LETRAMENTO E O DESENHO INFANTIL COMO NARRATIVA: UMA PROPOSTA PARA A PSICOPEDAGOGIA ESCOLAR

LITERACY AND CHILDREN’S DRAWING AS NARRATIVE: A PROPOSAL FOR SCHOOL PSYCHOPEDAGOGY

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11660397


ALMEIDA, Adriana Barretta1


RESUMO

Este trabalho reflete sobre o uso do desenho realizado por crianças como parte do processo de letramento nos primeiros anos do ensino fundamental e propõe que o psicopedagogo escolar pode orientar os educadores a potencializar o desenho infantil como um elemento enriquecedor do processo de aprendizagem. Por meio de um estudo teórico e de estudo de caso, este artigo dialoga com as teorias do Círculo de Bakhtin, cuja visão de sujeito, signo e enunciado contribui para o entendimento da importância da produção do desenho como produtor de sentido e narrativas, e também com teorias sobre o letramento (New Literacy Studies) que ampliam a noção de letramento para além da aquisição do código escrito. Outros trabalhos analisados demonstram que esse recurso é subutilizado e que quando implementado apresenta resultados notáveis na produção textual de crianças em processo de alfabetização. Conclui-se que os professores, com a orientação do psicopedagogo escolar, podem se valer desse recurso para enriquecer seu trabalho de letrar e alfabetizar os estudantes.

Palavras-chave: Desenho Infantil. Letramento. Psicopedagogia Escolar

ABSTRACT

This work reflects on the use of drawing made by children as part of the literacy process in the first years of elementary school and proposes that the school psychopedagogue can guide educators to enhance children’s drawing as an enriching element of the learning process. Through a theoretical study and case study, this article dialogues with the theories of the Bakhtin Circle, whose vision of subject, sign and statement contributes to the understanding of the importance of drawing production as a producer of meaning and narratives, and also with theories about literacy (New Literacy Studies) that expand the notion of literacy beyond the acquisition of written code. Other works analyzed demonstrate that this resource is underused and that, when implemented, it presents notable results in the textual production of children in the literacy process. It is concluded that teachers, with the guidance of the school psychopedagogue, can use this resource to enrich their literacy work and teach students to read and write.

1 INTRODUÇÃO

          O foco deste presente trabalho é refletir sobre a possibilidade do uso do desenho da criança como uma prática interventiva no processo de aprendizado, não como diagnóstico clínico, mas como um instrumento a ser utilizado pelo educador em sala de aula como um elemento enriquecedor na aquisição da linguagem escrita, um campo no qual a psicopedagogia tem contribuído imensamente na superação dos muitos obstáculos encontrados pelos aprendizes. Argumenta-se aqui que o desenho é um recurso subutilizado pelos professores, devido às grandes pressões que estes sofrem para cumprir as metas de alfabetização e letramento. Acreditamos que com a orientação de um psicopedagogo escolar, essa ausência de espaço para o desenho da criança pode ser revertida, com grandes ganhos para a aprendizagem dos alunos, tanto em termos cognitivos e de resultados quanto em termos afetivos, sociais e humanizadores, além de propiciar tanto a alunos quanto professores e familiares uma visão mais abrangente de linguagem e letramento.

          Esse presente artigo se propõe a olhar a produção gráfica infantil como uma prática social, como uma linguagem, através da qual constrói-se a leitura da vida, e consequentemente, a leitura e a produção da palavra. Será feita uma revisão de literatura sobre o tema, além de uma análise de uma possível contribuição da filosofia bakhtiniana às bases epistemológicas da psicopedagogia e sua relevância ao ressaltar a produção do desenho como um enunciado historicamente situado. Também serão trazidas para esse trabalho teorias recentes sobre letramento que ampliam as possibilidades de trabalho do professor alfabetizador. O estudo de caso será realizado através de uma leitura de alguns desenhos realizados por crianças do último ano de uma escola infantil de Curitiba onde o desenho tem papel central, com o intuito de demonstrar as possibilidades desse recurso na produção de linguagem.

2 METODOLOGIA

          A metodologia adotada nessa pesquisa foi de estudo teórico dos autores citados e estudo de caso.

O estudo de caso se efetivou através da análise de quatro desenhos realizados numa escola particular de Educação Infantil da cidade de Curitiba. Os desenhos aqui apresentados não foram produzidos especificamente para os fins dessa pesquisa; foram produzidos ao longo do ano letivo, e gentilmente cedidos à pesquisadora após observação e conversa com as professoras responsáveis. Os sujeitos são crianças do último ano da Educação infantil da referida escola, com idades entre 4 e 5 anos.

          Nessa instituição, a arte em geral, e o desenho em particular, tem um papel central em seu projeto pedagógico, e a autoria da criança é incentivada e respeitada.

Os desenhos foram parte de um projeto de Ciências sobre o corpo humano, no qual as crianças pesquisaram, ouviram e aprenderam dados acerca do aparelho auditivo. Foi pedido a elas que desenhassem a informação que gostariam de ensinar aos amigos e familiares. A fala das crianças sobre o desenho está transcrita em negrito, e foi registrada pela professora das crianças. É importante notar aqui que a situação na qual o desenho é produzido pressupõe um destinatário: o desenho é uma resposta aos enunciados, mas é também um enunciado que se dirige a alguém, conforme os preceitos bakhtinianos de enunciado e responsividade expostos nesse trabalho.

3 DISCUSSÃO: O DESENHO INFANTIL

3.1 A IMPORTÂNCIA DO ATO DE DESENHAR

          Uma das cenas mais emblemáticas da obra de Paulo Freire A Importância Do Ato De Ler é o momento em que os pescadores de uma comunidade de São Tomé, durante uma atividade do programa de alfabetização de adultos, levantam-se encantados de seus lugares e caminham até uma imagem de seu povoado:

Tinha-se como geradora a palavra bonito, nome de um peixe, e como codificação um desenho expressivo do povoado, com sua vegetação, as suas casas típicas, com barcos de pesca ao mar e um pescador com um bonito à mão. O grupo de alfabetizandos olhava em silêncio a codificação. Em certo momento, quatro entre eles se levantaram, como se tivessem combinado, e se dirigiram até a parede em que estava fixada a codificação (o desenho do povoado). Observaram a codificação de perto, atentamente. Depois dirigiram-se à janela da sala onde estávamos. Olharam o mundo lá fora. Entreolharam-se, olhos vivos, quase surpresos, e, olhando mais uma vez a codificação, disseram: ‘É Monte Mario. Monte Mário é assim e não sabíamos.’ (FREIRE, 1981, pg.45)

          Nesse momento, Freire (1981) descreve a forma como eles “saíam” de seu mundo, como sujeitos observadores, para melhor conhecê-lo. A importância do ato de ler a palavra, segundo Freire (1981), se inicia pela leitura do mundo. E nessa cena em particular, a leitura do mundo tem como suporte a leitura de uma imagem – um desenho.

          Crianças no seu processo de leitura do mundo usam inúmeros recursos, antes mesmo de iniciar sua escolarização formal. Segundo Kendrik e  McKay (2002), elas utilizam todos os meios sensórios à sua disposição: brincadeiras, corporeidade, imaginação, imagens, música – e se movem com facilidade entre essas diversas formas, integrando-as no seu processo de produção de sentido. Todas essas formas de comunicação, são para elas, muito mais do que “adicionais” à linguagem verbal; são parte de um mesmo todo, complementando-se e construindo-se mutuamente. Nesse universo, incluímos o desenho infantil.  O desenho que as crianças produzem é também uma forma de organizarem o conhecimento que vão construindo; não é mera cópia da realidade, mas uma interpretação, elaboração de novas correspondências, ressignificação do conceito original; “o desenho traduz uma visão porque traduz um pensamento, revela um conceito” (DEYDRIK, 1994, pg.112, apud DAY, 2009). Nossa ênfase, portanto é que o ato de desenhar tem um potencial extremamente enriquecedor no processo de leitura do mundo e é fundamental para que a criança se constitua como autora desse processo, ativamente produzindo sentido e interpretando simbolicamente a realidade. E, ao mesmo tempo em que interpreta e enuncia através do desenho, a criança atua também como transformadora dessa realidade. Dessa forma, o desenho tem um papel central, e não periférico, na apropriação da leitura e escrita como formas também de produzir sentido.

          Day (2008), em sua pesquisa, demonstra que a escola tende a olhar para o desenho segundo o padrão desenvolvimentista, olhar esse que cria rótulos de acordo com a expectativa do que se espera da produção da criança em determinada fase.  Por ele, identifica-se etapas da maturidade da criança através de características que em determinada fase deveriam estar presentes em seu desenho.  Outros usos seriam instrumentais, como apoio ou ilustração para se ensinar algum tópico. O desenho também é utilizado como forma de diagnóstico psicológico ou psicanalítico, no qual se enquadraria também o uso psicopedagógico clínico, com as provas projetivas; segundo a autora, não seria recomendável que essa leitura do desenho infantil fosse realizada pelos professores. Ainda segundo a autora, esses campos de estudo refletem grande parte das pesquisas acerca do desenho realizadas no nosso país.

Poucos ainda são os estudos no nosso país que enfatizam a força narrativa do desenho infantil como construção do entendimento do mundo, como uma linguagem poderosa que a criança pode dominar com fluência para compartilhar e produzir sua visão da realidade, e que poderia se converter em um rico instrumento a ser utilizado pelos professores. O psicopedagogo escolar poderia auxiliar o professor nesse caminho.

3.2 MIKHAIL BAKHTIN: CONTRIBUIÇÕES

          A psicopedagogia discorda da visão da criança como um depositário passivo de conhecimentos. Oliveira (2009) cita Barbosa para afirmar a criança como um sujeito cognoscente, um ser inteiro, constituído de diferentes dimensões (biológica, afetiva, relacional e cultural) que se relacionam entre si e a tornam um “sujeito temporal e histórico, que vive em um tempo, carregando consigo um conhecimento de outros tempos, e projeta para o futuro o que conheceu, o que conhece e o que pode produzir de conhecimento.” (OLIVEIRA, 2009, p.27).

          Essa visão de sujeito dialoga muito com a visão de Bakhtin (2010), para quem o sujeito é situado historicamente, produzindo e sendo produzido pelos valores da realidade semiótica que a cerca de uma forma dialógica. Um ser produzindo e sendo produzido por discursos: um ser discursivo.  Utilizaremos, portanto, alguns conceitos de Mikhail Bakhtin para demonstrar que tanto ao desenhar quanto ao escrever, a criança produz um signo axiológico, no qual ela se posiciona na arena de vozes como autora de seus enunciados de forma responsiva. Acreditamos que a visão de linguagem, de signo e de sujeito trazida por Bakhtin, além de embasar teoricamente os pressupostos deste trabalho em particular, pode contribuir em muito para a prática psicopedagógica, dialogando com a epistemologia da psicopedagogia acerca dos problemas de letramento em sua dimensão discursiva e social.

          Como coloca Pan et al (2011), Mikhail Bakhtin (1895-1975) redefine a concepção de signo, de língua, de enunciado, de gênero e de sujeito, por meio de uma concepção dialógica e discursiva da linguagem. O signo, segundo Bakhtin (1986) “é uma realidade objetiva, que se localiza externamente ao lado dos fenômenos naturais, porém ultrapassa a realidade natural e o caráter funcional dos objetos, podendo representá-los, atribuindo-lhes múltiplos sentidos.” Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata outra, e é criado por uma função ideológica precisa, que veicula nos sistemas sociais de representação, entre eles a linguagem. A consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação material em signos: a consciência individual é o encontro do sujeito com o universo dos signos. E é nesse universo simbólico que o sujeito subjetiva-se, e objetiva seu eu na palavra, diferenciando- se de outros. (BAKHTIN, 1986, apud PAN, 2011). O enunciado, apesar de seu caráter único e irrepetível, é um elo histórico de uma memória social, inserida numa cadeia dialógica em resposta sempre ao já-dito, evocando respostas que participam da configuração da própria emissão desse enunciado.  A linguagem pressupõe o outro, e todo enunciado vive da relação eu-outro: seja porque é resposta presumida ou porque se dirige ao outro esperando uma resposta. Esse é o conceito de responsividade. É nesse encontro/embate de vozes que se faz a produção da subjetividade.  A linguagem é, para Bakhtin, uma coisa viva, um conjunto de práticas socioculturais que se concretizam em diferentes gêneros, que nos posicionam subjetivamente no discurso e delimitam o que se pode falar ou calar em determinadas situações. Ao enunciar, o autor diz algo de certa maneira, dirigindo-se a alguém, em determinada situação tempo-espacial, o que terá interferência no que e como será dito. Dialogismo para o autor, é portanto, muito mais do que o diálogo face-a-face, mas o posicionamento do enunciador na grande arena de vozes, respondendo ao já dito e esperando uma resposta.

          Haynes (2013) em suas duas obras sobre Bakhtin (1995 e 2013) traz para a linguagem visual os conceitos bakhtinianos: afirma que Bakhtin compreende estética como a maneira que o ser humano dá forma à sua experiência; como percebe um objeto, ou como percebe outra pessoa e, acima de tudo, como dá forma a essa percepção em um todo sintetizado (HAYNES, 1995. 2013). Coloca que para Bakhtin todo signo é axiológico, carregado de ideologia, polifônico e histórico, seja ele a palavra, a música, uma pintura ou qualquer outra produção estética. Uma das preocupações fundamentais da obra de Bakhtin foi justamente o da relação entre a vida cotidiana e a arte. Para este pensador, o objeto estético não é uma essência metafísica, fruto da inspiração de gênios com uma criatividade superior: o ato criador faz parte da vida cotidiana. Como coloca Faraco (2011) um objeto estético é um conjunto de relações axiológicas realizado pelo autor-criador, relações estas que se concretizam no artefato. Na sua construção, o social e histórico se apresentam como elementos intrínsecos, como em qualquer obra de criação humana.

O desenho da criança, portanto, é um signo produzido por ela, um enunciado que responde a muitos outros enunciados já ditos. E como enunciado, pressupõe um interlocutor. É um meio que a criança tem de fazer com que sua voz seja ouvida, e também de mostrar, através de sua narrativa visual, de seu artefato, que também está atenta e a ouvir e interpretar as relações axiológicas de sua realidade. Olhar para o desenho da criança com um olhar inquisitivo, curioso, dialógico, é ouvir a sua voz, sua autoria, sua construção. É incentivar e participar de sua leitura do mundo, e consequentemente, do seu processo de letramento. O espaço do desenho deve ser o espaço do diálogo, o lugar onde significados são construídos, compartilhados e valorizados.

3.3 VYGOTSKY  E O DESENHO

          Vygotsky (2004) e Bakhtin (2010) são filósofos que se aproximam de muitas formas. Ambos viveram na Rússia do início do século XX, quando produziram suas obras, que portanto, sofreram grande influência do materialismo dialético. Ambos mantêm a visão de linguagem estreitamente vinculada à materialidade do signo, seja ele verbal ou não, e apontam para a formação da consciência através da mediação do universo simbólico e semiótico no qual esta se insere.

          O desenho, para Vygotsky (2004), tem uma enorme importância como signo mediador de conhecimento. Como um sistema semiótico carregado de sentido, o desenho permite que a criança construa e interaja com os significados atribuídos aos elementos do mundo que encontra (BROOKS, 2010). Vygotsky (2004) defende que até por volta dos 9 anos, o desenho tem um papel preponderante na construção de conhecimento da criança; após essa fase, a linguagem verbal torna-se mais importante. Nota-se que muito antes disso o desenho já deixa de ter papel relevante nas salas de aula brasileiras.

3.4 DE QUE LETRAMENTO ESTAMOS FALANDO

Letramento é uma palavra ainda nova na Língua Portuguesa, e foi criada para delimitar um campo de estudo distinto do campo de estudo da Alfabetização. Enquanto esse último trata a aquisição da língua escrita como um processo de decodificação, de relação fonema-grafema, letramento abarca a língua escrita em seu uso dentro de uma determinada comunidade. Podemos definir letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos (KLEIMAN, 2012).  O conceito de letramento extrapola as fronteiras linguísticas e textuais da escrita para alcançar dimensões sociais, psíquicas e econômicas de seu uso.

Entretanto, a escola, que é o agente de letramento formal mais significativo, resiste em adotar essa visão sobre a aquisição da língua escrita. Muito presa aos preceitos tradicionais da alfabetização, a escola ainda tem como prática dominante o que o linguista Street[2] (1984) denomina modelo autônomo de letramento. Essa abordagem tem como característica uma visão da língua como um produto completo em si mesmo, decorrente de uma teoria linguística estruturalista. A língua é vista como um sistema de funcionamento autônomo, independente de seu contexto (daí a denominação desse modelo), do qual o sujeito, externo a ele, tem que se apropriar. Nesse sentido, a língua escrita é apresentada como um produto pronto, voltado a processos mentais mais complexos e que, ao ser aprendida, elevaria o indivíduo a patamares cognitivos superiores, criando uma dicotomia hierárquica da escrita em relação à oralidade e entre sujeitos ou sociedades letradas e não letradas. Na sala de aula, esse modelo se resume às conhecidas práticas de decodificar palavras para ler um texto e codificar a língua de uma forma visual para escrevê-lo (GEE, 1996).

          A essa concepção, Street (1984) contrapõe uma alternativa: o Modelo Ideológico de Letramento. Esse modelo aponta a insuficiência do modelo autônomo (sem negar sua importância), destacando e enfatizando o fato de que todas as práticas de Letramento envolvem aspectos culturais e também, principalmente, as relações de poder de uma sociedade. Street afirma que não existe uma prática de letramento, mas estas são sempre múltiplas e contextuais. As práticas de letramento e as demais práticas sociais que compõem uma sociedade, são, portanto, indissociáveis.

          Ao comparar os dois modelos de letramento propostos por Street, percebemos que o modelo autônomo concebe o texto como uma unidade independente de seu contexto de produção, atribuindo o sucesso ou fracasso de sua interpretação ao grau de desenvolvimento cognitivo no qual o leitor ou escritor se encontra.  Essa forma de entender a aquisição de linguagem alimenta relações entre alunos e professores que, segundo Pan (2006) são pautadas pelas “disposições de dominação e submissão em que o professor submete o aluno a padrões preestabelecidos que desconsideram suas singularidades cognitivas, sociais, linguísticas e afetivas” (pg.73).  É um sistema que gera exclusão, patologias, evasão escolar. Cria um distanciamento entre o sujeito e sua própria língua, desconsiderando esta como produtora de sua própria subjetividade. O modelo ideológico, por sua vez, por vincular linguagem e contexto de produção, propõe que os saberes e as visões de mundo do sujeito leitor-escritor participem de forma intrínseca do processo de leitura e escrita. Por entender o letramento como um processo para além do texto verbal escrito, abre possibilidades para outras formas de produção de sentido, incluindo a linguagem visual. Atualmente, já se fala muito da necessidade de pensarmos em multiletramentos, dada a predominância de textos multimodais (que se utilizam de outros recursos além do código escrito) na nossa sociedade (COPE&KALANTIZIS, 2009).

          Pesquisas realizadas em outros países comprovam a forte relação do desenho e da escrita. Um dos estudos levantados nessa pesquisa é de Mackenzie, (2011), realizado na Austrália. A pesquisadora propõe a introdução do desenho como prática narrativa em salas de aula do primeiro ano escolar (equivalente ao nosso ensino fundamental) e observa os resultados. Nas palavras da autora,

quando as professoras encorajam os escritores emergentes a ver a escrita e o desenho como um sistema de produção de sentido  unificado, as crianças produzem textos que são mais complexos que aqueles que são produzidos somente com palavras e muito mais em sintonia com o entendimento do que é letramento numa era em que letramento linguístico e visual se combinam para criar novos letramentos. Essa abordagem também leva as crianças a desenvolverem uma atitude positiva em relação a si mesmas como autoras-escritoras”. (MACKENZIE, 201, P. 323)

3.5 O USO DO DESENHO NA SALA DE AULA

          Visca (2010) desenvolve um trabalho bastante profundo em relação ao uso do desenho como instrumento utilizado na aplicação de provas projetivas. Situações como o desenho do aniversário, par ensinante-aprendente, momentos do dia, planta baixa da casa, etc. são ferramentas poderosas para que o psicopedagogo acesse aspectos da psique de seu paciente. Seu uso se restringe à psicopedagogia clínica, e como mencionado acima, não deveria fazer parte do trabalho dos professores em sala de aula.

          Entretanto, há inúmeras oportunidades nas quais o desenho pode fazer parte da rotina escolar, e que vão muito além da aula de arte em si. O desenho pode ser utilizado como preparação a textos escritos, como narrativas e descrições, ou mesmo argumentações, sendo elaborados antes destes como processos de brainstorming.  Pode ser feito após a escrita de textos como ilustração dos mesmos, ou após narrativas de histórias. Também pode fazer parte de projetos científicos, de pesquisa em história ou geografia, ou até mesmo para ilustrar problemas matemáticos. O fundamental é que esses desenhos sejam recebidos, dialogados, que exista um receptor que atribua sentidos aos sentidos emitidos pelo autor.

4 RESULTADOS: OUVINDO DESENHOS

Desenho 1: M., 5 anos e 2 meses
“As pessoas surdas conseguem conversar usando as mãos”

Nota-se nesta imagem a ênfase dada às mãos do personagem, e dos signos que ela produz com seus movimentos. O autor consegue passar a imagem de enunciados concretos que viajam pelo ar até um destinatário (provavelmente quem está observando o desenho).

 Desenho 2: N., 5 anos e 5 meses
A cera ajuda a proteger o ouvido”

Vemos aqui uma menina., que por sua expressão facial e pelos movimento dos pés, percebemos que brinca tranquila, pulando feliz. A cera de seus ouvidos ganha destaque no desenho, e o fato de proteger a personagem a deixa brincar sem maiores problemas.

Desenho 3: F., 4 anos e 10 meses
“O som entra pela orelha e vai direto para o cérebro”

Vemos aqui o esforço do autor para mostrar as ondas sonoras viajando pelo ar e entrando na cabeça do personagem. A direção do movimento aponta exatamente para as orelhas, e os rabiscos vermelhos marcam, dramaticamente, o momento da chegada do som no cérebro.

Desenho 4: T.. 5 anos e 5 meses
Sem o ouvido não escutamos nada”

Aqui vemos a escrita emergente interagindo com o desenho, formando um signo unificado. A palavra “o que” aparece espelhada, e o personagem aparece, como no enunciado verbal, sem o ouvido.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, procuramos refletir sobre a importância do desenho infantil na teoria dialógica de Bakhtin (2010), que dialoga com a visão de sujeito proposta pela psicopedagogia. Com sua teoria sobre o signo e o enunciado, este filósofo amplia nossa percepção do desenho como um ato comunicativo e de construção da realidade que responde a outros enunciados e se dirige a um interlocutor. Também contribuíram para esse estudo as novas teorias de letramento, que ampliam nossa visão sobre o que é adquirir a capacidade de se comunicar pela linguagem escrita, e todas as implicações sociais desse ato. Dentro dessa teoria, a necessidade de se compreender vários tipos de signos que circulam na nossa sociedade nos direcionam ao campo dos multiletramentos, que considera imagens uma forma de produção de sentido tão válida quanto a escrita.  Argumentou-se que os educadores podem fazer uso de uma ferramenta efetiva, que traria muitos benefícios cognitivos, psíquicos e afetivos aos alunos, minimizando os alarmantes números que demonstram as dificuldades enfrentadas pelas crianças em seu processo de letramento. Através de um estudo documental, encontramos pesquisas realizadas fora do país que comprovam a eficácia do ato de desenhar como parte da aquisição da escrita e da leitura, enriquecendo o processo de produção de texto e autoria- além da autoestima – dos alunos. Entretanto, vimos que o abandono ou subutilização desse recurso é preponderante nas escolas de Ensino Fundamental, e já essa situação já se espalha também pelas escolas de Educação Infantil, com algumas exceções.

Os desenhos analisados nesse trabalho para exemplificar nosso argumento foram produzidos por crianças que estavam ao final de seu período na Educação Infantil e têm altíssimas chances de, em poucos meses, iniciar o Ensino Fundamental e ter essa voz tão fluente silenciada. Sabe-se, como já foi discutido, que no cenário atual da educação, essa prioridade dada à arte, a qual encontramos na escola participante, é uma exceção. Relegar o desenho a um passatempo sem maior significado, uma atividade de colorir uma imagem pronta, uma ilustração de um tópico ou simplesmente eliminá-lo totalmente da rotina escolar é um fenômeno que já começa a se configurar na educação infantil, e atinge de forma quase que onipresente as salas de aula do Ensino Fundamental do nosso país. Pressionadas a atingir metas de alfabetização, nossas instituições escolares não se dão conta da poderosa ferramenta que teriam ao seu alcance para atingir e enriquecer esse mesmo objetivo. Esse fato deve nos fazer refletir, como psicopedagogos, sobre as consequências não somente cognitivas, mas também psíquicas e emocionais do silenciamento imposto a criança em desenvolvimento. Dentro dos limites deste trabalho, deixo aqui a sugestão para pesquisas subsequentes.

O psicopedagogo escolar, profissional atento aos elos que unem as dimensões afetivas, sociais e cognitivas do aprendizado, pode se valer dessas informações para orientar os educadores e organizar projetos que proporcionem à comunidade escolar a possibilidade de utilizar uma linguagem na qual as crianças podem demonstrar sua fluência, sua construção do mundo, interagir com colegas e adultos, produzindo sujeitos autores que assim se sentiram ao entrar em contato com o universo das letras.

REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS – ABNT. NBR 6022:informação e documentação: apresentação de artigo em publicação periódica científica impressa. Rio de Janeiro, 2002.

BAKHTIN, Mikhail.  Marxismo e filosofia da linguagem. 14ª ed. São Paulo: Hucitec, 2010.

BOSSA, Nadia. A Psicopedagogia no Brasil – Contribuições a Partir da Prática Porto Alegre: Artmed, 2000

BRAIT, Beth. Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógicaBakhtiniana, Rev. Estud. Discurso, Dez 2013, vol.8, no.2, p.43-66.

BROOKS, Margaret. What Vygotsky can teach us about young children drawing, International Art in Early Childhood Research Journal, vol.1 New England:2009

COPE, Bill; KALAZANTIS, Mary. “Multiliteracies”: New Literacies, New Learning. University of Illinois Urbana-Champaign, 2009

DAY, Giseli. A produção de desenhos na proposta pedagógica para educação infantil: que lugar ocupam as crianças. Dissertação de Mestrado, Santa Catarina, Departamento de Educação UFSC, 2008

FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler. São Paulo: Cortez, 1981

HAYNES, Deborah. J. Bakhtin Reframed: Interpreting Key Thinkers for the Arts. New York: I. B. Taurus, 2013.

KENDRICK Maureen; MCKAY, Roberta. Uncovering Literacy Narratives Through Children’s Drawings, Canadian Journal Of Education 27, 1 pg 45-60, 2002

KLEIMAN, Ângela. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado da Letras, 1995.

MACKENZIE, Noella. From drawing to writing : What happens when you shift teaching priorities in the first six months of school? Australian Journal of Language and Literacy, Vol.34 no3, pg 332-340, 2011

OLIVEIRA, Mari Ângela Calderari. Psicopedagogia: a instituição educacional em foco.  Curitiba: IBPEX, 2009

PAN, Miriam Aparecida Graciano de Souza et al. Subjetividade: Um Diálogo Interdisciplinar. Interação em Psicologia (Qualis/CAPES: A2), [S.l.], v. 15, dez. 2011. ISSN 1981-8076. Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/psicologia/article/view/25365>. Acesso em: 23 Set. 2014. doi:10.5380/psi.v15i0.25365.

STREET, Brian. Os Novos Estudos de Letramento: Histórico e Perspectivas. IN: Cultura Escrita e Letramento, editora UFMG, Belo Horizonte, 2010 p.33-53

VISCA, Jorge. O diagnóstico operatório na prática psicopedagógica. São José dos Campos: Pulso Editorial, 2008.

VISCA, Jorge. Técnicas projetivas psicopedagógicas e pautas gráficas para sua interpretação. Buenos Ayres: Visca e Visca, 2008.

VYGOTSKY, Lev. Imagination and creativity in childhood. Journal of Russian and East European Psychology, vol. 42, no. 1,January–February 2004, pp. 7–97.


[2] Brian Street é o líder do grupo britânico de pesquisas sobre Letramento denominado New Literacy Studies. ou Novos Estudos de Letramento


1Graduada em Linguística pela USP e Artes Visuais pela EMBAP. Psicopedagoga. Mestre em Psicologia pela UFPR – Universidade Federal do Paraná
Curitiba adribarral@gmail.com