LOGOTERAPIA APLICADA ÀS MULHERES VÍTIMAS DE RELACIONAMENTOS ABUSIVOS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11036317


Luciana Neves[1]
Diogo Rogério Carlos[2]
Maria Denise De Assis[3]
Karoline Raquel Pontes De Souza Do Amaral[4]
Adilma Batista Da Silva[5]
Ingrid Santana De Andrade[6]
Maria Da Conceição Carvalho Maciel[7]
Renata Pereira De Lima Florentino[8]


RESUMO

A Logoterapia, de orientação fenomenológica-existencial, explora a dimensão espiritual do sujeito e sua relação com as dimensões física e mental, e busca auxiliar o paciente a encontrar sentido em sua vida, força motivadora no ser humano. Por sua vez, o tema relacionamento abusivo tem sido cada vez mais abordado nos consultórios psicológicos e vem se tornando um grave problema de saúde pública no Brasil, atingindo vítimas dos mais diversos níveis sociais, etários e de escolaridade. O presente artigo buscou explorar os conceitos e as técnicas utilizadas na Logoterapia que podem contribuir para o atendimento psicológico clínico das mulheres vítimas de relacionamentos abusivos, sem, entretanto, deixar de voltar o olhar para outros campos dos saberes e para as questões sociais que perpassam por tais relacionamentos.

Palavras-chave: Logoterapia. Sentido da vida. Violência. Mulher. Relacionamento abusivo.

ABSTRACT

Logotherapy, with a humanist-existential orientation, explores the subject’s spiritual dimension and its relationship with the physical and mental dimensions, and seeks to help the patient find meaning in their life, a motivating force in human beings. In turn, the topic of abusive relationships has been increasingly addressed in psychological offices and has become a serious public health problem in Brazil, affecting victims of the most diverse social, age and educational levels. This article sought to explore the concepts and techniques used in logotherapy that can contribute to the clinical psychological care of women victims of abusive relationships, without, however, looking to other fields of knowledge and the social issues that permeate such relationships.

Keywords: Logotherapy. Sense of life. Violence. Woman. Abusive relationship.

1. Introdução

A Logoterapia é uma abordagem de orientação fenomenológica-existencial e foi fundada pelo psiquiatra vienense Viktor Emil Frankl. Também conhecida como “Terceira Escola Vienense de Psicoterapia”, a Logoterapia é fundamentada em três alicerces: a liberdade da vontade, a vontade de sentido e o sentido da vida, e tem como objetivo ajudar o ser humano a ser feliz, com a descoberta do sentido de sua própria existência (Frankl, 2011). Ela traz conceitos como a tríade trágica, o vazio existencial e a autotranscedência, bem como técnicas, como o autodistanciamento, ganhos e perdas, diálogo socrático, a apelação, a biblioterapia, a derreflexão e a intenção paradoxal, que contribuem no processo de psicoterapia de mulheres vítimas de relacionamentos abusivos[9].

A decisão por este tema partiu da experiência de estágio nas cadeiras de Estágio Específico I, II e III com ênfase em clínica fenomenológica-existencial e humanista, onde não poucas vezes o tema dos relacionamentos abusivos com mulheres e as consequentes violências praticadas pelos agressores surgem nas narrativas de mulheres em atendimento psicoterápico, seja sistemático, ou na modalidade de plantão psicológico. Isso tem sido constante em muitas das queixas levadas pelas pacientes, o que inquietou a construir uma pesquisa que viesse a contribuir na prática clínica de estagiários e profissionais de Psicologia para um maior suporte a essas mulheres vítimas de violência.

Abusividade em relacionamentos heteroafetivos existe em nossa sociedade há séculos. Culturalmente os homens são colocados em uma posição de superioridade e as mulheres condicionadas a serem submissas a eles, perpetuando o patriarcado e justificando os mais diversos tipos de violência contra mulheres das mais diversas faixas etárias, níveis culturais e classes sociais. Autoras e autores como Bourdieu (2023), Bock (2018), Lopes (2021) e Safiotti (2015) afirmam que as diferenças das relações entre os gêneros são permeadas por representações sociais, por exemplo, a prática de violência contra a mulher faz parte de uma construção histórica de símbolos sociais. Pierre Bourdieu (2020) diz que discutir desigualdade de gêneros, é tratar da historização de um fenômeno que é visto na sociedade como algo natural, uma vez que na ordem social existem os sexos: masculino e feminino, os quais são distintos pelas relações de dominação, de forças materiais e simbólicas entre eles.

Tem sido cada vez maior os casos noticiados nos veículos de comunicação de relacionamentos abusivos praticados por homens contra mulheres, que muitas vezes apresentam como resultado o feminicídio. Também tem sido comum a busca de mulheres por ajuda psicológica por serem vítimas de relacionamentos abusivos e, em muitas dessas vezes, a mulher nem se percebe nesse tipo de relacionamento, mas traz queixas como ansiedade e depressão, que no decorrer da terapia, vão se mostrando ocasionadas por esse tipo de relacionamento.

Pensar num fazer clínico para mulheres em situação de violência em relacionamentos abusivos é pensar numa clínica que seja atravessada por discussões sobre os direitos fundamentais da pessoa humana, direitos esse que são violados, causando adoecimentos de vários aspectos. Pensar na Logoterapia como abordagem psicológica para este serviço tão delicado não se faz de forma isolada, como uma aplicação fechada sem a abertura a outros campos de saberes. Como nos lembra o próprio Viktor Frankl, a Logoterapia não é uma panaceia, mas está aberta a outras contribuições[10], daí a importância de um diálogo com as políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres, a discussão da criação de leis mais rígidas para coibir tais violências, bem como a atuação das mais diversas áreas profissionais com este público.

Como abordagem fenomenológica-existencial, a Logoterapia procura facilitar uma tomada de consciência plena (awareness) no aqui e no agora, pois é somente no tempo presente que a realidade pode ser modificada. Serão apresentadas outras diversas contribuições desta abordagem que notadamente poderão auxiliar as mulheres e gerar uma conscientização acerca dos problemas que as afligem, ajudando-as a superarem tais problemas e quebrando, assim, o ciclo de violência. Ressalta-se a importância da prática nas três cadeiras de Estágio Específico I, II e III, onde foi possível perceber como a Logoterapia pode ser uma abordagem com muitos recursos para se trabalhar nessa situação clínica, que não deixa de ser também um problema social. Assim, o objetivo geral desta pesquisa é discutir as contribuições da Logoterapia no atendimento psicológico clínico de mulheres vítimas de relacionamentos abusivos.

2. Considerações metodológicas

Esta pesquisa foi desenvolvida com o objetivo de explorar com maior profundidade o tema proposto e, para que fosse possível a obtenção dos resultados almejados, foi necessário percorrer um trajeto. Por ser um tema ainda pouco explorado, esse estudo foi desenvolvido a partir de uma pesquisa qualitativa de cunho exploratório e de caráter explicativo, visto que se pretende dar origem a uma nova perspectiva acerca do tema.

A pesquisa de natureza qualitativa visa realizar uma descrição crítica a partir dos dados coletados sobre o tema proposto. Nesse sentido:

A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se ocupa nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ou não deveria ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só por agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e à parte da realidade vivida e partilhada em seus semelhantes (Minayo, 2008, p. 21).

Quanto à pesquisa exploratória, podemos dizer que ela tem como objetivo fornecer dados para que o pesquisador obtenha um entendimento mais aprofundado a respeito da problematização apresentada. Sobre o assunto, discorrem Prodanov e Freitas:

Pesquisa exploratória é quando a pesquisa se encontra na fase preliminar, tem como finalidade proporcionar mais informações sobre o assunto que vamos investigar, possibilitando sua definição e seu delineamento, isto é, facilitar a delimitação do tema da pesquisa, orientar a fixação dos objetivos e a formulação das hipóteses ou descobrir um novo tipo de enforque para o assunto… A pesquisa explicativa é quando o pesquisador procura explicar os porquês das coisas e suas causas (Prodanov e Freitas, 2013, p. 51-53).

Para a execução deste artigo foi realizada uma pesquisa básica bibliográfica, através do levantamento de informações extraídas de livros, artigos, periódicos e outros materiais bibliográficos. Sobre a pesquisa bibliográfica, podemos dizer que:

A pesquisa bibliográfica é habilidade fundamental nos cursos de graduação, uma vez que constitui o primeiro passo para todas as atividades acadêmicas. Uma pesquisa de laboratório ou de campo implica, necessariamente, a pesquisa bibliográfica preliminar. Seminários, painéis, debates, resumos críticos, monografias não dispensam a pesquisa bibliográfica. Ela é obrigatória nas pesquisas exploratórias, na delimitação do tema de um trabalho ou pesquisa, no desenvolvimento do assunto, nas citações, na apresentação das conclusões. Portanto, se é verdade que nem todos os alunos realizarão pesquisas de laboratório ou de campo, não é menos verdadeiro que todos, sem exceção, para elaborar os diversos trabalho solicitados, deverão empreender pesquisas bibliográficas (Andrade, 2010, p. 25).

Os conceitos analisados neste artigo têm como referenciais teóricas os logoterapeutas Viktor Frankl e Elizabeth Lukas, dentre outros, que fundamentam a pesquisa acerca da Logoterapia, e Pierre Bourdieu, Heleieth Saffioti, Marie-Francie Hirigoyen,  Ana Bock, dentre outros, que abordam os temas de gênero, desigualdade e violência. Os periódicos utilizados foram científicos, obtidos através das plataformas Google Acadêmico e Scielo. Não foi encontrado nenhum livro, artigo, periódico ou similar sobre o tema logoterapia associada a relacionamentos abusivos, razão pela qual a pesquisa foi realizada de forma separada, estabelecendo-se posteriormente conexões entre eles.

3. Fundamentação teórica

3.1 Considerações acerca da Logoterapia

A Logoterapia foi criada por Viktor Emil Frankl, um médico especializado em Psiquiatria, psicoterapeuta e professor. Frankl era um vienense de raízes judaicas, e foi feito prisioneiro nos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial. Foi nesses campos de concentração que ele deu robustez às suas teorias acerca da Logoterapia. Para ele, mesmo nas situações mais adversas, o ser humano é movido por uma busca de sentido para a vida. Assim, a Logoterapia tem foco maior no presente e no futuro, nos sentidos a serem realizados pelo paciente.

As vítimas de relacionamentos abusivos são atravessadas por traumas e angústias advindas de violências sofridas das mais variadas formas. Na sessão psicoterápica, a Logoterapia serve de poderoso auxílio para ajudar essas pacientes a ressignificarem o passado e a apontarem o seu direcionamento para o futuro e suas infinitas possibilidades.

 Nesse sentido, leciona Diogo Rogério Carlos:

O passado é importante, porém, não mais que o futuro. É importante para compreensão da situação, e às vezes para compreensão da raiz do sintoma que se apresenta, mas não devemos nos estagnar nele, é preciso estimular o paciente a olhar para o futuro e para todas as possibilidades que estão à sua frente (Carlos, 2022, p. 35-36).

Ainda sobre a estimular uma visão para o futuro e para o sentido da vida, vale colacionar também os dizeres de Lukas:

Nosso caminho de vida, seja nos grandes, seja nos pequenos eventos, somente terá êxito se sempre e ininterruptamente algo estiver à nossa frente, um ideal, algo que deveríamos alcançar ou realizar, uma missão destinada especialmente a nós – não realizada ainda, mas convidando-nos à realização, não satisfatoriamente cumprida, mas pressionando-nos para cumpri-la. Um objetivo deve estar à nossa frente, para que o ato de viver e continuar vivendo em sua direção tenha sentido (Lukas, 2012, p. 10).

Viktor Frankl dizia que o ser humano, além das dimensões física e psíquica, é dotado também de uma dimensão que ele chamou de noética (ou espiritual). Essa dimensão é superior às demais; é a única que não adoece e é a responsável por curar as dimensões física e mental; é nela que reside a vontade de sentido, a vontade de viver, a criatividade, a fé e a capacidade de rir, mesmo nas dificuldades.[11]

É necessário compreender que “a visão antropológica de pessoa da Logoterapia se sustenta sobre três pilares: a liberdade de vontade, a vontade de sentido e o sentido da vida” (Frankl, 2011, p. 26). A liberdade de vontade se opõe ao que ele chama de pandeterminismo. O homem não tem controle sobre as contingências da vida, mas é livre para escolher de que forma irá lidar com quaisquer condições que se apresentem. A vontade de sentido constitui a motivação primária do ser humano, o interesse contínuo de buscar significado para a vida. E o terceiro pilar, o sentido da vida, é uma necessidade da existência humana. Esse sentido é variável no tempo, ou seja, o que ontem fazia sentido para determinada pessoa, pode não mais fazer no presente, e de pessoa para pessoa.

A Logoterapia tem um caráter humanista, ou seja, busca entender o ser humano na sua totalidade, como um ser bio-psico-sócio-espiritual capaz de vencer qualquer sofrimento. Porém, Frankl afirma que o verdadeiro sentido da vida deve ser encontrado no mundo, e não dentro do próprio indivíduo. Todo ser humano, em contraponto ao egocentrismo, sempre aponta e se dirige para algo ou alguém diferente de si mesmo, o que ele denomina de autotranscendência da existência humana. Assim, apesar de um caráter humanista, a Logoterapia é de base fenomenológica-existencial, uma vez que não foca numa tendência atualizante, e não coloca a pessoa em perspectiva de alcance da pirâmide das necessidades do Humanismo. A pessoa não apenas existe, mas decide o seu existir.

Para o fundador da Logoterapia, há um ponto de tensão que ele dá o nome de noodinâmica, onde de um lado está o sentido a ser alcançado e do outro o ser humano. Essa tensão, em contraposição à homeostase, é fundamental para a saúde mental. Ele afirma que:

Pode-se ver, assim, que a saúde mental está baseada em certo grau de tensão, tensão entre aquilo que já se alcançou e aquilo que ainda se deveria alcançar, ou o hiato entre o que se é e o que se deveria vir a ser. Essa tensão é inerente ao ser humano e por isso indispensável ao bem-estar mental. Não deveríamos, então, hesitar em desafiar a pessoa com um sentido em potencial a ser por ela realizado. Somente assim despertaremos do estado latente sua vontade de sentido (Frankl, 2022, p. 129-130).

Outro conceito trazido pela Logoterapia é o Vazio Existencial, que Viktor Frankl (2022) atribui a dois fatores. O primeiro é que no decorrer da história o ser humano foi perdendo alguns dos instintos animais básicos que regulam o comportamento do animal e a sua existência, o que faz com que ele precise fazer opções. E outro fator seria a diminuição das tradições, que diz qual a atitude o ser humano deve tomar diante de cada situação. E, em vez disso, o homem deseja fazer o que os outros fazem (conformismo) ou o que os outros querem que ele faça (totalitarismo).

A logoterapia diz que o ser humano é livre, entretanto, essa liberdade não é ilimitada, isso seria libertinagem, o que poderia levar ao vazio existencial. A liberdade está condicionada à responsabilidade. Frankl é enfático ao afirmar:

É verdade, o homem é um ser livre e responsável. Mas sua liberdade é finita. A liberdade humana não é onipotente. Da mesma forma, a onisciência não é possível à consciência humana, tanto em termos morais como em termos cognitivos. Nunca podemos saber, por inteira certeza, se nos dedicamos ao sentido verdadeiro. Não saberemos nem em nosso leito de morte (…), mas se o homem quiser ser fiel à sua humanidade, deve obedecer, incondicionalmente, à própria consciência, ainda que saiba da possibilidade de erro (Frankl, 2011, p. 85).

O homem não é livre de condicionamentos, é livre apenas para tomar uma atitude sobre eles. Mas eles não o determinam de forma inequívoca, pois, em último caso, cabe ao homem determinar se sucumbe aos condicionamentos ou se submete a eles. Há um espaço dentro do qual ele pode transcendê-los, com o qual pode alcançar a verdadeira dimensão humana. Para Frankl (2022), em última análise, o comportamento humano não é ditado pelas condições com que o homem se depara, mas por uma decisão que ele toma.

3.2 Conceitos e características do relacionamento abusivo

Relacionamento abusivo poderia ser definido como aquele onde há um predomínio de uma relação de poder sobre o outro. É caracterizado por um cenário de violência, não só de ordem física, mas moral, psicológica, sexual e econômica ou financeira[12].

Os números do último Mapa da Violência contra a Mulher no Brasil são estarrecedores. Entre os anos de 2009 e 2019, 50.056 mulheres foram vítimas de homicídio[13]. Em 2019, houve um aumento de 6,1% da taxa de homicídios de mulheres nas residências e uma diminuição de 28,1% da taxa de homicídios de mulheres fora da residência[14], mostrando um aumento significativo da violência doméstica. Conforme dados do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), em 2017 as mulheres representaram 67% das pessoas agredidas fisicamente no país[15].

Bock, Furtado e Teixeira, citando Marilena Chauí, leciona que:

A violência se ancora em uma relação de poder. Há uma assimetria (desigualdade) na relação entre o agente e o ‘objeto’ da violência, uma relação de subalternidade, uma relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão. (Chauí, 1984, p. 35, apud Bock, Furtado e Teixeira, 2018, p. 364).

A cultura do patriarcado perdura há séculos na história. Para a sexóloga Regina Navarro Lins (1997), quando o homem deixou de ser caçador para se dedicar à agricultura e pecuária, ele “percebeu que as ovelhas segregadas não geravam cordeiros, nem produziam leite, porém, num intervalo de tempo constante, após o carneiro cobrir a ovelha, nasciam filhotes. A contribuição do macho para a procriação foi enfim descoberta, mas não apenas isso. Os homens perceberam que um carneiro podia emprenhar mais de cinquenta ovelhas! Com um poder similar a esse, o que o homem não conseguiria fazer?[16]”.

No Brasil, uma das maiores pesquisadoras sobre as questões de gênero foi Heleieth Iara Bongiovani Saffioti, que investigou gênero social na perspectiva histórica do patriarcado. A opção de se trabalhar com o conceito de relações de gênero, em vez de relações sociais de sexo, deve-se ao fato de o termo estar linguisticamente impregnado do social. A noção de gênero define a mulher enquanto ser histórico, gerado pelas relações sociais e, portanto, está ligada à questão da desigualdade e do poder. (Saffioti, 2001).

Sobre a divisão entre os sexos e suas desigualdades, por sua vez, Pierre Bordieu discorre que:

A divisão entre os sexos parece estar ‘na ordem das coisas’, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivados nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas ‘sexuadas’), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação (Bordieu, 2023, p. 22).

Para Saffioti (1987), a cultura de dominação da mulher pelo homem é fomentada pelo sistema capitalista. Através da ideologia machista, a classe patronal obstaculiza a união entre trabalhadores e trabalhadoras. Ademais, o salário da mulher é em média menor do que a metade do que ganha o homem que desempenha as mesmas funções. Assim, “através de um simples cálculo aritmético, pode-se concluir que o poder do macho no seio das classes trabalhadoras representa uma vitória da classe patronal e não uma conquista do trabalhador”[17].  

A abusividade em um relacionamento heteroafetivo vai se manifestando gradativamente. O abusador mente com frequência, manipulando a vítima e fazendo-a acreditar que ela está sempre errada e é responsável por tudo de negativo que acontece no relacionamento. E a questão cultural dentro do sistema patriarcal faz com que a mulher se acomode e “normalize” a manipulação. Alguns desses abusadores apresentam um ciúme patológico, caracterizado por atribuições de intenções infundadas e por uma suspeição permanente de que está sendo traído, não obstante as tentativas da vítima em provar o contrário.

Para Hirigoyen:

Esse ciúme patológico não tem fundamento em qualquer elemento da realidade, como no caso de que uma infidelidade da parceira provém de uma tensão interna que ele tenta apaziguar dessa maneira. Ora, mesmo que a mulher se submeta a isso e que nem saia sozinha, haverá sempre uma insatisfação, pois ela continua sendo ‘outra’ e, para ele, isso é insuportável. A partir daí, as reclamações vão aumentar, haverá uma busca de provas, extorsão de confissões, ameaça e, por fim, eventualmente, violência física (Hirigoyen, 2006, p. 33).

Outras características comuns no perfil do abusador são discussões sem fim visando extrair confissões até que a pessoa, com sua capacidade crítica e seu julgamento saturados, acabem cedendo; perseguições em locais públicos; atitudes aviltantes visando depreciar a vítima, fazê-la duvidar de sua sanidade mental ou, ainda, atacar os valores de familiares ou amigos.

Também é corriqueiro nos momentos de briga o abusador dirigir imprudentemente com a vítima no banco do passageiro, maltratar seus animais de estimação ou quebrar objetos com o intuito de demonstrar o que é capaz de fazer com a força que tem.

Aos poucos, a vítima vai perdendo sua autoestima e seu senso de identidade, já que constantemente tenta agradar ao abusador, sem sucesso. E toda essa relação é atravessada por uma desigualdade de gênero, onde tudo o que é masculino é colocado erroneamente em uma posição de superioridade ao que é feminino.

Conforme nos ensina Hirigoyen:

Como, historicamente, o homem sempre foi considerado o detentor único do poder e a mulher sempre se viu excluída dele, isso condicionou o modo de pensar de ambos, desde o berço: “É assim porque sempre foi assim!”. Essa representação social, partilhada por todos, ainda mantém os estereótipos, apesar da evolução dos costumes. As mulheres aprenderam, dessa forma, a desempenhar o papel que lhes foi assinalado, mesmo ele sendo desvalorizador (Hirigoyen, 2006, p. 75).

Saffioti salienta que as ideologias machistas prejudicam sobremaneira as mulheres, mas que nem sempre beneficiam os homens. Segundo a autora, na cultura machista há uma “amputação” do homem na medida em que ele é ensinado desde criança a não externalizar seus sentimentos e emoções, havendo inclusive pesquisas que demonstram uma atrofia das glândulas lacrimais por desuso. Já para as mulheres essa amputação ocorre sobretudo no desenvolvimento e uso da razão e no exercício do poder. Elas são socializadas para desenvolver comportamentos dóceis, cordatos, apaziguadores (Saffioti, 2015, p. 37).

Há algumas teorias que tentam entender por que comportamentos violentos são mais frequentes nos homens. Para Hirigoyen (2006), a taxa elevada de testosterona, o hormônio masculino, poderia levar à violência. Entretanto, ela afirma que não há nenhuma teoria biológica para explicar por que a maioria dos homens só são violentos com suas parceiras e quase nunca o são fora de casa. Outra teoria seria a da sociobiologia, segundo a qual a violência seria um modo de dominação inscrito nos genes dos homens, a fim de garantir-lhe a exclusividade nas relações sexuais e na reprodução. Mas, ainda segundo Hirigoyen, isso não explicaria o porquê de todos os homens não serem violentos. Uma terceira teoria fundamentaria a violência dos homens no contexto social, os homens seriam preparados para ocuparem um papel dominante e quando não conseguem naturalmente, tendem a fazer uso da força. E há ainda uma teoria que justificaria o comportamento violento dos homens em traumas sofridos na infância.

Para Hirigoyen:

Não há dúvida de que uma infância difícil ou carências afetivas são, muitas vezes, apanágio dos homens violentos. No entanto, seu mal-estar não pode ser uma desculpa para destruir a parceira, e deveria ser, ao contrário, uma razão par iniciar uma psicoterapia (Hirigoyen, 2006, p. 75).

Entende-se que o machismo causa danos aos homens também, a começar pelo silenciamento de suas emoções, passando pelas relações tóxicas estabelecidas entre homens, as exigências de posturas rígidas e da não demonstração de sofrimento, situações que se tornam adoecedoras e que merecem outras pesquisas.

3.3 Logoterapia e suas possibilidades de aplicação clínica às mulheres vítimas de relacionamentos abusivos

Saffioti atenta para o fato de as ideologias machistas serem seguidas não apenas por homens, mas por mulheres, já que poucas questionam sua inferioridade social:

Entre as mulheres, socializadas todas na ordem patriarcal de gênero, que atribui qualidades positivas aos homens e negativas, embora nem sempre, às mulheres, é pequena a proporção destas que não portam ideologias dominantes de gênero, ou seja, poucas mulheres questionam sua inferioridade social. Desta sorte, também há um número incalculável de mulheres machistas (Saffioti, 2015, p. 37).

Boa parte das mulheres que chegam ao consultório psicológico, em sofrimento por uma relação amorosa, não tem o objetivo de se fortalecer para terminar. Elas estão tão envolvidas pelo sistema de manipulação exercido pelo abusador, que acreditam serem culpadas pelos conflitos no relacionamento e buscam terapia para se fortalecerem e investirem ainda mais na relação[18].

O caráter existencialista da logoterapia implica em que o que a paciente traz para o setting terapêutico, o que ela manifesta, e a forma como o terapeuta vai agir tem mais importância do que a técnica utilizada. Entretanto, não há que se olvidar a contribuição da técnica no apoio ao terapeuta para auxiliar a paciente na busca de sentido.

Sobre o assunto, discorre Frankl:

A logoterapia não foi apenas incluída como ramo da psiquiatria existencial, mas também foi reconhecida como a única escola dessa abordagem a desenvolver algo que, justificadamente, pode-se chamar de técnica. Contudo, não se deve pensar que os logoterapeutas superestimam a importância das técnicas. Há muito, já se percebeu que o que tem mais significância na terapia não são as técnicas, mas, sim, o tipo de relação humana que se estabelece entre terapeuta e paciente, isto é, a questão do encontro pessoal e existencial (Frankl, 2011, p. 14).

Há uma infinidade de técnicas que podem ser utilizadas pelo logoterapeuta, quer sejam oriundas da própria abordagem, quer sejam de outras abordagens, mas que tem aplicabilidade ao caso concreto. Quanto às mulheres vítimas de relacionamentos abusivos heteroafetivos, algumas técnicas podem ser aplicadas para ajudá-las a se autoconhecerem, a se fortalecerem e a se perceberem envolvidas em um relacionamento tóxico.

ODiálogo Socrático é uma técnica muito utilizada na Logoterapia para auxiliar a paciente na busca do significado. Quando a vítima de um relacionamento abusivo chega ao consultório psicoterapêutico, ela traz consigo toda uma carga de traumas e muitas vezes uma visão distorcida da realidade. Devido à manipulação (gaslighting[19]) praticada pelo abusador, a vítima, com a autoestima dilacerada, se sente constantemente invalidada e culpada pelas atitudes nocivas do manipulador.

Conforme nos aponta Joseph Fabry:

Uma das afirmações básicas da Logoterapia é que, nas profundezas de nossa dimensão espiritual, sabemos que tipo de pessoa nós somos, que potenciais possuímos, o que é importante e significativo para nós. Sócrates acreditava que a tarefa do professor não era incutir informações dentro do aluno, mas fazer vir à tona aquilo que o aluno instintivamente sabia. Frankl acredita que a tarefa do logoterapeuta não é dizer àquele que busca quais os significados de sua vida, mas permitir que emerja a sabedoria oculta dentro do espírito de cada um (Fabry, 1990, p. 25).

Desta forma, a função da profissional de Psicologia, através do Diálogo Socrático, seria inicialmente realizar perguntas referentes à situação em que a paciente se encontra e aos poucos conduzi-la ao seu objetivo final. Fabry sugere cinco guias que auxiliarão a sondar as áreas mais propensas a encontrarmos significados no Diálogo Socrático:

a) autodescoberta: quanto mais a paciente se autodescobrir, maiores serão os significados encontrados; b) escolha: quanto mais escolhas ela vislumbrar diante daquele relacionamento tóxico, maiores serão as probabilidades de encontrar significado; c) unicidade: as chances são maiores de a vítima encontrar significado em circunstâncias em que não insubstituíveis; d) responsabilidade: nossa vida será mais significativa se aprendermos a assumir responsabilidades quando tivermos a liberdade de escolha, e aprendermos a não nos sentir responsáveis diante de fatos que não podemos alterar; e) autotranscendência: o significado surge quando ultrapassamos o egocentrismo e nos voltamos aos demais, familiares, amigos, colegas de trabalho, pessoas que necessitam de algum trabalho voluntário (Fabry, 1990, p. 27)

O Autodistanciamento é uma técnica que consiste em a paciente pensar a respeito de si mesma e da situação que está inserida de uma forma distanciada, como se estivesse sentada em uma cadeira e se imaginasse em outra, passando a analisar a si mesma (suas angústias, seus sentimentos, seus comportamentos, suas atitudes). Por estar muito fragilizada, com os pensamentos confusos e envolta por sentimentos impotência e menos valia, a mulher vítima de relacionamento abusivo tem dificuldade de elaborar seus sentimentos e se perceber em um relacionamento nocivo, como também tem dificuldade de se fortalecer para sair desse relacionamento. Através do Autodistanciamento, ela é capaz de enxergar os fatos com um olhar mais lúcido, sóbrio, mais transparente, mais autêntico, clareando, assim, o ambiente tóxico em que está inserida. Uma excelente ferramenta de suporte para a prática dessa técnica é a escrita terapêutica.

Já a técnica da Derreflexão, para Fabry (1990), ajuda-nos a descobrir o significado nas situações em que nos sentimos encurraladas em virtude de nossa preocupação com um problema, ampliando o campo de visão da pessoa, que diminui a fixação no objeto que causa a dor. As mulheres que se encontram inseridas em um relacionamento abusivo comumente têm uma dependência emocional muito forte dos seus agressores. A vida delas passa a girar em torno daqueles homens e daqueles relacionamentos (hiperintenção[20]), perdendo cada vez mais seu senso de identidade e canalizando suas energias, seu excesso de reflexão (hiper-reflexão) ao relacionamento. E não apenas isso, mas elas também se fixam demais na ideia de “consertar” aquela relação tóxica pela força da vontade.

Assim, a Derreflexão ajudaria a paciente a mudar o foco no relacionamento, buscando trazer o olhar para outras situações da vida como familiares, carreira, autoconhecimento e projetos para o futuro. A essa mudança de foco, Viktor Frankl dá o nome de Autotranscendência, conceito já abordado no primeiro capítulo deste trabalho. Importante destacar que a autotranscendência não pode ser confundida nem tampouco utilizada como justificativa para o egocentrismo do abusador ou suas manipulações. 

Sobre a derreflexão, Diogo Rogério Carlos (2022), citando José Carlos Vitor Gomes, leciona que:

Com esta técnica, deixamos de nos preocupar com um sofrimento atual e nos projetamos no futuro em alguma missão que precisa ser concluída, seja ela qual for. Com isso temos um ‘para que’ viver e um sentido para a vida, e como disse Nietzsche: Quem tem um ‘para que’ viver, quase sempre encontra um ‘como’ viver (Gomes, 1995, p. 21, apud Carlos, 2022, p. 25).

A técnica intitulada de Perdas e Ganhos tem uma maior utilidade se for aplicada a partir da fase em que a vítima toma consciência da dinâmica de abusividade na qual está inserida, mas ainda não tem certeza se deseja terminar aquele relacionamento. 

Indagações como: O que te prende a esse relacionamento? Quais provas de amor o teu parceiro te oferece? O que predomina no teu dia-a-dia, os bons ou os maus momentos? Quando você pensa no seu parceiro, quais lembranças se destacam mais, as das qualidades ou dos defeitos dele? Como você se sente nessa relação? Existe amor? Existe prazer? O que prevalece: amor ou dor? Perguntas como essas, feitas pela terapeuta, auxiliam a paciente a analisar as vantagens e desvantagens de permanecer naquele relacionamento, bem como, refletir sobre as reais possibilidades de progresso no comportamento abusivo do parceiro. É como se na sessão terapêutica a paciente trouxesse uma balança e fosse medindo cada situação da sua vida.

Em cada situação-limite da paciente, situações estas que são irremediáveis e inadiáveis, e que em geral o deixam paralisado, como no caso de um divórcio, um aborto, abrir uma falência, romper uma amizade antiga, confessar uma falta cometida, abandonar os estudos, mudança de cidade, de país, de profissão, de preferência sexual etc., enfim, situações que exigem decisões de grande porte, esta técnica pede ao terapeuta que examine cada situação, fazendo, junto com o analisando, um criterioso balanço de livro-caixa existencial, em termos de perdas e ganhos, para promover ao cliente condições de tomada de decisão consciente quanto às possíveis consequências, a menos nociva a si e aos outros, e, acima de tudo, com total compromisso de responsabilidade (Rodrigues, 1991, p. 20).

O que define o logoterapeuta é mais a sua atitude, “a qual pode ser complementada por qualquer escola psicoterápica”, no entanto, em contraste com outras linhas de abordagens de Análise Existencial, a Logoterapia oferece algumas técnicas para aliviar os sintomas dos pacientes, que não são tratadas como técnicas sistematizadas, mas como algumas estratégias mais diretivas (Rodrigues, 2011). Percebe-se que a técnica de Perdas e Ganhos pode levar a paciente a ampliar seu campo de visão e compreender o que antes não alcançava. Isso pode ser determinante no desfecho terapêutico.

Por sua vez, a técnica da Intenção paradoxal tem como objetivo encorajar a paciente a fazer ou a encarar a coisa que ela mais teme. Por estar em uma situação de dependência emocional do abusador, a vítima pode apresentar um quadro de total negação da possibilidade de terminar o relacionamento. Assim, através dessa técnica, a paciente seria colocada diante do fenômeno da “ansiedade antecipatória”, que seria a sua reação diante do acontecimento que ela tanto teme, que neste caso seria viver longe do abusador. Tal fenômeno daria causa à “inversão da intenção”, ou seja, a ansiedade antecipatória perderia espaço e o medo patogênico daria lugar a um desejo paradoxal.

Sobre essa técnica, o pai da Logoterapia destaca a importância de ela ser formulada da maneira mais bem-humorada possível. Ele afirma:

O que é ainda mais importante é o fato de que o humor permite a pessoa criar uma perspectiva, impor uma distância entre si mesmo e o que quer que o confronte. Na mesma moeda, o humor permite ao ser humano um descolamento de si mesmo, o que implica a obtenção do maior autocontrole possível (Frankl, 2011, p. 135).

As técnicas de intenção paradoxal foram propostas por Viktor Frankl com o compromisso básico de diminuir o sofrimento causado por certos comportamentos através do humor e do paradoxo. A intenção paradoxal envolve pedir o que mais tememos. Para as mulheres em situação de relacionamentos violentos, seria um exemplo pedir que durante a sessão ela se imaginasse sendo perseguida pelo companheiro, ou refém deste, e ao mesmo tempo, sentir o suporte da psicoterapeuta segurando sua mão e a ajudando a sair daquele lugar assombroso. Ou, por exemplo, se a paciente se encontra em dependência afetiva, provocá-la a imaginar que o companheiro estava saindo de sua casa, abandonando-a, e indagá-la sobre os sentimentos que emergem naquele momento. Sempre é importante essas perguntas: Como é para você se sentir assim? O que você sente ao se imaginar nessa situação? E agora como continuar a vida?

 Para pessoas que experimentam ansiedade ou fobias, o medo pode paralisá-las, mas, usando humor, elas podem desejar o que mais temem, removendo o medo de sua intenção e aliviando os sintomas de ansiedade associados a ela. Para Rodrigues (2011), um paradoxo é configurado quando existem dois elementos mutuamente excludentes que, no entanto, coexistem. Embora possa não parecer à primeira vista, os seres humanos se movem constantemente dentro da estrutura paradoxal. Nós amamos e odiamos a mesma pessoa. Nós avançamos e retrocedemos simultaneamente. As técnicas são basicamente indicadas para quem tem uma alta expectativa de fracasso diante do que propõe, ou uma baixa capacidade de reconhecer os seus recursos para enfrentar dificuldades, e são úteis principalmente para aqueles com grandes cargas obsessivas ou fobias difíceis de resolver que, em ambos os casos, geram muita angústia.

A intenção paradoxal é usada em diferentes tipos de terapias. No entanto, a principal dificuldade é que exigem uma grande habilidade do terapeuta. Se não for assim, o paciente acaba vendo essas técnicas como uma manipulação comum, da qual ele não quer fazer parte. A primeira coisa que se pede para alguém que trabalha com a intenção paradoxal para superar um problema é interromper o seu desejo de controlar ou alterar os seus sintomas. Dessa forma, ela é encorajada a deixá-los aparecer deliberadamente e, se possível, exagerá-los. Trata-se de propor à paciente que alimente o seu sintoma, que fantasie da maneira mais dramática possível, e até fazendo certo deboche de si mesmo, que esteja apresentando uma crise nunca vista por ninguém. Se, por exemplo, a paciente for uma fóbica, que esteja diante de seu objeto de medo irracional, se ela tem uma dependência de alguém, se imaginar tendo uma crise, um surto pela falta que outro deixa, e dramatizar tudo isso, exagerando o que sentiria, e assim, percebendo-se naquele contexto, rindo de si mesma e elaborando que a vida não se resume aquela situação, ou aquela pessoa.

Por fim, a Apelação é uma técnica que promove a busca de resgate da capacidade de sentir e de se perceber em um momento; como também denuncia características pessoais usualmente passada por despercebida (Rodrigues, 2011). Na Logoterapia, a Apelação está relacionada a questão do surgimento dos elementos positivos dentro de situações negativas. Para Rodrigues (2011), essa técnica visa enaltecer características positivas na fala da paciente, que demonstrem seus pontos fortes, apesar da sua situação de sofrimento que a fez chegar até ali, reavivando sua capacidade de sentir, sua humanidade escondida, mas passível de resgate.

As mulheres vítimas de relacionamentos abusivos geralmente vão comprometendo suas autoestimas, e assim, perdem também a visão do suas potencialidades, dos valores que podem realizar mesmo diante do sofrimento que vivenciam. A Apelação consiste em apelar-se para a porção sadia da paciente, a qual sempre existe, pois nunca um mal psíquico, físico ou social nos atinge totalmente. Assim, é um recurso técnico pelo qual reavivamos, como um fole na lareira, as emoções e sentimentos da paciente em situação de sofrimento, resgatando-lhe sua capacidade de sentir, sua humanidade oculta pela mal-estar, facilitando para que ela possa ir acessando sua dimensão noética.

É importante lembrar que a Logoterapia prescinde de técnicas, pois, como pontua Rodrigues (1991), o que ela pretende de fato é alcançar uma imagem correta do homem, dotada de plasticidade e de relevo, um ser em busca da dimensão específica de sua liberdade e responsabilidade, a dimensão noética; um ser cujo espírito luta por descobrir o sentido concreto de sua vida, ampliando ao máximo a gama de possibilidades de valores.

Fizzoti (1981) afirma que:

A Logoterapia não é um sistema fechado, como rocha inexpugnável e inatacável. É uma orientação de busca e, portanto, está fundamentalmente aberta numa dupla perspectiva: a da cooperação ativa com outras diretrizes psicoterapêuticas e a da evolução interna de si mesma. Isto representa uma atitude de diálogo com todas as demais escolas de psicoterapia, das quais a logoterapia espera receber úteis indicações para seu aperfeiçoamento ulterior (…) (Fizzoti, 1981, p. 249).

Frankl não pretendia que a logoterapia fosse uma panacéia ou que servisse para todas as situações, ou a todos os pacientes, declarando, portanto, que “não pode haver objeções de combiná-la com outros métodos” (Frankl, 2011, p. 110).

Dentre estes métodos, entre outros, citava recursos da Psicanálise, o treinamento em relaxação, a terapia comportamental e a farmacoterapia. Nesta mesma perspectiva, dizia Lukas: “(…) o bom da Logoterapia é que suas formas de tratamento, inerentes ao sistema, podem combinar-se perfeitamente com outras modalidades terapêuticas” (Lukas, s/d, p. 85).

Todavia, para Frankl (1991): “nem todo psicoterapeuta é capaz de tratar segundo qualquer método, […] qualquer método não pode ser aplicado a todo caso e a todo paciente” (p. 122). A psicoterapia “pressupõe um respeito sem limites pela unicidade e singularidade de toda existência humana” (Frankl, 1991b, p. 129).

Vale destacar também que o fazer clínico é sempre atravessado pelo social; não há como clinicar sem ter o olhar voltado para o contexto social em que a vítima está inserida. E é possível um diálogo entre a logoterapia e as políticas públicas para mulheres através de discussões para uma maior proteção legal a essas vítimas, bem como um direcionamento a instituições públicas competentes (Delegacia da Mulher, Vara da Violência Doméstica Contra a Mulher, casas de apoio às vítimas etc.) para que elas tenham o suporte necessário para se libertarem desses relacionamentos abusivos e se tornarem senhoras da sua história.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Relacionamentos abusivos e suas consequentes violações de direitos tem sido assunto cada vez mais recorrente, e não há como falar em relacionamentos abusivos em uma conjuntura heteroafetiva sem abordar a cultura patriarcal, que infelizmente ainda está tão presente na sociedade.

De sua feita, a Logoterapia tem como um de seus propósitos auxiliar a paciente a acessar a sua dimensão noética, que é a responsável pela cura da dimensão psíquica. Nos relacionamentos abusivos, as violências praticadas configuram sérias agressões ao bem-estar psicológico, pessoal e social da vítima, sendo forte ameaça à sua saúde. Assim, o propósito que se pretendeu alcançar neste trabalho foi discutir as contribuições da Logoterapia no atendimento psicológico clínico de mulheres vítimas de relacionamentos abusivos heteroafetivos, e através dele, foi possível explorar as técnicas que podem ser aplicadas a depender da demanda apresentada.

Vale ressaltar que o rol de técnicas abordadas neste trabalho não é exaustivo, visto que há uma infinidade de possibilidades. Entretanto, por se tratar de um trabalho em forma de artigo, optou-se por se explorar as mais conhecidas e com uma maior possibilidade de aplicabilidade aos relacionamentos abusivos e consequente êxito.

Na pesquisa bibliográfica, não foram encontrados livros, artigos, periódicos ou similares sobre o tema Logoterapia associada a relacionamentos abusivos, razão pela qual a pesquisa foi realizada de forma separada, estabelecendo-se posteriormente conexões entre eles. Entretanto, percebeu-se que a Logoterapia apresenta um vasto campo que pode ser explorado com mais profundidade por outras pesquisadoras e pesquisadores, trazendo novas contribuições para a psicoterapia com vítimas de relacionamentos abusivos.

Não há como a psicoterapeuta trabalhar com tais pessoas vítimas sem analisar o contexto social em que elas estão inseridas. Muitas das vezes são mulheres em vulnerabilidade social, carentes não só de dinheiro, mas também de toda uma rede de apoio que lhes dê segurança para se desvencilhar do relacionamento tóxico. Inobstante os avanços da legislação, a violência contra a mulher ainda carece de um conjunto de políticas públicas que as orientem em situação de abuso quanto aos seus direitos e ofereça uma rede de proteção, bem como um arcabouço legal que proporcione uma maior garantia de direitos dessas vítimas e uma punição mais severa dos abusadores.

A Logoterapia pode contribuir significativamente com as políticas públicas, através de discussões de estratégias de enfrentamento às violências contra as mulheres, bem como do fortalecimento dessas vítimas, no processo psicoterapêutico, quase sempre com a autoestima dilacerada e sem perspectiva de um futuro melhor, possibilitando estratégias para a elaboração e superação de sentimentos como o de vazio existencial, insegurança, angústia, medo, buscando através da Autotranscedência uma obra, causa ou pessoa, que seja extra relacionamento, para se dedicar e auxiliando-as a encontrarem um sentido para a vida.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[9] Alguns desses conceitos e técnicas serão conceitualizados e esmiuçados no decorrer do presente trabalho.

[10] FRANKL, Viktor E. A vontade de sentido, p. 110.

[11] CARLOS, Diogo Rogério. Maturidade Humana, p. 40.

[12] MAIA; CASCAES. A cultura do machismo e sua influência na manutenção dos relacionamentos abusivos, p. 6.

[13] Atlas da violência 2021.

[14] Atlas da violência 2022.

[15] Mapa da Violência de Gênero.

[16] LINS, Regina Navarro. A cama na varanda, p. 22

[17] SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho, p. 23.

[18] NÚCLEO DE ESTUDOS EM PSICOLOGIA FEMINISTA, 2023.

[19] “Esse nome tem a sua origem devido à peça teatral Gas Light de 1938, traduzido como “meia luz”, tendo duas adaptações para o cinema; uma em 1940 e outra em 1944. A gênese desse nome ocorreu devido à manipulação psicológica sistemática utilizada pelo personagem contra sua esposa. O nome é “meia luz”, visto que se refere a um tipo de iluminação da época, à gás, onde se poderia modificar a intensidade da luz. Isso era uma das situações que fazia parte do jogo de manipulação do marido para desestabilizar a sua esposa, pois ele diminuía e aumentava e quando ela percebia, ele negava a mudança.” (SOUZA, 2017, P. 10)

[20] Sobre esse fenômeno patogênico, diz Viktor E. Frankl: “Quanto mais o indivíduo mira o prazer, tanto mais ele erra o seu alvo” (FRANKL, 2011, P. 126).


[1] Estudante de Psicologia do Centro Universitário Maurício de Nassau, Caruaru-PE.

[2] Professor do Centro Universitário Maurício de Nassau – Caruaru PE, Mestrando em Psicologia Social – UFLO, Buenos Aires – ARG (2024), Especialista em Análise Existencial e Logoterapia (2021). Graduação em Psicologia pela Unifavip (2012).

[3] Especialista em Logoterapia e Análise Existencial – FACEAT (2016), Especialista em Psicologia Hospitalar – UNIFAVIP (2019), Especialista em Associativismo/Cooperativismo Gestão de Org. – UFRPE (2006), Professora do Centro Universitário Maurício de Nassau – Caruaru – PE, Psicóloga clínica pela UFPB (2016).

[4] Professora do Centro Universitário Maurício de Nassau – Caruaru PE, Especialista em Psicologia Clínica na perspectiva fenomenológica existencial pela UNICAP (2020), Psicóloga Clínica pela Faculdade de Ciências Humanas ESUDA (2018).

[5] Estudante de Psicologia do Centro Universitário Maurício de Nassau, Caruaru-PE.

[6] Professora do Centro Universitário Maurício de Nassau – Caruaru-PE, graduada em Bacharelado em Psicologia pela UPE, especialista em Psicologia Hospitalar pela FAVIP.

[7] Doutora em Educação Contemporânea (2022) pela UFPE; Mestre em Saúde Coletiva e Gestão Hospitalar (2015); Especialista em Saúde Pública. Graduação em Serviço Social pela Universidade Católica de Pernambuco (1995). Professora do Centro Universitário Maurício de Nassau, Caruaru.

[8] Estudante de Psicologia do Centro Universitário Maurício de Nassau, Caruaru-PE.