MODELANDO O BARRO: UMA ETNOGRAFIA DA CULTURA SERTANEJA PIAUIENSE NAS ESCULTURAS DE JOÃO BORGES

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7893604


Brenno Fidalgo de Paiva Gomes1
Reginaldo Sousa Chaves2


RESUMO

O artigo pesquisa as esculturas de João Borges como uma etnografia da cultura sertaneja no Piauí. Assim, pretende-se compreender a arte escultórica de João Borges como representação artística da cultura sertaneja piauiense; investigar a técnica e os materiais da modelagem no processo de elaboração das esculturas; e identificar as narrativas gestuais presentes em suas obras. Essa pesquisa é de cunho qualitativo, com abordagem etnográfica, tendo nos relatos e percepções de João Borges a compreensão sobre seu fazer artístico, desenvolvido na linguagem escultórica, onde seu ateliê é o espaço de produção e significação das imagens esculpidas. Desse modo, os resultados do estudo demonstram que o artista entende sua arte como uma expressão da identidade do povo sertanejo do Piauí, através de suas atividades laborais e lúdicas e das práticas de convívio social. Diante disso, a arte de João Borges desvela um artista que produz conhecimento com valorização da cultura popular local.

Palavras-Chave: Escultura. Modelagem. Cultura. Sertanejo. Piauiense.

ABSTRACT

The article researches the sculptures of João Borges as an ethnography of the country culture in Piauí. Thus, it is intended to understand João Borges’ sculptural art as an artistic representation of Piauí country culture; investigate the modeling technique and materials in the process of making sculptures; and identify the gestural narratives present in his works. This research is of a qualitative nature, with an ethnographic approach, based on João Borges’ reports and perceptions of his understanding of his artistic work, developed in the sculptural language, where his studio is the space for the production and meaning of the sculpted images. Thus, the results of the study demonstrate that the artist understands his art as an expression of the identity of the sertanejo people of Piauí, through their work and leisure activities and social practices. Given this, the art of João Borges reveals an artist who produces knowledge with appreciation of local popular culture.

Keywords: Sculpture. Modeling. Culture. Countryside. Piauí.

1 INTRODUÇÃO

A arte é uma criação humana que perpassa a trajetória do homem desde os primórdios dos tempos. Essa manifestação criativa tem diversas linguagens que comunicam mensagens e fazem as pessoas desvendarem sentimentos e emoções, materializados em seus objetos artísticos. Além disso, as artes visuais têm na visão a sua percepção sensorial para apreciação de imagens criadas sobre as mais diversas formas de inspiração. Dentre essas formas artísticas visuais, a escultura é uma linguagem visual que produz significados múltiplos, unindo aspectos culturais e históricos em seus objetos, sendo esta uma das formas mais remotas de se fazer arte.

Essa arte escultórica tem por base uma estrutura tridimensional em sua forma. Ao longo dos tempos, artistas e pessoas de todo mundo se serviram desses processos de criação para vislumbrar objetos que interligam noções de volume em contato com o espaço do ambiente em que se localizam. Nessa vertente artística, obras são produzidas representando os mais diversos temas, desenvolvendo aspectos sociais, relacionais, econômicos e até religiosos, inspirando artistas a darem prosseguimento a suas percepções e formas pessoais de interatividade com o mundo, tornando suas perspectivas fontes de inspiração para outros artistas ao longo do tempo. 

Por isso, faz-se preciso especificar o processo de criação escultórica que será investigado neste trabalho. Perceber essas experiências na escultura em consonância com ideias relativas às maneiras de expressar valores e atitudes culturais, nos fez despertar para a elaboração do objeto de estudo proposto nesta pesquisa, sendo este as esculturas do artista João Borges. Esse artigo visa apresentar uma discussão sobre produção escultórica e representação cultural na elaboração do processo de criação artística. Desta forma, o tema proposto versa sobre o estudo da produção escultórica de mestre João Borges como representação etnográfica da cultura sertaneja piauiense. 

João Borges é um artista escultor, nascido na cidade de Teresina, que cria pelo viés artístico, apresentando elaborados objetos que retratam suas visões de mundo sobre a cultura que habita enquanto ser atuante na sociedade. Formado em Educação Artística pela Universidade Federal do Piauí, João Borges entrou nesse curso já sendo um exímio artista, um autodidata que entrou para o estudo acadêmico, mas que já tinha sua marca artística direcionada para exposições locais e nacionais. Seu material de produção em arte é o barro, o qual se utiliza disso para dar forma a seus sentimentos e memórias afetivas sobre o povo piauiense. Esse escultor carrega em sua criação artística uma vertente social de representação da cultura popular piauiense.

Essa cultura sertaneja que inspira esses objetos artísticos faz alusão à expressão tradicional popular. Por meio disso, as imagens esculpidas pelo referido artista manifestam elementos culturais alicerçados com modos de fazer e saber de comunidades interioranas piauienses. Nessa perspectiva, a problemática central traz a seguinte questão: como as esculturas de João Borges representam etnograficamente a cultura sertaneja piauiense?

Com isso, trazemos as seguintes questões norteadoras: Quais aspectos da cultura sertaneja piauiense estão presentes na produção artística de João Borges? O que João Borges entende sobre a gestualidade presente em suas narrativas escultóricas? Qual a compreensão sobre os modos de fazer e criar seus objetos artísticos? Quais materiais e técnicas são utilizados em seu fazer artístico?

Neste caso, a razão que motivou a pesquisar a produção escultórica de João Borges veio pelo interesse nas criações artísticas realizadas no estado do Piauí, como elementos que enaltecem a cultura local e seus próprios produtores de arte. Essa motivação pessoal em pesquisar tal objeto de estudo se consolida por questões que envolvem a busca de construir conhecimentos sobre os modos de produzir arte cultural piauiense. 

Além disso, a motivação profissional, na experiência da docência, valorizando a cultura local, através dos estudos sobre as produções artístico-culturais na disciplina de Arte, na educação básica, de modo a estimular o alunado no conhecimento sobre essas expressões regionais. Esse estudo tem importância no sentido de ampliar os conhecimentos e discussões aprofundadas sobre a cultura sertaneja piauiense, de modo a evidenciar suas práticas artísticas- no caso deste estudo, na linguagem visual escultura- realizadas pelos artistas locais e sobre suas obras de arte, como elementos simbólicos que significam e valoram símbolos e práticas culturais locais. 

Frente a isso, com a escassez de pesquisas sobre a produção artística escultórica como representação etnográfica de um grupo social, tornar-se-á viável a elaboração desse estudo com base nesse tema, produzindo conhecimento sobre a realidade artística no Piauí. Uma arte que produz conhecimentos que valorizam culturas marginalizadas, mostrando poeticamente as vivências do povo interiorano do Piauí, assim como na desconstrução de estereótipos sobre o povo sertanejo.

Por meio disso, este estudo possui relevância social e científica no sentido de evidenciar os preceitos culturais sertanejos piauienses, de modo a desestigmatizar estereótipos que inferiorizam a cultura do sertão do Piauí, sobretudo no que concerne a seus modos de saber e fazer, assim como respaldar essas práticas culturais, incentivando com esse tema outros pesquisadores a explorarem estudos que correlacionam produções artísticas e representatividades culturais populares, a partir do olhar e percepção do próprio artista criador. 

Desta forma, espera-se contribuir para o conhecimento voltado para as Artes Visuais, através de um estudo que possibilitará outras pesquisas serem desenvolvidas, contribuindo para o esclarecimento sobre as formas de produzir escultura como significado social de um povo e sua cultura. Com o desenvolvimento desse tema, a visibilidade sobre a cultura sertaneja piauiense, transmitida por objetos de arte, servirá para apreender melhor as artes que refletem as vivências e experiências de pessoas do sertão e suas perspectivas de mundo. Assim, este estudo traz novas concepções e sentidos estéticos e sociais a serem pesquisados, a fim de surgirem novas possibilidades de pensar sobre os modos de produção artística, principalmente no âmbito local.

         Desse modo, os objetivos referentes a esse estudo estão pautados em compreender a produção escultórica de João Borges como representação etnográfica da cultura sertaneja piauiense; investigar a técnica da modelagem no processo de elaboração das esculturas; assim como, identificar as narrativas gestuais e simbólicas sertanejas presentes nas peças escultóricas.

Ademais, para chegar a esse processo de análise focaremos na investigação dos processos de criação da produção artística, em se tratando dos materiais e técnicas utilizados; faremos uma descrição minuciosa sobre as experiências e narrativas gestuais presentes nesses objetos escultóricos; assim como buscaremos identificar a cultura sertaneja piauiense presente em sua produção artística. 

Tudo isso será resultante do ponto de vista do próprio artista, entendendo que essa produção artística concretiza o que ele pensa e cria, enquanto processo criativo sobre suas percepções e perspectivas de mundo. Para isso, utilizaremos o método etnográfico, partindo de uma análise sobre os modos de fazer, pensar e criar de João Borges, registrando suas percepções através de suas falas, interpretações e imagens na elaboração de sua produção artística.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

A arte se manifesta ao longo de toda a história da humanidade nas mais diversas linguagens, apresentando em meio às sociedades, formas peculiares de representar a relação do homem com o mundo em que vive, inspirando atos de criação artística em suas várias linguagens que comunicam e expressam múltiplos temas. 

Essas expressões de produção artística vêm se delineando ao longo dos tempos, intuindo elementos que partilham perspectivas de vida em consonância com as relações humanas, transmitindo saberes por meio de objetos de arte que detêm significados de valor simbólico e cultural. Por meio desses encadeamentos que constituem processos de criação artística, o fazer em arte foi tomando forma e significado nas mais diversas práticas, desde as expressões sonoras, visuais, teatrais, ou mesmo aquelas que unem mais de uma linguagem e código em sua representação.

Nesse sentido, ressalta Grombrich (2015), às experiências na produção em arte, desde os primórdios dos tempos, são construídas através de formas artísticas com funções muito específicas dentro de seus núcleos sociais. Exemplo disso, os povos primevos produziam imagens com funções mágicas, desenhando em paredes de cavernas bisões, esculpindo em pedra figuras humanas e dançando, disfarçados de animais, em rituais, almejando com todas essas realizações uma forma de conexão com suas crenças e valores. 

Como expõe este autor, essas formas de produzir, o que se convencionou chamar arte, têm funções que se aliam aos objetivos de seus propositores. Por isso, a arte em sua história não deve ser vista como um progresso em sua proficiência técnica, mas como uma forma de aplicar ideias, percepções e necessidades que vão de encontro a uma intensa mudança (GROMBRICH, 2015). Sob esse olhar, as ideias e concepções concatenadas no ato criativo em arte tem, na linguagem escultórica, uma de suas primeiras formas de criação em arte. 

De acordo com Souza (2017), falar em escultura na atualidade é transcorrer sobre um conceito que vem se impregnando de uma variada gama de experiências e possibilidades em sua significação. O autor explica que essa variabilidade se dá conforme o meio cultural e a passagem cronológica do tempo da história da humanidade. Esse meio expressivo em arte possui uma multiplicidade de sentidos produzidos em consonância com recortes temporais e espaciais, assim como intenções e interações de seus proponentes com essa expressão artística, aliada ao meio social em que se vive.

Neste sentido, definimos como conceito de escultura, a partir do que Krauss (1998) ressalta sobre um conjunto de códigos que possuem flexibilidade em suas propostas criativas, possuindo uma perspectiva artística que não pode ser tratada como uma categoria universal, mas deve estar associada à história, possuindo uma lógica interna em sua percepção (KRAUSS, 1998). Por isso, a escultura está aliada a um conjunto de códigos que geram linguagem comunicativa e refletem o contato do indivíduo com o espaço em que interage em uma sociedade localizada em um tempo e espaço específico. 

Partindo dessa definição, a escultura é vista como uma categoria artística que possui uma lógica simbólica. Essa linguagem possui suas próprias regras, podendo ser trabalhadas nas mais diversas possibilidades de criação escultórica, assim como no uso de materiais, técnicas e ideias. Nessa preparação para conceber um objeto escultórico moderno existem questões que dialogam com as formas como esta linguagem é concebida, como destaca Rosalind Krauss (1998):

Um dos aspectos mais notáveis da escultura moderna é o modo como manifesta a consciência cada vez maior de seus praticantes de que a escultura é um meio de expressão peculiarmente situado na junção entre repouso e movimento, entre o tempo capturado e a passagem do tempo. É dessa tensão, que define a condição mesma da escultura, que provém seu enorme poder expressivo (KRAUSS, 1998, p.8).

Além de situar a noção de escultura como uma representação expressiva que liga movimento e repouso, devemos entendê-la como um objeto que apresenta em sua materialidade uma referência cultural, demonstrando que seu ato criativo pressupõe uma reflexão sobre um contexto social particular. Para a escultura, é necessário o uso de materiais e técnicas para sua produtividade e invenção por parte de um artista. Em se tratando de materiais para as propostas artísticas criadas, podemos salientar o que Chipp (1993) discorre:

Os materiais desempenham na escultura um dos papéis fundamentais. A gênese de uma escultura é determinada pelo seu material. Os materiais estabelecem a base emocional de uma escultura, dão-lhe seu caráter básico e determinam os limites de sua ação estética. (…) usando materiais, a arte da escultura sempre caminhou de mãos dadas com a técnica. A técnica não impede o uso de qualquer material, de alguma forma ou para alguma finalidade construtiva. Para a técnica, como um todo, qualquer material é útil (CHIPP, 1993, p.335).

De acordo com Nehr (2019), a modelagem é uma técnica que se utiliza da linguagem escultórica para a produção de um processo ágil, usando materiais flexíveis e de fácil manuseio, como é o caso da argila. Ademais, para Moreira (2011), a técnica da modelagem significa criar uma forma ou uma estrutura, ligando-se a algo maleável e que requer trabalho manual para sua execução, sendo tridimensional, ou seja, possuindo altura, largura e profundidade. 

Conforme ressalta Moreira (2011), a arte da modelagem pressupõe ajustar formas, fazer distinção de contornos, assim como fazer ajustes para acrescentar material, como no caso da criação na linguagem escultórica. Neste sentido, Fayga Ostrower (1977) cita o ato de criar como aquele que prima pela elaboração criativa de um determinado conteúdo que se engendra nas diversas possibilidades de sensações e percepções que fazem parte do imaginário do indivíduo. A autora salienta que a arte como meio expressivo está designada a representar culturalmente uma determinada realidade referenciada por um artista. E que essa expressão em forma de arte tem um potencial importante no desenvolvimento criativo do artista (OSTROWER, 1977). Por meio disso,

O artista é visto em seu ambiente de trabalho, em seu esforço de fazer visível aquilo que está por existir: um trabalho sensível e intelectual executado por um artesão. Um processo de representação que dá a conhecer uma nova realidade, com características que o artista vai lhe oferecer. A arte está sendo abordada sob o ponto de vista do fazer, dentro de um contexto histórico, social e artístico. Um movimento feito de sensações, ações e pensamentos, sofrendo intervenções do consciente e do inconsciente.  (SALLES, 1998, p. 26).

Essa sensibilidade e intelectualidade, aprimoradas na materialização das obras, faz com que o artista não esteja apartado de uma cultura, de um espaço social de convivência, pois sua arte é reflexo do meio cultural em que está inserido. Por isso, o conceito de etnografia se faz presente neste estudo para se entender a relação que se estabelece na representação do povo sertanejo piauiense na arte escultórica do artista. 

De acordo com Mattos (2011), a etnografia vê a cultura não como um sistema estrutural da sociedade, mas como um conjunto de significados mediadores entre as estruturas ditas sociais e os contatos e práticas humanas. Nessa perspectiva pode se pensar que

Etnografia significa literalmente a descrição de um povo. É importante entender que a etnografia lida com gente no sentido coletivo da palavra, e não com indivíduos. Assim sendo, é uma maneira de estudar pessoas em grupos organizados, duradouros, que podem ser chamados de comunidades ou sociedades. O modo de vida peculiar que caracteriza um grupo é entendido como a sua cultura. Estudar a cultura envolve um exame dos comportamentos, costumes e crenças aprendidos e compartilhados do grupo (ANGROSINO, 2009, p.16).

Esse conceito é basilar na compreensão da arte escultórica como um meio expressivo de localizar em sua materialidade os aspectos culturais que inserem um grupo social dentro de suas relações humanas. Desta maneira, a produção escultórica interliga-se à etnografia como

“(…) forma de descrição da cultura material de um determinado povo” (MATTOS, 2011, p.53). Essa forma de produzir arte tem relação com o conceito etnográfico, pois

Em etnografia, holisticamente, observa-se os modos como esses grupos sociais ou pessoas conduzem suas vidas com o objetivo de revelar o significado cotidiano, nos quais as pessoas agem. O objetivo é documentar, monitorar, encontrar o significado da ação (MATTOS, 2011, p.51).

Assim, as obras de arte servem não só em seu aparato estético de apreciação, mas trazem em seu âmago o ponto de significância sobre o tempo e espaço inseridos no fazer artístico, o qual está diretamente atrelado a uma representação simbólica cultural. De acordo com Geertz (1989), os sistemas simbólicos são fonte primordial para conduzir práticas e experiências humanas. Nesse viés de ação simbólica, o homem busca dar significado e direção a tudo que faz parte do seu ciclo de convívio, sendo o indivíduo um ser regido por uma incompletude que encontra sentido completo através da cultura (GEERTZ, 1989).

Para isso, a noção de cultura que se pretende embasar para entendimento desse plano escultórico se respalda em Geertz (1989), quando o autor explica que a cultura deve ser vista pela perspectiva semiótica, ou seja, na análise de símbolos que possuem significados. Desse modo, o autor enfatiza que a cultura é vista como uma ciência interpretativa, na busca de significados que fazem parte de uma teoria elaborada de experiências sociais. Conforme ressalta o autor, na cultura 

Deve atentar-se para o comportamento, e com exatidão, pois é através do fluxo do comportamento mais precisamente, da ação social — que as formas culturais encontram articulação. Elas encontram-se também, certamente, em várias espécies de artefatos e vários estados de consciência. Todavia, nestes casos o significado emerge do papel que desempenham, não de quaisquer relações intrínsecas que mantenham umas com as outras (GEERTZ, 1989, p.12).

Para este autor, o conceito de cultura está relacionado a sistemas de signos com valor interpretativo, estando associado não a uma espécie de poder instituído, onde se estabelecem instituições e comportamentos, mas a um contexto, sendo uma ciência de interpretação, na busca por significados. “No estudo da cultura, os significantes não são sintomas ou conjunto de sintomas, mas atos simbólicos ou conjunto de atos simbólicos e o objetivo não é a terapia, mas a análise do discurso social” (GEERTZ, 1989, p.18).

Nesta perspectiva, a cultura aqui discutida converge para uma relação que torna o homem produtor de comportamentos e produções que o identifica dentro de uma realidade social. Além disso, a cultura pode ser vista na produção de um artefato que estabelece na elaboração de um objeto modos de expressão da consciência do indivíduo que o produz, inserindo nessa ação mensagens que transmitem seus modos de pensar o mundo. Com isso, as peças que João Borges esculpe podem ser vistas como um artefato que desvela uma mensagem, apresentando um destinatário cultural, o qual expressa sua forma interpretativa de ver o meio social em que vive.  Ademais, a cultura, no âmbito do fazer artístico, resgata uma aproximação com o contexto em que o artista se insere. 

Assim, conforme ressalta Alencar (2009), a produção de uma obra de arte não é somente de ordem técnica, devendo estar atrelada a processos que estimulem a criatividade do artista, no uso de sua sensibilidade para percepções sensoriais, desenvolvendo a imaginação e autenticidade em sua criação artística. Sendo assim, o processo de criação de João Borges perpassa pela relação que o artista estabelece com seu entorno social. Com isso, a produção escultórica permite “(…) o feliz encontro da arte com a técnica quando o escultor trabalha em suas obras e o ato físico e a mente entram em diálogo construtivo” (AQUINO, 2015, p.76). 

Segundo Pareyson (1993), o conteúdo referente à arte é o próprio artista que a escolhe, elencando suas experiências de mundo, sua interioridade, seu contato com a espiritualidade, sua forma de interagir com o ambiente social em que manifesta suas escolhas pessoais, desde pensamentos, crenças, ideias e sentimentos.  Em se tratando disso, a cultura sertaneja piauiense possui suas formas de produção de saberes e fazeres que localizam seu povo histórica e geograficamente numa região. Sobre isso, podemos considerar que

O Piauí é uma área de sertão, uma área geograficamente interiorana desde os tempos coloniais, contudo a cultura sertaneja piauiense – mesmo em contextos urbanos contemporâneos – apresenta relações diretas e identificáveis claramente com sua ancestralidade rural e comunal dos tempos em que a fazenda ocupava a centralidade em todos os aspectos da vida dos moradores destas terras, valorizando-os e vivificando os laços com este passado por meio de diferentes estratégias. Enquanto outras áreas sertanejas identificadas geograficamente como sertão tendem a afastar-se e negar, e até mesmo, apagar histórica e culturalmente as ligações que detinham com a historicidade e um passado rural (SILVA, 2013, p.3).

Assim, podemos perceber a importância da cultura sertaneja no Piauí, como uma fonte originária deste povo e da sua história. Esse contexto histórico, como ressaltado pelo autor, demonstra o contato humano com os espaços rurais desse território nordestino brasileiro. Pensar nisso, é entender que o piauiense, de origem sertaneja, traz referências ancestrais nos modos de fazer, ser e perceber o mundo em sua volta. Segundo Silva (2013), existem algumas formas de cultura sertaneja que se inserem nesse contexto social piauiense, como a manutenção dos laços sociais (familiares e de afinidade), a valorização do lugar social da casa, comidas simples ou mesmo a rejeição a qualquer tipo de desperdício, assim como do trabalho.

Desta forma, assevera Silva (2013), além dos laços familiares e de afinidade serem muito presentes no seio social sertanejo piauiense, a questão da casa em sua estrutura física, emocional e relacional se constitui como uma característica imprescindível para a compreensão do ser sertanejo no Piauí. Essa autora explica que o sertanejo piauiense tem em sua casa um espaço de produção de conhecimentos, transmitidos de geração em geração, criação de redes de afeto com familiares, vizinhos e amigos, assim como a cultura de produzir alimentos para sustento do lar, de modo que auxilie a todos os presentes.

Dessa maneira, podemos aferir que a interpretação sobre os conceitos elencados nos mostram a capacidade de compreender a linguagem escultórica, produto humano em seu ato criativo, como um elemento etnográfico que revela a relação de um artista com seu objeto de criação, localizados dentro de uma cultura que é desvelada na materialização da obra de arte.

3 METODOLOGIA

O presente artigo tem como base a estratégia qualitativa de pesquisa, por intermédio de uma revisão bibliográfica sobre os conceitos que dão embasamento ao tema proposto. Esta revisão atinge autores que discutem o conceito de escultura no sentido geral, assim como estudiosos que abordam os conceitos de etnografia, cultura e, mais especificamente, cultura sertaneja. Além disto, foi realizada uma pesquisa de campo no ambiente artístico onde João Borges produz sua arte, analisando como o próprio artista percebe e interage suas obras. 

Dessa forma, com base em dados qualificáveis, busca-se “(…)uma compreensão detalhada dos significados e características situacionais apresentadas pelos entrevistados, em lugar da produção de medidas quantitativas de características ou comportamentos”. (RICHARDSON, 1999, p. 90). Essa compreensão de significados envolve uma teoria investigativa sobre as esculturas, o artista e seu ambiente de criação, a fim de entender os sentidos que são produzidos.

Neste sentido, ressalta Flick (2009), a pesquisa de cunho qualitativo explora o objeto de estudo apresentado em seu locus de pesquisa, do sujeito de pesquisa em suas percepções subjetivas e práticas sociais, do espaço em que este interage socialmente. Além disso, é importante salientar também que a pesquisa qualitativa tem como parte do processo de construção do conhecimento as reflexões do pesquisador sobre sua pesquisa (FLICK, 2009). Assim, o autor explica que a subjetividade do pesquisador, assim como dos sujeitos que ele investiga, tornam-se parte fundamental na elaboração do estudo. 

Desta forma, nos apropriamos da pesquisa qualitativa como abordagem metodológica, a fim de não só analisar as formas de produzir as esculturas do artista investigado, mas de explorar sua subjetividade em suas falas e percepções interpretativas, de modo a entendê-las como primordiais na compreensão do objeto de estudo. 

Desta maneira, o método utilizado nesse estudo é o da abordagem etnográfica, como forma de analisar as práticas artísticas e a subjetividade do fazer escultórico, produzidos pelo sujeito dessa pesquisa, no caso, o artista João Borges. De acordo com Fortin e Gosselin (2014), um pesquisador na etnografia pós-moderna atenta para uma realidade que é parcial e problemática, já que esta depende da linguagem para dar significado. Com isso, é importante desvendar “a pluralidade e a polissemia da linguagem na condução da pesquisa” (FORTIN e GOSSELIN, 2014, p.09). Com isso, a pesquisa pós-moderna vê que a linguagem não reflete uma realidade social, mas ela literalmente cria essa realidade (FORTIN e GOSSELIN, 2014). 

Para Angrosino (2009), a etnografia, enquanto método de estudo, é baseada na pesquisa de campo, conduzindo o pesquisador ao local onde as pessoas que ele estuda se encontram. Segundo o autor, esse método é indutivo e dialógico, cabendo ao pesquisador ouvir o que o sujeito de pesquisa tem a informar. 

Diante disso, a pesquisa tem como método produzir uma escrita que aborde um conhecimento sensível, assim como conhecimento teórico, além de integrar emoção e cognição em sua elaboração exploratória (FORTIN e GOSSELIN, 2014). Esse procedimento teórico metodológico tem função interpretativa. 

Deste modo, a aproximação com o artista e seus modos de produzir arte, sendo este indivíduo detentor de uma subjetividade e percepção de mundo particular. Neste caso, utilizamos a entrevista, visando imergir na realidade das experiências do artista investigado, a partir de seus relatos que explicam o fenômeno artístico estudado. Para isso, recorremos à forma da entrevista organizada como roteiro com questões importantes que devem ser frisadas ao longo de conversas, tornando o diálogo flexível, a partir de tópicos que serão abordados com o sujeito investigado (ANGROSINO, 2009).

Por isso, o espaço etnográfico dessa pesquisa foi no ateliê do artista, localizado na cidade de Timon, estado do Maranhão. Então, fizemos uma análise que integrou os já elencados objeto de estudo, artista, pesquisador e espaço de criação, de maneira a aperceber os conhecimentos produzidos em um contexto que situa produção artística e representação cultural sertaneja no Piauí. Para esse registro de informações, foram utilizados o gravador e o caderno de anotações. 

Para tanto, a apresentação dos dados coletados consiste num constructo das interpretações referentes às falas que foram apreendidas em campo. Incluso nisso, fizemos uma compilação das imagens das esculturas, produzindo um levantamento desse material empírico para uma escrita que permita a interpretação dos significados desses dados visuais, registrados em fotografia. Posto isto, o processo metodológico se constituiu na conjunção desses recursos elencados.

4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Por meio do estudo e análise dos dados, buscamos contextualizar a trajetória artística de João Borges em contato com suas produções escultóricas e as percepções que ele detém sobre os objetos que produz em seu ateliê. Assim, a obra de João Borges tem efeito social embasado na tradução de uma arte que converge para a expressão identitária do povo sertanejo, daquele indivíduo simples e interiorano que pratica ações que apresentam peculiaridades de sua região. Essas esculturas têm forte teor poético e enaltecem o ser sertanejo em seu cotidiano popular, assim como retratam sentimentos e afeições característicos desse povo. 

A respeito disso, a produção artística de João Borges é uma experiência que relaciona a expressão de ideias e sentimentos com a realidade local em que ele interage, nos instigando a refletir sobre as mensagens transmitidas com sua arte, comunicadas por gestualidades, vestimentas e práticas cotidianas. Essa arte corresponde à escultura como objeto simbólico com valor social e artístico.

Com isso, João Borges de Oliveira Leal é um artista nascido na cidade de Teresina, capital do estado do Piauí, no ano de 1970. Porém, mudou-se para a cidade vizinha Timon, no estado do Maranhão, sendo cidade fronteiriça com Teresina, separada apenas pelo rio Parnaíba. Filho de Teresinha de Jesus Oliveira e Marcos Borges Leal, ainda criança se via em meio a espaços de interação em uma comunidade simples da capital piauiense, onde, no decorrer do tempo, as práticas culturais ali avistadas serviriam de inspiração para suas proposições artísticas. Seus trabalhos escultóricos começaram já na vida adulta, onde começou a utilizar a matéria-prima do barro, extraído de uma cerâmica próxima a sua casa. 

Diante dessa aproximação com a arte, João Borges passou a produzir com o barro em abundância que encontrava perto da localidade onde residia uma vasta produção em esculturas. Para isso, João Borges torna sua relação com a arte escultórica uma experiência íntima e sensorial, que escolhe o barro e os procedimentos que se adequam a suas intenções artísticas, sentindo a cada instante o seu processo de feitura e permitindo ao observador captar as nuances inseridas em seus objetos artísticos.

Os materiais utilizados no fazer artístico de João Borges são facas de cozinha, arames (sendo estes confeccionados pelo próprio artista e utilizados para certas áreas da escultura). Esses arames usados são de ponta achatada para facilitar certas regiões das peças, como dedos, olhos, boca. Além disso, a vara de bambu é outro material utilizado, típico da vegetação nordestina, onde é cortada para servir de cabelo e delinear as orelhas das figuras. Ademais, a espátula é aproveitada no momento para arrastar o barro. No caso desse barro, o artista utiliza o que ele encontra em uma cerâmica próxima a sua residência, onde consegue uma quantidade abundante para produção de suas peças.

O artista afirma que a umidade e plasticidade do barro proporcionam uma modelagem na qual ele se diverte, imergindo em um universo à parte em que as texturas rústicas são como que impressões do tempo no corpo de seus indivíduos esculpidos. Essas esculturas têm uma escrita no tempo, falando sobre personagens populares, incluindo os famosos pilão zeiros da cidade de Timon, estado do Maranhão, os viajantes interioranos que partem para as metrópoles em busca de emprego, os moradores de casinhas de taipa, dos senhores que jogam baralho em conjunto e das crianças em suas peraltices nas zonas rurais da região Nordeste. 

Nesse caso, a escultura intitulada “O Pãozeiro” foi produzida pelo artista e colocada no centro da cidade de Timon, estabelecendo assim uma relação com o espaço social, exaltando esse ofício tão comum entre as pessoas dessa localidade. Nessa obra, assim como em várias outras, o artista faz uma produção precedente à modelagem no barro.  A prática artística de João Borges precede de uma espécie de performance, em que o artista ensaia as posições que sua peça terá, sendo ele o modelo vivo da obra, registrando em fotografias diversas posições que serão utilizadas como modo de planejamento quando for produzir a escultura. Isso é resultado de um grande empenho em ensaiar as posições da escultura, colocando um pilão imaginário no instante em que performa corporalmente sua criação. 

Nesta situação representativa, João Borges se torna o próprio pilãozeiro, ou seja, o artista se vê como uma dessas pessoas das comunidades interioranas nordestinas que são a referência cultural de suas obras.

Figura 01: Escultura “O Pilãozeiro”.

Fonte: http://timon.ma.gov.br/site/?p=10207

A partir da leitura da obra acima, podemos entender, a partir da própria interpretação do artista, que pilãozeiro é um ofício muito comum na cultura piauiense, onde o trabalhador produz um equipamento denominado pilão, o qual serve para macerar e moer os mais diversos tipos de alimento. Sendo estes, por exemplo, grãos, ervas, frutas e temperos. Essa arte de João Borges representa uma atividade laboral, onde o homem produz um material para facilitar suas atividades domésticas de preparos alimentícios.

Assim, João Borges vai dando ao barro uma acepção imaginária em conformidade com sua própria experiência corpórea. Essa maneira de criar do artista, onde o corpo toma reduto em sua representatividade, produz uma performatividade que é resultado de sensações pelas quais o artista vivencia. Como parte dessas investidas criativas, João Borges tem como modelo para as esculturas, também, a sua filha. Entretanto, por mais que haja um planejamento na execução dessas obras, com o recurso fotográfico como meio de registrar poses que servirão de inspiração para a produção escultórica, o artista também se permite deixar ser levado pelo acaso, por momentos de inspiração momentânea no instante em que esculpe seus objetos artísticos.

Figura 02: Escultura de um casal, de João Borges.

  Fonte: https://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2018/08/17/teresina-inspira-escultura-artistamodela-os-encontros-entre-teresinenses.ghtml  

Na imagem acima, João Borges a esculpiu com o barro, fazendo retoques com os dedos, para dar um acabamento. Nessa peça, em específico, o artista não produziu esboços no papel nem em fotografias, criando a imagem retratada de maneira improvisada. Essa forma dada ao barro foi sendo produzida aos poucos, com muita sutileza nos traços faciais, assim como no abraço selado pelo casal. O improviso artístico dessa escultura demonstra como João Borges trabalha ao mesmo tempo com a sensibilidade da forma humana e a expressão emotiva do sertanejo, materializada num abraço.

Em sua técnica escultórica, a modelagem, como explica o artista, é dar forma e contornos desejados a um material escolhido para sua criação artística. Ele relata que quando está em seus processos de criação, se sente realizado como artista e ser humano, pois se vê como ser integral em cada uma de suas artes.

Sendo assim, suas práticas artísticas são marcadas por detalhes minuciosos, apresentando uma textura rugosa e marcada, dando expressividade a suas peças. Existe uma preocupação em traduzir elementos identitários que narram histórias, dialogando entre si, interagindo com experiências tipicamente piauienses. Esses tipos sertanejos são visualizados em representações de um homem trabalhando com a enxada, disposto a capinar um terreno, de uma mulher com uma panela na cabeça, pronta a fazer uma comida; de um indivíduo com uma rede de pesca, pronto para capturar seu sustento alimentício. Essas obras têm forte teor poético e uma retratação realista e sensível sobre figuras humanas localizadas no interior de sua cultura. Nessas obras o artista trabalha com os mesmos temas, porém fazendo uma diferenciação através das texturas que são produzidas de maneira rústica.

Essa rusticidade, conforme aponta João Borges, vem pela retratação da imagem do sertanejo, em contato com o chão de barro, com as casinhas de taipa, com o sol ardente do sertão. O artista explica que sua arte produz uma reflexão sobre o ser sertanejo em seu contato com o ambiente físico e social em que envolve sua manutenção de memórias, saberes e fazeres.

Figuras 03 e 04: Homens jogando dominó; mulher com bacia.

Fonte: http://artepopularbrasil.blogspot.com/2010/12/joao-borges.html

É possível perceber nas imagens acima que há uma espécie de caracterização das pessoas esculpidas, com o uso de indumentárias e objetos que ajudam na definição das atividades que estão praticando. No caso da figura 03, há uma relação entre dois homens que jogam dominó, onde as peças estão dispostas em uma pequena mesa de madeira. 

Nisso, os senhores estão gesticulando suas táticas de jogo, observando atentamente a posição das peças. Ambos estão atentos à atividade, utilizando uma mesinha para apoiar as peças do jogo, ao mesmo tempo que estão sentados em banquinhos. Essa atividade lúdica, como aponta o escultor pesquisado, expressa uma prática corriqueira do sertão piauiense, onde senhores, costumeiramente idosos, num final de tarde, gostam de jogar dominó com seus amigos, vizinhos e parentes. Os gestos demonstrados com as mãos mostram o cuidado na hora de encaixar as peças, assim como as expressões faciais denotam concentração no jogo.

Já no caso da figura 04, uma senhora segura uma bacia, provavelmente tendo colhido algum alimento que levará para ser cozinhado. João Borges explica que a representação feminina com a bacia, mostra uma atividade laboral frequente entre as mulheres sertanejas, quando levam suas roupas e de seus familiares para lavá-las nos rios, onde passam manhãs e tardes enxaguando roupas, ao mesmo tempo que arrumam tempo para contar suas histórias, umas para as outras, assim como para cantar nas margens dos rios, apreciando o entardecer. Na expressão facial da mulher, expressa um semblante de tranquilidade, com os olhos fechados e um leve sorriso estampado. O gesto com o braço estendido para segurar a bacia sob a cabeça é típico das lavadeiras de roupa.

Figura 05: Homem e mulher na janela.

Fonte: https://www.geleiatotal.com.br/2017/10/19/joao-borges/  

Na figura 05, conseguimos notar com maiores detalhes o aspecto rústico e mal-acabado da obra escultórica de João Borges. Nessa imagem, notamos um homem e uma mulher interagindo. Na obra, percebe-se uma espécie de parede separando os corpos, no que seria um quarto em que a mulher se encontra, enquanto o homem, na parte de fora do lar. O gesto corporal da mulher aponta que ela está com o braço estendido na janela, ao mesmo tempo que olha para o homem com uma expressão facial sorridente. Já o homem, aparenta ter uma pose de galanteador, com uma mão na cintura e a outra estendida na perna. Notando nisso, percebe-se uma expressão facial de contentamento no homem. Como o artista aponta, essa é uma sociabilidade muito frequente no sertão do Piauí, onde os homens vão galantear as mulheres nas janelas de seus quartos, passando horas em contato, jogando conversas fora.

Essas atividades laborais e recreativas são temas bastante assíduos nas propostas do artista, como também são registros de experiências que o artista vivenciou em sua cultura sertaneja. Desse modo, João Borges afirma que considera o barro um material extremamente humano, e por considerá-lo assim, a figura que o inspira para a produção de suas peças é justamente o ser humano em sua inteireza, cheio de vivências, expressando suas experiências de vida, através de afetos, contatos sociais, trabalhos e diversões. 

Figura 06: Quebradeira de coco babaçu.

Fonte: https://www.joaoborges.com/quebradeira-de-c%C3%B4co

A figura 06, intitulada “Quebradeira de coco”, traz novamente um aspecto laboral sertanejo muito presente no estado do Piauí. Nesse caso, as quebradeiras de coco babaçu são comumente vistas no Piauí, com seus trabalhos que geram renda para o sustento de suas famílias, ao mesmo tempo em que se criam laços afetivos entre elas, na prática que desenvolvem, como ressalta o autor desta escultura, João Borges. O escultor explica que o coco babaçu é um fruto muito comumente encontrado na região sertaneja piauiense, gerando renda para esse povo, o qual as mulheres vão ensinando a prática de quebrar o coco de geração em geração.

Por isso, a obra de João Borges é um estudo etnográfico sobre a cultura popular sertaneja piauiense, sendo um registro sobre vivências desse povo. A prioridade de João Borges está no ato sensível de registrar elementos que expressam afetividades, sentimentos que ligam a imagem do piauiense a alguém hospitaleiro e sociável em convivência coletiva. Logo, essas esculturas são símbolos que representam essas experiências humanas.

5  CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo buscou compreender a arte de esculpir no barro, através da modelagem, com o escultor João Borges, que produz seu fazer artístico usando da referência humana para retratar uma etnografia do sertão piauiense. Esse aspecto etnográfico presente em suas esculturas está associado à representatividade cultural de um povo específico, trazendo características que unem gestualidades, fazeres e saberes tradicionais, expressando o ser humano em seus fatores emocionais e sociais.

 Cada peça produzida revela uma apresentação da essência do sertanejo no Piauí, mostrando suas formas de trabalho, seja como pilãozeiro ou como lavadeira de roupa; com o uso das afetividades, para demonstrar o namoro, o abraço entre pessoas, assim como nas brincadeiras de jogo entre amigos.

Essa forma de produzir saberes com o uso das linguagens artísticas atravessa a realidade de vida do próprio artista estudado, pois este se apropria de sua própria existência para buscar identificação com suas obras de arte. Para isso, o material escolhido vem da própria localidade onde vive, usando da modelagem para transformar um material da natureza em uma visualidade com significado cultural e afetivo para si e para quem aprecia suas imagens. 

Portanto, a intenção artística de João Borges é representar a cultura sertaneja em suas nuances, em seus registros que mesclam afetos, saberes tradicionais locais e experiências de vida compartilhadas por gestualidades que aproximam e integram indivíduos em sua rede viva de cultura. Cada uma de suas esculturas conta uma narrativa particular, contextualizada pelas vivências sertanejas. Ademais, todas as peças produzidas são, ao mesmo tempo, uma narrativa integrada sobre os modos de sentir e perceber o mundo ao redor pela perspectiva sertaneja.

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1Universidade Estadual do Piauí- UESPI
E-mail: breno.fidalgo@gmail.com

2Licenciado em Educação Artística pela UFPI (2013). Mestre em Antropologia pela UFPI (2019). Especialista
em Educação, Culturas e Regionalidades pela UESPI (2022).