MUCORMICOSE RINO-ÓRBITO-CEREBRAL EM PACIENTE CRÍTICO: RELATO DE CASO E REVISÃO DE LITERATURA

RHINO-ORBITO-CEREBRAL MUCORMYCOSIS IN A CRITICAL PATIENT: CASE REPORT AND LITERATURE REVIEW

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202501162113


Déborah Gomes Bellei1; Geovane Souza Pereira1; Giovanna Lamarão Lima1; Jamilly Rebouças Demosthenes Marques1; Ketllyn de Oliveira Cruz2; Soraya Souto da Silva2; Wilson de Oliveira Filho3


RESUMO 

A mucormicose é uma infecção fúngica rara e de elevada mortalidade. Afeta principalmente pacientes imunocomprometidos ou aqueles com graves condições clínicas subjacentes. Os gêneros causadores da maioria das mucormicoses são Rhizopus, Mucor e Lichtheimia, que são comuns no meio ambiente e crescem rapidamente. Todos os humanos têm ampla exposição a eles durante as atividades diárias. O presente relato descreve um caso de mucormicose de apresentação rinoórbito-cerebral. Paciente do sexo feminino, 48 anos, com diagnóstico de diabetes mellitus, hipertensão, obesidade e uropatia obstrutiva, evoluiu com choque séptico refratário de foco urinário, cetoacidose diabética e insuficiência renal dialítica. Observada após uma semana de internação, presença de placa violácea, bem delimitada, em região nasal, com 2 cm de extensão, que progrediu rapidamente para placa necrótica extensa, com característica isquêmica vascular, acometendo região nasal, fronte, maxilares e lábio superior, além de infiltração para região orbital bilateral, com aspecto algodonoso. Apesar da suspeição clínica precoce, diagnóstico oportuno e instituição do tratamento antifúngico adequado, a evolução foi desfavorável, com óbito cerca de uma semana após o surgimento da lesão, refletindo a gravidade da mucormicose. 

Palavras-chave: Infecções oportunistas. Mucormicose. Cuidados Críticos. 

ABSTRACT

Mucormycosis is a rare fungal infection with high mortality. It mainly affects immunocompromised patients or those with severe underlying clinical conditions. The genera responsible for most mucormycosis cases are Rhizopus spp., Mucor spp., and Lichtheimia spp., which are commonly found in the environment and grow rapidly. Humans are extensively exposed to them during daily activities. This case report describes a presentation of rhino-orbito-cerebral mucormycosis. A 48-year-old female patient, diagnosed with diabetes mellitus, hypertension, obesity, and obstructive uropathy, progressed to refractory septic shock of urinary origin, diabetic ketoacidosis, and dialysis-dependent renal failure. After one week of hospitalization, a well-defined violaceous plaque measuring 2 cm was observed in the nasal region, which rapidly progressed to an extensive necrotic plaque with vascular ischemic characteristics. It affected the nasal region, forehead, maxillae, and upper lip, as well as infiltrated the bilateral orbital region with a cotton-like appearance. Despite early clinical suspicion, timely diagnosis, and the initiation of appropriate antifungal treatment, the outcome was unfavorable, with death occurring approximately one week after the lesion’s onset, reflecting the severity of mucormycosis.

Keywords: Opportunistic infections. Mucormycosis. Critical care.

INTRODUÇÃO 

A mucormicose trata-se de uma infecção fúngica rara que se manifesta particularmente em pacientes imunocomprometidos. A apresentação rino-órbitocerebral e pulmonar são as mais comuns causadas por esses fungos (Kauffman, 2007). Os gêneros da ordem Mucorales são responsáveis pela maioria das infecções humanas e por serem comuns no meio ambiente, todos os humanos têm ampla exposição a esses fungos durante as atividades do dia-a-dia (Roden, 2005). 

A grande maioria dos pacientes têm alguma doença subjacente que predispõe à infecção e influencia a apresentação clínica, sendo a hiperglicemia, geralmente com uma acidose metabólica associada, a condição mais comum (Rajagopalan, 2005).

A mucormicose rino-órbito-cerebral é a apresentação clínica mais comum, que se inicia com a inalação de esporos nos seios paranasais de um hospedeiro suscetível. Uma lesão negra, que resulta da necrose dos tecidos após a invasão vascular pelo fungo, pode ser visível na mucosa nasal, palato ou pálpebras. Região orbital também é acometida, apresentando sinais que incluem edema periorbital, proptose e cegueira (Yohai, 1994).

O presente estudo tem o objetivo de descrever um caso de mucormicose rino-órbitocerebral revisar os aspectos clínicos, diagnósticos e tratamentos disponíveis na literatura sobre a patologia. 

CASO CLÍNICO

Trata-se de uma paciente de 48 anos, do sexo feminino, com história prévia de uropatia obstrutiva, em uso de cateter duplo J (CDJ) há cerca de 1 ano, o qual evoluiu com calcificação, resultando em um quadro de pielonefrite. A paciente apresentava como antecedentes diabetes mellitus tipo 2, hipertensão arterial sistêmica e obesidade, além de estar em investigação para uma doença hematológica não especificada.  

Admitida na unidade de terapia intensiva, após substituição de CDJ, sedada, intubada, em uso de noradrenalina na dose de 0,6 mcg/kg/min. Posteriormente evoluiu com quadro de choque séptico refratário de foco urinário com doses progressivas de vasopressores, além de cetoacidose diabética e insuficiência renal dialítica.

Após uma semana de internação, foi observada presença de placa violácea, bem delimitada, em região nasal, com 2 cm de extensão, que progrediu rapidamente, em poucos dias, para placa necrótica extensa, com característica isquêmica vascular, acometendo região nasal, fronte, maxilares e lábio superior, além de infiltração para região orbital bilateral, com aspecto algodonoso. Ao exame direto e cultura com pesquisa de fungos, foi evidenciada presença de hifas hialinas e cenocíticas, compatível com Rhizopus spp

Instituiu-se a terapia precoce com Anfotericina B e foi solicitada avaliação do serviço de cirurgia para determinar a necessidade de desbridamento cirúrgico. Durante a internação, o paciente apresentou crises convulsivas tônico-clônicas generalizadas, indicando provável acometimento cerebral, confirmado por tomografia computadorizada (TC), embora o laudo do exame não estivesse disponível. Apesar das intervenções clínicas precoces e da instituição do tratamento adequado, houve deterioração progressiva, culminando em falência múltipla de órgãos e óbito cerca de uma semana após o surgimento da lesão.

DISCUSSÃO E REVISÃO DE LITERATURA

A mucormicose é uma infecção fúngica oportunista, altamente invasiva e não transmissível. Foi descrita pela primeira vez pelo patologista alemão Richard Paultauf, em 1885 e sua incidência é difícil de estimar, pois não é uma doença de notificação compulsória e o risco varia muito em diferentes populações (Kauffman, 2007). É causada por fungos da ordem Mucorales, dos gêneros Rhizopus spp., Rhizomucor spp. e Cunninghamella spp. Esses organismos são onipresentes na natureza e podem ser encontrados em vegetação em decomposição e no solo, crescem rapidamente e liberam grandes números de esporos que podem se tornar aerotransportados (Roden, 2005).  

As formas rino-órbito-cerebral e pulmonar são as apresentações clínicas mais comuns, são adquiridas pela inalação de esporos. Em indivíduos saudáveis, os cílios transportam esses esporos para a faringe e eles são eliminados pelo trato gastrointestinal (Ferguson, 2000). 

O fato da mucormicose ser uma infecção humana rara demonstra a eficácia do sistema imunológico humano. Quase todos os pacientes com mucormicose invasiva têm alguma doença subjacente que predispõe à infecção e influencia a apresentação clínica. Uma revisão de 929 casos de mucormicose que foram relatados entre 1940 e 2003 observou que a diabetes mellitus, seguida por malignidades hematológicas e transplante de órgãos sólidos ou células hematopoiéticas, estavam entre os fatores de risco mais comuns (Roden, 2005).

Por serem fungos angioinvasivos a necrose tecidual é uma característica comum, assim como a destruição do palato e dos cornetos, inchaço perinasal, eritema e cianose da pele facial sobreposta aos seios envolvidos e à órbita (Shields, 2016). Uma revisão com mais de 208 casos de mucormicose rino-órbito-cerebral, coletados entre 1970 e 1993 encontrou os principais sinais e sintomas: febre, ulceração nasal ou necrose, edema periorbital ou facial, diminuição da visão, oftalmoplegia, sinusite e cefaleia (Yohai, 1994).

A disseminação hematogênica para outros órgãos é rara, a menos que o paciente tenha uma malignidade hematológica subjacente com neutropenia (Petrikkos, 2005).

O diagnóstico de mucormicose depende da identificação de organismos no tecido por histopatologia e confirmação através de cultura. No entanto, na maior parte dos casos, a cultura é negativa, sendo necessário interpretar o resultado de acordo com o quadro clínico do paciente e suas doenças subjacentes. Importante ressaltar que a ausência de hifas não deve contraindicar o tratamento quando o quadro clínico é altamente sugestivo (Walsh, 2012).  

Exames complementares podem ser solicitados para avaliar o envolvimento de estruturas contíguas, como os olhos e o cérebro. A tomografia computadorizada (TC) é o exame inicial solicitado, pois muitas vezes pode ser obtida rapidamente e é mais sensível do que a ressonância magnética (RM) para detectar erosões ósseas (Aribandi, 2007).

Além de tratar os fatores predisponentes, o tratamento da mucormicose envolve tanto o desbridamento cirúrgico dos tecidos envolvidos quanto a terapia antifúngica (Cornely, 2019). A anfotericina B intravenosa é o medicamento de escolha para a terapia inicial e seu início precoce melhora o resultado da infecção, sendo que a terapia tardia (≥ 6 dias após o diagnóstico) está relacionado com aumento da mortalidade em quase 50%. O fato também se aplica ao desbridamento cirúrgico, o qual deve ser considerado assim que o diagnóstico de qualquer forma da doença for suspeita (Chamilos, 2008).

A terapia deve continuar até a melhora clínica, assim como ausência de progressão da doença através de sinais radiográficos; a terapia também deve continuar até que a reversão da imunossupressão associada tenha sido alcançada, quando viável (Kontoyiannis, 2011). Não há ensaios randomizados avaliando a eficácia de regimes antifúngico para mucormicose, uma vez que a doença é rara.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Apesar do diagnóstico e da terapia precoce, o prognóstico da mucormicose é reservado, especialmente em pacientes com envolvimento cerebral, em que a mortalidade pode alcançar 60%. Diante disso, é fundamental enfatizar a importância do controle das patologias de base, como forma de prevenir complicações possíveis. Ademais, o diagnóstico tardio é um dos principais fatores associados a desfechos desfavoráveis. Assim, uma vez confirmado o diagnóstico ou na presença de um caso com alto índice de suspeição, o tratamento com Anfotericina B endovenosa, aliado ao desbridamento cirúrgico, deve ser iniciado prontamente, com o objetivo de minimizar possíveis sequelas.

FIGURA

Figura 1: Imagem referente à evolução da lesão em 06 dias consecutivos. Acervo pessoal.

REFERÊNCIAS

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1Médico Residente do programa de Medicina Intensiva do Hospital Universitário Getúlio Vargas da Universidade Federal do Amazonas. Manaus-Amazonas, Brasil. 

2Médica Intensivista coordenadora da unidade de terapia intensiva do Hospital e Pronto Socorro 28 de Agosto. Manaus-Amazonas, Brasil. 

3Médico Intensivista supervisor do programa de Medicina Intensiva do Hospital Universitário Getúlio Vargas da Universidade Federal do Amazonas. Manaus-Amazonas, Brasil.