NOTIFICAÇÃO COMPULSÓRIA DE VIOLÊNCIA: CONHECIMENTOS E PRÁTICAS DE CIRURGIÕES-DENTISTAS DA ESF, EM CAMPO GRANDE-MS

REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.10410493


Nathanna Meireles Cordeiro
Orientador: Pedro Igor Cardozo.


RESUMO

O objetivo deste trabalho é identificar conhecimentos e práticas de profissionais cirurgiões-dentistas da Estratégia Saúde da Família, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, acerca dos aspectos legais e práticos relacionados à notificação de violência. Trata-se de
pesquisa transversal e descritiva. A coleta de dados se deu por meio de questionário eletrônico autoaplicável. Para de análise dos resultados, utilizou de estatística descritiva e teste qui-quadrado (p<0,05). Entre os profissionais que responderam ao questionário (n=61), houve predominância de profissionaisdo gênero feminino, especialistas, e com mais de 10 anos de experiência. A maioria dos profissionais, 54,1% (n=33), afirmou não saber preencher adequadamente a ficha de notificação compulsória de casos confirmados ou suspeitos de violência. Além disso, a maioria dos participantes, 73,6% (n=45), discordou/discordou totalmente sobre já ter realizado notificação de violência. Observou-se que profissionais com mais de 10 anos de atuação se depararam menos com casos de violência (p=0,002). Cirurgiãs-dentistas demonstraram maior conhecimento sobre o prazo para notificação (p<0,001), e sobre a relação quantidade de notificações por vítima/número de autores (p=0,028). Os profissionais apresentaram lacunas do conhecimento sobre notificação de violência, o que implica em fragilidades na efetivação dessa atribuição em seu campo de práticas. Aponta-se a necessidade de promoção a iniciativas que visem aprimorar o conhecimento, fornecer treinamento adequado e promover uma cultura de notificação efetiva.

Palavras-chave: Notificação de Abuso. Notificação Compulsória.Sistemas de Informação em Saúde. Notificação.

1 INTRODUÇÃO

Estima-se que, anualmente, mais de um milhão de pessoas morram, e tantas outras experimentem ferimentos não fatais resultantes de autoagressões, de agressões interpessoais ou de violência coletiva (Dahlberg; Krug, 2006). No Brasil, entre 2018 e 2019, houve aumento de 35,2% no número de mortes violentas por causas indeterminadas, jogando luz sobre a violência como um atual problema de saúde pública (CERQUEIRA; FERREIRA; BUENO, 2021).

No contexto das políticas públicas em saúde, as consequências da violência são de difícil mensuração, mas, entre elas, podemos citar: altos custos para os serviços de saúde, e para as economias; óbitos; danos irreversíveis e reversíveis, físicos e psicológicos. Além disso, em crianças, está associada a danos ao desenvolvimento, ao crescimento e à maturação (MASCARENHAS et al., 2010). Em gestantes, pode causar parto prematuro, hemorragias, aborto, ruptura prematura de membranas, e acesso inadequado ou tardio da mulher à assistência pré-natal (JAHANFAR; HOWARD; MEDLEY, 2014; MAURI et al., 2015).

A Atenção Primária à Saúde (APS) está localizada em proximidade ao usuário, sendo centro de comunicação de toda a Rede de Atenção à Saúde (RAS), sendo responsável por coordenar o cuidado e ordenar as redes, constituindo a principal e preferencial porta de entrada dos pacientes no Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL, 2012). Dessa forma, os profissionais de saúde apresentam uma posição privilegiada no cuidado.

Nesse contexto, os profissionais da APS, incluindo o profissional cirurgião-dentista (CD), podem identificar sinais das diversas formas de violência. Entre eles, pode-se citar: hematomas, lesões, cortes, queimaduras, feridas e fraturas discordantes das causas referidas, ou recorrentes, isolamento social, uso de vestimenta inadequada para o clima, desleixo, desnutrição, dores no estômago, dificuldade em sentar-se, apatia, choro e mudança recorrente de endereço (ACIOLI et al., 2011; MARQUES et al., 2018).

A notificação compulsória de violência não apresenta caráter de denúncia, ela é um registro epidemiológico de violência no território para adoção de medidas de intervenção pertinentes (RIBEIRO, 2018; SILVA; DIAS, 2016). Todos os profissionais de saúde, e outros no exercício da profissão, bem como os responsáveis por organizações e estabelecimentos públicos e particulares de saúde e de ensino, apresentam obrigatoriedade legal de realizar sua a notificação às autoridades sanitárias (BRASIL, 2011; 2016). No entanto, não foram identificados, no cenário local, estudos que retratassem o conhecimento e as práticas de profissionais CD acerca dos aspectos legais e práticos da notificação de violência, constituindo, portanto, uma lacuna de conhecimento local.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Segundo a Organização Mundial das Nações Unidas (1948), a violência é um problema de saúde pública, caracterizado pelo uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (KRUG et al.2002)

A violência é classificada de acordo com a autoria, e conforme a natureza do ato. Quando a violência é praticada e dirigida a si mesmo, recebe a denominação de violência autoinfligida,  e subdivide-se em comportamento suicida e autoabuso; quando a violência é infligida por outra pessoa, ou por um pequeno grupo institucional, recebe a classificação de violência interpessoal, e subdivide-se  em violência da família e de parceiro (a) íntimo (a), e violência comunitária; quando a violência é infligida por um grupo maior de pessoas, ou pelo Estado, é classificada como violência coletiva, e é subdividida em violência social, política e econômica. A natureza dos atos violentos pode ser física, sexual, psicológica, privação ou negligência (KRUG et al.2002).

A notificação de casos confirmados ou suspeitos de violência é de caráter sigiloso, e deve ser realizada pelos profissionais de saúde, responsáveis pelos serviços públicos e privados de saúde, estabelecimentos públicos ou privados educacionais, estabelecimentos de cuidado coletivo, serviços de hemoterapia, unidades laboratoriais e instituições de pesquisa que prestarem assistência ao paciente (BRASIL, 1975). Além disso, o cidadão que tiver conhecimento deste agravo também pode realizar a comunicação às autoridades de saúde (BRASIL, 2016)

Sempre que houver suspeita ou confirmação de violência sexual, violência contra a mulher ou tentativa de suicídio, a notificação deve ser imediata, ou seja, em até 24 horas do conhecimento do agravo, pelo meio mais rápido e pelo profissional de saúde, ou responsável pelo serviço assistencial que prestar o primeiro atendimento (BRASIL, 2016).

As fichas de notificação compulsória de violência devem ser direcionadas à Secretaria Municipal de Saúde, e registradas no sistema de informação em saúde, para seguir o fluxo de compartilhamento entre as esferas de gestão do SUS, independentemente da forma que for registrada (BRASIL, 2016).

Nesse contexto, o SUS possui serviços de enfrentamento e manejo da violência, tais como: Serviços de Atenção Integral à Saúde de Pessoas em Situação de Violência Sexual: Serviço de Atenção Integral para Mulheres em Situação de Violência Sexual, Serviço de Atenção à Interrupção de Gravidez para os casos Previstos em Lei, Serviços de Atenção Integral à Saúde de Crianças e Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Situação de Violência Sexual, Serviço de Atenção Integral para Homens em Situação de Violência Sexual e Serviço de Atenção Integral para Pessoas Idosas em Situação de Violência Sexual (BRASIL, 2014). 

Além da comunicação às autoridades sanitárias, é obrigatório, nos casos de suspeita ou de confirmação de maus-tratos contra crianças e adolescentes, a comunicação ao Conselho Tutelar (BRASIL, 2001). Nos casos de suspeita ou confirmação de violência praticada contra a pessoa idosa, a comunicação deverá dar-se também a uma das seguintes entidades:  autoridade policial, Ministério Público, Conselho Municipal da Pessoa Idosa, Conselho Estadual da Pessoa Idosa ou Conselho Nacional da Pessoa Idosa (Brasil, 2003). Nos casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher, a comunicação dar-se-á também à autoridade policial, no prazo de 24 horas (BRASIL, 2019).

3 OBJETIVOS
3.1 Objetivo geral

Objetiva-se identificar os conhecimentos e as práticas de profissionais CD de ESF, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, acerca dos aspectos legais e práticos relacionados à notificação de violência.

3.2 Objetivos específicos:

3.1.1 Caracterizar os CD, inseridos na ESF, quanto ao perfil sociodemográfico e profissional;

3.1.2 Descrever o conhecimento e as práticas de profissionais CD quanto aos aspectos legais e práticos da notificação de violência;

3.1.3 Identificar possíveis diferenças, entre variáveis dependentes e variáveis independentes, em questões relativas aos conhecimentos e às práticas de profissionais CD quanto aos aspectos legais e práticos da notificação de violência.

4 JUSTIFICATIVA

A APS deve ser a porta de entrada dos usuários, e os profissionais desta devem ser capazes de percorrer os fluxos, assim como o diagnóstico, tratamento e prevenção dos casos de violência. A presente pesquisa se justifica com base no atual cenário, onde a violência representa um problema de saúde pública, com diversas repercussões negativas na vida das vítimas. Por outro lado, não foram identificados trabalhos conduzidos no cenário local, assim como escassos trabalhos publicados no cenário brasileiro, que retratam a atuação do profissional CD da ESF sobre os aspectos práticos e legais da notificação compulsória de violência.

5 METODOLOGIA
5.1 Tipo, local e período da pesquisa

A pesquisa foi um estudo transversal, e os resultados foram avaliados em abordagem quantitativa, através de estatística descritiva. A coleta de dados foi realizada em setembro de 2023, no município de Campo Grande, estado de Mato Grosso do Sul (MS), situado na região Centro-Oeste.

Para otimizar a organização e planejamento da Secretaria Municipal de Saúde, o território de Campo Grande é dividido em sete distritos sanitários, sendo eles: Região Prosa, Segredo, Anhanduizinho, Imbirussu, Bandeira, Lagoa e Centro. Os CD atuam no nível de APS em Unidades de Saúde da Família (USF).

5.2 Participantes

Do universo de 158 profissionais CD da ESF, que prestaram assistência em 62 USF, independentemente do tipo vínculo empregatício, todos foram convidados a participar da pesquisa.

5.3 Critérios de inclusão/exclusão

Foram considerados critérios de inclusão: profissionais de ambos os sexos, que desenvolveram práticas na ESF. Não participaram dessa pesquisa os profissionais que não completaram o preenchimento do questionário.

5.4 Procedimentos de coleta de dados e instrumentos de pesquisa

A coleta de dados foi realizada com a utilização de um instrumento autoaplicável previamente elaborado, exclusivamente para esta pesquisa. Na presente pesquisa, os participantes responderam a um questionário eletrônico do tipo estruturado, criado a partir do Google Forms, contendo 27 questões (APÊNDICE A).

O questionário, adaptado ao de Fernandes et al. (2018), foi composto por 07 perguntas sobre o perfil sociodemográfico do participante, e 20 perguntas sobre os aspectos legais e práticos da notificação compulsória de violência, ajustando-se aos objetivos desta pesquisa. Para as opções de resposta, empregou-se o modelo da Escala de Likert, assim como múltipla escolha.

O questionário foi organizado em dois eixos: Eixo 1 – perfil sociodemográfico e profissional; Eixo 2 – aspectos legais e práticos da notificação compulsória de violência.

Antes do envio do questionário eletrônico, os participantes manifestaram aceite em participar da pesquisa intitulada “Notificação compulsória de violência: atuação de cirurgiões-dentistas da ESF, em Campo Grande – MS”. Os questionários foram distribuídos e preenchidos eletronicamente (via WhatsApp, e e-mail). O tempo estimado para o preenchimento do questionário foi de aproximadamente 30 minutos.

Os profissionais foram convidados individualmente e em grupos a participar voluntariamente do estudo. Na mensagem eletrônica, estavam elencados: título da pesquisa e instituição; objetivo geral; metodologia, sigilo e confidencialidade, cópia anexada do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE – APÊNDICE B), em formato pdf; finalidade da participação; instruções para o preenchimento do questionário, link de acesso ao instrumento; prazo para preenchimento do questionário (data inicial e data final); agradecimentos/disposição para esclarecimentos e identificação da pesquisadora.

5.5 Organização e análise de dados

A análise estatística dos dados foi realizada pelo uso do programa estatístico IBM SPSS, versão 24.0. A avaliação da associação entre variáveis dependentes e variáveis independentes foi realizada por meio do teste qui-quadrado, empregando nível de significância de 5%. O mesmo teste foi utilizado na avaliação da associação entre diferentes questões respondidas pelos profissionais. Outros resultados deste estudo foram elencados na forma de estatística descritiva (tabelas).

5.6 Aspectos éticos

O estudo foi submetido à Coordenação-Geral de Educação em Saúde da SESAU/PMCG, tendo sido autorizado, conforme o ANEXO 1, e ao Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ/Brasília), via submissão à Plataforma Brasil, sob parecer de nº 6.178.918, conforme ANEXO 2.

6 RESULTADOS

Dos 158 CD convidados a participar da pesquisa, 38,6% (n=61) responderam ao questionário (taxa de resposta). Observou-se predomínio de CD do gênero feminino (80,3%; n=49), especialistas (80,3%; n=49) e com mais de 10 anos de atuação na APS (42,6%; n=26). A distribuição dos participantes de acordo com gênero, idade, etnia, estado civil, vínculo empregatício, formação e tempo de trabalho está descrita na Tabela 1.

Os resultados estão apresentados em frequência relativa (frequência absoluta).

Sobre o conhecimento dos CD referente à notificação compulsória de violência na ESF, a maioria dos participantes, 62,2% (n=38), concordou/concordou totalmente com a assertiva correta “a notificação de violência pode ser imediata ou semanal”. O mesmo foi observado para assertiva correta “a notificação compulsória de casos de doenças e de agravos a saúde é sigilosa”, para a qual 78,7 % (n=48) concordaram/concordaram totalmente.

Para a da assertiva “sei preencher, adequadamente, as fichas de notificação compulsória”, a maioria dos participantes, 54,1% (n=33), discordaram/discordaram totalmente. Para afirmação errônea “caso um evento violento envolva mais de uma vítima, para apenas uma das vítimas deverá ser preenchida uma ficha de notificação individual”, a maioria dos participantes 77,1% (n=47) discordou/discordou totalmente. Idem foi observado para a afirmação errônea “quando ocorrem dois casos distintos de violência com uma mesma vítima envolvendo autores diferentes, deve-se registrar apenas uma ficha de notificação”; a maior parte dos participantes, 86,8% (n=53), discordou/discordou totalmente.

Para a assertiva correta no caso de violência extrafamiliar/comunitária, somente serão objetos de notificação as violências contra crianças, adolescentes, mulheres, pessoas idosas, pessoas com deficiência, indígenas e população LGBTQIA+”, apenas 31,1 % (n=19) concordaram/concordaram totalmente. Os demais resultados da distribuição dos profissionais de acordo com a resposta às questões relativas aos conhecimentos sobre notificação compulsória de violência na ESF estão informados na Tabela 2.

Os resultados estão apresentados em frequência relativa (frequência absoluta).

Em relação à frequência com a qual os CD da APS se deparam com casos de violência, a maioria, 57,4 (n= 35), afirmou ocorrer raramente ou nunca. Em relação à frequência em que esse tema é discutido no ambiente de trabalho, a maioria dos participantes, 65,6% (n=44), relatou ocorrer ocasionalmente/raramente. A maioria dos profissionais, 73.8 % (n= 45), nunca realizou notificação de violência e 60.7% (n=37) não saberiam para onde encaminhar, caso o fizessem.

A maioria dos participantes, 73,8 % (n=45), discordou/discordou totalmente da assertiva “Recebi capacitação sobre notificação de violência, durante a minha formação profissional”. A maior parte, 65,6% (n=40), concordou/concordou totalmente que saberiam identificar os sinais e sintomas da violência. Sobre o acesso à ficha de notificação, a maioria dos participantes, 44,2% (n=27), afirmou que não têm acesso fácil a ficha de notificação na unidade em que atuam.

Quando questionados sobre as barreiras enfrentadas para a realização da notificação, 49.2% (n=30) atribuíram ao treinamento inadequado, 27.8% (n=17) a falta de conhecimento, 6,6% (n=4) a falta de tempo, 3,3% (n=4) ao medo e 3,3% (n=4) a outros fatores, e apenas 6.6% (n=4) responderam que não apresentam barreiras para a notificação compulsória de violência.  Outros resultados de distribuição dos profissionais, de acordo com a resposta às questões relativas às práticas sobre notificação compulsória de violência por CD, na ESF, estão informados na Tabela 3.

De acordo com os participantes, os principais tipos de violência já identificados durante a atuação na APS foram negligência/abandono, 49,2% (n=30), e violência física, 27.9% (n=17). Os principais sinais, respectivamente a cada um desses tipos de violência, já identificados na prática clínica pelos participantes foram: descuido em relação à saúde geral e bucal, para negligência e abandono (68,9%; n=42), e presença de lesões bucais/faciais (ex. hematomas, cortes, queimaduras e fraturas) para violência física (52,5%; n=32). Os demais resultados de distribuição dos profissionais, de acordo com a resposta às questões relativas às práticas sobre notificação compulsória de violência por CD, na ESF, estão informados na Tabela 4.

Ao comparar o tempo de atuação profissional na ESF às respostas relativas às práticas em notificação de violência, por meio do teste qui-quadrado de Pearson, considerando o nível de significância p < 0,05, foi possível observar que os profissionais com mais de 10 anos de atuação relataram se deparar em menor frequência com casos de violência, quando comparados àqueles com menos de 10 anos de atuação (p=0,002). Contudo, houve não diferença significativa entre maior tempo de atuação na ESF à prática de já ter notificado algum caso de violência (p=0,768), ou sobre possuir conhecimento acerca do destino da ficha notificação após o preenchimento (p=737) (Tabela 5).

Ao analisar a relação entre gênero aos conhecimentos sobre notificação de violência, foi possível identificar que as CD demonstraram deter maior conhecimento, uma vez que, proporcionalmente, concordaram mais sobre a assertiva correta sobre prazo de notificação (p<0,001), e discordaram mais da assertiva incorreta sobre a relação entre quantidade de notificações por vítima/número de autores (p=0,028) (Tabela 6).

  Os resultados estão apresentados em frequência relativa (frequência absoluta). Valor de p no teste do qui-quadrado.

  Os resultados estão apresentados em frequência relativa (frequência absoluta). Valor de p no teste do qui-quadrado.

7 DISCUSSÃO

No que se refere ao conhecimento sobre o processo de notificação de violência, a maioria dos profissionais apresentou adequado conhecimento sobre os seguintes construtos: prazo de notificação; sigilo da notificação; relação entre número de vítimas/autores e quantidade de notificações. Contudo, a maioria apresentou conhecimento inadequado sobre notificação de violência extrafamiliar/comunitária, sobre como preencher adequadamente a ficha de notificação e sobre o fluxo de encaminhamento da ficha de notificação, além de, majoritariamente, não possuírem histórico prévio de capacitação sobre violência. Os achados são convergentes a estudos anteriores, que demonstraram que o profissional CD possui conhecimento incipiente, ou moderado, sobre esse tema (BREGULLA; HANISCH; PFLEIDERER, 2022; SALEEM et al., 2021; NASCIMENTO et al., 2023)

A maioria dos CD neste estudo, 65,6% (n=40), relatou ser capaz de identificar sinais e sintomas de violência. No entanto, a maioria desses profissionais, 54,1% (n=33), afirmou não saber preencher adequadamente a ficha de notificação compulsória de casos confirmados ou suspeitos de violência, assim como a maioria, 60,7% (n=37), desconhece o procedimento de encaminhamento da ficha após o preenchimento. Estudos similares também destacaram que a maioria dos CD desconhece os instrumentos de notificação de violência (Fernandes et al.,2018;Garbin et al., 2016; Luna; Ferreira; Vieira, 2010; Luz; Loreto; Barros, 2021; Veloso; Magalhães; Cabral, 2017; BREGULLA; HANISCH; PFLEIDERER, 2022; SALEEM et al., 2021; NASCIMENTO et al., 2023), além de apontarem o desconhecimento sobre a legislação e sobre a relevância, ou o significado da notificação compulsória para fins de vigilância epidemiológica (Luz; Loreto; Barros, 2021; Garbin et al., 2016).

Fernandes et al. (2018) avaliaram o nível de conhecimento dos CD em relação à ficha de notificação de violência interpessoal/autoprovocada, constatando que esses profissionais possuem pouco entendimento acerca dos diversos tipos de violência. O estudo destacou a falta de conhecimento sobre a obrigatoriedade da notificação de casos de violência, assim como sobre o encaminhamento adequado das vítimas. Esses resultados ressaltam a urgência em aprimorar o conhecimento, e aumentar a conscientização desses profissionais, com o objetivo de assegurar uma abordagem mais completa e eficaz no enfrentamento à violência.

Neste estudo, a maioria dos participantes, 73,6% (n=45), também discordou/discordou totalmente sobre já ter realizado notificação de violência. No entanto, é notável que apenas 8,2% (n=5) dos participantes afirmaram nunca terem se deparado com situações de violência em sua prática profissional, o que sugere a existência de subnotificação. Essa suposição é corroborada pelos estudos de Fernandes et al. (2018), Garbin et al. (2016), e Saleem et al., (2021), nos quais a maioria dos CD não efetuou notificações de casos de violência por eles identificadas em suas práticas profissionais.

Nesse sentido, o principal obstáculo na realização de notificações foi a falta de treinamento adequado (49,2%; n=30). Outras barreiras identificadas neste estudo englobam a carência de conhecimento (27,8%; n=17), a escassez de tempo (6,6%; n=4) e, em menor grau, o sentimento de medo (3,2%; n=2). Apenas 6,6% (n=4) dos participantes afirmaram não se deparar com obstáculos ao realizar notificações. Dentre as barreiras para a notificação identificadas na literatura, cita-se a invisibilidade da violência pelo predomínio da prática profissional baseada no modelo biomédico, o medo, a incerteza do diagnóstico, a ausência de conhecimento dos indícios, do significado, dos mecanismos e da obrigatoriedade da notificação, a falta de confiança nos serviços de proteção e a sobrecarga de atribuições (Luz; Loreto; Barros, 2021; Matos et al., 2013;Mendonça et al., 2020).

Também se identificou que a maioria dos profissionais não recebeu capacitação sobre notificação de violência durante a formação profissional (73,8%; n=45), um achado semelhante ao estudo de Luna, Ferreira e Vieira (2010), Fernandes et al., (2018), e Rios et al., (2022). Para Moreira et al. (2014), a participação em treinamento desempenha um papel crucial no conhecimento da ficha de notificação e, consequentemente, na capacidade de notificar casos, podendo resultar no aumento considerável no número de notificações. Esses autores também ressaltam a importância da educação continuada, uma vez que, nos meses subsequentes ao treinamento, observou-se uma redução das notificações.

Neste estudo, o tipo de violência mais identificado pelos participantes na prática profissional foi negligência e/ou o abandono (49,2%; n=30), principalmente por meio do descuido em relação à saúde geral e bucal (68,9%; n=42). Outros sinais incluíram falta de higiene (16,4%; n=10), desnutrição (3,3%; n=2) e falta de condições para frequentar a escola (1,6%; n=1).

O segundo tipo de violência mais frequentemente identificado foi a violência física (27,9%; n=17), principalmente pela presença de lesões bucais/faciais, como hematomas, cortes, queimaduras e fraturas (52,5%; n=32). Outros indícios incluíram lesões dermatológicas em diferentes estágios de cicatrização (11,5%; n=7) e lesões que se assemelhavam a marcas de objetos (4,9%; n=3).

Esses resultados podem ser explicados pelo fato de que a negligência e a violência física, frequentemente, apresentam sinais físicos, em contraste com a violência psicológica e/ou moral, que geralmente se manifesta por meio de alterações comportamentais e emocionais, menos evidentes na prática clínica (Veloso et al. 2017). Além disso, sabe-se que a maioria das lesões resultantes de agressões físicas ocorre nas regiões da cabeça e do pescoço, onde se concentra a área de atuação do CD (Fernandes et al. 2018).

Outra possível explicação para esses achados pode estar relacionada à própria categoria profissional dos participantes. Veloso, Magalhães e Cabral (2017), ao analisarem a identificação e notificação de violência contra crianças e adolescentes por profissionais de saúde, constataram que os médicos foram os que mais relataram a identificação da violência física, os profissionais do serviço social foram os que mais referiram casos de violência sexual, os psicólogos foram os que mais se referiram à violência psicológica, e os CD foram os profissionais que mais identificaram casos de negligência.

A violência psicológica e/ou moral foi o terceiro tipo de violência mais identificado (13,1%; n=8), e foi predominantemente identificada pelo isolamento e pela passividade (34,4%; n=21), mas também por agitação, choro constante (24,6%; n=15), irritação, agressividade (13,1%; n=8), insegurança e comportamento infantil (13,1%; n=8). Uma possível explicação para esse fato é que esse tipo de violência pode ser confundido como uma forma de disciplinar e educar, além de não deixar marcas físicas visíveis que podem passar despercebidas (Veloso; Magalhães; Cabral, 2017)

A violência sexual foi identificada em menor proporção (1,6%; n=1), por meio do medo constante e inexplicável (26,2%; n=16), presença de lesões suspeitas na mucosa (11,6%; n=7), comportamento sexual ou erotização precoce (8,2%; n=5), isolamento, choro ou tristeza constante (8,2%; n=5), bem como irritabilidade e agressividade (1,6%; n=1).

O resultado encontrado difere do apresentado pelo DATASUS entre 2011 e 2021. Dos registros de mais de três milhões de casos de violência, a violência física foi a mais frequentemente notificada, representando 54,4%. Em seguida, estão “violência psicológica” e “negligência/abandono”, ambas com 10,9%, “violência sexual” com 11,2%, sendo “tortura” a menos notificada, com 2,2% (Tonel et al., 2022).Embora esses dados sejam significativos, pode existir uma sub-representação da verdadeira natureza da violência, conforme apontado por Veloso et al. (2017). O estudo desses autores indicou que a violência sexual foi a mais frequentemente notificada, mesmo que os profissionais tenham identificado menos casos, sugerindo uma possível menor tolerância a essa forma de violência por parte desses profissionais.

Adicionalmente, a natureza da violência pode variar significativamente conforme o grupo analisado. Ao examinar a violência contra crianças no Brasil, Nunes e Sales (2016) observaram que a negligência era a forma mais comum, destacando membros da família, especialmente as mães, como os principais perpetradores. O estudo de Silva e Dias (2016) sobre a violência contra idosos revelou uma prevalência da violência psicológica, seguida pela violência física. No contexto da violência contra mulheres, a pesquisa de Tonel et al. (2022) indicou que geralmente ela se inicia com violência psicológica e culmina em violência física, afetando predominantemente mulheres negras, embora seja mais denunciada por mulheres brancas, evidenciando o racismo como um problema social, muitas vezes silenciado.

No presente estudo, foi observado que as CD demonstraram maior conhecimento sobre o prazo para notificação (p<0,001), e sobre a relação entre quantidade de notificações por vítima/número de autores (p=0,028). A correlação identificada no presente estudo pode ser fundamentada no histórico envolvimento ativo das mulheres em iniciativas que promovem a busca pela equidade de gênero, a luta contra a violência, a implementação de políticas de ações afirmativas e o crescimento da conscientização e do entendimento ao longo do tempo, em relação às diversas formas de violações vivenciadas por mulheres (Flores et al., 2017). Portanto, a constatação do maior conhecimento entre as CD reforça a ideia de que os movimentos sociaisde gênero desempenham um papel significativo na transformação da percepção e atitudes em relação à violência, inclusive dentro de profissões específicas, como a Odontologia.

O tempo de atuação não influenciou significativamente em já ter notificado algum caso violência (p=0,768) e no conhecimento sobre o destino da ficha após o preenchimento (p=0,737). Contudo, influenciou na frequência com que os profissionais relataram se deparar com casos de violência, sendo menos frequente para os profissionais com mais de 10 anos em comparação com aqueles com menos de 10 anos de experiência (p=0,002).

A possível explicação identificada em nosso estudo é que profissionais com mais tempo de atuação, geralmente, estão lotados em unidades com melhor perfil sociodemográfico, mais distantes de regiões periféricas, onde os indicadores de saúde consumam ser mais críticos.

8 CONCLUSÃO

A violência representa uma demanda considerável para a prestação de assistência e atenção integral na Atenção Primária à Saúde (APS). A notificação compulsória de casos de violência, realizada pelos CD, membros essenciais da equipe de saúde na APS, é um processo confidencial crucial para a vigilância epidemiológica e a implementação eficaz de medidas de combate e prevenção da violência.

No que diz respeito ao conhecimento sobre notificação de violência, os CD demonstraram compreensão satisfatória sobre: prazo de notificação; sigilo da notificação; relação entre quantidade de notificações por vítima/número de autores. No entanto, uma lacuna crítica foi identificada quanto à identificação dos grupos sujeitos à notificação em casos de violência extrafamiliar/comunitária.

A maioria dos CD afirmou ser capaz de identificar sinais e sintomas de violência. No entanto, uma parcela significativa não se sente apta a preencher adequadamente as fichas de notificação. A falta de treinamento adequado foi apontada como uma das principais barreiras para a notificação, destacando a necessidade de investimentos em capacitação profissional continuada, e a revisão dos currículos acadêmicos.

A prática de notificação entre os CD revelou números preocupantes; uma parcela significativa respondeu nunca ter realizado notificação, indicando a possibilidade de subnotificação, o que sugere a importância de estratégias para incentivar e facilitar a notificação.

Os tipos de violência mais comumente identificados pelos participantes foram negligência/abandono e violência física, sendo os sinais correspondentes relacionados ao descuido com a saúde geral e bucal e a presença de lesões bucais/faciais.

As CD demonstraram maior conhecimento sobre a notificação de casos suspeitos ou confirmados de violência. Além disso, o tempo de atuação influenciou na frequência com que os profissionais relataram se deparar com casos de violência, sendo menos frequente para os CD com mais de 10 anos em comparação com aqueles com menos de 10 anos de experiência. Não foram encontradas diferenças entre o tempo de atuação e o fato de já terem realizado notificação, e sobre o conhecimento para onde encaminhar as fichas de notificação.

 As lacunas identificadas apontam para a necessidade de iniciativas que visem aprimorar o conhecimento, fornecer treinamento adequado e promover uma cultura de notificação efetiva. Essas medidas visam contribuir para a construção de uma rede mais eficaz no enfrentamento da violência. A promoção de um ambiente de trabalho que estimule a discussão sobre violência e que forneça suporte aos profissionais pode contribuir significativamente para uma abordagem mais eficaz na detecção e notificação de casos, promovendo, assim, uma atuação mais proativa na prevenção e enfrentamento da violência.

REFERÊNCIAS

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