoto associado ao uso de isoflurano promoveu uma redução adicional na mediana de troponina (2,8 ng/mL; IC 95%: 2,3–3,6) em comparação ao propofol (4,1 ng/mL; IC 95%: 3,4–5,0; p = 0,02), reforçando o papel da interação entre estratégias anestésicas e protocolos de proteção miocárdica.

Lemoine et al. (2018), em um ensaio randomizado, também evidenciaram o benefício do sevoflurano, relatando uma redução de 30% nos níveis de troponina nas primeiras 24 horas pós-operatórias em relação ao propofol (p = 0,04), o que foi atribuído a mecanismos de pré-condicionamento mediado por abertura de canais de potássio mitocondriais.

Por outro lado, estudos sobre a anestesia epidural apresentaram resultados menos consistentes. Barrington et al. (2005), ao compararem anestesia geral isolada versus combinada com anestesia epidural, não encontraram diferença significativa nos níveis de troponina (0,89 ± 0,27 ng/mL vs. 0,92 ± 0,29 ng/mL; p = 0,68). Em contraste, Bektas et al. (2015) relataram menor elevação de troponina I com o uso de analgesia epidural torácica alta com levobupivacaína (0,76 ± 0,19 ng/mL vs. 1,01 ± 0,21 ng/mL; p < 0,05). A metanálise de Hu et al. (2024) revelou um RR de 0,85 (IC 95%: 0,73–0,99; p = 0,04) para infarto miocárdico pós-operatório em pacientes submetidos à analgesia epidural, sugerindo um efeito protetor modesto.

No contexto da anestesia combinada em cirurgias sem circulação extracorpórea, Zawar et al. (2015) identificaram um RR de 0,72 (IC 95%: 0,54–0,95; p = 0,02) para eventos cardíacos adversos em pacientes idosos de alto risco submetidos à analgesia epidural torácica associada à anestesia geral. Já o estudo de Suryaprakash et al. (2013) mostrou menor troponina no grupo sevoflurano (0,82 ± 0,12 ng/mL) e desflurano (0,80 ± 0,11 ng/mL) comparado ao TIVA (1,05 ± 0,14 ng/mL; p < 0,01), confirmando o benefício dos voláteis também em cirurgias sem CEC.

A metanálise de El Dib et al. (2017) acrescenta robustez à evidência ao demonstrar que a anestesia inalatória reduz significativamente os níveis de troponina em comparação à intravenosa, com uma diferença média ponderada de – 0,43 ng/mL (IC 95%: –0,67 a –0,19; p = 0,0005), e também uma redução no risco de eventos cardíacos maiores (RR 0,79; IC 95%: 0,67–0,94; p = 0,007).Além disso, De Hert (2016) oferece uma análise crítica da literatura, questionando a necessidade de novos estudos para confirmar o benefício cardioprotetor já amplamente estabelecido dos anestésicos voláteis em cirurgia de revascularização com CEC. O autor argumenta que a consistência dos dados torna desnecessária a repetição de ensaios, defendendo maior foco na tradução dos achados para a prática clínica.

Finalmente, Landoni et al. (2019) reforçam a relevância clínica desses achados ao demonstrar que o uso de anestesia volátil está associado a uma redução significativa de mortalidade perioperatória (RR 0,82; IC 95%: 0,69–0,97; p = 0,02) em comparação ao TIVA, um desfecho que transcende o impacto meramente bioquímico sobre os níveis de troponina.

Os dados sintetizados dos estudos acima a respeito da relação da modalidade anestésica com os níveis de troponina podem ser melhor visualizados na tabela comparativa abaixo (tabela 3).

Tabela 3. Comparação entre os desenhos de estudos e suas conclusões a respeito da relação da modalidade anestéstica com o nível de troponina pós-operatório na CRM.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados compilados indicam de forma consistente que a escolha da modalidade anestésica exerce influência significativa sobre os níveis de troponina no pós-operatório de CRM — biomarcador fortemente associado à lesão miocárdica, eventos cardiovasculares maiores e mortalidade precoce. Estudos observacionais de grande porte, como o VISION-Cardiac Surgery, estabeleceram limiares prognósticos de troponina e reforçam que estratégias anestésicas capazes de manter esses níveis abaixo de ~60 vezes o limite superior da normalidade (ULN) podem impactar positivamente a sobrevida em 30 dias.

As metanálises mais robustas (Bao et al., Jiao et al., El Dib et al., Landoni et     al.)  e ensaios clínicos randomizados convergem ao demonstrar que os anestésicos voláteis (sevoflurano,  isoflurano, desflurano) promovem  reduções significativas nos níveis de troponina em comparação à anestesia intravenosa total (TIVA com propofol), com efeitos que se traduzem também em menor incidência de eventos cardíacos adversos e até redução de mortalidade perioperatória. Esses efeitos parecem estar relacionados a mecanismos de pré-condicionamento miocárdico e proteção mitocondrial mediados pelos voláteis.

Além disso, a analgesia epidural torácica, especialmente em combinação com anestesia geral, mostra efeito cardioprotetor mais modesto, mas ainda relevante, conforme evidenciado por algumas metanálises e estudos com pacientes de alto risco.

Por outro lado, o uso de xenônio não demonstrou superioridade em relação a outros anestésicos, e a simples adição de anestesia epidural à geral não garante benefício uniforme, dependendo do protocolo adotado.

Em síntese, a escolha de anestésicos voláteis como parte da estratégia anestésica na CRM, especialmente em contextos com circulação extracorpórea, associa-se de forma consistente à redução da liberação de troponina e, consequentemente, à melhora de desfechos clínicos relevantes. A evidência acumulada sustenta a recomendação de priorizar esses agentes sempre que não houver contraindicações, promovendo assim uma abordagem mais cardioprotetora durante o período operatório de cirurgia cardíaca.

No entanto, a heterogeneidade  metodológica entre os estudos, as diferentes doses, durações e protocolos de administração anestésica, bem como o uso concomitante de estratégias de pré-condicionamento isquêmico, representam limitações importantes para a interpretação comparativa dos dados. Assim, esforços futuros devem focar em padronizar as intervenções e expandir os desfechos clínicos avaliados, a fim de consolidar a evidência sobre a escolha anestésica mais eficaz e segura na cirurgia de revascularização do miocárdio. Por isso, mais estudos se mostram necessários para elucidar melhor tal relação.

6. REFERÊNCIAS

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1Médico Residente em Anestesiologia
Universidade Evangélica de Goiás
2Médico Anestesiologista (Tea – Sba)
Universidade Evangélica de Goiás