MOLDURAS NARRATIVAS NO CONTO O RETRATO OVALADO, DE EDGAR ALLAN POE

NARRATIVE FRAMING IN THE SHORT STORY THE OVAL PORTRAIT, BY EDGAR ALLAN POE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202503171324


Anderson Ricardo Nunes da Silva¹


RESUMO

Este artigo analisa o uso das molduras narrativas no conto O Retrato Ovalado, de Edgar Allan Poe, com o objetivo de compreender como essa técnica contribui para a construção da atmosfera e imersão do leitor. A moldura narrativa, um recurso recorrente na literatura gótica, permite a sobreposição de diferentes camadas de narração, influenciando a interpretação dos eventos e a experiência sensorial do leitor. O estudo fundamenta-se em uma abordagem qualitativa e analítica, ao utilizar referenciais teóricos de Genette (2017), Uspênski (2010) e Bal (2009) para examinar a estrutura narrativa do conto. Os resultados obtidos demonstram que a moldura narrativa em O Retrato Ovalado intensifica o efeito de mistério e tensão, reforçando a dualidade entre arte e vida. A justaposição das duas histórias – a do viajante e a do pintor – cria um efeito de duplicação temática que amplia a complexidade do enredo. Além disso, a estrutura em camadas desafia a confiabilidade do narrador, convidando o leitor a transitar entre diferentes níveis da ficção, ampliando, assim, sua imersão. A análise evidencia que Poe emprega a moldura narrativa como um artifício estético que não apenas estrutura o conto, mas também reforça seus temas centrais, como a obsessão artística e suas consequências trágicas. Dessa forma, este estudo contribui para a compreensão acerca das estratégias narrativas de Poe e sua importância no âmbito da literatura gótica.

Palavras-chave: Molduras; narrativa; conto; O retrato ovalado.

ABSTRACT

This article analyses the use of narrative framing in the short story The Oval Portrait by Edgar Allan Poe, aiming to understand how this technique contributes to the construction of atmosphere and reader immersion. Narrative framing, a recurring device in Gothic literature, allows for the superimposition of different layers of narration, influencing the interpretation of events and the reader’s sensory experience. This research follows a qualitative and analytical approach, using theoretical references from Genette (2017), Uspensky (2010), and Bal (2009) to examine the story’s narrative structure. The results show that the narrative framing in The Oval Portrait intensifies the effect of mystery and tension, reinforcing the duality between art and life. The juxtaposition of the two stories — that of the traveler and the painter — creates a thematic duplication effect that enhances the complexity of the plot. Furthermore, the layered structure challenges the reliability of the narrator and invites the reader to transition between different levels of fiction, increasing immersion. The analysis highlights that Poe employs narrative framing as an aesthetic device that not only structures the story but also reinforces its central themes, such as artistic obsession and its tragic consequences. Thus, this study contributes to understanding Poe’s narrative strategies and his significance within Gothic literature.

Keywords: Framing; narrative; short story; The Oval Portrait.

1. Introdução

Edgar Allan Poe é exímio quanto ao uso de determinados procedimentos estéticos que atravessam sua obra. Além de contista, poeta e crítico, outorgou ao futuro uma contribuição artística inquietante que continua a inspirar novos autores, além de ter versado a respeito de sua criação poética em Filosofia da Composição (Poe, 2011). Esse estreito caminho que separa o poeta do crítico, o contista do ensaísta, aguça instintivamente uma escrita concebida por uma mente racionalista, cujo controle da verve é substancial à criação.

Matemático das letras, Poe ilumina e confunde por meio de seus contos repletos de adjetivos pungentes e atmosfera soturna como ele tão bem soube criar. Ligeia, Pequena palestra com uma múmia, A carta roubada, O gato preto, O sistema do doutor Alcatrão e do professor Pena, O barril de Amontillado, O poço e o pêndulo, A máscara da morte rubra, Berenice, Sombra – uma parábola, O diabo no campanário, A queda da casa de Usher, O caixão quadrangular, O escaravelho de ouro, O coração delator, William Wilson, O retrato ovalado e O homem da multidão² figuram dentre os contos mais conhecidos do autor.

Faz parte de um procedimento bastante recorrente em sua obra a criação de atmosferas noturnas, lugares lúgubres, ambientes fechados, indicando, deste modo, uma opressão sobre seus personagens imersos em uma claustrofobia, os quais estão comprimidos a um espaço que tende a se estreitar e propensos à paranoia e ao delírio. Em O Retrato Ovalado isso não é diferente: no primeiro plano, há uma espécie de pequeno castelo no qual o leitor adentra com mais profundidade até chegar a um quarto localizado em uma torre. As nuances entre claro e escuro vão se acentuando à medida que o narrador descreve esse espaço arranjado sob o prisma da ruína, do desencanto e do decadentismo, como se vê a partir da descrição do ambiente em que se espalham tapeçarias, troféus, cetim, veludo, pergaminho, o que envolve o conto de um clima taciturno e obsoleto.

As molduras advêm do campo das artes visuais, demarcando os limites entre a pintura e o mundo exterior, ou seja, uma passagem, uma fronteira entre o mundo interior (obra artística) e o mundo exterior (mundo referencial). Ao se ampliar a noção de moldura para o sentido conceitual – a partir de uma ideia elaborada pelo semioticista russo Boris Uspênski (2010) –, ela pode ser notada em demais suportes artísticos além das artes visuais, como por exemplo, na literatura e no teatro.

Nesse sentido, apropriamo-nos aqui desse conceito a fim de compreender um procedimento narrativo empregado no conto O Retrato Ovalado. Neste, dois personagens transeuntes, viajantes, abrigam-se em um velho château durante uma noite. Em um processo de assimilação do ambiente descrito, o leitor acompanha os personagens caminhando pelos corredores escuros e vislumbrando a mobília barroca. Ao encontrar um livro, o narrador passa a “ler” a história nele contida; há, assim, um dispositivo da noção de moldura, ou seja, uma narrativa dentro da narrativa.

O próprio Decameron, do italiano Giovanni Boccaccio, é exemplo de uma narrativa envolvida por molduras. No enredo, um grupo de pessoas parte em uma procissão rumo a uma abadia, estão fugindo da peste negra e precisam se salvar. No entanto, durante o percurso da viagem, cada personagem terá que contar uma história para alegrar a caminhada e os dias difíceis: histórias de humor, de fantasia, de adultérios, vícios da carne humana, prazeres mundanos. Cada qual conta suas histórias para entreter os demais durante o percurso que estão fazendo.

Assim, nessa perspectiva, o presente trabalho tem como objetivo analisar o uso das molduras narrativas no conto O Retrato Ovalado, de autoria de Edgar Allan Poe, de modo a identificar como essa estratégia contribui para a construção da atmosfera da obra e para a imersão do leitor. Logo, o artigo busca compreender de que forma a estrutura narrativa em camadas reforça os temas centrais do conto; para tal, utiliza como referência teórica os estudos sobre molduras narrativas na literatura, especialmente as concepções propostas por Boris Uspênski (2010).

2. Referencial Teórico

2.1 Molduras Narrativas em O Retrato Ovalado, de Edgar Allan Poe

Inicialmente, a moldura narrativa é uma estrutura literária em que uma história é inserida dentro de outra, criando, assim, uma sobreposição de camadas narrativas. Essa técnica permite que a narrativa principal seja contextualizada ou comentada por um narrador externo, adicionando diferentes perspectivas e ampliando a complexidade do texto.

Segundo Genette (2017), a moldura narrativa pode ser compreendida como uma forma de “narrativa encaixada”, na qual um texto se desdobra dentro de outro, estabelecendo um diálogo entre diferentes níveis de narração.

Tal recurso é frequentemente utilizado para criar uma sensação de distanciamento ou de verossimilhança, na medida em que um narrador primário apresenta a história como algo relatado por uma terceira pessoa. Como destacado por Bal (2009), a moldura narrativa pode influenciar a maneira como o leitor interpreta os eventos, já que a história enquadrada é filtrada pela perspectiva do narrador externo, o que pode gerar ambiguidades e distintas camadas de significado.

Além disso, Uspênski (2010), em seus estudos sobre narratologia e semiótica, enfatiza o papel da perspectiva na construção do significado dentro da narrativa. A seu ver, a estrutura em camadas proporcionada pela moldura narrativa é um mecanismo eficaz para expressar diferentes pontos de vista e graus de confiabilidade da narração. Uspênski (2010) argumenta que a organização das perspectivas narrativas pode criar efeitos de distanciamento ou imersão, a depender de como o leitor se relaciona com os diferentes níveis da história.

Nesse sentido, a moldura narrativa pode ser vista como um dispositivo que não apenas estrutura o conteúdo da história, mas que também influencia sua recepção. Conforme Uspênski (2010) aponta, a seleção de uma perspectiva narrativa é um dos principais meios pelos quais um texto literário orienta a interpretação do leitor. Portanto, a estrutura de moldura permite ao autor manipular as expectativas do leitor, criando jogos de perspectiva que enriquecem a interpretação da obra.

Dessa maneira, as relações entre literatura e pintura assinalam um diálogo constelar, repleto de conexões e afinidades. Nos dois casos, ou seja, tanto em uma quanto em outra, falamos também em suportes artísticos. E quando consideramos os suportes, levamos em consideração uma série de procedimentos que pintores e escritores utilizam para produzir suas obras. É precisamente pensando na arte como técnica, como eixo estruturante do pensamento criativo, que relacionamos aqui uma abordagem da moldura como procedimento similar, mais especificamente entre a pintura e a literatura.

A fim de estabelecer essa aproximação em termos de técnicas, valemo-nos do conceito de moldura a partir da óptica de Uspênski (2010):

Assim as “molduras” constituem um componente extremamente importante da representação pictórica. Ademais, elas adquirem importância especial quando a representação é criada empregando-se a posição “interna” do pintor (que pode manifestar-se pelo sistema de perspectiva empregado por ele ou por qualquer outro aspecto.) Realmente, se a obra pictórica é realizada a partir do ponto de vista do observador externo, como “vista para uma janela”, as funções das molduras reduzem-se a designar as fronteiras da representação. No entanto, se a obra pictórica é construída a partir do ponto de vista do observador que se encontra dentro do espaço representado, as “molduras” desempenham outra função ainda, não menos importante: marcar a passagem de um ponto de vista externo para um ponto de vista interno e vice-versa. […] Quando nós entramos, mentalmente, nesse espaço imaginado, esquecemos as molduras, assim como nos esquecemos da parede sobre a qual está fixado o quadro (Uspênski, 2010, p. 178-179).

Nesse movimento lento e retido, o narrador de O Retrato Ovalado, depois de entrar em um château, adentra em um dos cômodos com um candelabro na mão, o qual utiliza para iluminar a escuridão em que se encontra. Em um desses momentos, Poe (2017) fornece pistas diretas acerca da dinâmica entre pintura e literatura em seu conto. Dentre os vultos produzidos pelo movimento do candelabro na mão do personagem, o leitor entra em um processo de supressão das sensações visuais, são vistos aqui e ali os clarões para onde a mão do personagem aponta, tal como ocorre na passagem em que encontram o retrato de uma jovem. Consoante a descrição do narrador:

O retrato era de uma jovem. Um busto; a cabeça e os ombros pintados nesse estilo que chamam, em linguagem técnica, estilo de “vinheta”; um tanto à maneira de Sully³ em suas cabeças prediletas. O seio, os braços e os cachos de cabelos radiantes fundiam-se imperceptivelmente na sombra que servia de fundo ao conjunto. A moldura era oval, dourada e trabalhada ao gosto moderno. Como obra de arte, não se podia encontrar nada de mais admirável do que a pintura em si (Poe, 2017, p. 373).

Aqui se abre um mistério acerca do retrato oval encontrado.  Rapidamente, o narrador o compara às pinturas de Thomas Sully, inserindo uma referência direta de um pintor famoso por pintar bustos, retratos ovais de mulheres etéreas, comumente encontrados na literatura de Poe.

A imagem a seguir (Figura 1) materializa alguns pontos levantados até aqui, principalmente no tocante à moldura, à figura feminina e ao formato ovalar.

Figura 1.  Mulher em um vestido branco com envoltório dourado

Fonte: Sully (s/d).

Até então, no conto, com essa descoberta dos mistérios escondidos dentro do quarto, estamos ainda perante a moldura do conto de Poe. Posteriormente a essa cena, mais um achado: um livro que continha uma enumeração de acordo com a imagem. Logo, deduzem que para cada uma das imagens, deveria existir uma história.

Desse modo, apresentamos aqui o cerne do presente trabalho, qual seja, a transição na perspectiva narrativa nomeada como moldura. A partir do momento em que o personagem se apodera do livro, abre-o e lê o seu conteúdo, uma narrativa se sobrepõe à outra. Vejamos no conto propriamente dito como é estabelecido esse limite entre a moldura e o conto:

Com um terror profundo e insopitável, coloquei de novo o candelabro em sua primeira posição. Tendo ocultado assim à minha vista a causa dessa profunda agitação, procurei ansiosamente o livro que continha a análise do quadro e sua história. Fui em busca do número que designava o retrato oval e li o seguinte relato: […] (Poe, 2017, p. 373).

Eis no fragmento supratranscrito o ponto limiar da moldura narrativa. O uso dos dois pontos separa os limites entre a moldura e o conteúdo (o relato). O que se seguirá no conto trata-se, portanto, de outra narrativa, uma narrativa oculta, que só se pode revelar mediante a leitura do personagem.

Conforme se vê a seguir, a partir disso, abre-se para uma outra narrativa:

Era uma jovem de rara beleza e não menos amável do que alegre. Maldita foi a hora em que viu e amou o artista, casando-se com ele! Ele apaixonado, estudioso, amava, mais do que a sua esposa, a sua Arte; ela, uma jovem de rara beleza e não menos amável do que alegre, nada mais do que luz e sorrisos, ágil do que a lebre solta no campo, amando e acariciando todas as coisas, odiando apenas a Arte que era sua rival, não temendo mais do que a palheta e os pincéis […] (Poe, 2017 p. 373).

Se anteriormente afirmamos que o uso de dois pontos funciona como demarcador de “saída” dos limites da moldura, aqui, por outro lado, a introdução das aspas funciona como a “entrada” de um outro discurso.

Um outro elemento que caracteriza a moldura na cena é a transposição do discurso da primeira para a terceira pessoa, além, é claro, da notável mudança de perspectiva. De modo geral, quebra-se um paradigma de leitura e atenção aos dois personagens para, a partir de então, direcionar toda a atenção para a “segunda” narrativa. Em um movimento que demarca dimensões, apreendemos também a interação do texto com o leitor, por meio da qual este se debruça sobre uma narrativa em que o narrador também se encontra nessa mesma posição, construindo, assim, uma espécie de refração entre o mundo interno do conto e o mundo externo do leitor.

Do arranjo de um discurso para o outro, há não apenas a inserção de um elemento de profundidade, mas também uma mudança de perspectiva. Elemento de profundidade porque, finalmente, adentramos na narrativa “do retrato ovalado” propriamente dita, abandonamos as imediações da moldura e entramos no mundo da obra, isto é, saímos da camada que emoldura a narrativa central, por assim dizer. E, ao conhecermos a narrativa do pintor obcecado por produzir sua obra de arte, deparamo-nos, uma vez mais, com a noção das perspectivas do olhar que se alinhavam no conto. Concebendo mais uma vez o leitor como integrante da obra: ele direciona seu olhar para um livro no qual um personagem repete o mesmo movimento ao se debruçar sobre um livro cuja história é a de um pintor que também dirige seu olhar atento à sua musa.

O tradutor José Paulo Paes, em sua “Apresentação” a esta edição do livro, aponta a consciência de Poe acerca dos princípios estéticos, além de sua atenção voltada à criação de um efeito. Paes (2017) assevera:

Relativamente ao conto, as ideias de Poe não se afastam das demais ideias sobre o fato artístico em geral. Preconizava, nesse gênero, o uso e abuso do que denominava “a unidade de efeitos”. Ao escrever uma short story, devia o artista ter sempre em mente o desfecho da narrativa e, de acordo com esse desfecho, dispor as cenas, criar a atmosfera, de modo a provocar no leitor um efeito definido de enternecimento, de solidão, de horror etc. Poe aplicou à própria obra suas teorias artísticas. Nos contos, por exemplo, seguiu à risca a técnica da “unidade de efeitos”. Obteve, por vezes, resultados excelentes, mas o abuso acabou por converter um recurso eficaz, se utilizado parcimoniosamente, num cacoete de estilo que chega a enfarar (Paes, 2017, p. 13).

Logo, a utilização na literatura de molduras narrativas remonta a textos clássicos, como por exemplo, à obra As Mil e Uma Noites, em que a história de Sherazade funciona como uma moldura para as inúmeras narrativas a serem contadas dentro desse contexto. Esse tipo de estrutura também é usada em obras como O manuscrito encontrado em Saragoça, de Jan Potocki, e O coração das trevas, de Joseph Conrad, ambos exemplos de narrativas enquadradas que afetam a compreensão dos eventos relatados.

Na literatura gótica, a moldura narrativa é um recurso frequentemente empregado para criar atmosferas de mistério e suspense, de modo a conduzir o leitor por diferentes camadas de realidade e ficção. Tal como observa Wolfgang Kayser (2013), esse tipo de estratégia narrativa é eficaz para instaurar a incerteza e a ambiguidade, características fundamentais do gênero.

Nesse sentido, a moldura narrativa não é apenas uma questão de organização estrutural, mas também um dispositivo que intensifica no leitor os efeitos emocionais e psicológicos. No caso do conto O Retrato Ovalado, essa técnica desempenha um papel essencial tanto na construção da atmosfera sombria quanto na imersão do leitor na história, tal como será analisado nos próximos tópicos.

2.2 Análise das Molduras Narrativas em O Retrato Ovalado

O conto O Retrato Ovalado apresenta uma estrutura narrativa composta por duas camadas interligadas. A história principal é narrada por um viajante que busca abrigo em um castelo sombrio, no qual encontra um retrato oval de uma jovem. Ao lado desse quadro há um livro que contém um relato sobre a origem daquela pintura, introduzindo, assim, uma segunda camada narrativa.

Genette (2017) define esse tipo de estrutura como “narrativa metadiegética”, em que há uma história dentro de outra. Tal recurso não apenas enriquece a complexidade do enredo, como também cria um efeito de distanciamento e ambiguidade, o que faz com que o leitor transite entre diferentes planos narrativos.

A moldura narrativa empregada em O Retrato Ovalado contribui significativamente para a construção da atmosfera do conto. A história principal se passa em um ambiente sombrio e isolado, de maneira a reforçar a sensação de mistério e tensão. À medida que emerge a segunda camada narrativa – ou seja, a história do pintor e sua esposa –, o clima de opressão e tragédia se intensifica.

De acordo com o pontuado por Kayser (2013), a estrutura de moldura pode intensificar a sensação de estranhamento e grotesco, elementos estes fundamentais na literatura gótica. No conto de Poe, essa estrutura amplifica o impacto emocional da revelação final, quando o leitor percebe que a obsessão do pintor pela arte levou à morte de sua esposa.

A moldura narrativa também desempenha um papel essencial na imersão do leitor. Tal como observado por Bal (2009), a presença de múltiplas camadas narrativas produz um efeito de profundidade que aproxima o leitor da história, tornando-o um participante indireto da narrativa.

Em O Retrato Ovalado, essa imersão ocorre de maneira progressiva: o leitor, inicialmente, compartilha a perspectiva do narrador principal, mas, paulatinamente, vê-se envolvido na tragédia do pintor e sua esposa. Esse efeito de imersão é característico das narrativas enquadradas, pois permite que o leitor transite entre diferentes níveis de ficção, ampliando seu engajamento com o texto.

3. Metodologia

Este estudo é de caráter qualitativo e adota uma abordagem analítica, com base na leitura e interpretação do conto O Retrato Ovalado, de Edgar Allan Poe. O artigo se fundamenta em uma análise bibliográfica, ao utilizar referenciais teóricos sobre molduras narrativas e narratologia, como por exemplo, os trabalhos de Genette (2017), Uspênski (2010) e Bal (2009).

A seleção do referido conto se deu em razão de sua estrutura narrativa característica, que exemplifica o uso de molduras narrativas na literatura gótica. A análise de dados consiste na identificação e interpretação dos elementos estruturais e estilísticos do conto, verificando a forma como a moldura narrativa influencia a atmosfera e também a experiência do leitor.

4. Resultados e Discussões

A análise realizada demonstra que a moldura narrativa desempenha um papel central na construção da atmosfera e na imersão do leitor em O Retrato Ovalado. O uso de camadas narrativas não apenas estrutura o conto de maneira complexa, como também intensifica os sentimentos de mistério e horror característicos da literatura gótica. A sobreposição de narradores proporciona um efeito de distanciamento, ao mesmo tempo em que aprofunda a conexão emocional do leitor com os eventos descritos.

O presente estudo evidenciou que a abordagem teórica de Genette (2017) e também a de Uspênski (2010) sobre a narratividade enquadrada são fundamentais para entender o modo como Poe manipula a percepção do leitor. Ademais, a obra se insere no âmbito de uma tradição literária maior, tal como verificado em As Mil e Uma Noites e em O Coração das Trevas, demonstrando, assim, a relevância da moldura narrativa como estratégia literária.

Um outro aspecto relevante identificado na análise é a forma como a moldura narrativa intensifica a tensão psicológica na obra. A justaposição das duas narrativas — a do viajante e a do pintor — gera um efeito de duplicação temática, reforçando, desse modo, a obsessão pela arte e suas consequências trágicas. Tal técnica não apenas aprofunda o impacto emocional do desfecho, mas também gera um efeito de circularidade narrativa, em que as duas histórias se refletem e se complementam.

Além disso, a moldura narrativa permite a construção de múltiplos pontos de vista, o que torna a obra mais ambígua e aberta a diferentes interpretações. Como Bal (2009) sugere, narrativas enquadradas apresentam frequentemente elementos de subjetividade que desafiam a confiabilidade do narrador. Em O Retrato Ovalado, isso se manifesta na incerteza do leitor quanto à veracidade dos fatos narrados no livro encontrado pelo viajante, ampliando o efeito de estranhamento, bem como aprofundando o mistério.

A estrutura em camadas também favorece a tematização da relação entre arte e vida, um dos pontos centrais do conto. A obsessão do pintor por capturar a essência da esposa em sua pintura reflete um dilema recorrente na literatura romântica, a saber: a tentativa de eternizar a beleza por meio da arte e as consequências trágicas dessa busca. Nesse sentido, a moldura narrativa reforça a dualidade entre criação artística e destruição, evidenciando, assim, a crítica de Poe à visão idealizada da arte como algo apartado da realidade.

Também, um outro ponto discutido nesse trabalho foi a influência da moldura narrativa na construção da verossimilhança dentro do conto. Como salienta Kayser (2013), a literatura gótica frequentemente se utiliza de narradores internos para aumentar a sensação de autenticidade e suspense. No caso de O Retrato Ovalado, a presença de um livro dentro da história principal serve como documento que confere um caráter de realidade ao relato do pintor, intensificando sobremaneira o impacto dramático da narrativa.

Dessa maneira, os achados da pesquisa reforçam a importância do estudo das molduras narrativas na literatura, evidenciando a forma como essa técnica contribui para a experiência do leitor e também para a construção de atmosferas narrativas densas e envolventes.

A narrativa enquadrada não apenas serve como um artifício estilístico, mas também atua como um meio de aprofundar os temas abordados no conto, oportunizando uma experiência de leitura mais imersiva e complexa.

Em suma, O Retrato Ovalado exemplifica o potencial das molduras narrativas para enriquecer a construção literária, podendo tornar a experiência do leitor mais envolvente e multifacetada. A sobreposição de camadas narrativas amplia a sensação de mistério e horror, ao mesmo tempo em que explora questões profundas sobre arte, vida e morte. Esses elementos tornam a obra tanto um estudo exemplar acerca do uso da moldura narrativa na literatura gótica quanto um objeto valioso para investigações futuras sobre a temática.

5. Conclusão

Pintura, literatura e teatro possuem elementos estruturais comuns, pois compartilham procedimentos estéticos que buscam capturar e expressar diferentes formas de arte. No caso específico de Edgar Allan Poe, sua obra reflete um trânsito constante entre essas linguagens, o que lhe permitiu construir narrativas instigantes, histórias assombrosas e contos grotescos, sempre impregnados de um forte senso estético e experimental.

A análise do conto O Retrato Ovalado revela o modo como Poe manipula as molduras narrativas para criar tensão, ambiguidade e uma atmosfera de mistério. A interação entre a história do viajante e o relato do pintor não apenas intensifica a experiência sensorial do leitor, como também sublinha questões fundamentais sobre a obsessão artística e os limites entre arte e vida. Dessa maneira, Poe se mostra um escritor profundamente consciente acerca de seu ofício, ao explorar de forma magistral os recursos narrativos disponíveis.

O conto se destaca ainda pelo equilíbrio entre narrativa e reflexão, pois ao mesmo tempo em que apresenta uma história envolvente, também propõe uma análise crítica sobre os processos artísticos. Poe, como um artesão das palavras, utiliza a estrutura do conto para demonstrar as possibilidades da literatura, tornando a narrativa não apenas um meio de contar histórias, mas também um espaço de experimentação estética e psicológica.

Por fim, a moldura narrativa de O Retrato Ovalado serve como artifício que amplia o impacto emocional do texto, revelando e ocultando verdades no âmbito da própria ficção. Esse recurso reforça a dualidade presente na obra de Poe, na qual o fascínio pela arte se entrelaça com suas consequências sombrias.

Nesse sentido, o presente estudo contribui para uma melhor compreensão acerca das técnicas narrativas do autor e sua relevância na tradição literária gótica, além de abrir caminho para novas investigações sobre o uso das molduras narrativas na literatura.


²Optamos por apresentar aqui os contos na ordem em que se encontram situados na coletânea utilizada como referência para o conto ora analisado. Trata-se da edição selecionada e traduzida por José Paulo Paes, publicada em 2017 pela editora Companhia das Letras.
³Thomas Sully (1783-1872): Pintor profissional anglo-americano, estabeleceu-se pintando retratos de figuras da alta sociedade.

REFERÊNCIAS

BAL, Mieke. Narratology: introduction to the theory of narrative. Toronto: University of Toronto Press, 2009.

GENETTE, Gérard. Figuras III. São Paulo: Estação Liberdade, 2017.

KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configurações na literatura e no pensamento moderno. São Paulo: Perspectiva, 2013.

PAES, José Paulo. Apresentação. In: POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 9-14.

POE, Edgar Allan. Filosofia da Composição. 2. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011.

POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

SULLY, Thomas. Woman in a white gown with gold wrap. (s/d). Disponível em: www.mutualart.com/Artwork/Woman-in-a-White-Gown-with-Gold-wrap/DDBAB6A4197E12A0BF499BD27D1054D0. Acesso em: 10 mar. 2025.

USPÊNSKI, Boris. Elementos estruturais comuns às diferentes formas de arte. In: USPÊNSKI, Boris. Semiótica russa. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 163-218.


¹Mestrando em Estudos Literários pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Rondônia – MEL/UNIR. Universidade Federal de Rondônia. BR-364, 9 – Cidade Jardim, Porto Velho – RO.
E-mail: anderson20_ricardo@hotmail.com