REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202411131003
Josiane Rita De Souza Azevedo1
Orientador(a): Dra Paola Almeida De Araújo Goes2
M.v. Christian Miguel Guillarducci3
RESUMO
O estudo aborda a importância do tratamento de lesões cutâneas em medicina veterinária, com ênfase na cicatrização de feridas em coelhos com pododermatite, incluindo o uso da pele de tilápia do Nilo como alternativa terapêutica para enxertia pós desbridamento de úlceras necróticas. Lesões cutâneas podem ser causadas por traumas, mordeduras ou outras origens, comprometendo funções vitais da pele, como proteção e defesa contra infecções. A pele de tilápia é rica em colágeno tipo I, tem se destacado como um biomaterial acessível e eficaz no tratamento de feridas, estimulando a regeneração celular e a cicatrização. O trabalho relata o caso de um coelho, por nome Paçoca, diagnosticado com pododermatite ulcerativa em membro pélvico esquerdo, uma condição crônica que pode levar a complicações graves. Os sinais clínicos da patologia são dor, alopecia abdominal e em membros, edema, lesões ulcerativas perda da motilidade articular com presença de reações osteolíticas. A pododermatite em coelhos está frequentemente relacionada a fatores como qualidade do solo da gaiola, excesso de peso e sedentarismo. O tratamento do coelho incluiu desbridamento do tecido necrosado e a aplicação de pele de tilápia como enxerto. A pele de tilápia foi preparada por um processo rigoroso de esterilização e conservação, envolvendo imersão em soluções específicas e a aplicação de antibióticos. A utilização dessa pele como curativo oclusivo ajudou na estimulação de fatores de crescimento essenciais para a regeneração da pele, como fibroblastos e queratinócitos. O uso desse biomaterial se mostrou eficaz no tratamento de feridas com perda tecidual significativa, evitando a necessidade de suturas, e favorecendo a cicatrização por formação de novo tecido. O acompanhamento pós-operatório incluiu o uso de antibióticos e anti-inflamatórios, e o tratamento com pele de tilápia contribuiu para o sucesso da recuperação. O estudo destaca a eficácia do biomaterial no manejo de feridas cutâneas em coelhos, especialmente na recuperação de lesões causadas pela pododermatite ulcerativa. Portanto, após o tratamento, o coelho apresentou boa cicatrização, a ferida evoluiu positivamente, com formação de tecido de granulação e epitelização.
Palavras-chave: Cicatrização; Pele de Tilápia; Ferimentos e Lesões; Pododermatite em coelhos
ABSTRACT
The study addresses the importance of treating skin lesions in veterinary medicine, with an emphasis on wound healing in rabbits with pododermatitis, including the use of Nile tilapia skin as a therapeutic alternative for grafting after debridement of necrotic ulcers. Skin lesions can be caused by trauma, bites or other causes, compromising vital skin functions, such as protection and defense against infections. Tilapia skin is rich in type I collagen and has been highlighted as an accessible and effective biomaterial in the treatment of wounds, stimulating cell regeneration and healing. The work reports the case of a rabbit, named Paçoca, diagnosed with ulcerative pododermatitis in the left pelvic limb, a chronic condition that can lead to serious complications. The clinical signs of the pathology are pain, abdominal and limb alopecia, edema, ulcerative lesions, loss of joint mobility with the presence of osteolytic reactions. Pododermatitis in rabbits is often related to factors such as cage floor quality, excess weight, and sedentary lifestyle. The rabbit’s treatment included debridement of necrotic tissue and the application of tilapia skin as a graft. The tilapia skin was prepared through a rigorous sterilization and preservation process, involving immersion in specific solutions and the application of antibiotics. The use of this skin as an occlusive dressing helped stimulate growth factors essential for skin regeneration, such as fibroblasts and keratinocytes. The use of this biomaterial proved effective in the treatment of wounds with significant tissue loss, avoiding the need for sutures and promoting healing through the formation of new tissue. Postoperative follow-up included the use of antibiotics and anti-inflammatories, and treatment with tilapia skin contributed to the successful recovery. The study highlights the effectiveness of the biomaterial in the management of skin wounds in rabbits, especially in the recovery of lesions caused by ulcerative pododermatitis. Therefore, after treatment, the rabbit presented good healing, the wound evolved positively, with formation of granulation tissue and epithelialization.
Key words: Healing; Tilapia Skin; Wounds and Injuries; Pododermatitis in rabbits
INTRODUÇÃO
As lesões cutâneas ocasionadas por traumas, mordeduras ou diferentes origens e causas representam uma alta frequência de atendimentos na medicina veterinária e constitui grande importância na área. (SIMAS, 2010).
Halata et al., 2003; Volk & Bohling, 2013 apontam que a pele é o maior órgão do corpo, exerce diferentes funções como a proteção contra traumatismos, forma uma barreira biológica contra antígenos presentes no meio externo, é responsável pela termorregulação do organismo, percepção de estímulos dolorosos, participação na síntese de vitamina D. Alves, 2019, diz que a pele é composta por três camadas, epitelial, derme e hipoderme, o epitélio é a camada mais superficial, a derme é resistente e fibrosa, a hipoderme constitui um tecido conjuntivo frouxo.
A ferida é uma ruptura ou interrupção de algum tecido, ocasionando perda tecidual e pode ser causada por fatores traumáticos, agentes químicos, mecânicos ou decorrente de alguma alteração clínica cujo organismo busca o reparo gerado pelo processo de cicatrização. ( ALVES, 2023)
Após um trauma ocorre uma perda e descontinuidade da integridade do tecido epitelial, o que acomete as funções deste, pode predispor este órgão a ausência de proteção, facilita a entrada de microrganismos, com potencial de resultar em inflamação, infecção sistêmica ou local. (SIMAS, 2010).
Independentemente da causa toda ferida passa pelo processo de cicatrização, que corresponde a uma combinação de processos químicos, físicos e celulares que restauram o tecido lesionado. (ALVES, 2024).
O processo de cicatrização depende do manejo da ferida e do curativo utilizado para reparação do tecido lesionado. Após a identificação do tipo de lesão e a causa determina-se a abordagem terapêutica mais adequada para cada caso. (RAMOS, 2021).
A escolha do curativo depende do tipo de ferida, seu diâmetro, local e seu grau de contaminação. Em suma, existem quatro tipos de fechamento para feridas abertas, que podemos classificar como: oclusão primária (fechamento rápido do ferimento), oclusão primária retardada (fechamento da ferida com retardo de 3 a 5 dias), oclusão secundária (seguida da formação do tecido de granulação) e a cicatrização por segunda intenção (fechamento espontâneo da ferida). (PAVLETIC, 2010).
A pele de tilápia do Nilo (Oreochromis niloticus) surge como uma excelente alternativa de biomateriais para enxertos e no estímulo à cicatrização, tanto na medicina humana como na veterinária, por apresentar propriedades antibióticas, analgésicas e por aderir de forma consistente em feridas abertas. (LIMA-JUNIOR et al., 2017; MIRANDA, 2018; TORRISI et al., 2018).
A tilápia do Nilo (Oreochromis niloticus) é originária da bacia do rio Nilo, no leste da África, pertencente à família dos ciclídeos é amplamente encontrada nas regiões tropicais e subtropicais (LIMA-JUNIOR et al., 2017; MIRANDA, 2018; TORRISI et al., 2018). A pele de tilápia é um subproduto de descarte da indústria de alimentos, o que a torna uma matéria-prima de baixo custo e alta disponibilidade. Portanto, os dispositivos produzidos a partir da pele de tilápia solucionam um problema ambiental da indústria, tendem a ser econômicos e acessíveis, com potencial para gerar relevante impacto financeiro e social no sistema de saúde brasileiro. (Costa, 2023).
A pele da tilápia do Nilo é composta por duas camadas teciduais, a epiderme que é formada por células epiteliais pavimentosas e a derme formada por uma espessa camada de tecido conjuntivo frouxo (derme superficial) e um tecido conjuntivo denso (derme profunda), espesso e rico em fibras colágenas (SOUZA, 1997).
O colágeno tipo I, presente na pele da tilápia, estimula fatores de crescimento como fibroblastos e queratinócitos, aos quais são citocinas importantes para o fechamento das feridas (TANG, 2015).
Os coelhos são mamíferos originários do Oeste da Europa e Nordeste da África (KLINGER & TOLEDO, 2020). Pela legislação vigente no Brasil são classificados como animais domésticos (KLINGER & TOLEDO, 2020). Os coelhos pertencem a ordem Lagomorpha e a família Leporidae, todos os coelhos domésticos descendem do coelho silvestre europeu (Oryctolagus cuniculus). Os dois gêneros principais de coelhos são o Oryctolagus (coelho silvestre europeu) e Sylvilagus (coelho rabo de algodão) (PESSOA et al., 2011).
Os coelhos (Oryctolagus cuniculus domesticus) são animais ágeis, cavadores, de hábitos noturnos, anatomicamente possuem dentes incisivos sobrepostos em cada heme superior, com maxilares mais longos que as mandíbulas. As orelhas são extensas em relação ao corpo, os esqueletos são frágeis, o que os torna mais suscetíveis a fraturas, os músculos são bem desenvolvidos, as patas são destituídas de coxins e as unhas são pontiagudas. (OTONI, 2021).
O coelho doméstico é considerado um pet não convencional, tido como animal de estimação, com uma crescente na procura e adoção destes animais, o que resulta em mais atendimentos na clínica médica de animais silvestres. (SANTOS, 2022).
Segundo Pessoa, 2011 a pododermatite ulcerativa em coelhos é uma afecção de ocorrência crônica, que manifesta conformações granulomatosas e presença de lesões graves na região plantar dos membros. Traverso, 2003, descreve que em casos crônicos pode acometer os tecidos mais internos da pele causando osteomielites e septicemias, caso não seja tratada de forma adequada pode levar o animal a óbito num curto espaço de tempo.
Conforme Otoni, 2021, os sinais observados num quadro de pododermatite incluem, dor, edema, úlcera, hiporexia, anorexia, alopecia focal, claudicação, hiperqueratose epitelial e osteomielite que quando se instala na corrente sanguínea pode levar a septicemia.
Neste sentido em consequência da elevada casuística de animais com lesões cutâneas de diversas origens, demonstra-se que estudos de novas opções terapêuticas, por meio do uso da pele de tilápia como bandagem, enxerto e/ou curativo oclusivo, podem beneficiar no tratamento destes pacientes.
Logo, o trabalho visa apresentar métodos de promoção da cicatrização de feridas cutâneas em coelho com pododermatite, que se mostram viáveis, de fácil manuseio, acesso e de baixo custo, assim como a pele de Tilápia do Nilo usada como curativo biológico oclusivo na medicina humana e veterinária. Além do mais, a análise do processo de cicatrização de feridas ou traumas com o uso da pele de tilápia liofilizada pode servir de suporte para elaboração de protocolos e apoiar médicos veterinários no tratamento de feridas e enxertos de tecido tegumentar lesionado.
Em suma o principal objetivo do trabalho é relatar um caso clínico envolvendo a enxertia com a pele de tilápia em ferida causada por pododermatite, após desbridamento do tecido necrótico, além de servir como uma terapia complementar, com o propósito de estimular a absorção de colágeno tipo I presente na pele de tilápia, ainda favorece a formação de fatores de crescimento como fibroblastos e queratinócitos, aos quais são citocinas importantes para o fechamento e contração da ferida.
RELATO DE CASO
Foi atendido na Clínica Veterinária em 23 de setembro de 2024, o coelho, Paçoca, do sexo masculino, com 8 anos de idade, 2,2 kg, com queixa pela tutora, devido a um processo inflamatório no membro pélvico esquerdo, que se estendia até o joelho, já vinha em processo de tratamento desde julho de 2024. Os sinais observados eram necrose tecidual, edema do membro, alopecia, presença de granulomas, secreção purulenta e claudicação na lateral esquerda. De acordo Otoni, 2021, a etiologia da podermatite envolve fatores ambientais, tal como a qualidade do solo da gaiola ou recinto, presença de ripas, baixa qualidade da forrageira para absorção da umidade, presença de excrementos. Ainda conforme Otoni, 2021 fatores fisiológicos envolvem o excesso de peso, sedentarismo, idade e raça, sendo assim, a idade do paciente tem o potencial de predispor a manifestação da patologia estudada.
A metodologia de preparo das peles de tilápia, terá como base o registro do relato de caso de um paciente que apresente ferida cutânea, após, identificação do paciente, foi preenchida a ficha de autorização de procedimento pelo tutor, anamnese, diagnóstico, prognóstico e escolha da melhor abordagem terapêutica, acompanhamento da evolução da cicatrização da ferida do paciente tratado, criação de protocolo com opção alternativa de tratamento de ferida cutânea.
Segundo relatos da tutora, durante a anamnese o recinto (gaiola) do animal sempre foi higienizado diariamente, com manutenção e uso de serragem. O coelho sofreu uma lesão com perda da unha do membro pélvico esquerdo ao retirá-lo da gaiola, que de acordo com a tutora progrediu para o processo inflamatório do membro. A alimentação oferecida é a ração para coelhos e vegetais como cenoura, maçã, verduras verdes escuras e feno. Harcourt-Brown, 1997, relata que a colonização das feridas por bactérias é comumente relacionada à falta de higiene dos recinte, excesso de peso em função da oferta de dieta calórica. Quadros de infecções por Staphylococcus aureus e Pasteurella multocida são frequentemente identificados.
O beneficiamento das peles de tilápia foi feito com base em estudos realizados por Alencar & Santos, 2021, em que duas Tilápias-do-Nilo foram pescadas e abatidas por meio da técnica de glaciamento, após, as peles foram removidas com o auxílio de uma lâmina de bisturi n°24, os cortes foram demarcados e com uma pinça hemostática a pele foi cuidadosamente divulsionada, até sua completa desconexão com o músculo do peixe. As peles foram separadas em dois recipientes com clorexidina (solução com tensoativos) 2%, onde permaneceram por 30 minutos. Em seguida foram enxaguadas em soro fisiológico e inseridas em um recipiente hermético contendo 50% de NaCl a 0,9% e 50% de glicerina, em seguida o recipiente foi acondicionado em refrigerador a temperatura de 4 °C, onde permaneceu por 12 horas. No dia seguinte as peles foram retiradas do refrigerador, enxaguadas em solução fisiológica, separadas em recipiente com clorexidina 0,5% onde permaneceram por 5 minutos. As peles foram enxaguadas com solução fisiológica novamente. Logo depois, as peles foram colocadas em bandeja estéril contendo 1% de ampicilina e miconazol, 80% glicerina e 19% NaCl a 0,9%, foram colocados em banho maria a 38,7 °C durante 3 horas. Após esta fase as peles de tilápia- do- Nilo (Oreochromis niloticus) de forma estéril, foram colocadas na bancada, embaladas e seladas individualmente com papel grau cirúrgico. Foi realizado o teste de cultura, para avaliar a esterilidade do biomaterial a ser utilizado como curativo oclusivo em animais com feridas cutâneas, no qual resultou em material estéril. Segundo Machado, 2020, finalizado todo o processo a pele já é considerada pronta para o uso, devendo ser guardada, refrigerada e armazenada em embalagem a vácuo, contendo 100% de glicerina.
Fig. 1 e 2: Peles de tilápia previamente preparadas para aplicação pós desbridamento de tecido necrosado do membro pélvico esquerdo.
Fonte: Arquivo pessoal, 2024.
A pododermatite ulcerativa, geralmente denominada de jarretes doloridos, é uma dermatite crônica granulomatosa e ulcerativa da face plantar do metatarso e, eventualmente, da face palmar do metacarpo e das superfícies falangianas das extremidades podais dos coelhos (HESS & TATER, 2012). O animal foi tratado com enrofloxacino na dose 5 mg/kg, a cada 24h, durante 7 dias, se estendendo por mais 15 dias em razão do retardo da cicatrização e em virtude do grau de contaminação e gravidade da lesão, foram feitos curativos a cada 72h, porém sem sucesso terapêutico. Conforme Costa, 2014, o tratamento com antibiótico deve ser realizado por um longo período, eventualmente por toda a vida do animal a depender da necessidade e evolução do quadro. Para tanto, avaliou-se a busca por tratamentos alternativos no local da ferida desbridada, a fim de estimular uma melhor cicatrização e analgesia local.
Para a realização do desbridamento cirúrgico do membro foram solicitados exames de hemograma completo, glicose e os resultados obtidos foram eritrócitos 8.177 milhões/dL, hemoglobina 20%, V.C.M 65,53 u3, H.C.M 71, proteína total 8g/dl, leucograma 17.229 milhões/dL, ureia 38 e creatinina 1,1, que no geral mostraram-se sem alterações significativas.
Devido a recidiva do caso, em 2 de outubro de 2024 foi realizada a punção aspirativa por agulha fina (PAAF) em nódulo do membro pélvico esquerdo, para citologia e biópsia, no qual revelou um processo inflamatório crônico ativo, a amostra apresentou material intensamente agregado e sobreposto, composto por discreta celularidade inflamatória, moderadamente degenerada, identificação de heterófilos, macrófagos, por vezes espumosos e linfócitos em permeio a acentuada contaminação sanguínea, em lâmina há a presença de debris, além de visualização discreta de estruturas morfologicamente sugestivas de bactérias. Não houve visualização de células neoplásicas e/ou presença de microrganismos. Segundo Mesquita, 2022, a resposta natural dos organismos frente a um estímulo nocivo decorre do processo inflamatório, fenômeno este que representa um componente essencial do sistema imunológico ao qual atua no combate a infecções e injúrias teciduais e é considerada uma das respostas mais primitivas do corpo, desta maneira, os sinais observados de inflamação demonstram a tentativa de recuperação tecidual. Segundo Paterson, 2006, o diagnóstico de pododermatite pode ser feito com base nos sinais clínicos e na citologia das lesões, que contribuem na identificação de infecções secundárias. Portanto ao reunir dados da anamnese, exame físico e complementares, sugere-se pela clínica médica de animais silvestres que o diagnóstico refere-se a um quadro de pododermatite.
Como método de tratamento e devido ao insucesso terapêutico, no dia 07 de Outubro de 2024, foi realizado o desbridamento do tecido necrosado e a aplicação da pele de tilápia sob a supervisão do Médico Veterinário Christian Miguel Guillarducci, CRMV 13.816, já que de acordo com Vieira, 2021 em feridas abertas é necessário combater e prevenir infecções adicionais, desbridar tecidos necrosados, além de remover materiais estranhos e contaminantes, efetuar a drenagem com o objetivo de estimular o leito vascular e torná-lo viável para o processo de cicatrização.
Fig. 1 e 2: Pododermatite ulcerativa em coelho, com abscesso próximo a articulação do joelho.
Fonte: Arquivo pessoal, 2024.
Ainda segundo Vieira, 2021, feridas que sofreram perda tecidual há mais de 8 horas e estão contaminadas, como no caso em questão, não devem ter as bordas aproximadas por meio de suturas, além de não conter tecido epitelial suficiente para tanto, visto que, as chances de deiscência dos pontos e necrose são altas e recorrentes. Logo, devem ser tratadas como feridas abertas, neste caso o fechamento decorreu com a formação de um novo tecido, através da deposição de colágeno, fabricação de tecido de granulação e epitelização, uma vez que esse processo é mais lento, podendo levar meses.
Levando em conta a escolha da aplicação da pele de tilápia como terapia complementar ao tratamento da pododermtite do paciente em questão, a medida em que Serpa, 2021 destaca que a pele de tilápia do Nilo é um substituto biológico de origem animal que apresenta resultados positivos na maioria dos casos em que são utilizados, entretanto, a escassez de estudos realizados em animais é grande e a necessidade de se explorar essa terapêutica é fundamental.
Segundo Alencar, 2022, pesquisas histológicas da pele de tilápia mostram uma epiderme revestida por um epitélio pavimentoso estratificado, seguido de extensas camadas de colágeno tipo I e III, semelhante a pele de mamíferos. Por este motivo, segundo Milagres, 2022, a utilização da pele tilápia apresenta benefícios por conter peptídeos com propriedades antioxidantes, anti-inflamatórias e antibacterianas, como a defensina e a hepcidina.
O procedimento iniciou-se com o exame físico do paciente, no qual apresentou-se dentro dos parâmetros normais, com mucosas normocoradas, turgor cutâneo de 2 segundos, Frequência 220 bpm, frequência respiratória de 42 mpm, temperatura 38,7ºC, tempo de preenchimento capilar de 2 segundos, pressão arterial sistólica 12/8, sem alterações no sistemas cardiorrespiratório, digestório, nervoso ou geniturinário, porém com significativos sinais de inflamação e infecção do tecido tegumentar do membro pélvico esquerdo, com feridas mucopurulentas, pústulas e abscesso contendo material caseoso. Após a avaliação do paciente, foi realizada a tricotomia ampla do membro afetado, com sedação e analgesia para desbridamento do tecido necrótico e inflamado, já que segundo Simas, 2010 o procedimento pode promover a melhora da circulação local e a migração de células e elementos sanguíneos como neutrófilos e plaquetas, portanto esperava-se uma melhor resposta de cicatrização do tecido, devido a revitalização deste e do estímulo gerado para processo de coagulação.
A sedação e analgesia ocorreram com base em estudos recentes de Lopes, 2023, sendo utilizado Acepran na dose de 0,05 ml/kg, tramadol para proporcionar analgesia, na dose de 3,0 mg/kg, Cetamina dosagem de 22 mg/kg e midazolam 1,0 mg/kg, todos os fármacos foram administrados por via subcutânea.
Realizou-se o desbridamento com lâmina de bisturi número 24 nas áreas necrosadas, no qual houve toda remoção do tecido desvitalizado, além deste também foram retirados corpos estranhos, bactérias que poderiam comprometer as defesas ou o processo de cicatrização, visto que conforme Fossum, 2007, o tecido necrosado retarda o processo de cicatrização, ademais foi drenada a secreção de consistência caseosa do abscesso, e feita a excisão cirúrgica deste, em conformidade com Dernell, 2006 estudos revelam que em situações de feridas altamente contaminadas, como observado no paciente é recomendada a lavagem com água potável e aquecida, embora citotóxica aos fibroblastos, a água é indicada para remoção de detritos e para evitar contaminação inicial. No preparo da lesão, a ferida foi limpa com clorexidina a 2% e soro fisiológico (NaCl) 0,9% aquecido para posterior aplicação da pele de tilápia. Após a limpeza e secagem da área afetada, as peles de tilápia foram colocadas em solução fisiológica, e posteriormente aplicadas em torno de toda lesão do membro pélvico esquerdo e suturadas apenas as bordas da pele de tilápia com fio nylon não absorvível 2.0, o local foi coberto por bandagem umedecida com solução fisiológica (NaCl) 0,9% e envolvida por ligadura autoadesiva flexível (vetrap), compondo a última camada do curativo. A escolha do biomaterial se deve ao fato de Macedo, 2021, mencionar que o curativo ideal é aquele de baixo custo, acessível, flexível e que possua boa aderência ao leito da ferida, resistência ao estiramento, fácil manipulação, capaz de promover efeito analgésico, e, principalmente, previna as perdas hidroeletrolíticas e a contaminação bacteriana, que estimule a recuperação do epitélio das áreas afetadas e proporcione a produção de um tecido de granulação, para os casos de enxertia.
Fig. 1, 2 e 3: Pele de tilápia já aplicada na região desbridada e limpa, após foi envolvido com gazes umedecidas com solução de NaCl a 0,9% e finalizado com colocação de fita autoadesiva em torno do local.
Fonte: Arquivo pessoal, 2024.
Para Longley, 2009, no tratamento de pododermatites deve-se administrar antibióticos sistêmicos, somado ao uso de analgésicos AINES, além de oferecer um substrato macio com o intuito de reduzir o desconforto e a piora das lesões. Deste modo, no pós-cirúrgico foi administrado o antibiótico ceftriaxona injetável via SC (subcutânea) na dose de 25-50 mg/kg, o antinflamatório Meloxicam injetável na de 0,2 mg/kg, via subcutânea. A prescrição para casa foi a administração do antibiótico enrofloxacina 5 mg/ml via oral a cada 24 h, por 14 dias e mantida cápsula de ômega 3 via oral a cada 24h, o paciente foi acompanhamento periodicamente, com retorno a cada 72h e a limpeza dos curativos duas vezes ao dia.
Na avaliação do dia 14 de outubro de 2024 o local da ferida estava com boa aderência e cicatrização, sem liberação de secreção mucopurulenta, sem edemas, seroma e odor, se mostrava em grau de ferida-limpa-contaminada, ausência de algia significativa no local desbridado, o animal voltou a apoiar o membro afetado, melhorou o apetite, nota-se ainda o desenvolvimento de tecido de granulação exuberante na ferida. Em consonância com Tang, 2015, a pele de tilápia-do-Nilo apresenta extensas camadas de colágeno, este é o principal fator que define a compatibilidade do biomaterial e favorece sua aplicação. O colágeno tipo I, presente na pele da tilápia, estimula fatores de crescimento de fibroblastos e queratinócitos, aos quais são citocinas importantes para o fechamento das feridas. De acordo com Alves, 2024 a fase observada corresponde a recuperação do tecido conjuntivo e epitelial, no tecido de granulação, ocorre a formação de novos vasos sanguíneos, fibroblastos e produção de colágeno. O fibrinogênio do exsudato inflamatório é convertido em fibrina, o que inicia a formação de uma rede, no qual ocorre uma deposição de fibroblastos em que se multiplicam e secretam soluções proteicas do tecido cicatricial. Em razão do sucesso terapêutico, optou-se por não realizar as trocas de pele, sendo mantida para posterior avaliação, devido Miranda, 2019, referir que quanto maior a quantidade de trocas de curativos, aumenta-se a possibilidade de infecção, em consequência, mais custos no tratamento e o agravante da manifestação de dor.
Na semana seguinte, dia 19 de outubro de 2024 a ferida apresentou contração das bordas, mostrou significativa cicatrização, com formação de uma rede de fibrina e tecido de descamação, síntese de uma camada epitelial sem úlcera, com tecido conjuntivo remodelado. Nota-se ainda a presença de fibrose e um aparente povoamento maior de fibroblastos na ferida. De acordo com Lopes, 2016 a fase é caracterizada pela proliferação ou reparo que dura de duas a três semanas e transcorre-se da formação de tecido de granulação, composto por fibroblastos, macrófagos e um arranjo de colágeno, fibronectina e ácido hialurônico, este tecido protege a ferida ao formar uma barreira contra infecções. Na fase proliferativa ocorrem os processos de angiogênese, fibroplasia, epitelização e a contração da ferida. Esta etapa corresponde ao processo proliferativo, que equivale a 20% do processo de cicatrização, inicia no 3º ao 4º dia e dura até o 21º dia, é a fase em que ocorre a recuperação do tecido conjuntivo e epitelial, desenvolve-se então o tecido de granulação.
Fig. 1: Ferida Avaliada após 11 dias da aplicação da pele de tilápia.
Fonte: Arquivo pessoal, 2024.
Em avaliação do dia 30 de novembro de 2024 é possível notar que na região plantar houve completa cicatrização e epitelização, a área de região dorsal da pata, no qual apresentava-se com formação de tecido de granulação e descamação da pele de tilápia, evoluiu para epitelização e regeneração tecidual.
Fig. 1: Avaliação após 22 dias da aplicação da pele de tilápia.
Fonte: Arquivo pessoal, 2024.
No dia 05 de novembro de 2024 analisou-se que havia alguns focos inflamatórios na ferida, porém com completa regeneração e epitelização do tecido da região plantar do membro, decidiu-se então pelo desbridamento das áreas ainda inflamadas, com o uso de gazes umedecidas a clorexidina 2%, soro fisiológico (NaCl) 0,9% e troca da pele de tilápia para continuidade e promoção da cicatrização focal das inflamações. O membro foi envolto com gazes umedecidas com soro fisiológico e vetrap. Ainda segundo Macedo, 2021 o curativo oclusivo aderiu perfeitamente ao leito da ferida, estimulou a formação de tecido de granulação e a progressão e a renovação de maior parte do epitélio lesionado no membro pélvico esquerdo, o que promoveu estabilidade terapêutica, mesmo que o paciente tenha que ser acompanhado regularmente ao longo de sua vida, já que se trata de um animal idoso com uma patologia crônica, no caso a pododermatite.
Fig. 1 e 2: Foto a esquerda da região dorsal do membro pélvico esquerdo com presença de tecido de granulação e formação de redes de fibrina, e na foto a direita em área plantar houve completa revitalização do tecido, após 27 dias de tratamento.
Fonte: Arquivo pessoal, 2024.
Vale ressaltar, que em consonância com Stanley; Cornell, 2017, o amadurecimento sinaliza a fase de remodelamento, corresponde a finalização do processo de cicatrização, visto que é responsável por fortalecer a ferida, de modo a formar uma barreira física eficiente através do reposicionamento dos feixes de colágeno e acúmulo de camadas epidérmicas. Nesta fase ocorre um processo contínuo de produção e degradação, essencialmente em relação ao ácido hialurônico, fibronectina (degradação de ambos) e síntese de colágeno. Ainda segundo Stanley; Cornell, 2017, a fase de maturação tem início quando o colágeno é disposto devidamente no tecido ferido aproximadamente por três meses, podendo ser prolongado por anos.
Em concordância com Hess & Tater, 2012, dentre as recomendações de manejo sanitário e alimentar aos tutores e para prevenção da pododermatite orienta-se a utilização de uma superfície de apoio suave e absorvente na gaiola (como toalhas, tapete higiênico, material de cama de fibra de celulose ou feno seco) como também a limpeza cuidadosa e regular da mesma, a aplicação de uma ligadura almofadada durante uma a duas semanas podem ser meios suficientes para uma reversão da afecção. Na alimentação deve-se aumentar a disponibilidade de fibra e reduzir os hidratos de carbono da dieta e se os coelhos tiverem excesso de peso incentivá-los ao exercício.
CONCLUSÃO
A pododermatite em coelho é uma afecção crônica, pode evoluir para quadros graves, acometendo ossos e articulações, além de levar o animal a óbito. Como resultado o uso da pele de tilápia-do-Nilo como enxerto pós desbridamento de tecidos para o tratamento complementar da pododermatite em coelho, mostrou-se um excelente curativo oclusivo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALENCAR, Marina Kelly Farias et al. UTILIZAÇÃO DA PELE DE TILÁPIA LIOFILIZADA (Oreochromis niloticus) COMO CURATIVO BIOLÓGICO HETERÓLOGO E OCLUSIVO EM UM CÃO COM LESÃO CUTÂNEA TRAUMÁTICA. TÓPICOS EM SANIDADE DE CÃES E GATOS VOLUME 4, p. 5, 2022.
ALVES, Pâmela de Oliveira. Terapia integrativa na medicina veterinária para o tratamento de feridas: revisão de literatura. 2024.
DA COSTA, Inês Arriaga. Clínica de animais de companhia e espécies exóticas: pododermatite ulcerativa em aves e mamíferos exóticos. 2014. Dissertação de Mestrado. Universidade de Evora (Portugal).
DE ALENCAR, Camila Leseux Macedo; DOS SANTOS, Tiago Schinato. UTILIZAÇÃO DA PELE DA TILÁPIA DO NILO (OREOCHROMIS NILOTICUS) COMO CURATIVO OCLUSIVO BIOLÓGICO EM FERIDAS CUTÂNEAS DE CÃES E GATOS. Arquivos Brasileiros de Medicina Veterinária FAG, v. 4, n. 1, 2021.
DE SOUZA MELO, Mirza et al. Enxerto de pele de tilápia (Oreochromis niloticus) em reparo de úlcera em cornea de cão: relato de caso. Brazilian Journal of Animal and Environmenta Research, v. 5, n. 1, p. 367-375, 2022.
FOSSUM, Theresa Welch. Cirurgia de pequenos animais. 5. ed. Rio De Janeiro: Guanabara Koogan, 2021.
Hess, L.; Tater, K. Dermatologic diseases. In: Quersenberry, K.; Carpenter, J. Editors. Ferrets, rabbits, and rodents: clinical medicine and surgery. 3 rd ed, St Louis: Elsevier Saunders, 2012.
ISAAC, Cesar et al. Processo de cura das feridas: cicatrização fisiológica. Revista de Medicina, v. 89, n. 3-4, p. 125-131, 2010.
LONGLEY L (2009) Rodents: dermatoses. In BSAVA Manual of Rodents and Ferrets ed. Keeble, M. & Meredith, A., British Small Animal Veterinary Association, Gloucester, RU, ISBN, pp. 107-123.
MACEDO, Fernanda Soares. Curativo pele da tilápia do nilo (Oreochromis niloticus) modula a fase inflamatória e proliferativa da cicatrização de queimaduras superficiais em camundongos. 2021.
MACHADO, Francielli Lara et al. Uso de pele de tilápia em disjunção de sínfise mandibular em felino: Relato de caso. Pubvet, v. 15, p. 188, 2020.
MARIA DE FÁTIMA, G. S. et al. Biologia da ferida e cicatrização. Biblioteca Escolar em Revista, v. 41, n. 3, p. 259-264, 2008.
MILAGRES, Amanda Oliveira et al. O uso da pele de Tilápia do Nilo como curativo oclusivo temporário no tratamento de queimaduras térmicas: revisão sistemática. Revista Interdisciplinar Ciências Médicas, v. 6, n. 2, p. 60-67, 2022.
OTONI, Izabella. Pododermatite em coelho: Relato de caso. Pubvet, v. 15, n. 05, 2021.
Paterson S (2006) Skin Diseases and Treatment of Rabbits. In Skin Diseases of Exotic Pets, Blackwell Science, Iowa, EUA, ISBN, pp. 288-312.
ROCHA, Leonardo Manzolli Rosa et al. Bandagem biológica com pele de tilápia em lesão de cauda de gambá-de-orelha-preta (Didelphis aurita): relato de caso. 2023.
SERPA, Ana Carolina Viana. Principais substitutos temporários de pele para o tratamento de queimaduras e lesões cutâneas na medicina veterinária. 2021.
SILVA, Thomás et al. Tratamento de feridas em cães e gatos. ENCICLOPEDIA BIOSFERA, v. 18, n. 37, 2021.
SIMAS, Silvana Mello. O tratamento de feridas cutâneas em cães e gatos. 2010.
UNIVERSITÁRIO, CENTRO; MESQUITA, LAYZA ALLANA PEREIRA. IMPORTÂNCIA DA CITOLOGIA NA DIFERENCIAÇÃO DE PROCESSOS INFECCIOSOS E NEOPLÁSICOS EM ALTERAÇÕES CUTÂNEAS EM CÃES: Comparação entre casos clínicos.
VIEIRA, Giovana Carvalho. Relatório final de estágio obrigatório do curso de medicina veterinária, realizado junto ao setor de clínica cirúrgica de pequenos animais do Hospital Veterinário de Uberaba, em Uberaba-MG e do Hospital Veterinário de Uberlândia, em Uberlândia-MG. Relato de caso: manejo de feridas cutâneas em pequenos animais. 2022..
VÍTOR, Matilde Rosa da Costa. Proposta de uma escala para avaliação do processo de cicatrização de ferida cirúrgica no cão e no gato. 2015. Tese de Doutorado. Universidade de Lisboa. Faculdade de Medicina Veterinária