REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7538756
Bianca Langhinrichs Cunha1
Quando se pesquisa a historiografia da temática Surda, é possível perceber um emaranhado de discussões que se cruzam e retomam, repetidamente, assuntos como: educação, legislação e cultura surda. Esses conceitos sempre estão alinhados e profundamente implicados. Muitos artigos científicos trazem esses pontos reunidos, amalgamados, pois parece não ser possível dissociar um dos outros. Contudo, pode parecer confuso e pouco detalhado esse modo de narrativa, que endossa a problemática Surda na história. De fato, na pesquisa bibliográfica, nota-se a recorrência entre os pontos e pouco se aprofunda sobre cada um deles.
Diferentes foram as maneiras que o sujeito Surdo fora tratado no decorrer da História. Muitas vezes as condutas da população ouvinte eram ríspidas e feriam a humanidade do Ser que nascia desprovido de audição. Matava-se, ignorava-se, colocava-se às margens de tribos e grupos em tempos remotos e, ainda que o quadro atual seja mais inclusivo, é possível afirmar que a população Surda, a exemplo de outras diferenças, vive alijada da cidadania. Isso porque a sociedade e o mundo político ainda estão fortemente constituídos a partir da lógica ouvinte.
Diferente do contexto hegemônico da atualidade, Strobel (2008b) nos diz que os Surdos na civilização egípcia e também na Pérsia eram considerados como seres de dotes divinos, enviados pelos deuses e capazes de fazer a comunicação entre a terra e o céu. Essa percepção em relação ao Surdo se dava justamente pelo seu silêncio, pelo não “falar”, o que traduzia-se, naquele período e espaço, como algo especial, distinto da normalidade. Nestas civilizações pensavam que o Surdo como sujeitos capazes de falarem apenas com os deuses, em segredo e em estado meditativo. Contudo, mesmo que essa postura frente ao Surdo fosse de adoração/veneração, havia o afastamento deste das esferas sociais, sendo ele desprovido de instrução e participação comunitária.
Os casos mais comuns de tratamento, no entanto, iam à contramão das percepções persa e egípcia. Na Grécia antiga, tanto para os valores espartanos, ligados à perfeição física, quanto para o prestígio ateniense ao intelecto, os Surdos eram devidamente banidos do núcleo familiar e social, como num “expurgo” que legitimava uma “natural” concepção de ideal, uma pureza não racial, mas de formação física/humana. Os Surdos, nesse contexto, eram seres não-pensantes, incapazes de desenvolverem-se enquanto sujeito cidadão. Assim, os Surdos eram mortos (leia-se assassinados), normalmente jogados em penhascos ao mar e/ou às pedras. Dificilmente teriam como sobreviver. Para aqueles que se mantinham com vida restava a miséria, isolados de tudo e todos ou como escravos na prestação de funções desumanas (STROBEL, 2008b).
Duarte (et al, 2013), traz os registros religiosos, como fontes que descreveram momentos onde personagens Surdos emergem:
[…] no Talmud (livro sagrado judaico), lê-se: “Não equipares o Surdo e o mudo com a categoria dos idiotas ou com aqueles indivíduos de irresponsabilidade moral, por que podem ser instruídos e considerados inteligentes”. Na Bíblia Sagrada, livro de Êxodo, capítulo 4, Moisés diz: “Quem faz o mudo, ou Surdo, ou o que vê, ou o cego? Não sou eu o Senhor?” No livro de Levítico, capítulo 19, versículo 14, ele ensina como tratar o semelhante: “Não amaldiçoarás o Surdo, nem porás tropeço diante do cego; mas temerás o teu Deus. Eu sou o Senhor.” No evangelho de Lucas, o capítulo 1 descreve o nascimento e circuncisão de João Batista; os versículos 62 e 63 relatam uma comunicação por meio de sinais entre a população e Zacarias, pai de João Batista, que não falava por ter a língua presa: “Então, por sinais, perguntaram ao pai como queria que ele se chamasse. Pedindo uma placa, o pai escreveu: ‘O seu nome é João’” (p. 1716 – 1717)
Nestes casos, nos relatos em textos considerados sagrados, não há um movimento perverso que viesse a deslegitimar a vida do Surdo, tão pouco a defesa de um extermínio dessas pessoas. Contudo, é visível o não detalhamento dessa população que não ouvia, ou seja, o desconhecimento e, talvez, a negligência para com o Surdo. Tal fato é uma realidade até mesmo nos dias de hoje, onde muitas famílias põem em reclusão o sujeito não ouvinte, por vezes numa conduta de superproteção, mas noutros casos numa estranheza e descaso.
Já no Código Justiniano, no século VI, há o registro de classificações referentes aos Surdos, mais precisamente à surdez. Neste primeiro documento histórico, como traz Duarte (2013), teremos uma “normatização” no sentido jurídico e pelo viés da saúde sobre a especificidade Surda, em cinco níveis/categorias: Surdo-mudez natural; Surdo-mudez adquirida; surdez natural; surdez adquirida e mudez natural ou adquirida.
Essas categorizações acarretaram numa alteração social e antropológica na especificação da surdez e no interesse acerca das capacidades do Surdo, o que reverberou numa diferença quanto ao tratamento dessa população. Tal interesse ocasionou uma mudança também política e participativa, mesmo que às avessas. Distinguia-se, assim, os Surdos que falavam e os Surdos que não falavam:
os que não falavam estavam impedidos por lei de celebrar contratos, reclamar herança, possuir propriedades, elaborar testamentos e conviver em sociedade. Essas regras não valiam para os Surdos que falavam, pois, em sua maioria, eram aqueles que adquiriram primeiro a linguagem e só depois a surdez (DUARTE, 2013, p. 1718).
Com o passar dos tempos, houve ainda relevantes inferências, discussões e modificações quanto às classificações da surdez, em coerência com o tempo e espaço de cada sociedade e suas evoluções na área científica e médica – fatores que vem sendo debatidos também na atualidade.
Como visto, durante muitos séculos, os Surdos foram considerados incapazes e a surdez era comumente associada à demência e a outras perdas mentais. Isso levava essas pessoas à segregação e, em algumas culturas, o Surdo era de fato exterminado. Porém, é na Idade Média, mais precisamente no seu final, que a surdez passou a ser encarada sob um viés mais científico, mesmo que incipiente. Já na Idade Moderna, foram criadas novas nomenclaturas para referir-se à pessoa Surda, antes consideradas surdas-mudas.
Com o tempo, muitos pensadores começaram a perceber que os Surdos não podiam ouvir ou falar, mas tinham uma forma de se expressar através de gestos e mímicas. Houve então uma “avalanche” de pesquisadores na área da surdez, estudando-a de forma científica e clínica (MARTINS, 2012). Nesse momento, surgem os primeiros educadores dos Surdos, o mais famoso deles é o espanhol Pedro Ponce de Leon (1520-1548), fundador de uma das primeiras escolas para professores Surdos. Seu pioneirismo foi de suma importância, conforme destaca Lodi (2005). Seu trabalho não apenas influenciou métodos de ensino para Surdos no decorrer dos tempos, como também demonstrou que eram falsos os argumentos médicos, filosóficos e as crenças religiosas da época sobre a incapacidade dos Surdos para o desenvolvimento da linguagem e, portanto, para toda e qualquer aprendizagem (LODI, 2005, p. 411).
Não obstante, o foco de ensino era a língua na modalidade escrita e, em geral, seus estudantes eram filhos de nobres. Por ser monge, a doutrina da fé católica também estava entre os ensinamentos de Ponce de Leon, o qual, curiosamente, por conta de um voto de silêncio, passara a usar apenas os sinais como forma de comunicação. Seu objetivo era ensinar os Surdos a ler, escrever e falar. Isso se dava porque, “a possibilidade do Surdo falar implicava no seu reconhecimento como cidadão e, consequentemente, no seu direito de receber a fortuna e o título da família” (MOURA, 2000 p. 18).
Uma alteração significante no histórico referente ao “lidar/interagir” com a população Surda está no ensino. No século XVI, quando percebe-se que a escrita e a audição das palavras não são construções paralelas e, com isso, pensou-se numa forma eficaz de alfabetização. Isso se deu com a criação do alfabeto manual, elaborado pelo padre espanhol Juan Pablo Bonet, trocando a letra por um símbolo totalmente visual.
Figura 1: Abecedário demonstrativo de Juan Pablo Bonet.
Fonte: http://www.wikiwand.com/en/Juan_Pablo_Bonet. Acessado em: 12 jul. 2018.
No século XVIII, surgiram diversas escolas voltadas para a educação de Surdos e o ensino da língua de sinais. Conforme destaca Strobel (2009), Charles Michel de L’Epée começou seu contato com Surdos quando conheceu duas irmãs Surdas que se comunicavam utilizando gestos. A partir daí, iniciou o contato com diversos Surdos carentes de Paris com o objetivo de aprofundar o contato e fazer um estudo mais detalhado sobre a língua de sinais. L’Epée recebia-os em sua própria casa, utilizando, segundo Strobel (2009), uma combinação de língua de sinais e gramática francesa, sinalizada denominada de “Sinais metódicos”. Os trabalhos de Michel de L’Epée eram financiados pelas famílias dos Surdos e através de recursos financeiros doados pela sociedade. O francês foi o responsável pela fundação da primeira escola para os Surdos denominada “Instituto para jovens Surdos e Mudos de Paris”.
Outros, como Jacob Rodrigues Pereira (1715- 1780) e Johann Conrad Ammann (1669-1724), lançavam-se a estudos da população Surda, demanda a qual era muito bem paga desde o século XVI, se tratando da preocupação de nobres para com seus herdeiros, por exemplo. Ammann, por exemplo, em 1692 vem a escrever a obra Surdus loquens (O homem Surdo e falante), livro que versou sobre a patologia da linguagem. Na ocasião, pela primeira vez, pensou-se sobre as peculiaridades e diferenças da voz, notando distinção entre ela e a própria respiração. Assim, Ammann desenvolve uma descrição minuciosa da natureza da sonoridade e da fala. Já Thomas Braidwood (1715-1806) inova com um método diferenciado através do qual o alfabeto manual seria utilizado com ambas as mãos. Tal método fora multiplicado por um de seus estudantes em solo inglês, modelo que seque sendo utilizado.
Outro educador importante para a história dos Surdos, principalmente no que tange o ensino, foi Thomas Gallaudet (1787-1789). O educador fundou o que seria a primeira faculdade para a população não ouvinte. Hoje, tal espaço é conhecido como Universidade Gallaudet e fica em Washington nos EUA. Gallaudet usou o método de I’EPée. Após anos de trabalho, ele viajou o mundo para verificar se o método utilizado em sua instituição estava adequado. Gallaudet voltou desta viagem apoiando o chamado método do oralismo e, nas próximas décadas, seria este o mais utilizado por todas as instituições de ensino para as pessoas Surdas.
Alguns anos mais tarde, em 1880, a língua de sinais foi proibida através de definições debatidas no Congresso de Milão. O evento foi uma conferência nacional com a participação de educadores de Surdos e nele foram debatidos aspectos relacionados à educação dessas pessoas e foi definido o método oralista como técnica a ser seguida para o ensino dos Surdos. Com isso, o uso da língua de sinais foi proibido. As resoluções definidas no Congresso de Milão, segundo Strobel (2009) foram:
I – O uso da língua gestual em simultâneo com a língua oral, no ensino de Surdos, afeta a fala, a leitura labial e a clareza dos conceitos, pelo que a língua articulada deve ser preferida;
II – Os governos de vem tomar medidas para que todos os Surdos recebam educação;
III – O método mais apropriado para os Surdos se apropriarem da fala é o método intuitivo (primeiro fala depois a escrita); a gramática deve ser ensinada através de exemplos práticos, com a maior clareza possível; devem ser facultados aos Surdos livros com palavras e formas de linguagem conhecida pelo Surdo;
IV – Os educadores de Surdos, do método oralista, devem aplicar-se na elaboração de obras específicas dessa matéria;
V – Os Surdos, depois de terminado o seu ensino oralista, não esqueceram o conhecimento adquirido, devendo, por isso, usar a língua oral na conversação com pessoas falantes, já que a fala se desenvolve com a prática;
VI – A idade mais favorável para admitir uma criança Surda na escola é entre 08-10 anos, sendo que a criança deve permanecer na escola um mínimo de 7-8 anos; nenhum educador deve ter mais de 10 estudantes simultâneo;
VII – Com o objetivo de se implementar, com urgência, o método oralista, deviam ser reunidas as crianças Surdas recém admitidas nas escolas, onde deveriam ser instruídas através da fala; essas mesmas crianças deveriam estar separadas das crianças mais avançadas, que já haviam recebido educação gestual, a fim de que não fossem contaminadas; os estudantes antigos também deveriam ser ensinadas segundo este novo sistema oral.
Na tentativa de especificar a natureza do aparelho auditivo, outros nomes históricos surgem das leituras referentes a Surdos no mundo, como Friedrich Siebenmann (1852-192) e Antoine Shwendt (1853-1905). No que se refere à anatomia do ouvido e suas patologias, o primeiro médico de origem alemã era especialista em otorrinolaringologista e fez uma descrição demasiadamente detalhada para a época. Já o segundo, Shwendt, vem a tratar tanto as nuances clínicas quanto acústicas da surdez (DUARTE, 2013).
Muitos especialistas que se preocuparam com as demandas do público Surdo ignoraram a língua quanto problema central, o que viria a ser a solução para a comunicação, seja entre a própria comunidade Surda ou entre Surdos e Ouvintes. Nessa esteira, pode ser citado o médico francês Jean-Marie Gapard Itard (1774 – 1838), que, na sua especialidade de cirurgião militar, desenvolveu duas obras, a partir do acompanhamento educacional de um rapaz denominado “selvagem” em seu tempo. Os dois livros, de 1807 e 1808 são Sur les moyens de rendre la parole aux sourds-muets (Sobre os métodos de devolver a palavra aos Surdos) e Sur les moyens de rendre l’ouïe aux sourds-muets (Sobre os métodos de restauração de audição para Surdos). Tal metodologia teve sua estruturação a partir de sete pontos específicos:
1. melhorar a capacidade de detectar e discriminar sons
2. treinar a discriminação de vogais;
3. treinar a discriminação das consoantes;
4. apresentar diferentes pares de sílabas;
5. transcrever essas sílabas e lê-las;
6.apresentar diferentes palavras;
7. apresentar diferentes frases.
Ainda segundo Duarte (2013), com o aprimoramento das pesquisas e métodos, Itard avança e afirma a necessidade de uma linguagem distinta: a língua de sinais, a qual considera natural ao linguajar Surdo, tanto para sua comunicação quanto para seu processo educativo e formativo. Em decorrência da evolução da percepção linguística da comunidade não ouvinte, outra obra foi lançada, em 1821, Des maladies de l’oreille et de l’audition, trazendo à tona seu novo olhar referente ao ensino Surdo, às enfermidades de crianças Surdas e possíveis estímulos e na oralidade a partir da sinalização.
Até mesmo o inventor do telefone, Alexander Graham Bell (1847-1922), endossa o discurso e a ideia oralista, repelindo formas de sinalização na comunicação Surda. O próprio invento do cientista, que marcou a história da humanidade, teria sido resultado de uma busca íntima e familiar pela amplificação sonora – tanto a esposa quanto a mãe eram Surdas. Assim, Graham Bell tornou-se figura ímpar em meio aos cientistas que levantavam a bandeira da oralidade. Esse e outros avanços tecnológicos, com o advento dos aprimoramentos científicos, reverberaram grandes entraves para as discussões prol língua de sinais. Um “atraso” às avessas na história Surda. Um exemplo disso foi o I Congresso Internacional de Educação de Surdos em Paris, com exaltada preferência pela instrução oral (DUARTE, 2013).
A partir de então, um “império oralista” se levantara, transformando a educação e sua qualidade pedagógica numa realidade mais tecnicista, ocupando as aulas com verdadeiros “treinos”, numa proposta de reabilitação do Surdo à sociedade ouvinte. Relegava-se, portanto, a cultura de um grupo com particularidades acentuadas, com caracteres visuais e espaciais no ato comunicativo e, além, na forma de perceber e se colocar no mundo.
No decorrer da segunda metade do século XX, mais precisamente em 1960, o dito “império” começa a sentir suas primeiras rachaduras em sua estrutura – tratava-se das críticas ferrenhas aos métodos de proibição à sinalização. Um marco fundamental foi a publicação do artigo de William Stokoe, intitulado Sign language structure: an outline of the visual communication system of the american dea, quando a língua de sinais ganharia força e reconhecimento, tanto para a comunidade Surda, quanto para a sociedade em geral. Destituía-se, nesse momento, a prioridade das técnicas orais/oralistas e alcançava-se outra conquista, pela própria comunidade Surda: o conceito/denominação “Surdo” se tornava vigente, e não mais o de “deficiente auditivo”.
A compreensão da potencialidade da língua de sinais como valor intrínseco à própria cultura visual e Surda foi se estabelecendo, conforme nos diz Duarte (2013, p. 1726):
Na década de 1970, diversas pesquisas linguísticas buscaram provar que as línguas de sinais podiam ser comparadas às línguas orais em complexidade, singularidade, expressividade e função estética. As línguas de sinais dão a seus usuários possibilidades de exprimir ideias abstratas, multíplices, sutis, em discussões no campo da flosofa, literatura, política, além de assuntos da atualidade e da mais variada gama de temas, construindo estórias, poesias, estruturando o teatro e o humor, como fazem as línguas orais (apud Silva, 1999; Soares, 1999; Lulkin, 2000; Rabelo, 2001; Carvalho, 2007).
Como toda língua, as de sinais apresentam patrimônio lexical; seu acervo de sinais está em constante mutabilidade e evolução. Alguns sinais tornam-se arcaicos, outros mudam de sentido, outros são incorporados, muitos introduzidos em resposta às mudanças e experiências culturais e tecnológicas acumuladas, permitindo intentos expressivos cada vez mais adequados (apud Wrigley, 1996)
A riqueza e a complexidade da linguagem visual é dada a ver se mencionarmos os mais diversos tipos de línguas de sinais. Em todo o globo existe uma diversidade de sinais, neste sentido, há diferenças vinculadas às respectivas línguas orais. Portando, cabe, para cada linguagem visual utilizada pelos Surdos (a própria língua de sinais), uma estrutura distinta, no âmbito gramatical. Da mesma forma que os ouvintes, cada grupo Surdo, ao redor do mundo, em sua culturalidade, coube o peculiar dialeto que os identifica e os diferencia. No decorrer dessa multiplicidade comunicativa, em 1970, nos EUA, brotaria a ideia de uma filosofia educacional, a qual pendia a uma “comunicação total”, respaldada pelos os mais diversos meios e técnicas de transmissão de conteúdo linguístico e/ou informativo. Já na década posterior, o “bilinguismo” seria o carro chefe, tratando por colocar o sujeito Surdo em constate contato e aprendizagem tanto com a língua de sinais quando a língua oral de seu país (DUARTE, 2013).
No Brasil, a educação de Surdos através da língua de sinais passou a se destacar na década de 1950, a partir da influência da fundação da Federação Mundial de Surdos em Roma, conforme destaca Albres (2005). Nesse mesmo período, ocorreu a Fundação da Associação de Surdos do Brasil e no Rio de Janeiro, a Associação Alvorada. Depois, em 1954, a Associação de Surdos em São Paulo e, posteriormente, em 1956, em Belo Horizonte. Assim, no âmbito das Associações de Surdos, a Língua de Sinais era permitida e valorizada, como um espaço de construção de identidade e força para a comunidade. Porém, bibliografias referentes à educação dos Surdos no Brasil ainda é escassa. Conforme destaca Santos (2011), o que se tem ciência, a partir de documentos encontrados no Instituto Nacional de Educação de Surdos, é que o marco principal do início da educação de Surdos, em terras brasileiras, foi a Lei 837, assinada em 26 de setembro de 1857, pelo Imperador D. Pedro II, que determinava a criação do Imperial Instituto de Surdos Mudos (INSM, atual Instituto Nacional de Educação de Surdos- INES), fundado pelo professor francês Hernest Huet a pedido do então imperador D. Pedro II, com a finalidade de educar os Surdos brasileiros. Porém, antes disso, em 1835, o então deputado Cornélio Ferreira já apresentava à Assembleia Legislativa um Projeto de Lei que tinha como objetivo a criação do cargo de “professor de primeiras letras para o ensino de cegos e Surdos-mudos” (SANTOS, 2011, p. 4-5).
Em decorrência do Congresso de Milão – a conferência nacional com a participação de educadores de Surdos – foram debatidos aspectos relacionados à educação dessas pessoas e foi definido o método oralista como técnica a ser seguida para o ensino dos Surdos. Goldfeld (2002) destaca que o sistema oralista surge como uma possibilidade de normalizar o Surdo.
[…] O Oralismo percebe a surdez como uma deficiência que deve ser minimizada pela estimulação auditiva. Essa estimulação possibilitaria a aprendizagem da língua portuguesa e levaria a criança Surda a integrar-se na comunidade ouvinte e desenvolver uma personalidade como a de um ouvinte. Ou seja, o objetivo do Oralismo é fazer uma reabilitação da criança Surda em direção à normalidade. Goldfeld (2002, p. 34).
O congresso impactou nas metodologias adotadas no Brasil e, em 1911, após passar por algumas mudanças, o Instituto Nacional de Educação dos Surdos passa a seguir a tendência mundial e o oralismo é adotado com metodologia de ensino para os estudantes Surdos. Fernandes (2007) ressalta que a língua de sinais, apesar de oficialmente proibida, sobreviveu em sala de aula até 1957, continuando a ser utilizada às escondidas, pelos estudantes nos banheiros, pátios e corredores da escola, longe do olhar vigilante dos cuidadores mestres. O autor destaca que, na década de 1990, mudanças intensas agitaram o cenário de educação dos Surdos no Brasil. Motivados pelos movimentos Surdos em nível mundial, grupo de brasileiros passaram a reivindicar a garantia de comunicação e de acesso ao conhecimento mediados pela língua de sinais, nos diferentes segmentos sociais, como um dos direitos imprescindíveis ao reconhecimento de sua cidadania bilíngue. Com isso, a comunidade Surda objetivava que a língua de sinais fosse reconhecida a partir de suas questões identitárias e, portanto, respeitadas dentro dos espaços escolares. A educação dos Surdos, através da proposta bilíngue, prevê o ensino da língua de sinais como primeira língua e a portuguesa como segunda língua na modalidade escrita.
A educação bilíngue para Surdos está amparada pelo Decreto Federal n° 5.626/2005, que regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002. Esta dispõe sobre a Libras e o art. 18, da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. O referido decreto, no capítulo VI, discorre sobre a “garantia do direito à educação das pessoas Surdas ou com deficiência auditiva” e prevê:
I – escolas e classes de educação bilíngue, abertas a estudantes Surdos e ouvintes, com professores bilíngues, na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental;
II – escolas bilíngues ou escolas comuns da rede regular de ensino, abertas a estudantes Surdos e ouvintes, para os anos finais do ensino fundamental, ensino médio ou educação profissional, com docentes das diferentes áreas do conhecimento, cientes da singularidade linguística dos estudantes Surdos, bem como com a presença de tradutores e intérpretes de Libras – Língua Portuguesa.
§ 1o São denominadas escolas ou classes de educação bilíngue aquelas em que a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo. (BRASIL, 2000)
O Decreto oficializa a utilização de duas línguas na educação bilíngue, a língua brasileira de sinais e a língua portuguesa na modalidade escrita. Anterior a essas disposições, a Lei Federal n° 10.436/2002 (regulamentada pelo referido decreto) reconhece a Língua de sinais como meio oficial de comunicação, expressão e entende como Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas Surdas do Brasil.
A língua de sinais é definida pela linguística como uma língua natural dos Surdos. Karnopp (2004) através de seus estudos, comprovou que a língua de sinais atendia a todos os critérios linguísticos de uma língua genuína, no léxico, na sintaxe e na capacidade de gerar uma quantidade infinita de sentenças. Os Surdos, ao adquirir a língua de sinais, começam a fazer novas descobertas e passam a ter novas perspectivas. Há relato dos Surdos sobre suas vidas antes e depois da Libras. Alguns Surdos afirmam que, antes de entrar em contato, com a comunidade Surda não sabiam que eram Surdos, conforme explana Caldas (2006) ao narrar sua experiência ao ingressar em uma escola regular:
[…] até então não havia tido contato algum com a identidade e cultura Surdas e nem com a libras, me sentia como ouvinte, parecia que era igual às minhas colegas e amigas, até descobrir que existia uma grande diferenças entre nós principalmente na questão linguística (CALDAS, 2006, p.140).
Shirley Vilhalva (2004), autora Surda, também passou por experiências semelhantes a Ana Luiza Caldas, ao narrar que, antes de aprender a língua de sinais, continuava sem entender o que se passava. Ela descreve que também tinha dificuldades para expor seus pensamentos, pois:
[…] muitas imagens ocorrem internamente, parecendo que tudo que vejo, fotografo e depois fica guardado dentro de uma caixa na cabeça e não tem para onde ir, não tem como sair, eu não sabia como expor por não ter um canal de comunicação com o mundo durante minha idade de três, quatro anos (VILHALVA, 2004, p. 12).
Com isso, podemos perceber a importância da língua de sinais para a comunidade Surda. Contudo, Vieira (2011) destaca que somente aceitar a Libras não resume a proposta bilíngue, pois:
[…] é preciso aceitar tudo o que vem junto com a língua, ou seja, a cultura, a identidade, a visão de mundo e a constituição de sujeito. Mas é também pensar na outra língua, na Língua Portuguesa, e organizar as atividades entendendo que esta é a segunda língua, devendo pois ser utilizada de maneira acessível ao Surdo. (VIEIRA, 2011, p. 23)
É possível perceber uma aproximação entre a proposta da educação bilíngue (levando em consideração o sujeito Surdo com todas suas particularidades e o entendendo enquanto sujeito cultural que possui uma identidade) com as propostas do ensino de História que levam em consideração os estudantes enquanto sujeitos sociais.
Referências Bibliográficas
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1Mestre em História – Universidade Federal do Rio Grande – FURG