MATERNIDADE E INFÂNCIA: PARALELOS ENTRE MADAME BOVARY E SUÍTE TÓQUIO

MATERNITY AND CHILDHOOD: PARALLELS BETWEEN MADAME BOVARY AND SUÍTE TOQUIO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10612537


Ralf Pirilo Faeda;
Professor Orientador: Dr. Otto Leopoldo Winck


RESUMO

Este artigo pretende averiguar como foi abordado o tema maternidade no clássico Madame Bovary, de Flaubert, publicado em 1856, e de que forma o aclamado livro reflete o tratamento que a sociedade de então dispensava à criação dos filhos, ou seja, com distanciamento afetivo e terceirização de cuidados. Em um segundo momento, terá lugar a verificação das transformações sociais propiciadas pela ascensão da burguesia e como elas incidiram sobre os costumes durante o século XX, período no qual a mudança de concepção acerca da infância promoveu decisiva mudança no modo de organização familiar, em claro empecilho à emancipação feminina no mesmo período. Como contraponto, o mesmo aspecto será averiguado no livro Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso, publicado em 2020, e assim pretende-se colher uma perspectiva contemporânea sobre o tema, com o objetivo de comparar os dois registros a fim de encontrar paralelos entre as obras e distinções no que se refere à maternidade.

Palavras-chave: Maternidade; Infância; Feminino; Paradigma; Social.

SUMMARY

This article intends to find out how the theme of motherhood was approached in the classic Madame Bovary, by Flaubert, published in 1856, and how the acclaimed book reflects the treatment that society at the time gave to raising children, that is, with emotional distancing and care outsourcing. In a second moment, the verification of the social transformations brought about by the rise of the bourgeoisie will take place and how they affected customs during the 20th century, a period in which the change of conception about childhood promoted a decisive change in the way of family organization, in clear impediment to female emancipation in the same period. As a counterpoint, the same aspect will be investigated in the book Suíte Tokyo, by Giovana Madalosso, published in 2020, and thus it is intended to gather a contemporary perspective on the subject, with the aim of comparing the two registers in order to find parallels between the works. and distinctions regarding motherhood.

Keywords: Maternity; Infancy; Feminine; Paradigm; Social.

UMA MULHER ESTÁ SEMPRE PRESA: A MATERNIDADE EM MADAME BOVARY

Não se trata de novidade apontar o tédio e a monotonia como estopins para as ações de Emma Bovary no clássico de Flaubert (VACARY, 2018). Decepcionada com a pasmaceira da vida conjugal – em tudo diferente ao que costumava ler nos livros – Emma afunda-se no modorrento cotidiano pequeno-burguês reservado a uma típica mulher casada de então, restringida entre as tarefas cotidianas e a parca vida social do marido, o enfadonho Charles. Após um ligeiro encantamento inicial, paulatinamente a jovem senhora abandona o exercício da música, enjoa da costura, não vê graça nas tarefas domésticas. O tédio a engole, e é descrito minuciosamente no livro, quase como a justificar as ações seguintes da personagem. Antes do adultério, porém, é digno de nota que Emma torna-se mãe (embora Flaubert dedique pouquíssimas linhas para descrever a maternidade, o que pode denotar tanto o mero desdém da sociedade da época pelo tema como um recurso narrativo visando a objetividade do enredo):

Emma, a princípio, ficará amedrontada; depois teve vontade de ter o filho logo para saber o que era ser mãe. Mas, não podendo fazer as despesas que queria: um berço de luxo com cortinas de seda cor-de-rosa e bordados, renunciou ao enxoval, num acesso de amargura, encomendando-o de uma só vez a uma costureira de aldeia, sem escolher nem discutir nada. (FLAUBERT, 2011, p. 93) 

Ao materialismo frustrado de Emma, frequentemente pontuado ao longo da obra e decorrente dos módicos rendimentos do marido, se somará outro desgosto, verificado nas três linhas dedicadas a descrever o parto. Charles, entusiasmado, recebe a criança e anuncia que se trata de uma menina. No parágrafo imediatamente anterior, como a reforçar a dissonância entre o imaginado e a realidade, havíamos lido que Emma

Desejava um filho, que seria forte e moreno. Ela o chamaria Georges. A ideia de ter um filho homem era como a esperança de desforra de sua impotência passada. Um homem, pelo menos, é livre; pode percorrer as paixões e os países, atravessar os obstáculos, buscar os prazeres mais distantes. Mas uma mulher está sempre presa. Inerte e flexível ao mesmo tempo, tem contra si as fraquezas da carne e as imposições da lei. Sua vontade, como o véu da cabeça, estremece a todos os ventos, há sempre um desejo que atrai e uma convenção que a impede. (FLAUBERT, 2011, p. 93)

Bertha, a filha dos Bovary, mal terá espaço na narrativa – e não será exagero concluir que suas raras aparições representam um estorvo para a agitada Emma, mesmo antes da consumação do adultério:

Mas a pequena Bertha estava ali (…) caminhando sem segurança nos sapatinhos de lã e tentando aproximar-se da mãe para segurar-lhe as fitas do avental. — Deixa-me! — disse Emma, afastando a criança com a mão. A pequenina logo voltou, (…) erguendo para a mãe os grandes olhos azuis, enquanto um fio de baba lhe escorria dos lábios, caindo sobre a seda do avental. — Deixa-me! — repetiu a jovem senhora, irritada. Seu rosto espantou a criança, que começou a chorar. — Eh! Saia daí! — repetiu Emma, empurrando a filha com o cotovelo. Bertha caiu junto à cômoda, ferindo o rosto no puxador de cobre. Saiu sangue. M.me Bovary precipitou-se para socorrê-la (…) e chamou a empregada com toda a força dos pulmões. Ia começar a maldizer-se, quando Charles apareceu. Era hora do jantar e ele voltava.— Olha só — disse Emma com voz tranquila. — A menina estava brincando e feriu-se. (FLAUBERT, 2011, p. 116)

Mais adiante, quando Emma já está envolvida com Leon, seu segundo amante (o primeiro havia sido Rodolphe), o distanciamento dela em relação à filha é narrado sob o viés do pacato Charles, que 

Depois do jantar, passeava sozinho no jardim. Punha a filha nos joelhos e, desdobrando o jornal de medicina, procurava ensiná-la a ler. (…) Depois a criança sentia frio e chamava pela mãe. — Chama a criada — dizia Charles. — Sabes bem, minha querida, que mamãe não gosta que a incomodem. (FLAUBERT, 2011, p. 269)

Tais atitudes de Emma, entretanto, não parecem incomodar sobremaneira Charles ou a nenhum dos demais personagens, ainda que Yonville-l’Abbaye (onde residiam os Bovary desde que Bertha nascera) fosse apenas uma cidadezinha em que os vizinhos observam a vida alheia com o devido escrutínio. Mesmo levando em conta uma flaubertiana estratégia de inversão de papéis na construção do casal – ou seja, a mulher assume ares aventureiros enquanto o homem recolhe-se, pacato – e mesmo que levemos em conta as “virtudes supostamente viris” identificadas em Emma (LLOSA, 2015, p. 167), essa relação de evidente distanciamento com a filha, por assim dizer, não parece um traço específico da personalidade Emma, como no caso dos deslocamentos que realiza atrás dos amantes e do consumismo desenfreado. Em outros termos, Emma, enquanto mãe, nas linhas de Flaubert, não parece deslocada de seu tempo:

Um dia, Emma sentiu repentinamente vontade de ver a filha, que fora entregue aos cuidados da ama de leite, mulher do sapateiro. (…) Ao bater no portão, a ama apareceu, trazendo nos braços uma criança, que mamava. Puxava pela outra mão um menino franzino, cheio de feridas no rosto. Era filho de um chapeleiro de Rouen cujos pais, muito ocupados com os negócios, lho haviam confiado para que ficasse um pouco no campo. — Entre — disse a ama. — Sua filha está dormindo. (FLAUBERT, 2011, p. 96)

Acerca da criação das crianças, a terceirização da responsabilidade nos primeiros anos representava algo cultural na França, onde

mesmo antes da revolução, a femme francesa costumava não se pensar antes de tudo como mãe. As mulheres das classes altas, depois médias, sempre contaram com amas de leite às quais entregavam alegremente os filhos recém-nascidos, filhos que, quando crescessem, seriam colocados nas mãos de instrutoras e depois enviados a internatos. As responsabilidades maternas eram socialmente embaraçosas para elas: esperava-se que as fêmeas de certas classes dessem prioridade a seus maridos e ao círculo social e seus afãs políticos e intelectuais. (MERUANE, 2018, 42)

Essa terceirização funcionava como uma espécie de quarentena, necessária para que os pequenos pudessem integrar satisfatoriamente o mundo adulto (HEYWOOD, 2004, p. 23). Tal comportamento era tradicional e normalizado na sociedade francesa, ainda que se leve em conta a forte influência religiosa no período, visto que mesmo no pensamento cristão, pelo menos até século XVIII, a criança era vista como um ser “imperfeito, símbolo da força do mal, esmagado pelo peso do pecado original”. (BADINTER, 1985, p. 55) Se o matrimônio era naturalmente encarado como um contrato social em que os sentimentos não interferiam, o mesmo pode ser dito acerca da criação dos filhos, tida essencialmente como um entrave burocrático a ser superado na construção do futuro adulto:

No século XVII e sobretudo no século XVIII, a educação da criança das classes burguesas ou aristocráticas segue aproximadamente o mesmo ritual, pontuado por três fases diferentes: a colocação na casa de uma ama, o retorno ao lar e depois a partida para o convento ou o internato. A criança viverá no máximo, em média, cinco ou seis anos sob o teto paterno, o que não significa absolutamente que viverá com os pais. Podemos dizer, desde já, que o filho do comerciante ou do artesão, como o do magistrado ou do aristocrata da corte, conhecerá uma solidão prolongada, por vezes a falta de cuidados e com frequência um verdadeiro abandono moral e afetivo. (BADINTER, 1985, p. 118).

No contexto de Madame Bovary, cabe também ressaltar que as preocupações de Charles com sua filha são eloquentes quanto ao restritivo lugar da mulher naquela sociedade. Bertha, para ser “bem-educada”, no futuro devaneado pelo pai “deveria tocar piano, usar chapéus largos de palha” e permanecer junto dele, à noite, “bordando-lhe pantufas”. Além de governar a casa e enchê-la de beleza e alegria, a futura jovem Bertha haveria de casar-se, obviamente, e Charles estava certo de que “encontrariam um bom rapaz, de posição sólida, que a faria feliz para sempre”. (FLAUBERT, 2011, p. 187). Também é digno de nota que, após o infortúnio que acometeu sua família, ao fim do livro Bertha acabará sob os cuidados de uma tia, trabalhando para “ganhar a vida numa fábrica de algodão” (p. 325), em um registro da transição para a industrialização que mudaria de vez os rumos da sociedade.

OUTRO OLHAR SOBRE A INFÂNCIA E O NOVO ESPAÇO SOCIAL FEMININO

Embora não se pretenda tomar a sociedade francesa como parâmetro para a criação de filhos no século XIX em todo o Ocidente, o tratamento dado a este tema em Madame Bovary pode ser analisado à luz do conceito de infância, sensivelmente alterado no fim do século XIX e início do século XX, especialmente após a propagação das ideias de Rousseau, para quem a infância seria o sono da razão. Friedrich Froebel (1782-1852), entrou para a História como o criador do jardim de infância, esse marco burguês que muito influenciou no entendimento contemporâneo sobre a educação dos filhos. Sob vários aspectos, pode-se afirmar que a infância é uma construção social, uma invenção burguesa, na medida em que o conceito tal como o conhecemos se moldou ao estilo de vida desta classe (HILLESHEIM, 2007). A mudança do entendimento de infância se dará basicamente após o advento da escola e durante a nova organização urbana do trabalho, que dispensará a criança como um par de braços para trabalhar, passando a olhá-la como um cérebro a ser preparado para o futuro (ou, com a licença do sarcasmo, como uma boca mais a alimentar).

Trata-se de um sentimento inteiramente novo: os pais se interessavam pelos estudos dos seus filhos e os acompanhavam nos séculos XIX e XX com solicitude outrora desconhecida. (…) A família começou a se organizar em torno da criança e a lhe dar uma tal importância que a criança saiu de seu antigo anonimato, se tornou impossível perdê–la ou substituí–la sem uma enorme dor, (…) se tornou necessário limitar seu número para melhor cuidar dela (ÀRIES, 1973, p. 10).

Ao novo olhar sobre as crianças se chocam as lutas e conquistas femininas ao longo do século XX, dentre as quais, o direito ao voto e ao divórcio, o acesso ao mercado de trabalho e o advento da pílula anticoncepcional. Todas essas transformações, que foram paulatinas e a custo de muito esforço, ampliaram a participação das mulheres na sociedade, de maneira que a voz feminina, especialmente no Ocidente, se fez ouvir como jamais antes na História, até então cooptada pelo gênero masculino.

As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do “eterno feminino”: a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina (BEAUVOIR, 1967, p. 2)

Basta acompanhar o noticiário atual, porém, para perceber o quanto a emancipação feminina não significou equidade entre os gêneros. Se antes do século XIX o lugar da mulher na sociedade sequer era discutido, cabendo ao pai ou marido responder por ela em qualquer situação, a penetração feminina nos âmbitos até então reservados ao sexo oposto trouxe uma miríade de entraves institucionais e culturais, de forma a normalizar essa disparidade: 

(…) a desigualdade de gênero passa a ter um caráter universal, construído e reconstruído numa teia de significados produzidos por vários discursos, como a filosofia, a religião, a educação, o direito, etc., perpetuando-se através da história, e legitimando-se sob seu tempo (TEDESCHI, 2008, p. 123).

Mesmo a superação dessas adversidades, quando apenas ocorre no particular, se volta contra o gênero feminino em geral, visto que os mitos da mulher guerreira e da mulher múltipla, generalizações tão aceitas em nossos dias, são equivalentes contemporâneos do histórico cerceamento da liberdade feminina, uma espécie de “patriarcado contemporâneo” (MACHADO, 2000). Para que consiga se destacar, exige-se que a mulher cumpra com méritos diversas funções.

Recorrendo novamente a Beauvoir, interessante notar que sua obra foi publicada menos de um século após o lançamento de Madame Bovary, e já é perceptível em seus textos um incômodo acerca da figura materna como sendo absorvente. Beauvoir, francesa como Emma, foi taxativa ao postular que “enquanto o mito da maternidade e o instinto materno não tiverem sido destruídos, as mulheres ainda serão oprimidas”. (SARDENBERG, 2000) Sua contemporânea, Elisabeth Badinter (1985), afirmará que o amor materno é nada mais do que um “comportamento social” construído após o século XVIII. 

No que se refere às mulheres, se deu uma inversão completa no entendimento do que seria a relação materna ideal, passando do desinteresse acintoso para a completa devoção aos filhos ao cabo de poucas gerações. Alguns dos resultados práticos de tal inversão no tratamento do tema maternidade podem ser observados no livro Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso, conforme capítulo que segue.

O FEMININO DESDOBRADO EM SUÍTE TÓQUIO

Assim como em Madame Bovary, há um adultério em Suíte Tóquio. O alegado tédio que tanto massacra Emma em Yonville-l’Abbaye, porém, não poderá servir de explicação para a traição de Fernanda, a workaholic que protagoniza o livro de Giovana Madalosso. Fernanda é produtora executiva de um canal de televisão, “o cargo mais alto do escritório no Brasil”, e sua rotina excruciante consiste de muitas viagens, reuniões a qualquer horário e um celular onipresente a partir do qual responde demandas a qualquer tempo. A fadiga e o perfeccionismo roubam-lhe o direito ao tédio.

A exemplo do Charles construído por Flaubert, também o marido de Fernanda, Cacá, entrega altas doses de monotonia e baixa identificação com os anseios da esposa, e também ele tem com a filha uma conexão maior do que a que se verifica em Fernanda. As semelhanças entre os romances param por aí, entretanto. Retratando uma realidade que se consolida em nossos dias1, em Suíte Tóquio é Fernanda quem tem o salário que sustenta a casa. O marido tem uma renda instável, por assim dizer, mas é hábil em resolver as questões domésticas. Fernanda, que não se sente confortável como mãe, encontrará no adultério uma fuga para a automatização de sua rotina conjugal, essa sim bastante entediante. Mais do que isso, Fernanda trai por encontrar uma nova parceira que é em tudo oposta a si mesma. Yara, sua amante, não se deixa prender pelo trabalho, não tem filhos ou marido e sequer possui residência fixa. Do contraste entre elas nascerá o romance que absorverá de tal modo Fernanda a ponto de abduzi-la da própria rotina.

Não se perca de vista o foco deste artigo, porém. O livro conduz, acima de tudo, um olhar sobre a maternidade. O tema já havia aparecido no primeiro livro de Madalosso (Teta Racional, 2016) e em Suíte Tóquio a perspectiva se desdobra. Como já ficou dito, Fernanda tem dificuldades em assumir o papel imposto à mãe contemporânea, este da já referida mulher múltipla, que equilibra carreira, vida pessoal, os cuidados com a casa, os filhos e tudo o mais que se fizer necessário. Aqui, a protagonista consegue se emancipar dos afazeres domésticos (o dinheiro ajuda neste quesito) e praticamente não sucumbe aos grilhões do padrão estético (não fica realçado no livro). Quando o assunto é maternidade, porém, não obstante recorrer à terceirização dos cuidados de sua filha Cora, Fernanda não consegue se abster da culpa pela ideia de ser uma mãe ausente. O trecho a seguir ilustra sua inabilidade no trato com a filha:

Foi a maior humilhação, apanhar de um bebê de dois anos. Aconteceu durante um voo Rio-São Paulo. Entramos no avião, sentei, acomodei Cora no assento ao lado. Quando fui fechar seu cinto de segurança, ela freou minha mão. Não foi uma surpresa, ela sempre detestou cintos, volta e meia fazia onda para aceitar o da cadeirinha do carro. Mas, no avião, a recusa foi veemente. Ela tirou a fivela da minha mão e começou a chorar e a espernear com uma força que até hoje me impressiona, como se dentro daquele bebê houvesse um adulto prestes a romper pele afora. Quando finalmente o negócio fez clec sobre a fralda e eu achei que todo o problema ia acabar, veio a surpresa: ela deu um tapa na minha cara, e daria outro se eu não tivesse parado sua mão a tempo, com força, porque nesse momento eu também estava sentindo raiva dela. Um desejo que toda mãe já sentiu, de que o filho desapareça. Morra por alguns segundos. (…) Ao aterrisarmos, peguei nossa bagagem de cabeça baixa, saí do avião de cabeça baixa. Só fui me ver livre do constrangimento quando entrei no táxi, deixando para trás todo e qualquer olhar que pudesse ter testemunhado a minha derrota. (MADALOSSO, 2020, p. 24)

  Em um diálogo com o marido, Fernanda verbaliza toda a frustração ocasionada por não ser a mãe que deveria ser:

— Se a gente nunca mais vir a Cora, pelo menos sabemos que demos muito amor. Que curtimos ela. — Curtimos o caralho, digo. Ele olha para mim. — Sabe quantas vezes fiquei rodando em volta de casa pra chegar quando a Cora já estivesse dormindo? Sabe aonde eu levei a nossa filha passear na única vez em que matei o trabalho pra ficar com ela? Na concessionária da Renault. Você curtiu a nossa filha. (…) Eu só pari a Cora. Pra ser mãe, a pessoa tem que adotar o filho depois que nasce. A mãe dela é você. (MADALOSSO, 2020, p. 190)

Para que Fernanda consiga progredir profissionalmente, deixará a filha aos cuidados de uma babá, Maju, que se transformará em uma figura materna para Cora. Ao longo das páginas, fica evidente seu melhor trato com a criança, em comparação à atarefada mãe, bem como a serenidade e afeto com que Maju realiza as tarefas cotidianas ligadas à pequena, e o consequente apego que daí resulta:

Até no sonho criança deve ser mais livre do que adulto. Eu já cuidei de tantas, e todas se mexem do mesmo jeito quando estão dormindo, uma giração pra lá e pra cá, até que vão crescendo e ficando cada vez mais quietas (…) Ainda não é o caso da Cora, que deve estar sonhando que é bailarina, já rodou pra cima de mim, me deixando no cantinho da poltrona (…) Puxo seus ombrinhos de volta para o encosto, não suporto ver minha Picochuca com a boca aberta para os germes do transporte coletivo. Pego o lenço umedecido para limpar seu rosto. (MADALOSSO, 2020, 45)

Maju tem voz narrativa. É ela quem conta seu ponto de vista (a narrativa é dividida entre ela e Fernanda em capítulos alternados), o que evidencia as diferenças entre ambas. Separadas financeira e culturalmente, as protagonistas têm idades semelhantes e sonhos distintos. Se Fernanda se emancipa através do excelente salário, Maju abdica de sua liberdade por necessitar do dinheiro. Migrante, sem filhos ou marido (menos por opção do que por falta de oportunidade), com baixa escolaridade e, portanto, baixa possibilidade de conseguir empregos melhores, a babá oferecerá seu tempo e afeto como moeda de troca para seguir vivendo em São Paulo. 

Ironicamente, Maju carrega dentro de si o peso de não ter tido filhos, espremida entre um serviço e outro e frustrada por não conseguir relacionamentos na cruel metrópole. Logo na página inicial do livro, o leitor descobrirá que ela está raptando Cora, embora a profunda ligação entre ambas fará com que a menina aceite o sequestro como algo normal. A intimidade entre elas é tal que será possível questionar se não seria de Maju o direito de cuidar para sempre de Cora. É digno de nota o uso do rapto como metáfora para elucidar esse forte vínculo entre criança e babá em nossos dias.

MAJU E A REINVENÇÃO DA MÃE ROLLET

Na vasta gama de personagens construídos por Flaubert em Madame Bovary, dos quais Emma é a mais brilhante, pouco se terá dito a respeito de mère Rollet, ou mãe Rollet. Curioso notar a utilização do termo mãe para designar a ama de leite que dará os primeiros cuidados à filha de Emma e a outras crianças. É possível supor que tal uso seja vestígio da terceirização da função materna naqueles dias. Entretanto, se a Maju de Suíte Tóquio obteve na contemporaneidade literária uma voz narrativa que a equivale à de sua patroa, sua congênere do passado dispôs de umas poucas linhas, insuficientes para explicar ao leitor sua história. É possível depreender muito de sua condição, porém, graças à crueza com que Flaubert a posiciona na narrativa:

(Emma) dirigiu-se para a casa de Rollet, que ficava do outro lado da aldeia, junto ao rio, entre a estrada e a pradaria. (…) Para chegar à casa da ama, era preciso dobrar a esquerda na rua, como quem ia para o cemitério, e depois seguir, entre as casinhas e terreiros, um atalho cercado de arbustos. Reconheceram a casa por uma velha nogueira que lhe fazia sombra. Baixa e coberta de telhas marrons, tinha uma réstia de cebolas pendurada do lado de fora, na janela do sótão. Corria água suja pelo jardim, que se embebia na grama, e no corredor havia várias peças de roupa: meias de tricô, camisolas, um lençol. (FLAUBERT, 2011, p. 96)

Afastada da cidade e em condições paupérrimas, mãe Rollet dispõe de evidentes dificuldades financeiras. O fato de cuidar de tantas crianças sob condições tão precárias não amolecerá o coração das respectivas mães, a julgar pelo trecho que segue:

Emma deitou novamente a criancinha (Bertha), que acabara de vomitar no babador. A ama veio logo enxugá-la, assegurando que não era nada. — Ela faz também outras coisas — dizia — e estou sempre a limpá-la! Se a senhora quisesse fazer o favor de autorizar a Camus, o merceeiro, que me deixasse apanhar de vez em quando um pedaço de sabão, para quando precisar! Seria até mais cômodo para a senhora, pois eu não teria de ir lá pedir-lhe. — Está bem — disse Emma. — Até logo, mãe Rollet. E saiu, limpando os pés na soleira. A ama acompanhou-a até o fim do terreiro, sempre falando do incômodo que lhe causava ter de levantar-se à noite. — Às vezes fico tão cansada que durmo na cadeira. A senhora devia dar-me pelo menos um meio quilo de café moído, que duraria o mês todo, para eu tomar de manhã com o leite. (…) — Mas diga logo o que quer, mãe Rollet! — Sendo assim — disse a mulher, fazendo uma reverência — se não é pedir muito — e fez outra reverência — gostaria que a senhora mandasse uma garrafa de aguardente — seu olhar era suplicante — e eu poderia até friccionar os pezinhos de sua filha, que são tão delicados. (FLAUBERT, 2011, p. 97)

Pode soar inadmissível a alguns olhos contemporâneos a tratativa quase ríspida entre mãe e ama, tendo em vista a inversão que se observa nos dias atuais. O tempo decorrido desde Madame Bovary torna inconcebível aceitar uma mãe relegando sua filha recém-nascida a tais condições com tamanha naturalidade. Em um eventual manual contemporâneo da mãe perfeita (lembrando que, no Brasil, a mulher se afasta do trabalho por cerca de 5 meses após dar à luz, versus alguns poucos dias concedidos ao homem), as sugestões que adquirem caráter de normas vão desde a amamentação de livre demanda do bebê até a cama compartilhada, passando pela exigência do “tempo de qualidade” junto ao filho e pelo auxílio nos deveres de casa enviados pelas escolas. Ainda que óbvio, deve-se afirmar que o peso de tais tarefas e cuidados recai, novamente, muito mais sobre a mulher, culturalmente admoestada a estes fins. 

Ainda que não reconheça de todo a importância de seu próprio trabalho, em Suíte Tóquio Maju recebe tratamento bem mais cordial de sua patroa Fernanda (embora não escapem ao leitor atento às intenções que se escondem na relação de patroa-empregada descritas no livro de Madalosso). De fato, após alguns anos cuidando de Cora em horário regular, Maju receberá a proposta de morar no emprego, e a princípio recusará. Como a promoção profissional de Fernanda depende de uma disponibilidade de tempo integral, a nova proposta ganhará contornos de aliciamento, em mais um registro das abissais desigualdades do Brasil:

E talvez fosse ainda melhor se a Maju fosse esperta e tivesse me pedido mais grana, porque ela nem imaginava, mas naquele momento eu daria tudo: quanto custa pra você dormir direto aqui, seis salários mínimos mais esse anel de ouro no meu dedo? Está aqui, já estou assinando sua carteira com um salário de editor de vídeo, porque você é muito mais valiosa pra mim do que um editor de vídeo. Mas Maju era humilde e inocente demais para sonhar além do que Deus ou a patroa lhe oferecia. Tanto que depois que ela aceitou, senti pena dela. Para compensar, transformei aquele quarto de empregada num lugar claro, descolado e dotado de amenidades (…) um quarto que poderia muito bem ser a suíte de um hotel japonês. (MADALOSSO, 2020, p. 27)

Apesar do tom de culpa que se alcança nas palavras de Fernanda, pode-se verificar o desdém dirigido a Maju, pouco esperta e muito inocente. A relação de ambas consiste em um distanciamento amigável, por assim dizer, cujo elo não é Cora, como haveria de se supor, mas a necessidade de ambas: financeira, no caso de Maju; profissional, no caso de Fernanda. Uma das leituras possíveis de Suíte Tóquio é o custo necessário para que uma mãe seja bem sucedida profissionalmente. 

As primeiras décadas do século XXI consolidaram as mudanças no quesito infância, ainda que pouco se fale acerca do tema. De fato,

O que estava acontecendo sob o nariz de homens e mulheres era uma silenciosa revolução moral – ou, se preferirem, uma mudança de paradigma – na qual os filhos foram deixando de ser serviçais empregados no projeto familiar para se tornarem pessoas que precisam de proteção e serviços (…) para os quais se dirigem hoje, mais do que nunca, os maiores esforços discursivos e um excesso de super deveres que foram diligentemente transferidos das instituições para a casa. (MERUANE, 2018, p. 161-162)

Desconstruindo a narrativa da mulher múltipla que a tudo equilibra, para que Fernanda consiga estar satisfatoriamente disponível para o trabalho (e para si mesma), é preciso necessariamente terceirizar a criação de sua filha, com os custos decorrentes disso em uma sociedade que exige da mulher disponibilidade integral aos filhos. E se em Madame Bovary a terceirização é pública, e os filhos são levados para longe dos olhos da sociedade, em Suíte Tóquio ela é, sempre que possível, privada, ainda que para isso seja necessário se valer do desigual histórico brasileiro quanto ao trabalho. Diz Fernanda sobre Maju:

Levei-a para tomar um café na cozinha. Eu precisava ser sedutora, de certa forma tudo dependia dela. Usei a experiência que tinha adquirido contratando gente para a minha equipe: oferecer um valor razoável e aumentá-lo logo em seguida, dando a sensação de que entregava mais do que havia planejado, de que a oferta era fora do comum e portanto irrecusável. (…) E por isso, e para me sentir menos escravocrata, batizei o cômodo de Suíte Tóquio. Um mês depois, pingava um salário novo na conta dela e um novo na minha. Fiquei olhando para aquela cifra sem saber o que fazer. (MADALOSSO, 2020, p. 27)

Como em uma engrenagem, para que uma mulher com filho ascenda na pirâmide social, é necessário que outra assuma seus deveres de mãe. Longe de representar um dado isolado, a proporção deste cenário se exemplifica, no livro de Madalosso, na potente imagem do “exército branco”: a multidão de babás vestidas a caráter, empurrando pelas calçadas os carrinhos com os bebês dos casais dos bairros mais nobres da cidade, pais e mães atarefados demais para isso. 

Importante lembrar aqui que a terceirização do cuidado dos filhos ocorre também entre as mães das classes mais baixas, que precisam ajustar seus empregos aos engessados horários de funcionamento das creches do país2. Essa terceirização pública guarda mais paralelos com o que ocorria até o século XVIII e meados do século XIX, pois atualmente é comum encontrar creches superlotadas, com dezenas de crianças sob a atenção de poucas cuidadoras, dado o baixíssimo investimento do governo brasileiro nessa área3

A discussão aqui apresentada parece encontrar lugar no debate público por jogar luz sobre o tema maternidade e infância na literatura, ciente de que o que fica registrado nas páginas de um livro transcende a realidade sem deixar de ser registro dela. Fernanda e Cacá sequer pertencem à elite financeira paulistana (embora ganhe bem, ela é assalariada, afinal de contas), assim como Emma e Charles também não ostentavam grandes ganhos em Madame Bovary, ancorados em um modelo de vida de tênue equilíbrio financeiro (Charles era uma espécie de agente de saúde, embora algumas traduções o promovessem erroneamente à condição de médico). Ambos os casais, portanto, representam uma considerável parcela da população de suas respectivas épocas. E, embora o peso de ser mulher restrinja consideravelmente mais à Emma do que limitou Fernanda, é possível inferir que a segunda precisa lidar com grilhões que escaparam à primeira. 

Se na França de então era permitido à enclausurada Emma ao menos escapar da obrigatoriedade do idílico amor materno, à independente Fernanda de hoje, liberta do marido e ativa no espaço social, não parece haver dinheiro que baste para comprar sua plena emancipação da própria filha. 


1De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2019 as mulheres eram responsáveis financeiramente por 45% dos lares brasileiros, um crescimento de 8% em relação ao censo de 2012.
246% das crianças de 0 a 3 anos no país precisam de creche, segundo dados de 2020 do Índice de Necessidade de Creche, da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. Em São Paulo, a média sobe para 53,7%. 
3Em 2019 (último ano sem pandemia de COVID), o investimento em creches e pré-escolas foi o menor em 10 anos de levantamento, com queda de 33% em relação ao ano anterior, segundo dados do FNDE. 

REFERÊNCIAS

ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.

BADINTER, E. Um amor conquistado: O mito do amor materno. Tradução Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1985.

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CARVALHAL, T. Literatura comparada. 4ª Ed. Revisada e ampliada. São Paulo: Editora Ática. 2006.

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