WOMAN AND POETRY: REFLECTIONS IN TANELLA BONI’S POETICS
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10070571
Luana Costa de Farias¹
Josilene Pinheiro-Mariz²
RESUMO
Este artigo traz ponderações sobre a produção poética de uma escritora marfinense de língua francesa, Tanella Boni. Também traz considerações sobre o papel da memória, bem como o lugar da ancestralidade no poema intitulado Mémoire de Femme. Em nossas discussões ressaltamos um dos temas mais relevantes na atualidade: a mulher. O papel da mulher escritora africana é destacado neste artigo, uma vez que damos enfoque à produção literária dessa autora que traz temáticas diversas em uma poética, por assim dizer, histórica e social. Nossas ponderações estão baseadas nas pesquisas sobre literatura da própria escritora Boni (2011), mas também em Cazenave (1996), Medouda (2017), dentre outras referências que revelam a importância da mulher na literatura. Desse modo, compreendemos que as discussões trazidas neste artigo sejam pertinentes, de modo que evidencie o valor da poesia produzida fora da França e, principalmente, por uma poeta com grande influência na cena literária e social.
PALAVRAS-CHAVE: Tanella Boni; Poesia marfinense; Mémoire de femme.
ABSTRACT
This article brings considerations about the poetic production of an Ivorian writer of French language, Tanella Boni. It also brings considerations about the role of memory, as well as the place of ancestry in the poem entitled Mémoire de Femme. In our discussions we focus on one of the most relevant topics today: women. The role of the African woman writer is highlighted in this article, since we focus on the literary production of this author who brings diverse themes in a poetic, so to speak, historical and social. Our considerations are based on the research on literature of the writer Boni (2011), but also in Cazenave (1996), Medouda (2017), among other references that reveal the importance of women in literature. Thus, we understand that the discussions brought in this article are relevant, so that it highlights the value of poetry produced outside France and, especially, by a poet with great influence on the literary and social scene.
KEYWORDS: Tanella Boni; Ivorian poetry; Woman’s memory.
1. INTRODUÇÃO
Uma das maiores vozes das letras africanas e marfinenses de língua francesa da contemporaneidade, Suzanne Tanella Boni, nascida em 1954 em Abidjan na Costa do Marfim, vem ganhando espaço e ultrapassando fronteiras através de sua produção literária. Filósofa, professora de formação e escritora, Boni fez seus estudos universitários em Toulouse e doutorado na Universidade Paris 8, lecionou na Universidade de Cocody e atualmente é professora da Universidade Félix Houphouët-Boigny em Abidjan. Autora de diversos romances, antologias poéticas, ensaios e literatura infantil, ela nos convida a refletir sobre muitas questões sociais pertinentes e temáticas atemporais.
Ao lermos suas obras, é possível visualizarmos temas como: a sociedade e o sistema patriarcal que ainda perdura até os dias de hoje; ainda se pode observar na produção literária da autora a presença do plurilinguismo do continente africano e os mais diversos dialetos que enriquecem a cultura marfinense; as tradições familiares, tais como as danças, os cantos e os costumes que são passados de geração em geração. Mas, sobretudo, se vê a luta pela preservação das memórias, sendo transformadas e eternizadas em palavras na sua escrita marcante e lírica. Em uma entrevista concedida à TV5Monde em 2017, Boni afirma: “só a palavra nos serve de passaporte para abrir o caminho”1 (BONI, 2017). Tal citação incita uma reflexão sobre a importância da palavra para revelar ou evidenciar o que está oculto. Ademais, levando-se em consideração a força da palavra, de modo particular no continente africano, pode-se perceber o quanto esse elemento pode ser poderoso, seja na escrita, ou mesmo na oralidade.
Através dessa afirmação, assim como em tantas outras da poeta, observa-se o quanto a literatura faz parte de sua vivência, isto é, o quanto a palavra tem sido importante para sua vida de professora ou de autora, embora ainda encontre muitos percalços nesse caminho ao qual se refere. A palavra tem o poder de dar voz, de salvar, de revelar, de celebrar a vida e isso pode ser observado nos versos de muitos dos seus poemas. Para exemplificar tamanha potência poética, faremos uma leitura do poema intitulado Mémoire de femme, da antologia La où il fait si clair en moi, publicado em 2017, pela Editora Bruno Doucey. A referida antologia ganhou o Prix Théophile de l’Académie Française2 em 2018, reforçando a importância da poética dessa marfinense. Ressalte-se que Boni publicou recentemente outra antologia intitulada Insoutenable frontière, em 2022 também pela Editora Bruno Doucey e ganhou o Prix francophone international du Festival de la poésie de Montréal3, reiterando a força de sua produção poética.
Sendo assim, no presente poema, como em outras obras da poeta, veremos que a mulher é um dos temas mais recorrentes, além de outros como sociedade, família e exílio, nos quais trazem discussões importantes para serem feitas em nossa atualidade. Ao falar sobre o papel que a mulher possui na sociedade contemporânea, Boni cita exemplos de sua terra natal, exemplos estes, vivenciados na pele, como uma forma de mostrar como a mulher, principalmente, a mulher que produz literatura tem muita força, tanto pela sua produção literária, como porta voz daquelas e daqueles que não tem voz.
Na primeira parte, discutimos a respeito das literaturas produzidas por mulheres, oportunizando reflexões sobre a importância da mulher na cena literária, assim como em relação ao valor de seu papel na sociedade em que vive. Na segunda parte, trouxemos a leitura do poema Mémoire de femme, identificando os elementos presentes no texto poético, como também, as ponderações que foram apresentadas através de nossas leituras e outras que foram surgindo no decorrer de nossa análise.
Nossas discussões trazidas neste artigo estão ancoradas nas bases teóricas da referida poeta Boni (2011), ao trazer as questões sobre a mulher inserida na sociedade e as situações enfrentadas por ela, assim como Cazenave (1996), ao abordar a escrita da mulher como uma forma de revelar suas inquietações e Medouda (2017), ao refletir sobre o corpo, algo também trazido na leitura do poema, como um meio de simbolizar a transformação e a força que a mulher possui.
2. SOBRE AS LITERATURAS PRODUZIDAS POR MULHERES
Desde muito tempo, a literatura oral ou escrita faz parte da vida de muitas mulheres e isso pode ser constatado em vários estudos ao longo dos anos como Blondeau e Pinheiro-Mariz (2012), Essex (2016) e Silva (2017). Mas, sobre o que essas mulheres falam ou escrevem? Sobre suas vivências? Sobre experiências dolorosas ou de felicidade? Perpetuam suas memórias e seus gritos não ouvidos? Falar e escrever é um ato de liberdade e de resistência? Essas perguntas surgem e as possíveis respostas evidenciaram que a mulher pode ser proprietária de certo poder em sua voz e mãos, o poder de revelar e de reescrever suas histórias.
Ao escrever, segundo Azami-Tawil (2005), a mulher “se libera dos mitos e assume seu olhar no mundo enquanto autora e testemunha social em contato com a História e o tempo”4 (AZAMI-TAWIL, 2005, p.13). Se libertar dos estereótipos aos quais quase foi ligada, se tornando protagonista de sua própria história é uma luta constante da mulher em qualquer sociedade. Desse modo, compreendemos que a escrita permite que a mulher seja e esteja atuante na sociedade em que vive, testemunhando e registrando a sua realidade, muitas vezes árdua e cheia de percalços pelo caminho, rompendo o lugar de esquecimento e/ou silenciamento ao qual foi historicamente destinada.
Assim, pensando nas literaturas orais como uma forma também de a mulher transmitir seus ensinamentos, compartilhar emoções e conhecimentos, sobretudo quando se pensa na ancestralidade, tradição familiar, observamos como um ato de resistência. Um exemplo disso pode ser visto ao se observar que o papel de matriarca em famílias africanas; pois são, de modo geral, vistas com muito respeito, sendo a matriarca uma autoridade em sua comunidade. Assim, Lihamba e al., (2010) afirmam que:
Essas obras orais também expressam sentimentos individuais e coletivos: são inspiradas nas alegrias e tristezas que acompanham a vida de uma mulher. As mulheres exprimem o seu júbilo, o seu desejo e a sua ternura através do canto, da poesia e da dança; quanto aos seus sentimentos de raiva ou angústia, elas os transmitem em textos de desafio satírico e em lamentações fúnebres. (LIHAMBA et al., 2010, p.57)5
Desse modo, podemos observar que através da literatura oral, a mulher pode igualmente expressar os seus sentimentos mais profundos, sejam de alegria ou de lamentação, a fim de que a comunidade em que ela vive partilhe do mesmo. Ao longo da história, muitas mulheres se encorajaram umas às outras a pensar no seu lugar na comunidade e se ajudaram a usufruírem de seus direitos. Muitas mulheres, embora com medo do futuro, aceitaram o desafio de confrontar o modelo de sociedade que era imposto e resistiram às ameaças constantes.
Por essa ótica, é importante pensarmos como essas mulheres foram alcançando, embora de maneira lenta e praticamente impedida pelos homens, o seu lugar na literatura, utilizando a escrita como uma ferramenta que permite que outras reflitam e questionem sobre as crenças da sociedade e sobre os valores que foram colocados como um modelo pronto, fixo e perfeito a seguir. Do ponto de vista de Tiburi (2021, p. 28): “questionar os ideais nos quais acreditamos, ao contrário do que imaginamos, serve para nos situar no mundo”. Nos fazer questionar sobre aquilo que, muitas vezes, acreditamos que é o molde de caminho correto, pela ótica dos outros, nos liberta, levando-nos, de alguma forma, a sermos transformadas.
Assim, podemos considerar que a literatura produzida por mulheres é um meio de revelar suas indagações, anseios e inquietações sobre tais moldes que a sociedade impõe, instigando reflexões sobre o seu posicionamento na sociedade em que vive. Ao trazer para o centro de suas produções, a palavras, e problematizar sobre tudo aquilo que era considerado inapropriado para a escrita da mulher, observa-se uma atitude de transgressão das regras estabelecidas, ultrapassando, assim, as barreiras impostas por longos anos, abrindo caminho para outras mulheres, para novos olhares sobre si e sobre tudo que é vivenciado por elas. Desse modo, Cazenave (1996) faz uma reflexão:
A escrita das mulheres… caracteriza-se antes de tudo pela criação de histórias de mulheres, através das quais elas se propõem a falar para contar sua história de vida. (…) Quase sempre opera em torno do problema do matrimônio, sendo os temas do corpo, do amor e do casal e seus aspectos mais imediatos. (CAZENAVE, 1996, p. 19)6
O fato de ser mulher e escrever sobre a história das mulheres, como traz Cazenave (1996), nos incita a indagações muito importantes sobre tudo aquilo que foi vivenciado por nós ao longo dos anos, sobretudo em relação ao que nos foi negado. Alguns temas apontados por Cazenave (1996) como o corpo, amor e matrimônio estão bem presentes na literatura e devem ser trazidos à pauta de discussão como um meio de registrar o que pensamos sobre eles. A sensação de apagamento em relação ao domínio do próprio corpo ou o matrimônio, por exemplo, move diversas escritoras ao redor do mundo para contarem e recontarem suas vivências, decisões e vontades. Tais produções literárias encorajam mais mulheres com o passar dos anos.
Ao abordar assuntos que sempre foram colocados como desnecessários, pelos homens, e que fomentam inúmeras discussões, como os que acabamos de citar, veremos o corpo e a pele, temas muito recorrentes na literatura contemporânea. Através de tais temas, a mulher escritora problematiza o poder que ela possui sobre eles e provoca reflexões concernentes ao corpo que resiste, que luta, que enfrenta as situações temerárias da sociedade, dos momentos ameaçadores que surgem e na pele que a protege de todas as formas. Assim, Medouda (2017), assegura:
A pele e o corpo se metamorfoseiam, desviando as mudanças negativas que o sistema circundante tenta provocar nele. E, por meio da poesia, um novo território corporal toma forma, indo além dos confinamentos e feridas infligidas ao sujeito e, por extensão, a toda uma comunidade. (MEDOUDA, 2017, p. 23)7
O corpo e a pele, segundo Medouda (2017) simbolizam o poder de transformação que a mulher possui. O poder de resistir e de permanecer firme diante do sistema violento e invasivo que busca matá-la ou feri-la, provoca reflexões profundas. A forma de resistência pode ser percebida ao olharmos para as mudanças negativas que são trazidas a todo tempo, tentando destruir o corpo da mulher. A poesia, como podemos observar, é trazida como instrumento essencial ao se unir ao corpo da mulher, tomando uma nova forma, um novo agir, ao existir para além das feridas infligidas e do sofrimento vivido. Desse modo, a poesia se torna superior em relação a todo mal que chega, propiciando uma esfera positiva, que fortalece por onde chega.
Ainda sobre o corpo e sobre a pele e como tais feridas são trazidas na poesia, podemos fazer menção a alguns versos de outro poema de Boni intitulado Les mots sont mes armes préférées, da mesma antologia, ao dizer que: “Tua pele como um tronco de árvore / Coberta de mil arranhões / Ainda te protege das tempestades”8, observamos a pele como “o tronco da árvore” representando força e a resistência como uma comparação com a nossa própria pele, repleta de cicatrizes e arranhões de experiências vividas e a “tempestade” faz uma referência às dificuldades que atravessamos.
2.1. Mémoire de femme: poesia e resistência
Diante das considerações tecidas sobre mulher e a poesia, selecionamos para nossa leitura o poema Mémoire de femme, contendo 79 versos distribuídos nas 13 estrofes. Ao nos atentarmos para sua disposição, veremos que Boni utiliza versos livres, não seguindo uma métrica ou uma rima específica, reforçando ainda mais a autenticidade e como a liberdade de escolha se faz presente em sua produção poética. Assim, faremos uma leitura do poema e a observação dos elementos que o compõem os versos aqui expostos.
J’affronte la profondeur des abysses
Quand la cale des bateaux négriers
A disparu de ma vue
Je suis allée au nord au sud
À l’est à l’ouest
Les points cardinaux ont admiré
La légèreté de mes pas
Mais je n’ai pas trouvé mon pays
Où avais-je l’intention de mener ma barque
Maintenant je sais d’où je viens
Ignorant sur quelle mer je voguais
Je n’ai pas bougé de chez moi
Je porte encore ma tête
Et ma mémoire de beaux jours
Ma mémoire de femme
Qui a tout vu tout entendu9
Nota-se que a voz poética que abre as primeiras estrofes traz o pronome sujeito na primeira pessoa do singular “eu” [je], assim como em toda a extensão do poema. Tal pronome faz referência a um “eu” de mulher que sente na própria pele a experiência de estar em um solo que não é a sua terra natal. Logo nos versos iniciais, podemos ver a palavra “abismos”, no plural, nos possibilita diversas interpretações, tais como abismos ocasionado pela distância entre o seu país e a terra onde se encontra, a saudade da vida, dos familiares e amigos, causando uma sensação de falta, abismos que significam a ausência do saber sobre o futuro ou dos abismos das profundezas do mar e seus mistérios, visto que a imagem do mar está bem presente. O segundo verso: “porões dos navios negreiros” nos remete ao contexto de escravização, quando muitos homens e mulheres negros foram arrancados de seus países e tratados como mercadoria. Ao chegar em terra, observa-se uma noção de deslocamento dos pontos como norte, sul, leste e oeste, mas ao mesmo tempo, um andar sem direção. Percebemos que a busca pelo seu país de origem parece incansável, até mesmo pela “admiração” dos pontos cardeais pela rapidez de sua busca não muito bem-sucedida. Já, no último verso da primeira estrofe, o uso da conjunção “mas” retoma a ideia dita anteriormente: procura mas não encontra o seu país, o seu sul.
A segunda estrofe inicia com o advérbio “onde” dando sempre uma noção de lugar ou da falta dele. Tal noção está presente desde o título da antologia até a última estrofe do poema. Embora sem saber para onde ir e sobre qual mar navegava, observa-se uma afirmação no décimo verso “agora eu sei de onde eu venho”, confirmando a sua identidade em solo estrangeiro. Essas ponderações podem ser constatadas nos versos que se seguem como “eu não me mudei de casa” ou seja mesmo fora da minha realidade de vida, ainda tenho a vivência do meu país comigo, ou seja, minha história. No verso “ainda carrego a minha cabeça” é possível observar que ali ela leva suas esperanças e sonhos vivos fazendo parte da jornada. Logo em seguida ao dizer “e minha memória de dias bonitos” enfatiza-se a importância das lembranças guardadas em tal memória que, possivelmente, servem de combustão para os dias vindouros. No penúltimo verso, observa-se que há um destaque ao ser trazida a palavra “mulher”, no verso lido “minha memória de mulher”, relevando a ideia citada anteriormente. A presença feminina é reforçada de maneira grandiosa, pois não é qualquer memória, mas sim de mulher que sente, sofre e suporta diversas situações temerárias. No último verso, a memória que “viu e entendeu tudo” nos possibilita refletir sobre uma memória que apesar dos dissabores da vida e dos momentos que enfrenta pelo simples fato de ser mulher, vê e compreende tudo o que se passa.
J’aborde la dernière rive
La sérénité retrouvée
Aucun étonnement superflu
Rien ne me surprend plus
La vie est un beau royaume d’imprévus
Ici des palmiers séculaires
Là des eucalyptus qui rongent les sols
Et des flamboyants qui rougeoient au loin
Les arbres ne se regardent pas
Même quand ils sont voisins
J’arrive dans une ville pleine de sentinelles
Une ville où la guerre a dénoué les liens10
A figura do mar e as sensações trazidas por ele se fazem presentes nos primeiros versos da estrofe. Ao se aproximar da última margem, é possível interpretarmos que houve tantas outras durante o árduo caminho, tornando-se a chegada. Algumas reflexões são suscitadas a partir do segundo verso, começando pela palavra “serenidade” que é também tranquilidade e calmaria. Tal sentimento é recuperado ou encontrado, levando a perceber que o eu poético parecia ter-se perdido no trajeto. A partir da terceira estrofe, uma esfera de pensamentos firmes e realistas podem ser percebidos de maneira explícita. Ao utilizar as palavras “sem”, “desnecessário” e “nada”, mergulha-se em um contexto de descontentamento que é apresentado. Apesar de tal descontentamento, a “vida”, trazida no último verso, é comparada a um “reino”, mas um reino de imprevistos, ou seja, não linear ou fixo, há altos e baixos com lágrimas e sorrisos.
Nos primeiros versos da quarta estrofe é possível ver que há uma ideia de oposição entre os dêiticos “aqui” e “lá” trazendo a percepção do lugar que está sendo atravessado. As plantas como “palmeiras”, “eucaliptos” e “flamboiãs” propiciam um cenário de natureza, assim como em outros versos ao longo do poema. Indo mais além, podemos refletir um pouco a respeito da escolha da poeta ao utilizar esses elementos que constroem uma imagem de natureza. A palmeira é considerada como uma planta resistente, assim como a personagem, pois mesmo passando pelo contexto de exílio, ela resiste. O eucalipto, por sua vez, é considerado como uma planta que se adapta às mais diversas condições climáticas, ou seja, adaptar-se aos diferentes climas e situações em terra estrangeira. Por fim, o flamboiã, conhecido por criar raízes fortes onde é plantado e possuir flores uma coloração avermelhada que se vê ao longe, nos permite fazer uma alusão mais uma vez à personagem do poema: forte e com uma beleza resplandecente. Nos versos seguintes, ao trazer que “as árvores não se olham” e “mesmo quando são vizinhas”, nos favorece uma interpretação de um lugar temeroso, até mesmo hostil, onde não se pode mover ou dar um passo sequer, pois há vigilantes, há quem provoque o mal. Nos últimos versos, nossa interpretação se confirma, pois ao dizer “eu chego em uma cidade cheia de sentinelas”, reiterando o que havíamos citado anteriormente, sentinelas que vigiam e guardam o local, monitorando os passos de seus prisioneiros e exilados. A guerra, elemento que carrega um sentido forte no poema “desfez os laços”, assim como em todo o lugar que houve ou que há a guerra, destrói os laços familiares e as relações sociais ali existentes.
Me voici à la porte du jour le plus long
Là où il fait si clair en moi
Ma raison refuse l’évidente clarté séculaire
Qui sépare l’humanité en portions inégales
L’humanité si divisée si malmenée
Et transparente
Comme celle dont j’ai hérité
Par la faute de ma peau invisible
À force d’être visible
Cette peau qui m’a tout donné
Cette peau dont je suis si fière
Ma peau de femme qui n’en fait
Qu’à sa tête
Une tête qui n’est qu’une infime partie de moi11
A quinta estrofe se inicia trazendo “aqui estou” dando, mais uma vez, um sentido de localidade, embora a noção de lugar seja sempre um desafio para aquele que está em contexto de exílio. Ao lermos “na porta do dia mais longo” nos permite refletir sobre o uso do advérbio “mais” fazendo referência às situações difíceis vivenciadas por ela e que dessa vez não seria diferente. É possível observar novamente o uso dos dêiticos “aqui” e “lá”, bem como a introdução do título da antologia contendo as palavras como “claro” e “dentro de mim”, oportunizando um olhar mais introspectivo. O “claro” traz uma sensação de “claridade”, “pureza” em olhar para si mesma. No verso seguinte, podemos observar um posicionamento crítico diante do preconceito e da desigualdade causados pela cor da pele. Ao dizer que tal claridade secular “separa a humanidade em porções desiguais” nos faz refletir como a discriminação ainda é algo gritante e visível entre as pessoas. A palavra “humanidade” aparece mais uma vez, enfatizando ela ser “tão dividida”, “tão maltratada” e “transparente”. A palavra “transparente” mostra que a cor da pele fica evidente, não sendo possível escondê-la na sociedade. No próximo verso, ao dizer que “pela culpa da minha pele invisível”, ou seja, ao tom da pele a torna sem visibilidade, sem oportunidade, sem vez, e no outro verso,“à força de ser visível”, nos mostra que o fato dessas pessoas terem tal cor de pele, são vistas, sendo então, colocadas à margem. Apesar das circunstâncias em relação à pele, é possível observar uma exaltação nos versos seguintes que dizem “esta pele que me deu tudo”, demonstrando o quão preciosa a pele é, e “esta pele que sou tão orgulhosa”, ressaltando o orgulho que tem em possuí-la. No verso seguinte, há um destaque ao dizer “minha pele de mulher que faz o que quer”, principalmente ao trazer essa liberdade para a mulher em relação às decisões que toma ou que queira tomar. No último verso, ao dizer que a cabeça é “apenas uma pequena parte de mim”, nos permite interpretar que a mulher é um universo e que a cabeça, tem a sua importância, mas é uma parte do corpo que sente, vive e pulsa diariamente.
J’ai mis la question sous l’éteignoir
Et ma raison a caché la moitié de la vérité
Que thésaurisait mon expérience de femme
J’ai pensé que j’étais humaine
Vision d’un rêve si doux
Envolé au premier coup de vent
Je me réveille à midi
Brûlée de part en part
Par le soleil ardent
Parmi mes congénères
Qui n’ont pas le choix
Et toutes les matraques
Qui fabriquent l’humanité
Si inégale
Jamais la même
L’humanité si différente
De l’idée fleurie
Que protège la raison12
Os primeiros versos iniciam com os léxicos como “questão”, “razão” e “verdade” que trazem ponderação sobre si no decorrer das estrofes. Ao dizer “minha experiência de mulher” observamos que é retomada a ideia da mulher no poema, bem como a soma das experiências vivenciadas por ela até o momento, seja em contexto de exílio seja em sua vida antes de sair de seu país. O quarto verso da oitava estrofe inicia com uma reflexão sobre si mesma “eu pensei que eu fosse humana”, pois ao ser tratada de maneira desumana, é provocado tal indagação pela personagem sobre humanidade e sobre a sua própria condição de humana naquele momento. No verso que segue, o “sonho”, termo que aparece inúmeras vezes nas produções poéticas de Boni, é tido, nesse caso, como um devaneio ou algo distante que se foi com o vento. Ao relatar o que se passa em situação de exílio, é possível visualizar o cenário triste e revoltante que nos é apresentado. Nos primeiros versos da nona estrofe, ao lermos “eu me levanto ao meio-dia / queimada de parte em parte / pelo sol ardente”, identificamos, de fato, um tratamento desumano, vivenciado juntamente com aqueles que ela chama de “congêneres” que “não tem escolha”, isso reforça ainda mais a ideia de que não existem opções para aqueles que estão exilados ou vigiados por sentinelas, assim como dito na quarta estrofe do poema. Os elementos materiais (cassetetes) ou pessoas (sentinelas) que barram ou fazem obstáculos aparecem de maneira forte e significativa na estrofe. Nos últimos versos é possível observar um misto de crítica e revolta ao dizer que “todos os cassetetes / que fabricam a humanidade / tão desigual”, uns batem por ter o “poder” na mãos ou acharem que o tem e outros que apanham, por não possuírem o mesmo poder, cor, classe ou condição social. A palavra “humanidade” aparece mais uma vez na estrofe de maneira forte, evidenciando a percepção de que uma humanidade “florida” é apenas no imaginário.
Ai-je envie de faire partie de ce monde
Ai-je envie de dormir à poings fermés
Ai-je envie de continuer à vivre
L’âme tranquille le coeur serein
Le ver est dans le fruit
Depuis toujours
La vérité de l’humanité est ailleurs
Ici même
Inscrite sur la peau de couleur
Comme si la vie ne possédait
Qu’une seule couleur
Dans un monde si divers
La pigmentation de la peau
Échappe aux cloisons
De votre entendement
C’est dans la tête que ça se passe
La menace
Comme un flamboyant en fleurs
S’épanouit à l’ombre de l’esprit.13
A décima estrofe inicia com afirmações positivas, apesar de tal contexto de exílio que vimos até o presente momento. Ao repetir a frase “eu tenho vontade de” nos três primeiros versos, é possível notarmos um questionamento como um tipo de monólogo que traz uma reflexão mais introspectiva por parte da personagem. Ao dizer “eu tenho vontade de fazer parte deste mundo”, fica subentendido que se faz necessário a presença dela neste mundo, pois embora a ruindade ainda exista na humanidade, ainda é possível enxergar a beleza que a vida pode nos proporcionar. No segundo verso, ao lermos “eu tenho vontade de dormir com os punhos cerrados” nos remete à imagem dos punhos cerrados, símbolo de solidariedade e de apoio às causas sociais. No terceiro verso, ao dizer “eu tenho vontade continuar a viver”, reafirma a ideia de querer estar viva e existir no mundo. O último verso da estrofe vem de maneira mais leve, conduzindo para o final da estrofe como uma canção doce: “alma tranquila o coração sereno”, ao utilizar elementos que transmitem uma sensação de paz e desejo de tranquilidade. A primeira palavra que inicia a estrofe, é como uma metáfora, ao dizer que “o verme está na fruta / desde sempre” fazendo uma comparação com a maldade que existiu e ainda existe na sociedade e que precisa ser combatido. Ao falar sobre “a verdade da humanidade” que está “em outro lugar / mesmo aqui / registrada na pele de cor”, levanta novamente a problemática da cor da pele, enfatizando que existem muitas cores de pele e que elas estão por toda parte do mundo, não apenas uma única cor como pensam. No verso que segue, vemos “em um mundo tão diverso” destacando a diversidade de povos, de raças, de cores, de culturas que existem. Ao dizer que “a pigmentação da pele / escapa às paredes / de vosso entendimento”, suscita uma provocação àqueles que julgam as pessoas pela cor de pele que elas possuem, classificando como muros ou algo fechado a compreensão dessas pessoas. Nos últimos versos, ela faz uma comparação da ameaça do mal com um flamboiã em flor, pois assim como o flamboiã floresce dando sombra, o ódio cresce com pensamentos ruins em nossa mente.
Ao fazermos uma breve leitura do referido poema de Boni, compreendemos que muitas questões sociais, principalmente sobre o exílio, são apontadas de maneira expressiva pela poeta. Boni de forma brilhante, apresenta uma mulher protagonista, assim como em outras obras, como peça fundamental de sua produção literária, desenhando para nós leitores, uma mulher forte que luta e resiste às situações de conflito e ao tempo. Ao passar por diversas situações que a fazem questionar sobre a sua própria existência no mundo, a personagem traz indagações que nos fazem refletir sobre a humanidade e sobre os tratamentos desumanos que ainda existem na sociedade. A cor da pele também é retratada de modo belíssimo pela poeta, nos mostrando que ainda existe um preconceito muito enraizado e que devemos lutar contra ele. Ao lermos cada verso do poema, somos convidados para refletir sobre muitas questões sociais e culturais importantes vivenciadas ainda hoje. Assim, uma poética totalmente imagética é apresentada em cada verso escrito por Boni, oportunizando um poema rico em imagens e detalhes, nos permitindo sentir para além da leitura dos versos.
3. CONCLUSÃO
Em virtude do que apresentamos neste artigo, compreendemos a tamanha importância que as literaturas produzidas por mulheres possuem, tanto na cena literária ao destacar a diversidade de literaturas existentes nos mais diversos espaços de língua francesa, bem como as inúmeras contribuições para os estudos no campo acadêmico como o desenvolvimento de pesquisas e artigos como este. Dito isso, reforçamos que tais literaturas oportunizam uma ampliação de horizontes para aqueles que ainda não as conhecem, resultando em uma extensão dos saberes concernentes à literatura.
Assim, constatamos que através da leitura do poema, vemos que Boni levanta discussões essenciais a serem tratadas em nossa sociedade. Ao abordar tais temas como questões políticas e sociais, Boni nos convida a refletir sobre o nosso lugar na sociedade e pensar sobre a importância do papel que executamos nela, principalmente ao partilharmos diversas situações que são vivenciadas por nós mulheres. Podemos visualizar de modo sensível as imagens que nos são apresentadas nos versos, assim como o sentir das emoções que são vivenciadas pela personagem, ora de esperança ora de angústia. Além de tais sensações que nos são permitidas, Boni nos permite visualizar uma centelha para refletirmos sobre a nossa atuação como seres humanos.
Em vias de conclusão, ressaltamos que tal poesia é um exemplo para fortalecer e revelar a literatura marfinense de língua francesa produzida por uma mulher, assim como enaltecer a força que ela possui. Vale frisarmos que ao escrever sobre as suas vivências e publicar para o mundo, Boni nos revela que também enfrenta diversos desafios a todo momento pelo fato de ser mulher, ativista, professora, poeta… Nos permitindo fazer pensar sobre a nossa realidade brasileira, ao pensarmos como mulheres atuantes na sociedade em que vivemos, nos mostrando como é importante pensarmos sobre a nossa história ontem, hoje e no futuro.
REFERÊNCIAS
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1 Seul le mot nous sert de passeport pour ouvrir le chemin (BONI, 2017).
2 Prêmio Teófilo da Academia Francesa
3 Prêmio internacional do Festival da poesia de Montreal
4 En prenant la plume, la femme se libère des mythes et assume son regard sur le monde en tant qu’acteur et témoin social en prise avec l’Histoire et le temps. (AZAMI-TAWIL, 2005, p.13)
5 Ces œuvres orales expriment aussi les sentiments individuels et collectifs: elles s’inspirent des joies et des peines qui accompagnent la vie d’une femme. Les femmes expriment leur jubilation, leur désir et leur tendresse par le chant, la poésie et la danse; quant à leur sentiment de colère ou d’angoisse, elles les font passer dans des textes de défiance satirique et dans les lamentations funèbres. (LIHAMBA et al., 2010, p.57)
6 L’écriture des femmes… se caractérise d’abord par la création d’histoires de femmes, à travers lesquelles celles-ci se proposent de prendre la parole pour raconter leur vie. (…) Elle opère presque toujours autour du problème de la matrimonialité, les sujets du corps, la de l’amour et du couple étant ses aspects les plus immédiats (CAZENAVE, 1996, p. 19)
7 La peau et le corps se métamorphosent, détournant les modifications négatives que le système alentour tente de provoquer en lui. Et, par la poésie, un nouveau territoire corporel prend forme, dépassant les enfermements et blessures infligées au sujet et, par extension, à toute une communauté. (MEDOUDA, 2017, p. 23)
8 Ta peau comme un tronc d’arbre / Couvert de mille éraflures / Te protège encore des intempéries.
9 Eu enfrento a profundidade dos abismos / Quando o porão dos navios negreiros / Desapareceu da minha vista / Eu fui de norte a sul / Leste a oeste / Os pontos cardeais admirados / A leveza dos meus passos / Mas não consegui encontrar meu país / Onde eu pretendia levar meu barco / Agora eu sei de onde eu venho / Sem saber em que mar eu estava navegando / Eu não me mudei de casa / Eu ainda carrego minha cabeça / E minha memória de dias bonitos / Minha memória de mulher / Que viu e entendeu tudo.
10 Eu me aproximo da última margem / A serenidade recuperada / Sem surpresa desnecessária / Nada mais me surpreende / A vida é um belo reino de imprevistos / Aqui palmeiras seculares / Lá eucaliptos que roem o chão / Flamboiãs que brilhavam ao longe / As árvores não se olham / Mesmo quando são vizinhas / Eu chego em uma cidade cheia de sentinelas / Uma cidade onde a guerra desfez os laços.
11 Aqui estou na porta do dia mais longo / Onde está tão claro em mim / Minha razão recusa a óbvia clareza secular / Que separa a humanidade em porções desiguais / A humanidade tão dividida tão maltratada / E transparente / Como aquela que eu herdei / Por culpa da minha pele invisível / À força de ser visível / Esta pele que me deu tudo / Esta pele da qual sou tão orgulhosa / Minha pele de mulher a fazer / O que quer / Uma cabeça que é apenas uma pequena parte de mim.
12 Eu coloquei a questão sob o fogo / E minha razão escondeu metade da verdade / Que acomulava a minha experiência de mulher / Eu pensei que eu fosse humana / Visão de um sonho tão doce / Voou na primeira rajada de vento / Eu acordo ao meio-dia / Queimada de parte em parte / Pelo sol ardente / Entre meus congêneres / Que não têm escolha / E todos os cassetetes / Que fabricam a humanidade / Tão desigual / Nunca a mesma / Humanidade tão diferente / De ideia florida / Que protege a razão.
13 Eu tenho vontade de fazer parte deste mundo / Eu tenho vontade de dormir com os punhos fechados / Eu tenho vontade de continuar a viver / A alma tranquila o coração sereno / O verme está na fruta / Desde sempre / A verdade da humanidade está em outro lugar / Mesmo aqui / Registrado sobre a pele de cor / Como se a vida não possuísse / Apenas uma cor / Em um mundo tão diverso / A pigmentação da pele / Escapa às paredes / De sua compreensão / É na cabeça que acontece / A ameaça / Como um flamboiã em flor / Floresce na sombra da mente.
1 Mestranda em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: lucfarias91@gmail.com.
2 Doutora em Letras – Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês pela Universidade de São Paulo e professora do PPGLE/UFCG. E-mail: jsmariz22@hotmail.com.