LITÍASE RENAL APÓS CIRURGIA BARIÁTRICA: UMA ANÁLISE DA LITERATURA ATUAL

KIDNEY STONES AFTER BARIATRIC SURGERY: AN ANALYSIS OF CURRENT LITERATURE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10156636


Cecília Gurgel Lima
Lya de Oliveira Coelho
André Luiz Nóbrega Maia Aires
Natália Coelho Chester
Hellen Cryslen Bernardo Bezerra


RESUMO

A cirurgia bariátrica é uma intervenção crucial na abordagem da obesidade. No entanto, há um preocupante aumento na incidência de cálculos renais pós-cirurgia, os quais estão relacionados principalmente a alterações de oxaluria, redução do volume urinário e hipocitratúria. A incidência de cálculos renais após a cirurgia bariátrica, especialmente o Bypass Gástrico em Y- de-Roux, é notável, aumentando ainda mais o risco após procedimentos disabsortivos. Em contraste, cirurgias restritivas parecem apresentar menor risco de nefrolitíase. As estratégias de prevenção concentram-se no alto consumo de líquidos, redução do consumo de oxalato e ingestão adequada de cálcio. Além disso, em casos específicos, a terapia medicamentosa pode ser considerada. Em conclusão, a interação entre a cirurgia bariátrica e a litíase renal exige uma abordagem integrada. Este estudo destaca a necessidade de mais pesquisas, especialmente no contexto brasileiro, para compreender e mitigar as consequências da calculose renal pós- cirurgia bariátrica

Palavras-chave: Cirurgia bariátrica. Cálculos renais. Bypass gástrico.

Abstract

Bariatric surgery is a crucial intervention in addressing obesity. However, there is a worrying increase in the incidence of post-surgery kidney stones, which are mainly related to changes in oxaluria, reduced urinary volume and hypocitraturia. The incidence of kidney stones after bariatric surgery, especially Roux-en-Y Gastric Bypass, is notable, further increasing the risk after malabsorptive procedures. In contrast, restrictive surgeries appear to present a lower risk of nephrolithiasis. Prevention strategies focus on high fluid intake, reduced oxalate consumption, and adequate calcium intake. Furthermore, in specific cases, drug therapy may be considered. In conclusion, the interaction between bariatric surgery and kidney stones requires an integrated approach. This study highlights the need for more research, especially in the Brazilian context, to understand and mitigate the consequences of renal calculosis after bariatric surgery.

Keywords: Bariatric surgery. Kidney stones. Gastric bypass.

INTRODUÇÃO

A obesidade, definida pela Organização Mundial da Saúde como um índice de massa corporal (IMC) > 30, é atualmente um importante problema de saúde pública (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2021). No Brasil, a prevalência de obesidade vem aumentando gradativamente nos últimos anos, havendo, em 2019, 21,8% da população masculina e 29,5% da população feminina na faixa de obesidade (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2020). O tratamento conservador da obesidade, principalmente em casos de obesidade mórbida, tem demonstrado perspectivas desanimadoras, pois mudanças no estilo de vida e abordagens nutricionais falham em mais de 90% dos casos (KELLES etal., 2014). Nesse contexto, a cirurgia bariátrica vem ganhando grande importância enquanto abordagem terapêutica.

No Brasil, mais de 20 mil procedimentos de cirurgia bariátrica foram realizados pelo SUS entre janeiro de 2001 e dezembro de 2010 (KELLES et al., 2014). Das técnicas disponíveis, o Bypass Gástrico em Y-de-Roux (BGYR) é a mais comumente realizado em todo mundo, seguido de Gastrectomia Vertical (GV), Banda Gástrica Ajustável Laparoscópica e Derivação Biliopancreática com Switch Duodenal (THONGPRAYOON et al., 2016).

A obesidade já foi descrita várias vezes como fator de risco independente para a formação de cálculos renais em homens e mulheres (CURHAN, 2021). Porém, foi em 2005 que Nelson et al.descreveram pela primeira vez o aumento da ocorrência de nefrolitíase após realização de BGYR decorrente de complicações renais de hiperoxalúria (NELSON et al., 2005).

Nesse contexto, este trabalho tem como objetivo realizar uma revisão de literatura dos estudos já publicados até a data atual que descrevem a relação entre a ocorrência de cálculos renais após cirurgia bariátrica, analisando a fisiopatologia da litogênese e descrevendo medidas para prevenir a sua ocorrência.

TIPOS DE CIRURGIA BARIÁTRICA

A cirurgia bariátrica é, atualmente, a opção de tratamento mais eficaz para obesidade mórbida, independente do tipo de procedimento cirúrgico realizado (ANGRISANI, 2015). As técnicas cirúrgicas provocam perda de peso através de três mecanismos principais: má absorção, restrição alimentar e resposta neuro-hormonal de regulação da fome, podendo ser classificadas em restritivas, disabsortivas e mistas (LIM, 2022).

As técnicas restritivas limitam a ingestão calórica através da redução do tamanho gástrico. A Gastrectomia Vertical (GV) ou Sleeve Gástrico, é o principal exemplo desse grupo, cirurgia em que um estômago tubular é criado após remoção da curvatura maior (LIM, 2022; TARPLIN, 2015).

As técnicas disabsortivas tem como objetivo diminuir a absorção de nutrientes no intestino através de uma diminuição da área de absorção do intestino delgado, seja por meio de um desvio da superfície absortiva ou um desvio do local de ação das enzimas biliopancreáticas. O Switch Duodenal é um exemplo deste grupo (LIM, 2022).

As técnicas mistas combinam o componente restritivo e de má absorção. A principal representante do grupo é o Bypass Gástrico em Y-de-Roux (BGYR), principal técnica utilizada atualmente no Brasil e no mundo, a qual envolve a criação de uma pequena bolsa gástrica associado com uma reconfiguração do intestino delgado (LIM, 2022).

FISIOPATOLOGIA DA LITOGÊNESE URINÁRIA NA CIRURGIA BARIÁTRICA

Dentre as técnicas de cirurgia bariátrica descritas até o momento, o BGYR é a que tem sido mais estudada nos últimos anos acerca das alterações metabólicas que podem modificar o perfil bioquímico da urina e levar a formação de cálculos urinários, sendo as principais: a hiperoxalúria, a redução do volume urinário e a hipocitratúria (ESPINO-GROSSO etal., 2017).

A oxalúria está relacionada com a chamada “hiperoxalúria entérica”. Como já citado previamente, algumas cirurgias bariátricas tem como mecanismo de perda de peso a diminuição da absorção de nutrientes, aumentando, consequentemente, a quantidade de ácidos graxos livres intraluminais. Normalmente, o cálcio oriundo da dieta se liga com o oxalato para formar sais insolúveis de oxalato de cálcio no lúmen intestinal, diminuindo a absorção entérica de oxalato. No entanto, em condições em que há aumento de ácidos graxos intraluminais, estes se ligam ao cálcio, havendo uma diminuição da quantidade de cálcio disponível para precipitar o oxalato. O oxalato livre é mais absorvido pelo intestino e excretado na urina, resultando na oxalúria (GONZALES et al., 2014; PROCHASKA et al., 2020).

O risco de formação de cálculos de oxalato de cálcio, tipo mais frequente em adultos, começa a aumentar significativamente quando há excreção urinária de oxalato acima de 25 mg/dia (CURHAN, 2021). Estudos analisando o perfil bioquímico da urina de pacientes cerca de 11 meses após BGYR, demonstraram um aumento de cerca de 36% nos níveis de oxalato na urina (28 para 44 mg/dia) (ESPINO-GROSSO et al., 2017).

O baixo volume urinário também é um fator de risco para nefrolitíase, uma vez que a concentração urinária de fatores litogênicos aumenta a formação de cálculos. Embora não exista uma definição certa de baixo volume urinário, aceita-se como meta de valor urinário normal, pelo menos, 2,5L de urina por dia (CURHAN, 2021). Agrawal etal., em seu estudo com 13 pacientes pré e pós-BGYR, demonstraram que o volume urinário destes pacientes diminuiu de 2,1 L para 1,4 L (AGRAWAL et al., 2014).

O citrato é um dos principais inibidores da formação de cálculos renais. Sua ação consiste em inibir o processo de aglomeração de cristais de oxalato de cálcio, impedindo sua combinação e consequente formação do cálculo (CURHAN, 2021). A hipocitratúria é definida como uma excreção urinária de citrato abaixo de 320mg/dia. Valezi et al., em seu estudo de coorte prospectiva com 151 pacientes pré e pós BGYR, observaram que 12 meses após a cirurgia, os níveis de citrato urinário reduziram em 36% (268 para 170mg/dia). Nesse mesmo estudo, também foi referido uma redução do volume urinário de 29% (1,31 a 0,93L/dia) (VALEZI etal., 2013). Agrawal etal.também descreveram uma redução do citrato urinário de 540 para 305mg/dia (AGRAWAL et al., 2014).

INCIDÊNCIA DE CÁLCULOS APÓS A CIRURGIA BARIÁTRICA

Pacientes submetidos à cirurgia bariátrica apresentam risco duas vezes maior de formação de cálculos renais em comparação com pacientes obesos que não foram submetidos à cirurgia bariátrica (LAURENIUS et al., 2023). Matlaga et al., em seu estudo caso-controle com 4.639 pacientes, encontraram uma incidência de 7,65% de formação de cálculos renais em pacientes submetidos a BGYR, em comparação a 4,63% em pacientes obesos no grupo controle (p <0,001) (MATLAGA et al., 2009). A incidência de cálculos já é evidente 3 anos após cirurgia, e pode aumentar o risco em até 14% após 10 anos do procedimento (PROCHASKA et al., 2020).

Lieske et al. revelaram que procedimentos disabsortivos aumentam ainda mais o risco de formação de novos cálculos, demonstrando uma a taxa de risco de 2,15 em pacientes submetidos a BGYR, em comparação a uma taxa de 4,15 naqueles submetidos a procedimentos do tipo disabsortivo, como o Switch Duodenal (LIESKE et al., 2015)

Cirurgias restritivas podem representar pouca ou nenhuma ameaça de nefrolitíase em comparação com outros procedimentos. Ao comparar as técnicas BGYR e a GV, uma revisão retrospectiva demonstrou que 8% dos pacientes submetidos à BGYR, em comparação com 4% dos pacientes submetido a GV, desenvolveram cálculo em um acompanhamento de quase 3 anos no pós-operatório (CHEN et al., 2013). Outros estudos também demonstram um risco geral 1,73 vezes maior de cálculos renais em pacientes após BGYR em comparação com aqueles que não foram submetidos à cirurgia, enquanto houve uma redução de 0,37 vezes no risco de cálculos renais em pacientes após procedimentos restritivos (THONGPRAYOON et al., 2016).

COMO PREVENIR A FORMAÇÃO DE CÁLCULOS NO PÓS-OPERATÓRIO

As estratégias para prevenção de cálculos nesse grupo não são diferentes das recomendadas para a população em geral. Uma das estratégias mais práticas e amplamente divulgadas é o alto consumo de água, com uma média de 2L de água por dia. É importante evitar bebidas que contenham altos níveis de oxalato, como refrigerantes que contenham ácido fosfórico em sua composição (ESPINO-GROSSO et al., 2017).

O oxalato pode ser encontrado em diversos alimentos, incluindo espinafre, legumes, chocolate amargo, chá preto, entre outros. Nos pacientes submetidos a cirurgia bariátrica, é recomendado uma redução no consumo de oxalato diário, com uma meta ingesta diária de 40- 50 mg. Fornecer uma lista de alimentos com alto e baixo teor de oxalato pode ser útil para os pacientes atingirem essa meta (ORMANJI et al., 2020).

Como discutido anteriormente, o cálcio é uma substância importante para reduzir a absorção de oxalato intestinal, sendo recomendado uma ingestão de cálcio, seja por dieta ou suplementos, de cerca de 1.200 – 1.500 mg/dia, além da suplementação de Vitamina D (ORMANJI et al., 2020).

Em alguns casos, pode-se lançar mão de terapia medicamentosa para manejo. O citrato de potássio, por exemplo, tem papel importante na correção da hipocitratúria, podendo ser benéfico em pacientes com supersaturação de oxalato de cálcio, como é visto em pacientes submetidos a cirurgia bariátrica (TARPLIN, 2015).

CONCLUSÃO

A incidência de cálculos renais em pacientes submetidos a cirurgia bariátrica demonstra um aumento significativo em comparação a população não cirúrgica. Entre as técnicas descritas, o BGYR, amplamente utilizada no mundo todo, surge como um foco relevante de estudo devido as alterações metabólicas pós-procedimentos e a consequente criação de um ambiente propício para a formação de cálculos renais. O conhecimento da fisiopatogenia da litogenese urinária é essencial para a adoção de medidas preventivas. Em suma, a relação entre cirurgia bariátrica e litíase renal exige uma abordagem integrada, necessitando da realização de mais estudos, inclusive no Brasil, tendo em vista as consequências que podem surgir oriundas da calculose renal.

REFERÊNCIAS

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