MISOGINIA E A (IN) VISIBILIDADE DO TRABALHO DA MULHER: MECANISMOS DE SALVAGUARDA DOS DIREITOS DAS MULHERES VÍTIMAS DE PRECONCEITO LABORAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10426501


Túlia Gomes de Souza Neves


RESUMO

O presente estudo busca explorar a efetiva participação da mulher nas suas relações profissionais e o quadro de violência de gênero vivenciada em seus espaços de trabalho, mormente quanto à relegação da profissional à categoria inferior à masculina. O problema de pesquisa centra-se na abordagem da misoginia, no sentido de questionar as razões pelas quais persiste a desigualdade de gênero e cujos reflexos atingem as relações profissionais das mulheres, cujo questionamento se coloca na afetação da dignidade da mulher por sua condição feminina, e não profissional. Fundamentado em pesquisa bibliográfica e documental, com aplicação do método qualitativo de abordagem e o método dedutivo de análise, o estudo tem o objetivo apresentar o atual quadro de ocupação feminina no mercado de trabalho, e como a legislação é ou precisa ser aplicada para salvaguardar a igualdade de gênero também nos espaços de trabalho. Do resultado da análise, verifica-se que a problemática posta persiste, mesmo após a expressa previsão constitucional que direciona a garantia da igualdade de gênero, e de valorização da mulher enquanto ocupadora de locais de destaque, referidos estudos de casos julgados nos tribunais pátrios. A pesquisa oferece um melhor e mais aprofundado entendimento das possíveis abordagens para enfrentar um problema social perene e complexo.

PALAVRASCHAVE: Violência de gênero. Mercado de Trabalho da mulher. Misoginia.

ABSTRACT

The present study aims to explore the effective women participation in their professional relationships and the gender-based violence experienced in their workspaces, especially regarding the relegation of professionals to a lower category than men. The problem of the research focuses on the approach to misogyny to question the reasons why gender inequality persists and whose consequences affect the professional relationships of women, whose question arises from the affectation of women’s dignity due to their feminine and non-professional condition. Based on bibliographical and documentary research, with the application of the qualitative method of approach and the deductive method of analysis, the present study aims to present the current situation of female occupation in job market, and how the legislation is, or needs to be, applied to safeguard gender equality also in workspaces. From the results of the analysis, it appears that the problem persists, even after the express constitutional provision that directs the guarantee of gender equality, and the valorization of women as occupants of prominent places, case studies judged in the national courts. The research offers a better and deeper understanding of possible approaches to tackling a perennial and complex social problem.

KEYWORDS: Gender-based violence. Women’s Job Market. Misogyny.

1 INTRODUÇÃO

            A desigualdade de gênero figura como uma questão social persistente e perturbadora com implicações multifacetadas, não apenas para as mulheres, mas para a sociedade em geral.

            Esta afirmação deriva do crescente aumento de casos de tratamentos diferenciados entre homens e mulheres que exercem o mesmo cargo ou função no mercado de trabalho, por exemplo, e o problema configura rastro da cultura do patriarcado, desde épocas mais remotas da antiguidade clássica.

            A prevalência da família heteroparental e hierarquizada, relegava à mulher a condição de gerenciar a casa, cuidar dos filhos, e do esposo tirano, a quem incumbia a missão de sustento do lar.

Desde então, o trabalho executado pela genitora limitava-se aos cuidados domésticos, educação dos filhos, obedecidas as ordens superiores proferidas pelo varão, provedor da família, centro das atenções e a quem era devida obediência.

O passar dos anos, a evolução da sociedade, mormente com a possibilidade de dissolução do casamento com o advento da lei do divórcio, em 1977, mostra outra face das competências femininas, que não somente aquelas relativas aos cuidados da prole e do esposo.

É chegada a era do empoderamento feminino, com destaque para mulheres que enfrentaram a resistência machista da cultura do patriarcado para ocupar locais de relevância profissional.

Atividades importantes para o progresso da sociedade contaram com presença feminina. Pesquisadoras, diretoras de grandes empresas, cargos de alto escalão antes ocupados somente por homens passaram a dar lugar a mulheres de competência invejada.

Afora as habilidades comprovadamente presentes em grandes profissionais femininas, ainda permanece a mancha do patriarcado, a relegar o trabalho da mulher como inferior ao masculino, mormente pela produtividade diferenciada, pela múltipla jornada de trabalho (profissional e doméstico), remunerado aquém dos vencimentos percebidos pelos homens.

Diante deste cenário o presente artigo tem como problema de pesquisa questiona as razões pelas quais ainda persiste a desigualdade de gênero e cujos reflexos atingem as relações profissionais das mulheres, e neste sentido questiona: como ainda se verificam atos de misoginia nas relações de trabalho, mesmo diante da evolução legislativa que protege a dignidade das pessoas?

A partir do questionamento posto, o objetivo do presente estudo é demonstrar que o espaço de trabalho precisa e pode ser ocupado por todos os profissionais competentes e habilitados para o exercício dos cargos onde estão inseridos, devida a remuneração igualitária, independente do sexo do profissional ali atuante, a salvaguardar igualdade de gênero garantida constitucionalmente.

A relevância deste trabalho reside na contribuição para um entendimento mais aprofundado sobre o comportamento da sociedade frente à problemática abordada, mesmo após a expressa previsão constitucional que direciona a garantia da igualdade de gênero, e de valorização da mulher enquanto ocupadora de locais de destaque, referido estudo de caso.

 Em última análise, busca-se fornecer subsídios teóricos e práticos para a compreensão do problema e quais as ferramentas disponíveis na sociedade para o enfrentamento da discriminação por gênero na ocupação de cargos de trabalho e de distinção salarial, a tornar a sociedade mais colaborativa e bem receptiva às mulheres que realizam múltiplas tarefas, sem descurar das obrigações profissionais assumidas.

Para tanto, a primeira parte do artigo trata de uma breve contextualização histórica sobre a posição da mulher na sociedade até a ampliação do acesso das mulheres em locais de destaque na sociedade.

A segunda parte do texto mostra a representatividade feminina como parte da população economicamente ativa, consoante números levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísitca (IBGE).

Posteriormente, será analisado um caso prático de misoginia na ocupação de cargos oriundos de concurso público, para melhor compreensão e enfrentamento da questão, a referir, ainda na mesma seção, que há subsídios legais para coibir a prática da violência de gênero no mercado de trabalho.

Com a utilização do método qualitativo de abordagem e do método dedutivo de análise, o presente estudo foi formulado após a realização de pesquisa bibliográfica e documental extensiva, que englobou, para o desenvolvimento da concepção jurídica, estudos de caso, disposições normativas e publicações.

2 DO PATRIARCADO À CONQUISTA DE CARGOS DE DESTAQUE NA SOCIEDADE: A AMPLITUDE DA COMPETÊNCIA FEMININA NO MERCADO DE TRABALHO

Na obra “A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” (Engels, 1984), Friedrich Engels revela que a cultura do patriarcado tenha surgido a partir da necessidade do homem em identificar o filho como seu[2], e ao grupo familiar constituído ser perpetuado os bens acumulados, mormente pelo avanço das técnicas de caça.

            A partir deste cenário, o homem é o responsável pela subsistência da família. Ele se torna o centro da responsabilidade pela manutenção de todos os membros do grupo familiar, atribuído ao pater famílias romano a autoridade suprema da domus.

            Como a manutenção, aumento e perpetuação do patrimônio era a finalidade do bem agir do chefe da casa. O casamento surge justamente com a finalidade de acrescer o patrimônio da família, e perpetuá-lo com a transmissão à prole, quando do falecimento do pai.

            À mulher, portanto, cabia a organização, gestão dos empregados domésticos quando a família era abastada, criação, educação dos filhos, cuidados diários. Quanto ao papel de esposa, ela era subalterna ao marido, devia-lhe obediência, respeito, submissão, e cumprir os deveres conjugais.

            Essa cultura se perpetua ao longo de séculos na sociedade. O papel da mulher relegado ao âmbito doméstico, à criação e educação dos filhos, figura totalmente dependente do varão. A título ilustrativo, veja-se que, no Brasil, até a vigência do Código Civil de 2002, a mulher era relativamente incapaz para realizar os atos da vida civil e precisava ser representada pelo marido para negociar, ou dispor de seus bens.

            A fala de Martha Solange Scherer Saad reflete que, “na classificação dos direitos e deveres de cada cônjuge, a diferença de tratamento entre o marido, chefe da sociedade conjugal, e a mulher, sua colaboradora, ficava evidente” (SAAD, 2010, p. 27).

            Os padrões sociais da época refletiam os costumes da sociedade puramente patriarcal, machista, que subsidiou o advento do Código Civil de 1916. O casamento era indissolúvel, embora se vislumbrasse o desquite como forma de separar o então casal, no entanto, à mulher refletia o estigma da “desquitada” como mal exemplo às mulheres casadas e “comportadas”.

            A doutrina clássica ratifica o retrato da sociedade da época, chegada ao século XX permeada por conceitos desiguais entre homens e mulheres:

Os Códigos elaborados a partir do século XIX dedicaram normas sobre a família. Naquela época, a sociedade era eminentemente rural e patriarcal, guardando traços profundos da família da Antiguidade. A mulher dedicava-se aos afazeres domésticos e a lei não lhe conferia os mesmos direitos do homem. O marido era considerado o chefe, o administrador e o representante da sociedade conjugal. Nosso Código Civil de 1916 foi fruto direto dessa época. (VENOSA, 2014, p. 16).

Vê-se que a posição da mulher no contexto da sociedade da cultura do patriarcado nunca foi de destaque[3]. Enquanto vivia sob o teto da família, a mulher era subordinada ao pai e, quando casada, submetia-se à autoridade do esposo,

Todavia, a força feminina, através dos movimentos feministas fez surgir legislações mais avançadas que buscaram equiparar direitos entre homens e mulheres, o que só foi efetivamente alcançado no Brasil com o advento da Constituição Federal, em 1988. A primeira Constituição da República, de 1981 previa a igualdade formal entre todos, mas de forma absolutamente genérica, e estava relacionada muito mais aos privilégios econômicos do que a igualdade de gênero.

Questionava-se a subordinação feminina à autoridade masculina, a ausência de espaços e cargos públicos destinados à ocupação de mulheres, direitos restritos, a exemplo do que previa o artigo 6º e 233 do Código Civil de 1916, cuja autoridade da família era expressamente dedicada ao chefe de família.

Mais ainda, para entrarem no mercado de trabalho, as mulheres precisavam da autorização dos seus cônjuges, o que limitava, muito, o acesso delas ao emprego e exercício de carreiras profissionais (artigo 242, VII do Código Civil de 1916).

As limitações também alcançavam o exercício do pátrio poder em relação aos filhos. A função era do pai, as decisões e ordens relativas às vidas dos filhos era tomada pelo patriarca, transmitido à mãe somente quando aquele se ausentava. Caberia à mãe os cuidados domésticos diuturnos, alimentação, vestimenta, questões corriqueiras do dia a dia. Ainda sobre as regras postas pela sociedade patriarcal, a mulher era obrigada a acrescentar o sobrenome do marido (como se representasse o título de propriedade dele), mesmo porque as decisões quanto ao local do domicílio conjugal.

Neste contexto, impensável considerar a existência das famílias de fato (hoje é reconhecidamente legal a existência da União Estável, que é, inclusive equiparada ao casamento), uma vez que a família legitima era aquela composta através do vínculo do casamento.

Era muito baixa a voz feminina na sociedade dominada pela cultura machista, e foi justamente por esta razão que os movimentos feministas passaram a acontecer.

A primeira grande luta foi a busca pelos direitos políticos, ao voto, e participação efetiva feminina na democracia do Brasil, conquistado com o advento o decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, o Código Eleitoral. Seguiram-se as lutas por acesso ao emprego, remuneração, acesso à educação e suas liberdades, sobretudo a da dependência dos pais ou cônjuges, o que só foi possível com o estatuto da mulher casada, em 1962 e da lei do divórcio, de 1977.

Vê-se, a teor das normas que passaram a garantir direitos às mulheres, a sociedade começa a apresentar sinais de mudança e a igualdade (pelo menos formal), virá expressamente prevista na garantia posta na Constituição Federal de 1988.

A autonomia feminina, a ocupação de cargos públicos, de funções de confiança, o controle da maternidade, o divórcio, evolução das técnicas de procriação assistida, fizeram o empoderamento feminino a força necessária para consolidar as lutas feministas iniciadas no século XX.

Mulheres mães, solteiras, profissionais destacadas, ocupantes de cargos de confiança, de alto escalão, espaços antes ocupados exclusivamente por homens, comprovam com os resultados alcançados, que a igualdade de gênero é necessária, além de garantida constitucionalmente.

Essas conquistas refletiram não somente na posição da mulher na sociedade mas alterou-se, significativamente, os próprios costumes da coletividade. Por exemplo, as famílias puderam ser reconstruídas com o advento do divórcio, que, após a Emenda Constitucional 66/2010 prevê o divórcio direto, sem a necessidade da separação ode fato por dois anos, ou a judicial por um ano e, então, ser dissolvido o vínculo do casamento.

Depois, e como decorrência também disto, é dispensável a constituição ode uma família unicamente pelo casamento. As uniões de fato, consubstanciadas na convivência pública, duradoura, e com intenção de constituir família tem respaldo legal para reconhecer a União Estável como modelo legal de família.

Bem assim, a família monoparental, aquela composta por somente um dos pais e os filhos, biológicos ou não, também é reconhecida constitucionalmente. Ainda nesta lógica, e com as técnicas de procriação assistida, as mulheres passaram a ser mães, sem necessariamente serem casadas.

Ato continuo, a conquista do mercado de trabalho faz da mulher multifacetada nas funções que exerce – e sempre exerceu. Ainda, e como mancha histórica do patriarcado, à mulher são dedicados os cuidados domésticos, casa, filhos, esposos, idosos, além da atividade profissional que exerce. Isso, por óbvio, demanda tempo e atenção, sem desconsiderar das responsabilidades assumidas no trabalho.

            Disto, a luta pela conquista do espaço feminino na sociedade, em amplos aspectos, esbarra hoje, século XXI, no suposto comprometimento de suas atividades profissionais em virtude do trabalho (invisível) doméstico que executa e que, em muitos casos, relega a mulher, novamente, e após anos de lutas, ao espaço doméstico apenas, em notada prática misógina.

            Em atenção a este fenômeno, dedicaremos, no tópico próprio, e após análise de um caso prático, a flagrante diferença de gênero que ainda repercute na sociedade e no papel profissional da mulher.

3 MISOGINIA NO MERCADO DE TRABALHO – ANÁLISE DE SITUAÇÃO DE FATO, A APLICAÇÃO DA LEI NO CASO EM CONCRETO E A SALVAGUARDA DA IGUALDADE DE GÊNERO

Como consequência das lutas travadas contra o patriarcado, a sociedade apresentou um novo retrato, dinâmico, colorido, versátil, mormente pela forma como as famílias passaram a ser reconstruídas.

Mulheres como provedoras do lar jamais seria um cenário possível, numa cultura derivada dos conceitos engessados do passado. Cada vez mais, a participação feminina na economia do país tornou-se uma realidade incontestável.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2023 é crescente a participação feminina no mercado de trabalho. Elas representam 45,5% da população economicamente ativa (PEA).

No que diz respeito à educação, a escolaridade das mulheres ultrapassa a dos homens, sendo quase 60% delas com 11 nos ou mais de estudo, enquanto os homens representam 52%. Todavia, a educação é único setor em que as mulheres ultrapassam os homens, pois, mesmo com nível de escolaridade maior, a exemplo daquelas formadas em curso superior, 60% delas tem remuneração menor que a dos homens.

No entanto, os números referidos constatam que remanescem as resistências do patriarcado. Embora o Estado Democrático de Direito preveja a igualdade de gênero, a não distinção entre homens e mulheres na sociedade, e no mercado de trabalho, são verificados casos de flagrante preconceito.

A título de exemplo, refira-se a misoginia como prática recorrente da violência contra a mulher.

A misoginia é um termo que se refere ao ódio, desprezo ou preconceito contra as mulheres. É uma forma de discriminação de gênero que existe há séculos e continua a ser um problema persistente em muitas sociedades ao redor do mundo.

Pode se manifestar de várias maneiras, desde atitudes sutis de desvalorização e desrespeito até formas mais extremas de violência física e emocional. Ela pode ser encontrada em diferentes contextos, como no ambiente de trabalho, na política, na mídia e até mesmo nos relacionamentos pessoais.

Uma das formas mais comuns de manifestação da misoginia se dá na desigualdade de oportunidades e direitos entre homens e mulheres. Mulheres são frequentemente sub-representadas em posições de poder e liderança, recebem salários inferiores aos homens pelo mesmo trabalho e enfrentam obstáculos adicionais em suas carreiras devido a estereótipos de gênero.

Na prática, está enraizada em normas culturais e sociais que perpetuam a ideia de que as mulheres são inferiores aos homens.

É importante destacar que a misoginia não afeta apenas as mulheres, mas também prejudica a sociedade como um todo. Quando as mulheres são desvalorizadas e excluídas, perde-se a oportunidade de aproveitar todo o seu potencial e contribuição para o desenvolvimento social, econômico e cultural.

Esse sistema de poder desigual tem consequências negativas para as mulheres, como a falta de representação política, a disparidade salarial, a violência de gênero e a limitação de oportunidades educacionais e profissionais. Além disso, o patriarcado também afeta os homens, pois impõe expectativas rígidas de masculinidade, restringindo sua expressão emocional e limitando suas opções de vida.

3.1 ANÁLISE DE CASO CONCRETO E A PREVISÃO LEGAL DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES

Para ilustrar uma das formas através da qual a misoginia e o preconceito atuam contra a mulher no mercado de trabalho, passaremos a expor uma situação verídica, cuja situação encontra-se sub judice.

Propositadamente, serão ocultados os nomes das partes, exposta a situação na qual uma mulher foi exposta na sua posição de trabalho.

A parte Promovente da ação é professora de um determinado curso ofertado por uma Instituição de Ensino vinculada ao estado da Paraíba, desde o ano de 2007, em regime de dedicação exclusiva, a atuar tanto na graduação como no programa de pós-graduação da Universidade, e onde funcionava na condição de professora permanente por dez anos.

A professora ostenta vários títulos acadêmicos, dedicada exclusivamente aos estudos, com mestrado e doutorado e pós-doutorado por grandes e respeitadas instituições de ensino. Tem vasta experiência acadêmica, extensa publicação, assim como diversas participações em cursos no exterior e em bancas de avaliação de trabalhos científicos.

Não obstante, ela foi ilegalmente desligada do corpo permanente de um programa de pós-graduação, passando a operar como professora colaboradora, havendo sido preterida em relação a um determinado professor, cuja produtividade geral e experiência eram inferiores à dela, em ato desprovido de qualquer motivação, o que foi referendado pelos membros do Colegiado do mesmo programa da Instituição de ensino.

A justificativa para a exclusão da professora do programa foi somente a baixa produtividade verbalizado por outros professores homens que a licença maternidade pela qual passou a professora não seria motivo para a baixa produção acadêmica que estava sendo avaliada no período.

Pela professora, quando teve acesso aos documentos que, em tese, justificariam sua não classificação, foi verificada a ausência de critérios objetivos para seu afastamento, pois na lista de classificação constavam professores com pontuações inferiores ou iguais à dela, e que foram mantidos na condição de permanentes no programa.

 Demonstrou-se que o critério de escolha não obedeceu a nenhum fundamento técnico, mas sim em bases discriminatórias e desiguais, sobretudo em função de uma perspectiva preconceituosa de gênero (mormente pelo período em que permaneceu afastada de suas atividades em virtude da licença maternidade).

Do ato da instituição de ensino verificou-se, além da fundamentação para o ato que desclassificou a professora, ofensa à igualdade de gêneros, protegida pela Constituição Federal (art. 5º, I).

 Da narrativa da estória, constatou-se que a professora teria superado outro docente em termos de produtividade, critério utilizado pela instituição para escolher os professores permanentes e os colaboradores, ainda, conforme o parecer técnico, foi ignorado o fato de ela, por ser mulher e ter concebido um filho, ter estado, no período considerado, de licença maternidade.

Houve, no caso, desrespeito à igualdade de gênero constitucionalmente prevista (art. 5º, I), na medida em que, além de o ato administrativo discutido ter conduzido ao rebaixamento professora na esfera profissional, importou constrangimento de ordem moral perante outros colegas e alunos.

Mais ainda, no caso, a professora foi tratada de forma extremamente depreciativa e pejorativa, justamente pela a necessidade de a mulher se afastar de suas atividades laborais para ficar com seus filhos.

Põe em xeque a posição da mulher no mercado de trabalho, a olvidar todos os esforços que têm sido feitos no último século para promover uma inclusão maior, concedendo direitos, a fim de proteger a igualdade. A propósito, o art. 5º, I, da Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
[…]

A igualdade expressa no disposto legal não é, à evidência, senão aquela que determina um tratamento desigual, para que se encontre a equidade. Não se admite, em nenhuma hipótese, indesejado retrocesso, a expor as mulheres, por exemplo, à situação de não-cidadãs, incapazes de influenciar na vida pública.

Cuida a norma constitucional em fazer valer todas as conquistas da mulher, no sentido de seguir no horizonte a plena igualdade de direitos entre elas e os homens, pois, é notável, ainda, a supressão da posição feminina de muitos lugares de destaque em detrimento de um líder do sexo masculino, por se esperar, de forma preconceituosa, que um homem pode produzir mais e melhor.

Desrespeita-se, vertiginosamente, o trabalho (in) visível da mulher, a relegar suas potencialidades ao âmbito doméstico, aos cuidados dos filhos, da casa, a reduzi-la a mera cuidadora. Não que ela não seja. Ela é e continuará representar o cuidado, todavia, e pela via diametralmente oposta, além dos cuidados diuturnos que dedica aos seus, ela se coloca suficientemente empoderada para ocupar, cada vez mais, cargos relevantes e destacados.

Entre os anos de 2019 e 2022, as mulheres passaram de 13% a 17% dos CEOs do país, segundo pesquisa do Insper.[4] Este panorama fortalece a equidade de gênero, o que não é reconhecido pelos homens.

Como sinaliza Simone de Beauvoir:

A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico, e não um momento da história humana. […] Mesmo quando os direitos lhe são abstratamente reconhecidos, um longo hábito impede que encontrem nos costumes sua expressão concreta. […] Sim, as mulheres, em seu conjunto, são hoje inferiores aos homens, isto é, sua situação oferece-lhes possibilidades menores: o problema consiste em saber se esse estado de coisas deve se perpetuar. Muitos homens o desejam: nem todos se desarmaram ainda. A burguesia conservadora continua a ver na emancipação da mulher um perigo que lhe ameaça a moral e os interesses. Certos homens temem a concorrência feminina. No Hebdo-Latin um estudante declarava há dias: “Toda estudante que consegue uma posição de médico ou de advogado rouba-nos um lugar”. Esse rapaz não duvidava, um só instante, de seus próprios direitos sobre o mundo. Não são somente os interesses econômicos que importam. Um dos benefícios que a opressão assegura aos opressores é de o mais humilde destes se sentir superior: um “pobre branco” do sul dos Estados Unidos tem o consolo de dizer a si próprio que não é “um negro imundo”, e os brancos mais ricos exploram habilmente esse orgulho. Assim também o mais medíocre dos homens julga-se um semideus diante das mulheres. Era muito mais fácil a Montherlant julgar-se um herói quando se confrontava com as mulheres (escolhidas, de resto, a dedo) do que quando teve de desempenhar seu papel: “Nós ouvimos numa atitude (sic) de indiferença cortês…a mais brilhante dentre elas de homem entre os homens: papel que muitas mulheres desempenharam melhor do que ele. É assim que, em setembro de 1948, em um de seus artigos do Fígaro Littéraire, o Sr. Claude Mauriac – cuja forte originalidade todos admiram – pode escrever a respeito das mulheres, sabendo muito bem que seu espírito reflete, de maneira mais ou menos brilhante, ideias que vêm de nós”. […] O termo fêmea é pejorativo não porque enraíza a mulher na Natureza, mas porque a confina no seu sexo. E se esse sexo parece ao homem desprezível e inimigo, mesmo nos bichos inocentes, é evidentemente por causa da inquieta hostilidade que a mulher suscita no homem; entretanto, ele quer encontrar na biologia uma justificação desse sentimento. […] Recusamos também todo o sistema de referências que subentende a existência de uma hierarquia natural de valores, de uma hierarquia evolutiva, por exemplo; é ocioso indagar se o corpo feminino é ou não mais infantil do que o do homem, se se aproxima mais ou menos do dos primatas superiores. Todas essas dissertações que misturam um vago naturalismo a uma ética ou a uma estética ainda mais vaga são puro devaneio. […] A mulher não é uma realidade imóvel, e sim um vir a ser; é no seu vir a ser que se deveria confrontá-la com o homem, isto é, que se deveria definir suas possibilidades. O que falseia tantas discussões é querer reduzi-la ao que ela foi, ao que é hoje, quando se aventa a questão de suas capacidades; o fato é que as capacidades só se manifestam com evidência quando realizadas, mas o fato é também que, quando se considera um ser que é transcendência e superação, não se pode nunca encerrar as contas. (BEAUVOIR, 1949).

O texto, redigido na metade do século XIX, sinaliza que a mudança de paradigmas não se faz abruptamente, tampouco em resistências. A mulher, vista pela sociedade do patriarcado como a mera coadjuvante, inferior. E, a parafrasear a autora, o problema posto no artigo questiona se, diante da igualdade esclarecida na Constituição Federal, se o problema deve “se esse estado de coisas deve se perpetuar.”

A condição da mulher, portanto, e desde as origens das primeiras civilizações e do patriarcado é aquela rebaixada à mera condição de mãe, reprodutora, hierarquicamente inferior ao varão. Todavia, a necessidade da coibição do preconceito por gênero é premente.

Vê-se, vertiginosamente, a prática de violência contra a mulher em várias vertentes, da misoginia no mercado de trabalho ao crescimento dos crimes de feminicídio no país, que, por sua vez, cresceu, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil contabilizou 1.400 feminicídios no ano de 2022.

A discussão aqui colocada aponta a necessidade da discussão, a dar claras luzes ao problema da diferença de gênero que ainda repercute na esfera profissional da mulher, mesmo havendo segurança constitucional de sua proibição.

A busca por direitos iguais e, sobretudo, pelo respeito, tem caráter pedagógico, merece ainda mais atenção quando a discriminação, mesmo que velada, acontece diuturnamente e onde há a salvaguarda da igualdade de direitos, a contemplar a isonomia, o respeito, a tolerância e não a separação, o isolamento e a diferenciação.

Disto, em análise ao que resta assegurado para quem é vítima da misoginia velada, há respaldo legal para sua proteção e, a depender do caso em análise, até ser devida indenização por mal injusto, flagrante o dano provocado pela discriminação por gênero, a abalar, flagrantemente, a moral e a honra daquela que se vê preterida de seu cargo ou função, unicamente por ser mulher.

A legislação põe a salvo, felizmente, e com fundamento nos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil, a indenização para aquelas que sofreram danos por uma conduta culposa ou dolosa do agente, e que provocaram danos hábeis a abalar a integridade psicofísica da pessoa.

Para além dos dispositivos legais já existentes para garantia da não diferenciação de gênero, é importante a implementação de outras normas que proíbam a discriminação salarial e promovam a igualdade de remuneração. Também é conveniente e oportuno que haja promoção de políticas de licença parental remunerada e flexibilidade no local de trabalho, para permitir que homens e mulheres conciliem trabalho e vida pessoal.

Não menos importante é a sensibilização e conscientização sobre a importância da igualdade de gênero no local de trabalho, por meio de campanhas de conscientização e treinamentos, para além da adoção de cultura igualitária e inclusiva, com políticas de não discriminação e a implementação de práticas de recrutamento e seleção justas e imparciais.

Imprescindível se faz que se imponha a cultura democrática, inclusiva e livre de estereótipos do passado, a fim de que se concretize o objetivo constitucional de assegurar a todos o convívio justo, livre e solidário.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Considerar o trabalho da mulher limitado ao âmbito doméstico invoca a aplicação de conceitos ultrapassados, incabíveis na era da pós modernidade, como se a ela não fosse dedicada a atenção pelo serviço que executa também no campo profissional.

            Muitas lutas foram travadas pelas mulheres, sobretudo derivadas dos movimentos feministas, para garantir a visibilidade necessária a retirá-las da posição de subalternidade em relação ao pai/cônjuge, a galgar, cada vez mais, posições privilegiadas na sociedade, na vida política, acadêmica, profissional.

            Embora se reconheçam os avanços legislativos quanto às novas estruturas familiares, que afastam a cultura do patriarcado de séculos atrás, é bem verdade que da cultura machista remanescem traços marcantes, sendo um deles a prática da misoginia no mercado de trabalho.

O preconceito de gênero exclui a hipótese de mulheres que se preparam para o exercício de atividades profissionais, a relegá-las a subcategoria, abaixo dos homens, a considerá-las improdutivas, ou limitar o reconhecimento do trabalho doméstico, tão somente.  

É notável que há o comprometimento do tempo e dedicação da profissional depois que dá à luz, por questões óbvias e relevantes, sobretudo ao filho recém-nascido. A conciliação do tempo de cuidados maternos e domésticos com o trabalho é mais um grande desafio da mulher multitarefas.

Na prática, referiu-se um exemplo concreto de desclassificação de uma professora, vinculada a instituição de ensino superior pública do estado da Paraíba, por, supostamente, ter produzido menos no período que esteve de licença maternidade. No caso, nem houve análise de critérios objetivos que pudessem ter justificado a desclassificação da professora em detrimento de um profissional do sexo masculino, a supor que a produção acadêmica da profissional tenha sido aquém e desvalorizada e que a licença maternidade somente tivesse efeito para fins de direitos trabalhistas.

            Este é somente um dos tantos casos em que se constata a preterição de uma vaga de trabalho feminino em prol de um homem, flagrante distinção e preconceito, ainda presentes na sociedade pós constituição de 1988, que assegura, sobremaneira, a igualdade de todos perante a lei.

            Ainda, há, na legislação infraconstitucional, meios para perseguir a compensação pelos danos psíquicos, oriundos do ato ilícito praticado pelo infrator, que deve responsabilizar-se pelo prejuízo causado.

Não obstante as ferramentas legais já postas, é imperioso e urgente que novas práticas de respeito e tolerância à igualdade de gênero, com implementação e criação de políticas de não discriminação, para que seja rompida com a cultura do patriarcado que exclui, diminui e desvaloriza a mulher que merece ter vistas suas habilidades, em amplíssimos aspectos.

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone. O Segundo sexo. Gallimard: 1949.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 09 dez. 2023.

BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 09 dez. 2023.

BRASIL. Resolução nº 128, de 17 de março de 2011. Determina a criação de Coordenadorias Estaduais das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar no âmbito dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça, 21 mar. 2011. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-normativos?documento=151. Acesso em: 09 dez. 2023.

CAVALCANTI, Camilla de Araujo. Famílias pós-modernas: A tutela constitucional à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Curitiba: Juruá, 2016.

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da Propriedade Privada e do Estado. 9ª ed. Rio de Janeiro: civilização brasileira, 1984.

Projeto de lei criminaliza a misoginia. Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/942988-projeto-de-lei-criminaliza-a-misoginia/. Acesso em: 09 dez. 2023.

Violência de gênero no ambiente de trabalho. Mattos Filho. Disponível em: https://www.mattosfilho.com.br/unico/violencia-genero-trabalho/. Acesso em: 09 dez. 2023.


[2] Nesta mesma obra, o autor revela que era comum a prática não só da poligamia, mas da poliandria, o que dificultava a identificação dos filhos pelos pais. Após a necessidade de identificação dos filhos como seus, e domínio da caça elo homem, é ele quem passa a ordenar as tarefas domésticas, cabendo à mulher a gerência dos insumos destinados à sobrevivência do grupo familiar.

[3] Salvo as exceções. Há mulheres que se destacaram no contexto da cultura evidentemente paterna, a exemplo da Rainha Elizabet II, no Reino Unido, que assumiu a monarquia britânica em 1952, e no Brasil vários nomes podem ser referidos, a exemplo da Princesa Isabel e sua luta política pela abolição da escravatura; Bertha Lutz, advogada e militante feminista; Anita Garibaldi, cujo papel de destaque deu-se no campo militar, na Revolução Farroupilha.

[4] Disponível em: https://forbes.com.br/forbes-mulher/2023/05/lideranca-feminina-cresce-no-brasil-e-mulheres-ocupam-17-das-presidencias/. Acesso em: 09 dez.2023.


FILIAÇÃO