“MAS ELA DEVE TER FEITO ALGUMA COISA PARA QUE ISSO ACONTECESSE”: A REPERCUSSÃO DA VIOLÊNCIA CONJUGAL NA PERSPECTIVA DE MULHERES QUE VIVENCIARAM EPISÓDIOS DE AGRESSÃO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10249231109


Taíza Gabriela Zanatta Crestani1
Talia Barbieri Jahn2
Karine Waldow2
Matias Trevisol4
Danielle Feltes5
Chancarlyne Vivian6
Débora Viana de Souza7


RESUMO

As mulheres vivenciam o preconceito e a discriminação por questões de gênero diariamente e em diversos setores:  no trabalho, na escola, na rua, e principalmente dentro de casa. A maioria das agressões partem do cônjuge, marido ou namorado, fazendo com que a mulher nem se dê conta que é vítima e que convive em um ambiente e/ou sociedade permeada por práticas de violência diariamente direcionadas a elas. Neste sentido, a presente proposta de pesquisa tem como objetivo central investigar o autoconceito de mulheres que sofreram violência e que são acompanhadas pela equipe técnica do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) no município de Pinhalzinho-SC, trazendo como base de discussão: dados estatísticos, percepções das mulheres frente a violência e autoestima e o conservadorismo local a luz da realidade da região Extremo-Oeste de Santa Catarina. Para contemplar os objetivos, foi realizada uma pesquisa qualitativa, tendo por método de coleta de dados uma entrevista semiestruturada. Para tanto, foram entrevistadas cinco (05) mulheres com idades entre 26 a 52 anos. Os dados coletados foram alisados por meio da análise de conteúdo proposto por Bardin (1977). A partir desta análise foi possível identificar que a violência sofrida dentro dos relacionamentos foi acontecendo aos poucos e ocasionou muitos impactos na vida das mulheres. A pesquisa tornou evidente que a violência deixou marcas físicas e psicológicas, influenciando significativamente na forma como as participantes se percebiam e pensavam sobre si durante a após o término. Em consonância sair do ciclo de violência foi um processo árduo e gradativos, que só cogitaram a ideia de separar-se do companheiro após a identificação do episódio que descrevem como “gota d’água”.

Palavraschaves: Violência Conjugal – Mulheres – Centro de Referência Especializado de Assistência Social – Autoconceito – Cultura Regional

ABSTRACT

Women have suffered and still suffer from prejudice and discrimination daily, in several areas: at work, at school, in the streets and mainly at home. Most aggressions come from the husband or boyfriend, resulting in the woman not even realizing she is the victim and that she lives in an environment permeated by daily violent practices. In this sense, this research intends to investigate the self-concept of women that have suffered and still suffer from violence and that are monitored by the technical team from the Specialized Social Assistance Reference Center, Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) in the city of Pinhalzinho – SC. To achieve the objectives, a qualitative research was developed, using a semi-structured interview as the data collection method. Five (05) women, with ages between 26 and 52, were interviewed. The data collected were analyzed using the Content Analysis, proposed by Bardin (1977). From this analysis, it was possible to identify that the violenced women suffer in their relationships happened slowly e caused many impacts in the life of women. The research made it evident that the violence left physical and psychological scars, with significant influence in the participants self-perception during the relation and after the end of it. In line with it, leaving the cycle of violence was a hard and gradual process, in which women only considered the idea of ending the relationship after the episode described as the “last straw”.

Keywords: Conjugal Violence – Women – Specialized Social Assistance Reference Center – Self-Concept – Regional Culture

1  INTRODUÇÃO

Para compreender o contexto de violência contra a mulher, deve-se dar importância ao contexto histórico, social e cultural: “não é a violência que cria a cultura, mas é a cultura que define o que é violência.” (BAIRROS, s/p, s/d). No cenário da região Sul prevalece o discurso autoritário com a ideia do homem enquanto “aquele que tudo pode” e da mulher enquanto “sexo frágil” que deve ser obediente e submissa às vontades do marido. Em conformidade, destaca-se historicamente o âmbito residencial definido e compreendido essencialmente enquanto espaço de preservação da intimidade (GRIEBLER; BORGES, 2013).

No Brasil, vários marcos legais relacionados à proteção dos direitos da mulher foram implementados desde 1985[1], como a Lei Maria da Penha, que surge no ano de 2006 (Lei 11.340). No Estado de Santa Catarina observa-se a construção de leis que discutem violência contra a mulher na interface de políticas públicas assistenciais, como a Lei nº 16.165/13. E na localidade de Pinhalzinho-SC – município onde o presente estudo foi realizado, além de Leis Municipais que discutem questões de violência e garantia de direitos as mulheres, há a rede de proteção social formada pelo Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) e o Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) – nos quais são realizadas (desde 2018) intervenções na modalidade grupal que acolhe e acompanha mulheres vítimas de violência competida por seus companhairos.  

A violência doméstica perante a a lei é definida como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou  patrimonial”. Segundo a Lei 11.340/06, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha (Artigo 7), são formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: a violência física, a violência psicológica, a violência sexual, a violência moral e a violência patrimonial.

Na conjuntura conjugal, as violências podem ser incluídas dentro de  um ciclo de três etapas: 1ª Aumento da Tensão: o protagonista da agressão demonstra um comportamento ameaçador, fazendo uso de agressões verbais ou destruição de objetos da casa; 2ª Ataque Violento: ele comumente associa agressões físicas e verbais e apresenta comportamento descontrolado; e 3ª Lua de mel: o agressor tenta a reconciliação dizendo para a vítima que se arrepende e promete mudar de comportamento. Temporariamente torna-se atencioso e carinhoso, no entanto, sua postura não se mantém por muito tempo e, então, retorna ao primeiro estágio, reiniciando o ciclo. De acordo com Lucena et al (2016), neste ciclo, a mulher é colocada como objeto e figura passiva, enquanto o homem é tido como sujeito que se utiliza da força física e dominação; o homem se apropria da mulher, nega a agressão e culpabiliza- a pelo ato violento. Os insultos direcionados  à mulher tendem a gerar dúvidas a respeito de suas capacidades e competências, ameaçando assim sua identidade pessoal e impactando diretamente na construção do seu autoconceito (DOURADO; NORONHA, 2013).

Para Oliveira; Carissimi; Oliveira (2010), tal qual referenciado por Alves; Diniz (2005), frequentemente, a repercussão dos episódios de violência doméstica interferem em variados âmbitos da vida das mulheres, visto que afetam de maneira significativa a forma com que elas qualificam suas relações sociais e sua cosmovisão. Partindo deste ponto, os sintomas psicológicos frequentemente encontrados nestas vítimas são: insônia, pesadelos, falta de concentração, irritabilidade, falta de apetite, sofrimento psicológico – que pode ocasionar depressão, ansiedade generalizada, síndrome do pânico, estresse pós-traumático, além de suscitar comportamentos autodestrutivos, que pode compor-se do uso de álcool e drogas, automutilação e tentativas de suicídio (FONSECA; SOUZA LUCAS, 2006 apud KASHANI; ALLAN, 1998). Desta forma, as alternativas de intervenção direcionadas ao atendimento da demanda listada precisam considerar a cultura local e o contexto que subsidia a violência e ao mesmo tempo valorizar as especificidades de cada caso, cada mulher.

MÉTODO

A fim de compreender os impactos gerados pela agressão, aqui especificamente nos processos  de construção do autoconceito nas mulheres que foram e/ou são vítimas de violência  doméstica, optou-se pelo desenvolvimento de uma pesquisa qualitativa que, segundo Minayo (2009, p.21-22), “trabalha com universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes”.

Foram efetuadas entrevistas individuais com mulheres de idade superior a dezoito (18) anos que vivenciaram situações de violência conjugal e participam de grupos de apoio organizados e acompanhados por membros da equipe técnica do Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) no município de Pinhalzinho/SC. Salienta-se que estes grupos foram organizados no ano de 2018 e no ano de 2020 o número de mulheres que participam destas atividades totalizava oito. Por ser um grupo aberto, as mulheres entram e saem conforme a necessidade.

Após a explicação do objetivo da pesquisa e a sua relevância científica e social, cinco mulheres mostraram-se dispostas a contribuir para o desenvolvimento do estudo e foram entrevistadas. Nas ocasiões das entrevistas, a pesquisadora utilizou um roteiro semiestruturado construído em torno de três eixos: 1) História do relacionamento conjugal; 2) Perspectivas das mulheres sobre autoconceito/autoimagem, tanto no período em que estavam no relacionamento quanto posterior ao término; e 3) Percepções das mulheres sobre violência doméstica e importância da rede de apoio. Foi comunicado às participantes que as entrevistas seriam gravadas integralmente, mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa da UNOESC. [2] Perante o Termo foi garantindo o resguardo das suas identidades através do emprego de nomes fictícios, sendo eles de mulheres que foram assassinadas na região Oeste e Extremo-Oeste de Santa Catarina no período de 2011-2020: Ana Cláudia de Oliveira Prado (Xanxerê), Gisele Ramos (Xaxim), Janei Watte (Águas de Chapecó), Julyane Horbach (Cunha- Porã) e Karine Cavalli (Irani).

Os dados provenientes das gravações foram transcritos integralmente e interpretados seguindo as orientações da Análise de Conteúdo de Laurence Bardin. Segundo a autora (1977). A análise de conteúdo pode ser definida como um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que admitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção e recepção destas mensagens. Caracteriza-se como um método de tratamento da informação contida nas mensagens. As categorias de análise foram definidas após a realização das entrevistas.

HISTÓRICO DA VIOLÊNCIA CONJUGAL E SEUS IMPACTOS

Ao descrever os seus parceiros, três entrevistadas fizeram alusão ao início dos seus relacionamentos, destacando que nos primeiros meses/anos de convivência os maridos não apresentavam nem mesmo indícios de comportamento violento. Isso pode ser observado nas frases: “no começo a relação era bem tranquila” (Julyane, 31 anos– Julho, 2020), “no começo era uma coisa, depois foi mudando, mudando e mudando […] mas no começo foi maravilhoso” (Gisele, 52 anos – Julho, 2020), “quando a gente se conheceu mesmo, ele não era agressivo, não era” (Ana Cláudia, 42 anos – Julho, 2020). Percebe-se, pelos relatos, que a convivência era harmoniosa.

Apenas Karine relatou perceber já nas primeiras semanas o relacionamento se tornando abusivo devido as manifestações de ciúme evoluidas de maneira rápida:

[…] na verdade, ele já começou errado, começou desde os primeiros meses com muita possessão, sabe? A possessividade dele era bem forte, mas quando a gente tá no relacionamento a gente não percebe isso né. E desde os primeiros meses, a primeira e segunda semana do relacionamento, já teve essa invasão sabe? Essa questão de ser o dono e depois disso só piorou, né (Karine, 26 anos – Julho, 2020).

O relacionamento abusivo é caracterizado pelo excesso de poder de uma pessoa sob a outra, onde um dos parceiros deseja controlar incessantemente as atitudes e decisões do outro (OLIVEIRA et al, 2016 apud MOREIRA, 2016). No relato de Karine, evidenciam-se violências que  podem passar desapercebidas, visto que as expectativas sociais a respeito de  um mulher perante seu companheiro reforçam o seu lugar de submissão[3] (GUIMARÃES et al, 2018).

A percepção das manifestações do ciúme como estratégias de imposição acontece  aos  poucos – como explícito no trecho acima citado: “ele foi mudando, mudando e mudando” (Gisele, 52 anos – Julho, 2020). Com base nas entrevistas, inicialmente a  violência do companheiro foi entendida como ordem despida de agressão. Se não quisessem apanhar, bastava obedecer: através do uso da palavra, o marido dá a entender que não há violência, apenas uma advertência da probabilidade de punição. Destarte, a ação é legitimada com amparo na posição de dominador que o homem ocupa na sociedade.

Ao comparar os relatos das participantes, identifica-se que no ápice da violência física há mudança de perspectiva: a sensação de enclausuramento se torna um fardo insustentável. A partir do sofrimento e da percepção das marcas no corpo, o discurso do companheiro passa a ser alvo de maior atenção.  As vítimas buscam identificar padrões de comportamento que possam desencadear a  agressão e mobilizam recursos para evitá-la. Um processo de revisão da conduta do agressor passa a ser efetuado, busca-se auxílio e suporte e faz-se luz às violencias psicologicas, sexuais e morais que aconteceram muito antes do episódio de violência física eclodir.

Para melhor compreensão das experiências de violência e seus impactos na perspectiva das mulheres que contribuíram para o desenvolvimento desta pesquisa, elaborou-se um esquema ilustrativo, numa espécie de releitura do Ciclo da Violência Doméstica, utilizado com frequência para explicar a Síndrome de Estocolmo por estudiosos e pesquisadores da área do Direito e da Psicologia. Neste caso, buscamos utilizá-lo como instrumento de sistematização e análise conjunta das singularidades inerentes aos relatos das participantes. (Vide Figura 1)

A partir das informações inseridas no esquema, verifica-se aspectos semelhantes na intensificação dos episódios e violência física e psicológica em três situações: 1º após as mulheres terem se tornado mães; 2º consumo de álcool por parte do agressor, qualificando-o como mais impulsivo e agressivo sob efeito desta substância[4]; e 3º desconfiança do companheiro em relação ao envolvimento em relações extraconjugais da mulher, pelo fato  das mulheres não demonstrarem interesse em efetuar relação sexual com os parceiros.

Quanto às propostas de reconciliação empreendidas pelos maridos, as participantes descreveram a realização de promessas de mudança, a demonstração de carinho não espontânea e a apresentação de uma espécie de pacto arbitrário de silêncio, de modo a tornar o episódio um tabu[5]. Em consonância, o caráter cíclico da violência se desenha e deixa feridas emocionais que custam a cicatrizar. Nas palavras de Ana Cláudia:

Ele me deixou marcas tanto no corpo, no coração, na mente, isso são coisas que aconteceram há 21 anos, não se apaga, essa dor, dói, e é lembrada ainda como se fosse ontem. Quem leva o tapa não esquece, mas quem dá esquece. Pode ser um tapa que levou quando criança, quando adulto, mas não esquece (Ana Cláudia, 42 anos – Julho, 2020).

Figura 1 – Ciclo da violência personalizado de acordo com o relato das mulheres participantes do estudo.

Fonte: a autora.

Compreende-se que a violência gera intenso sofrimento psicológico com agravos na saúde mental, afetando negativamente a forma como a mulher se relaciona consigo  mesma. Para as vítimas, entre os sentimentos predominantes ao longo dos anos de relacionamento abusivo, estão: raiva e ódio, sentimento de revolta no tocante às perdas que os episódios de violência acarretaram, vontade de sumir, humilhação e vergonha. Percebe-se os efeitos da violência na construção do autoconceito das participantes, que caracterizam o relacionamento violento como um entrave que as impediu de olharem para si com suas próprias pupilas, e não as do marido. Quando perguntadas sobre autoestima, responderam:

Baixa, eu na verdade eu não tinha o valor que eu achava que eu deveria ter, não tinha. Porque saí eu não saía nem pra vim na minha mãe. Era da roça pra casa e da casa pra roça (ANA CLÁUDIA,42 anos – Julho, 2020).

Baixa, eu tava sempre aborrecida, eu fumava um cigarro atrás do outro sempre, porque tava sempre nervosa. E daí eu chegava em casa não tinha sossego, não tinha nem mais vontade de voltar pra casa, porque eu sabia que encontraria ele bêbado e me enchendo o saco” (JANEI,51 anos – Julho, 2020).

Olha a minha autoestima era muito baixa, eu não tinha vontade de me arruma. Se eu fosse sair eu não escolhia muita roupa, aquela que eu me sentisse confortável eu vestia. Não sentia mais vontade de me arruma, de cortar o cabelo, de fazer a sobrancelha. Tinha a autoestima muito baixa, […] E antes não, na verdade foram dez anos da minha vida que eu não usava maquiagem, não cortava o cabelo, de ir num salão cortar o cabelo, nunca (JULYANE 31 anos, – Julho, 2020).

Olha, é complicado eu responde essa pergunta, porque eu sentia que ele gostava de mim e de estar comigo, mas não sei o que acontece que vira outra pessoa sabe. Fica nervoso por qualquer situação, ofende e xinga, mas eu não vou dizer que nossa que autoestima eu tinha, eu nunca tive uma super-autoestima e nem tão baixa também, a ponto de ficar nesse relacionamento, de me submeter a isso (KARINE, 26 anos –Julho, 2020).

A partir desses relatos percebe-se que as mulheres se sentem diminuídas diante das lesões físicas e psicológicas. O sofrimento e o medo da violência, repercutiu na distorção da imagem da mulher, fazendo-a se sentir insatisfeita com sua aparencia e a duvidar das próprias qualidades, visto ser exposta à agressões bloqueando possibilidades de significação.

Após o rompimento do ciclo por meio do término do relacionamento conjugal, as entrevistadas identificaram mudanças no estilo de vida (comparando passado, presente e futuro) e também em relação à autoestima, conforme é possível verificar na Figura 2.

Figura 2 – Mudanças na autoestima e no estilo de vida após o rompimento da relação conjugal.

Fonte: a autora.

TOMADA DE CONSCIÊNCIA DAS MODALIDADES DE VIOLÊNCIA E A IMPORTÂNCIA DA REDE DE PROTEÇÃO

A busca de suporte após o término do relacionamento, ocorreu com o episódio identificado como ‘a gota d’água’ pelas participantes (incluído na Figura 1), possibilitou a tomada de consciência de que as situações de sofrimento vivenciadas tratavam-se de episódios de abuso e agressão. Diante da necessidade de reestruturar as suas vidas, buscaram realizar contato com o Centro de Referência Especializando em Assistência Social do município (CREAS). Por meio do diálogo com os profissionais da psicologia e assistência social, que passaram a entender que a violência contra a mulher não se restringe somente a agressão física:

Olha na verdade até pouco tempo atrás, não entendia muita coisa, né, achava que era só quando a mulher apanhava mesmo né, só quando era espancada que era violentada. mas a partir do momento que eu me separei, que eu comecei a ter atendimento com psicóloga e com o Creas eu entendi que também tava sofrendo violência e grande, porque elas me disseram que violência não é só quando bate, mas também quando é moral, quando xinga né e era isso que eu passava né, na minha relação, passei bastante tempo com isso né, convivi bastante tempo com isso né. E até esse momento eu não sabia que isso que eu vivia se tratava de uma violência né (Julyane, 31 anos, – Julho,2020).

Antigamente, eu pensava que só quem batia, que a violência era mais pra quem batia, mas as vezes as palavras te machucam mais que te dar um tapa. E ele não era de bater né. […] Ele sempre falava as coisas em palavra […] Mas as palavras que ele dizia, pela mor de deus, me chamava de vagabunda e um monte de coisa (Janei, 51 anos, – Julho, 2020).

Na verdade, eu não entendia nada, pra mim era normal, porque a gente não sabia quando era violência, tu vai ver depois quando sente na pele o que é [ ] Quantas vezes ele me bateu, mas eu por medo, por ter filhos pequenos eu tinha medo de sair de casa. Muito tempo eu fui levando e aguentando (Ana Cláudia, 42 anos–Julho, 2020).

A imprecisão no reconhecimento dos episódios de violência enquanto tais, ocorre devido à normalização da agressão como método de controle, que objetiva manter a localização dos sujeitos numa estrutura de poder por meio da hierarquização das diferenças (RIBEIRO, 2017). Logo, frente a violência contra a mulher “o próprio gênero acaba por se revelar  uma camisa de força: o homem deve agredir, porque macho deve dominar a qualquer custo; e mulher deve suportar agressões de toda ordem, porque seu “destino” assim determina” (SAFFIOTI, 2015, p.90). De modo similar, uma das participantes destaca:

[…] A violência contra a mulher, ela é… É a nossa sociedade, o jeito em que estamos organizados na sociedade já é uma forma de violência. Não somente nos relacionamentos, a mulher ganha menos, a mulher não pode exercer determinadas funções, ou se exerce ganha menos que o homem. Ou quando se veste à vontade, digamos assim, ela é julgada e o homem não, ou quando ela está na fase da adolescência e diz que quer ficar com alguém com 13/14 anos, aí porque é uma vagabunda né? Mas o guri com essa idade pode né? Então, a gente está inserido em uma sociedade um tanto quanto machista e isso já é uma violência contra a gente. Então, são várias as formas que a gente acaba sendo violentada, as vezes a gente nem percebe, mas tá sofrendo (Karine, 26 anos –Julho,2020).

Assim como na fala acima, outras participantes descreveram que a violência de gênero se engendra numa via de mão dupla, onde a expressão, referente ao seu entendimento a respeito do tema violência está relacionado a cultura e aos modos de compreensão da sociedade sobre a  mesma e jeitos de ser e se construir homem/mulher.

Como já citado anteriormente, o aspecto da visibilidade a respeito da violência, se tornou compreensível a partir da chegada das mulheres nas políticas públicas. Ana Cláudia (42 anos – Julho, 2020) relata que antes de buscar apoio no CREAS do munícipio, (diante da sua história do término do relacionamento) foi encaminhada para a Casa de Abrigo no município de Chapecó-SC, onde recebeu suporte assistencial e psicológico. Após o período de uma semana, Ana Cláudia, retorna ao município de Pinhalzinho-SC, sob as orientações dadas na Casa de Abrigo e relata que procurou o CREAS para buscar ajuda econômica, judicial e abrigo.

No mesmo viés, a entrevistada Julyane (31 anos – Julho,2020) relatou a situação financeira como o principal motivo pela busca de apoio socioassistencial principalmente por conta de ter um filho que necessitava de alimentação e de medicação:

Foi no fim do mês que a gente separou e já tava faltando as coisas dentro de casa, aí eu não tinha mais nem dinheiro pra compra os remédios pra ele. Aí a minha mãe disse, não tu tem que ver com o prefeito ou assistente social que podem te ajudar, aí eu fui até o CRAS e assistente social me passou para o CREAS dizendo que as meninas poderiam me ajudar e daí fui a primeira vez lá e vou até hoje.

Em contrapartida, Karine relatou que foi o CREAS que entrou em contato com ela, após a mesma ter registrado um boletim de ocorrência na delegacia e solicitado medida protetiva contra seu ex-companheiro. Seguidamente do primeiro contato realizado com a equipe e sentindo-se fragilizada diante das ameaças sofridas recentemente pelo ex-companheiro, Karine dirigiu-se novamente ao setor. Seu relato mostra a importância da rede de proteção manter-se em contato para efetuar o acompanhamento de casos de violência conjugal:

A equipe entrou em contato comigo depois que eu registrei o boletim de ocorrência pra tá conversando e daí eu fui lá e a gente conversou. Antes disso, eu nem sabia certo pra que servia né. Na verdade, foi uma consulta com a psicóloga e com advogada, e elas perguntaram como foi que aconteceu e orientaram o que deveria ser feito.[…] Esses dias eu fui novamente, porque ele mando umas mensagens bem complicadas sabe, ele me ameaçou nessas mensagens dizendo aí de mim se eu colocasse outra pessoa perto da nossa filha, sendo que a gente terminou em fevereiro e em março ele colocou outra dentro de casa, é complicado. E daí eu fui lá pra conversar e elas me orientaram a estar fazendo um novo boletim de ocorrência (Karine, 26 anos – Julho,2020).

A partir do encaminhamento dessas mulheres ao Centro de Referência Especializado em Assistência Social, muitas delas relataram ter sido acolhidas pela equipe, sendo possível a compreensão de como seria o processo judicial, questões relacionadas à violência e, principalmente, o trabalho com o grupo de mulheres que propõe discutir diversos temas que as possibilitou perceber e ressignificar a violência sofrida.

De acordo com o Conselho Federal e Regional de Psicologia (2013, p.92) o trabalho em grupo se configura enquanto um “dispositivo potente de produção de relações, experiências e significados”. Além disso, se considera que o compartilhamento de informações, sentimentos e conhecimentos entre os participantes auxiliará na direção da construção da autonomia e na superação da situação de violência vivenciada. Mesmo com a estratégia do acompanhamento no grupo, as participantes declaram relembrar de alguns momentos vividos causa intenso sofrimento, mas avaliam o suporte psicológico como fundamental para a recuperação de seu estado de bem-estar.

Nós frequentava um grupo que tinha, eu fazia parte desse grupo sempre. Também me ajudou bastante com as questões de violência, e da depressão né. Hoje em dia eu ainda tenho minhas fraquezas, até se acontece alguma coisa com menino, quando ele não tá bem, me dá uma tristeza, tenho vontade de chora. Mas graças a deus não preciso mais tomar o remédio, tá mais tranquilo e mais fácil de lidar hoje em dia com isso (Julyane, 31 anos –Julho, 2020)

Aí eu cheguei até o CREAS e comecei a ter acompanhamento com elas, até tinha os grupos que a gente participava né, agora por conta da pandemia não tem. Elas estavam sempre prontas pra ajuda quando eu precisava de todas as formas, psicológico e tudo. Deram um bom apoio (Ana Cláudia, 42 anos– Julho, 2020)

Já faz tempo que eu participo dos grupos do CREAS, eu precisava conversa com alguém, eu me sinto bem conversar com elas. Me abri com elas, tudo o que aconteceu na minha vida. Consegui me abri com o psicólogo do CAPS também. Eu fui violentada pelos meus tios na minha infância, eu consegui me abrir com eles contar tudo o que aconteceu. Eles me pediram e eu consegui contar tudo o que aconteceu na minha vida (Gisele, 52 anos –julho, 2020).

Diante das falas das participantes, é possível perceber como o CREAS e/ou demais locais que as mulheres obtiveram ajuda (Delegacia, Casa de Abrigo) foram importantes para as mulheres resgatarem o seu protagonismo. A este respeito, salienta-se que no Brasil, as políticas  públicas voltadas para o atendimento de mulheres vítimas de violência ganham força com o plano nacional de políticas para mulheres, junto à rede de atendimento à mulher em situação de  violência que é composta por Centros de Referência; Casas-abrigo; Delegacias especializadas de atendimento à mulher (DEAMs), que são unidades da polícia civil especializada no atendimento de situações de violência contra a mulher. Serviços esses essenciais de apoio e suporte no combate a violência (BIGLIARDI; ANTUNES; WANDERBROOCKE, 2016).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao visualizar os casos de violência contra a mulher e históricos de feminicídios noticiados e divulgados pelas telecomunicações, evidenciamos a triste realidade de mulheres sendo agredidas mais uma vez. E outra. E de novo. Frente a esses casos que são pertinentes no contexto sociocultural da região Extremo-Oeste Catarinense, é possível percebermos que não estamos em uma realidade tão distante ao processo de colonização (que se constrói diante da família patriarcal, a qual considera que homens nascem para reinar- trabalhar e mulheres para procriar, ser do lar e submissas). Diante de inúmeras conquistas e espaços alcançados no decorrer da história, as mulheres continuam sendo abusadas, violentadas e estupradas, ou seja, são vítimas dia após dia de uma sociedade patriarcal machista, a qual por via de “regra” colabora para culpabilizar as próprias mulheres pelas violências praticadas contra elas.

Constatou-se, a partir dos achados, que foi um processo complexo para as mulheres conseguirem sair do ciclo de violência e compreenderem o contexto abusivo. A violência deixou marcas físicas e psicológicas que comprometeram a forma como elas se percebiam. Romper o  ciclo de violência foi um processo árduo, já que as participantes não cogitavam a ideia de separar-se do companheiro, acreditando em sua mudança e também, pelo relato de impossibilidade de criar os filhos sem o auxílio financeiro do companheiro, considerando que a maioria das mulheres não possuía um emprego renumerado.

Desta forma, percebemos que as mulheres que decidem romper um relacionamento violento, também estão quebrando sonhos e expectativas projetados em relação ao casamento e à família, fortemente atravessados por questões de papéis de gênero. Há perdas e ganhos frente a esta decisão, que não devem ser ignorados para que se possa entender a história de vida de cada uma, e assim, compreender quais impactos a violência causa na vida da mulher agredida.  Durante o processo de separação, observamos que as mulheres que participaram da pesquisa compreendem que as políticas públicas contribuíram para o fortalecimento da sua rede de apoio/proteção. Nesta perspectiva, o trabalho com os grupos realizados pela equipe técnica do CREAS foi primordial para que as mulheres pudessem ressignificar suas vidas. O apoio mútuo foi essencial para perceber que não estão sozinhas e que juntas eram capazes de reconstruir as suas histórias, transformando-as.

Considerando os dados e limites desta pesquisa bibliográfica, acompanhada pela de campo, é importante que as pesquisas continuem dando mais visibilidade à violência doméstica, enfatizando a sua importância na área da Psicologia corroborando com as demais áreas, como o direito, a história, antropologia, sociologia, com o intuito de que se rompa o silêncio e seja possível tornar visível esse cenário.

REFERÊNCIAS

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[1] Em 1985 aconteceu a implantação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, e a primeira Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM).

[2] CAAE 33138720.2.0000.5367.

[3] A possessividade por vezes é significada como “ciúme romântico”. Esta noção inviabiliza a separação de amor e ciúme a tal ponto, que ambos chegam a ser (con)fundidos. Esta é, segundo  Centeville e Almeida (2007), a realidade que transparece atualmente e que pode ser retratada pela atual sociedade ocidental, onde sentir ciúme é uma contingência de caráter quase que obrigatório para o mantimento de um relacionamento afetuoso. Assim, percebe-se novamente como as tramas culturais atravessam os relacionamentos conjugais.

[4] Estudos realizados por ALMEIDA; PASA; SCHEFFER (2009), BALTIERI; CORTEZ (s/d) e VIEIRA et al (2014) apresentam resultados similares.

[5] Cabe mencionar que as participantes permaneceram com seus companheiros durante o período de 03 anos à 29 anos. Uma delas, teve dois casamentos e vivenciou episódios de agressão em ambos. (Estudos realizados por ALMEIDA (2005) mostram como é comum a mulher finalizar um relacionamento abusivo e se envolver com outros homens com características parecidas.)


[1] Mestra em Ciências Sociais pela UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Toledo/PR (2018). Docente do curso de Psicologia da UNOESC – Universidade do Oeste do Estado de Santa Catarina, Campus de Pinhalzinho/SC e Campus de Pinhalzinho/SC. E-mail:  crestani.t@unoesc.edu.br.

[2] Graduada em Psicologia pela UNOESC – Universidade do Oeste do Estado de Santa Catarina, Campus de Pinhalzinho/SC. E-mail: talia.barbieri@outlook.com

[3] Estudante de Psicologia da UNOESC, Campus Pinhalzinho/SC. E-mail: karine.waldow@gmail.com

[4] Mestre em Administração pela UNOESC – Universidade do Oeste de Santa Catarina, Campus de Chapecó (2018). Docente e Coordenador do Curso de Psicologia da UNOESC – Universidade do Oeste de Santa Catarina, Campus de São Miguel do Oeste. E-mail: matias.trevisol@unoesc.edu.br.

[5] Mestra em Ciências Sociais pela UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Toledo/PR (2017). Docente do curso de Psicologia da UNOCHAPECÓ- Universidade Comunitária da Região de Chapecó, Campus de Chapecó/SC. E-mail:  daniellefeltes@unochapeco.edu.br.

[6] Mestra em Ciências da Saúde pela UNOCHAPECÓ- Universidade da Região de Chapecó (2019). Docente do curso de Psicologia da UNOESC – Universidade do Oeste do Estado de Santa Catarina, Campus de Pinhalzinho/SC e Campus de São Miguel do Oeste/SC. E-mail: chancarlyne.vivian@unoesc.edu.br.

[7] Mestranda em Psicologia pela UCB – Universidade Católica de Brasília. Graduada em Psicologia pela UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. E-mail: svianadebora@gmail.com