LAW 14.133/21) AND STRENGTHENING ESG POLICIES IN THE PUBLIC ADMINISTRATION SUPPLY CHAIN
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202504151624
Ana Carolina Abdala Lavrador1
Resumo: Os Estados devem se assumir como stakeholders para uma ambiência favorável ao desenvolvimento sustentável, sendo que tal papel, no Brasil, é reafirmado por nossa conjuntura constitucional, pois os pilares ESG tem espelhamento em direitos fundamentais expressos na Constituição Federal. A Lei 14.133/21 surge como instrumento estratégico para integrar responsabilidade social e ambiental às compras públicas, dada a relevância financeira do Estado no mercado fornecedor de bens e serviços. Sua relevância como impulsionadora de políticas públicas ESG e o papel do Estado como agente de transformação no mercado são o foco do presente estudo, cuja metodologia é análise de doutrina e precedentes jurisprudenciais, dividida em dois tópicos: o papel do Estado nas compras públicas; e ESG e regime normativo da Lei 14.133/2021.Conclui-se que o desafio é transformar as intenções legislativas em práticas concretas que conduzam a uma gestão pública mais sustentável e alinhada com os desafios globais.
Palavras Chave: ESG-políticas públicas-constitucional-licitações-Estado
Abstract: States must assume themselves as stakeholders for an environment favorable to sustainable development, and this role, in Brazil, is reaffirmed by our constitutional situation as the ESG pillars are reflected in fundamental rights expressed in the Federal Constitution. Law 14,133/21 appears as a strategic instrument to integrate social and environmental responsibility into public purchases, given the financial relevance of the State in the goods and services supply market. Its relevance as a driver of ESG public policies and the role of the State as an agent of transformation in the market are the focus of this study, whose methodology is an analysis of doctrine and jurisprudential precedents, divided into two topics: the role of the State in public procurement; and ESG and the regulatory regime of Law 14,133/2021. It is concluded that the challenge is to transform legislative intentions into concrete practices that lead to more sustainable public management and aligned with global challenges.
Keywords: ESG-public policies-constitutional-tenders-State.
INTRODUÇÃO
A sigla ESG (Environmental, Social and Governance) foi cunhada no relatório intitulado Who Cares Win, produzido após uma conferência da ONU sob a liderança do secretário-geral da ONU, Kofi Annan.1
Identifica-se que o contexto contemporâneo exige que os Estados nacionais atuem como stakeholders2 desse processo de mudança em busca de uma ambiência mundial alinhada com um desenvolvimento sustentável, sendo agentes de transformação social e ambiental.
A considerar ainda a conjuntura nacional, não se pode desconsiderar que os pilares ESG (ambiental, social e governança) possuem espelhamento em direitos fundamentais expressamente consignados na Constituição Federal de 1988, o que ampara uma atuação pró ativa do governo brasileiro como agente regulador e de fomento de tais práticas.
Nesse sentido, a Lei 14.133/21 surge como um instrumento estatal estratégico para integrar e fomentar práticas de responsabilidade social e ambiental ao longo de toda a cadeia de suprimentos do setor público, considerando, em especial, que o Estado Brasileiro, assim considerado o conjunto de entes nacionais formado por União, Estados, Municípios e suas respectivas pessoas jurídicas componentes da administração pública indireta, movimenta bilhões de reais em compras públicas.
O ponto focal do presente estudo é justamente estabelecer a relevância da Nova Lei de Licitações como instrumento de fomento de políticas públicas ESG e o papel do Estado brasileiro como agente de transformação, através de sua atuação como relevante ator do mercado fornecedor de bens e serviços.
Para tanto, a pesquisa adotou uma abordagem metodológica que se fundamenta na revisão sistemática da doutrina e precedentes jurisprudenciais, especialmente da Corte de Contas da União, tendo em vista sua afinidade ao tema, buscando elucidar questões teóricas e conceituais essenciais e estabelecer uma reflexão crítica sobre a temática.
O artigo divide-se em dois tópicos: o primeiro analisa o papel do Estado brasileiro como agente de fomento de políticas ESG através do regime de compras públicas e o segundo destaca as práticas ESG no regime normativo da Lei 14.133/2021.
Ao final analisa-se, em breve conclusão, se a Nova Lei de Licitações representa, de fato, uma oportunidade estratégica para a Administração Pública brasileira promover efetivamente políticas de responsabilidade socioambiental e de governança, através do credenciamento de sua cadeia de fornecimento, transformando as intenções legislativas em práticas concretas que conduzam a uma gestão pública mais sustentável e nivelado com os desafios globais.
1. O PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO COMO AGENTE DE PROMOÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS ESG ATRAVÉS DO REGIME DE COMPRAS PÚBLICAS
Antes de adentrar na análise específica da incumbência do Governo brasileiro como stakeholder da agenda ambiental-social-governança, é importante traçar alguns parâmetros fundamentais quanto à definição do que é ESG e no que tange ao regime constitucional de compras públicas.
Sobre o primeiro tópico, as relevantes considerações de Atchabahian3 com relação ao tema ESG:
Environmental, Social, Governance. Três palavras que, juntas, compõem a sigla mais reconhecida pelo universo corporativo na atualidade: ESG. Preocupações com o meio ambiente, com o aspecto social em sentido amplo e com a governança corporativa estão hoje na pauta das discussões mais profundas sobre o futuro das empresas e do próprio capitalismo global.
Facilmente cognoscível, pois, uma correlação entre os pilares ESG (ambiental-social-governança) com princípios e garantias presentes na Constituição Federal: (i) princípios da Administração Pública como moralidade, legalidade e impessoalidade, expressos no artigo 37, caput, (CF/88)4, alinhados com conceitos de governança; (ii) direitos fundamentais, a exemplo dos direitos sociais5 e o direito ao meio ambiente equilibrado6 também elencados na Carta Constitucional.
Com relação às compras governamentais, a Constituição Federal7 estabeleceu um sistema específico, cujos princípios estão expressamente consignados no artigo 37, XXI, de referido diploma normativo:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte
(…)
XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Nota-se que houve desde o fundamento constitucional e de forma precedente à popularização dos pilares ESG, uma forte preocupação com a governança na seara das compras públicas, representado pelas garantias de legalidade, impessoalidade e moralidade, traduzidos no caput do artigo 37, assim como de igualdade de condições e busca da melhor proposta para a Administração Pública, previstas no inciso específico das contratações públicas.
Integrando esse conjunto normativo constitucional, que tutela tanto as políticas de promoção ESG quanto as compras públicas, identifica-se ainda o artigo 174 da Constituição Federal8 as que assinala expressamente os papéis a serem exercidos pelo Estado e os limites da atividade estatal na seara econômica, reforçando a legitimidade do Estado brasileiro para atuar como agente de fomento nas políticas ambientais, sociais e de governança.
Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado
Destaque-se, consoante debatido por Piovesan e Vieira9, não obstante tenha a Constituição Federal garantido a ampla proteção do Estado aos direitos fundamentais, há latente tensão entre a limitação de recursos financeiros e a necessária preservação da atuação do Estado no papel de guardião desses direitos, de forma que a atuação governamental deve fazer uso dos instrumentos mais eficientes para atingimento das suas finalidades, preservando ao máximo o erário.
É sob esse último enfoque que tem ganhado destaque o uso das compras públicas como instrumento para fortalecimento de políticas ESG no mercado fornecedor estatal, formado por atores privados interessados em usufruir das oportunidades na seara de aquisições realizadas pelo setor público.
Evidenciando o potencial de tal estratégia, tem-se que o Estado Brasileiro é um dos maiores compradores do país, tendo o setor público movimentado valores próximos a 12,5% do PIB nacional no ano de 2017 em compras de bens e serviços (RIBEIRO e INÁCIO JÚNIOR10), como demonstra a tabela11 a seguir, o que reforça a representatividade da atuação do Estado como incentivador da adoção e avanço de políticas ESG pelo setor privado, por meio do credenciamento de seus fornecedores.
Nesse contexto, a atuação do Estado Brasileiro como agente de fomento de um desenvolvimento sustentável, através da seleção de uma cadeia de fornecimento alinhada com as práticas ESG, é notadamente uma política pública de alta aplicabilidade, pois utiliza um meio eficaz com mínimo dispêndio de recursos.
Ademais, conforme observado por Veiga e Domingos (2023)12, estão em estudos e implementação em todo o mundo medidas de responsabilidade social das empresas tendentes a reduzir impactos negativos ambientais e sobre direitos humanos, decorrentes de sua atuação. Segundo os referidos autores13
As empresas, sejam grandes ou pequenas, devem promover um comportamento ético, sustentável e socialmente responsável. Tem havido um foco cada vez maior na responsabilidade social corporativa (RSC)3 e inevitavelmente surgiu o confronto entre regras voluntárias e obrigatórias, explicado em regras de direito público e de direito privado, incorporando a tensão entre o interesse público e o interesse privado
A ONU também já se debruçou sobre o tema, com aprovação por seu Conselho de Direitos Humanos, das diretrizes expressas nos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, erigidos sobre três pilares fundamentais, consoante esclarece Atchabahian14 :
Os Princípios Orientadores, internacionalmente reconhecidos como a pedra angular de Empresas e Direitos Humanos, e estabelecidos no ano de 2011 perante a Organização das Nações Unidas, determinam a existência de três pilares de proteção aos direitos humanos diante da atividade corporativa, a saber: (i) um primeiro pilar, voltado à atuação de Estados para o estabelecimento de regras vinculantes que regulem e parametrizem os impactos da atividade empresarial em seus respectivos territórios; (ii) um segundo pilar, de responsabilidade das empresas de, voluntariamente, adaptar suas atividades à proteção aos direitos humanos e ao meio ambiente; e (iii) um terceiro pilar, relacionado à responsabilização judicial e extrajudicial de empresas por violações aos direitos humanos e ao meio ambiente a partir das normas estabelecidas no primeiro pilar.
Assim, totalmente em linha também com o cenário internacional e com os primeiro e segundo pilares dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU, o compartilhamento da responsabilidade com o setor privado pelo incremento e expansão das práticas ESG, promovido pelo Estado brasileiro através de medidas tendentes a qualificar sua cadeia de fornecedores.
Isso porque, apesar da Lei 14.133/2021 compor o rol de competências legislativas e ter caráter regulamentar e de compulsória submissão (primeiro pilar), ela não se aplica indistintamente a todas as empresas privadas, mas tão somente àquelas que possuem interesse em usufruir da vultosa parcela de mercado destinado aos fornecedores do setor público, o que, de certa maneira preserva a voluntariedade do setor privado em adaptar suas atividades às regras de proteção sócio-ambiental.
Dessa feita, a princípio, em uma aferição puramente teórica, tem-se que a opção por atuar como agente de fomento das políticas ESG via Lei de Licitações elenca vantagens para o Estado, que exerce sua obrigação constitucional de tutelar os direitos sociais, à boa governança, e ao meio ambiente equilibrado, por meio de atuação indireta, sem dispensação de recursos próprios e em formato alinhado com o direito internacional.
2. REGIME DE COMPRAS PÚBLICAS E PRÁTICAS ESG NA NOVA LEI DE LICITAÇÕES
Em princípio, necessário reiterar que não obstante a Lei 14.133/2021 seja o corolário legal sobre as práticas ESG nas compras públicas, o ajuste normativo teve início em momento precedente, em 2010, com a alteração do artigo 3º da Lei 8666/93 que inseriu o desenvolvimento sustentável dentre os objetivos da licitação, como bem destaca Nohara15:
Oficialmente, desde 2010, quando houve a inserção do objetivo de promoção do desenvolvimento nacional sustentável entre os objetivos da licitação então contidos no art. 3º da Lei nº 8.666/93, a licitação transcendeu sua vocação imeramente contratual, passando a ser formalmente tida também como instrumento meta-contratual ou política pública de promoção do desenvolvimento.
Atualmente, com a Lei nº 14.133/2021, nova lei de licitações e contratos, houve a ampliação dos objetivos da licitação para: assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto; evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos; e incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável.
Assim, esse movimento não surgiu no contexto nacional com a Lei 14.133/2021 e também a ela não se resume, havendo no âmbito das compras públicas várias iniciativas paralelas em andamento, como a edição do Código de Conduta para Fornecedores do Conselho Nacional de Justiça, que estabelece um rol de boas práticas sócio-ambientais aos interessados em participar dos certames de compras do Poder Judiciário, e o Programa Agenda Ambiental na Administração Pública, do Ministério do Meio Ambiente, que tem inclui critérios de sustentabilidade dentre os indicadores de desempenho de seus fornecedores. (MARX. 2021)16
O Tribunal de Contas da União é também importante agente de consolidação dessa trajetória, através da formulação de uma jurisprudência uníssona e estável17 tendente a ratificar a legalidade e relevância da adoção de requisitos ligados às políticas ESG , robustecendo a função do Estado como pilar de impulso à adoção de tais premissas pela cadeia de fornecimento. No recente acórdão 1205/2023, proferido pelo Plenário da Corte18, decidiu o Tribunal por incluir no IGG19 indicadores de responsabilidade ambiental e sustentabilidade. Por sua relevância, seguem excertos da decisão:
SUMÁRIO
PROPOSTA DE FISCALIZAÇÃO. LEVANTAMENTO SOBRE A SITUAÇÃO DOS ÓRGÃOS E ENTIDADES DA APF QUANTO À ADOÇÃO DE PRÁTICAS DE GOVERNANÇA INTEGRADAS A PRÁTICAS DE RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL (ESG). AUTORIZAÇÃO.
ACÓRDÃO
VISTOS, relatados e discutidos estes autos, referentes à proposta de fiscalização, na modalidade levantamento, com o objetivo de atualizar o questionário conhecido como iGG para torná-lo um instrumento de avaliação de práticas ambientais, sociais e de governança e aferir a adesão de organizações públicas a esses processos;
(…)
RELATÓRIO
Trata-se de proposta de fiscalização na modalidade levantamento originária da Unidade de Auditoria Especializada em Governança e Inovação (AudGovernança) , tendo por objetivo remodelar o questionário conhecido como iGG para torná-lo um instrumento de avaliação de práticas ambientais, sociais e de governança.
2. O titular da Secretaria de Controle Externo de Governança, Inovação e Transformação Digital do Estado se manifestou a respeito da proposta formulada nos seguintes termos (peça 4) :
“1. Trata-se de proposta de fiscalização encaminhada pela Auditoria Especializada em Governança e Inovação (AudGovernança) , na modalidade Levantamento, com o objetivo de remodelar o questionário conhecido como iGG para torná-lo um instrumento de avaliação de práticas de ESG (Enviromental, Social and Governance) ,de forma que o TCU possa aferir a adesão das organizações públicas respondentes a tais práticas (peça 1) .
2. A proposta encaminhada, número 2727, atendeu às orientações contidas no art. 16 da Resolução-TCU 308/2019 e no art. 5º, inciso III, da Portaria-Segecex¿14/2014, com as justificativas expressas quanto aos quesitos risco, oportunidade, materialidade e relevância, a seguir transcritos:
Risco
A ausência de práticas de ESG, que buscam assegurar o conjunto de incentivos equilibrados aos gestores de instituições públicas, pode levar à ineficiência na execução mas dentro do contexto ESG, que inclui as dimensões SOCIAL e AMBIENTAL. O presente trabalho busca, então, remodelar o questionário do iGG, para integrar as novas dimensões e revisitar as práticas de governança e gestão para prover maior equilíbrio ao instrumento e mantê-lo moderno e atualizado.
Materialidade
Por ser um tema transversal, a materialidade do tema ESG está dispersa na atuação de todo o poder público. A existência de boas práticas de ESG contribui para a adequada atuação dos agentes públicos e, por consequência, das organizações públicas, além de ser essencial no atingimento dos objetivos finalísticos e na eficiência na execução do orçamento federal.
(…)
Retorno/benefícios esperados
Com o presente trabalho, o TCU contará com um instrumento capaz de medir a adesão de organizações públicas a práticas que vão além de Governança e Gestão, mas alcançam a sustentabilidade ambiental das organizações e sua responsabilidade social. Essa evolução é essencial para manter atualizado e coerente o instrumento de pesquisa, dado que a governança responsável tem sido firmemente associada ao ambiental e ao social, compondo o que se chama internacionalmente de ESG. Ao adotar práticas ESG, organizações públicas tendem a se tornar mais eficientes, uma vez que a sustentabilidade pode gerar redução de custos. Além disso, tais práticas conferem legitimidade à gestão das organizações respondentes. Sendo assim, ao medir suas próprias práticas com base no novo questionário a ser elaborado, gestores têm mais condições de investir nas áreas mais vulneráveis apontadas no levantamento. O TCU já é reconhecido como a maior referência pública no assunto, porém deve continuar inovando e modernizando o instrumento de controle para continuar exercendo seu papel de principal agente indutor de melhorias nos processos internos nas organizações públicas. (g.n)
Importante ressaltar que, consoante resta claro dos pontos em destaque do acórdão acima, os primeiros alinhamento à políticas ESG por parte do setor público tiveram por premissa a questão ambiental, entretanto, com o passar do tempo as outras letras da sigla ESG acabaram por ganhar destaque diante do reconhecimento da interseccionalidade e interdependência no tripé proteção ambiental-ações sociais e governança, sendo que nenhum dos pilares se sustenta e desenvolve sem os outros (NOHARA, 2022)20
Posteriormente, a noção se disseminou para outras áreas além da questão ambiental, sendo hoje consenso que há sustentabilidade no tripé: meio ambiente, transformações econômicas e impactos sociais. Ações econômicas que são implementadas sem a percepção de consequências socioambientais acabam não sendo, portanto, sustentáveis, pois os recursos disponíveis devem ser utilizados com planejamento de sua extração, para que a fonte não perca sua aptidão de promover necessidades futuras.
Não obstante o exposto, importante reconhecer que ao reunir várias diretrizes perfiladas às práticas ESG no processo licitatório, a Lei 14.133/2021 representa um catalisador para a disseminação de boas práticas socioambientais na cadeia de fornecimento da Administração Pública, proporcionando uma ferramenta robusta para alinhar seus objetivos estratégicos com a busca por um desenvolvimento mais sustentável.
Nesse ínterim, em exame da Lei 14.133/2021, constata-se a presença de vários dispositivos ligados à temática ESG, sendo que alguns se destacam por sua amplitude ou inovação, razão pela qual fazem jus a uma análise mais detalhada.
Importa destacar que o elenco a seguir não pretende exaurir a indicação de todas as referências diretas ou indiretas da Nova Lei de Licitações à tríade de proteção ambiental-social e governança, mas apenas e tão somente indicar alguns dos artigos que merecem destaque em uma exame inicial da norma.
O primeiro que atrai atenção especial é o artigo 5º21, que apresenta a conformação principiológica que deve nortear a aplicação da Lei 14.133/2021, indicando expressamente como um dos princípios da lei, o desenvolvimento nacional sustentável.
Trata-se de alteração relevante posto que o desenvolvimento sustentável categoriza-se de mero objetivo do processo de compras, conforme previsão do artigo 3º da Lei 8666/93, a princípio fundamental para aplicação da Lei 14.133/2021.
Outra inovação que merece atenção no artigo 5º é a sinalização expressa de que serão observadas na aplicação da Lei 14.133/2023 as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942.
Referida citação reforça a intenção do legislador de aplicar aos processos de compras e execução vinculados à Nova Lei de Licitações a garantia fundamental à segurança jurídica, objeto das inovações contidas nos artigos 20 a 24 do Decreto Lei 4657/6222.
A seguir, tem-se o artigo 11, incisos I e IV23 do caput e § primeiro do mesmo diploma.
O inciso I inova ao estabelecer como objetivo da licitação “I – assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto”. Essa disposição garante a melhor proposta levando em consideração não só os custos diretos do bem ou serviço, mas também as questões ligadas a sua durabilidade, descarte, reciclagem ou reuso, dentre outras questões relevantes no aspecto ambiental, principalmente em grandes volumes.
Já o inciso IV do artigo 11 elenca também como objetivo, do processo licitatório, o desenvolvimento sustentável.
Por fim, o parágrafo primeiro de referido artigo estabelece os parâmetros norteadores da atuação da Administração Pública, nos procedimentos em compras públicas, em matéria de governança
O artigo 14, Vl traz a primeira referência da Lei à vertente social da sigla ESG, ao vedar a participação nos certames de compras públicas de pessoas físicas ou jurídicas condenadas judicialmente, com trânsito em julgado, por exploração de trabalho infantil, por submissão de trabalhadores a condições análogas às de escravo ou por contratação de adolescentes nos casos vedados pela legislação trabalhista. Interessante perceber a vinculação das proibições contidas nesse artigo à proteção de direitos fundamentais previstos no artigo 6º da Constituição Federal.
Merecem destaque ainda as previsões contidas no artigo 25, § 9º, I e 60, lll, que estabelecem medidas de defesa de minorias voltada ao público feminino, de caráter nitidamente social. Enquanto o primeiro autoriza o ente licitante a exigir que percentual mínimo da mão de obra composto por mulheres vítimas de violência doméstica, o segundo cria critério de desempate entre propostas de igual valor atrelado ao desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho.24
Já em sede de execução do contrato decorrente do procedimento de compras, ressaltam-se iniciativas tendentes a atrelar uma parte variável da remuneração do contratado a metas de sustentabilidade.
Importante esclarecer que, não obstante sua publicação em 2021, a Lei 14.133 só teve eficácia plena a partir de janeiro de 2024, sendo que, até essa data, conviveram os regimes normativos de nela estabelecido e aquele previsto Lei 8666/9325, de forma que não houve ainda tempo hábil para aferir, de forma prática, os impactos das alterações promovidas.
3. CONCLUSÃO
Ao se reconhecer como stakeholder da agenda ambiental-social-governança, o Estado brasileiro porta-se, dentro do seu poder regulamentar, como agente de fomento e incentivo, utilizando-se de sua competência para inovar na área das compras públicas e avançar, através do conjunto normativo da Lei 14.133/2021, na popularização de políticas ESG junto a sua cadeia de fornecedores.
Utiliza-se ainda de sua relevância financeira, posto que as aquisições do poder público alcançam valores da ordem de bilhões de reais e representam uma parcela estratégica do mercado, para mobilizar a fração de empresas que têm interesse de concorrer a um quinhão do montante assinalado.
Tais práticas, além de alinhadas com princípios e direitos fundamentais expressos na Constituição Federal, estão ainda em total sincronia com os movimentos internacionais, que caminham no sentido não só de envolver e estimular o setor privado a implementar e manter práticas ESG, como, em alguns casos, responsabilizar empresas nas questões sócio-ambientais.
A considerar ainda a notória escassez de recursos do Estado brasileiro para fazer frente a todas as demandas impostas por uma Constituição repleta de direitos e garantias, cuja implementação e proteção recaem, em grande parte, sobre o orçamento público, a escolha de atuar como agente de fomento do desenvolvimento sustentável, através da seleção de uma cadeia de fornecimento alinhada com as práticas ESG, é uma política pública bastante eficaz.
A um só tempo essa política permite que o Estado, de fato, atue em prol de um desenvolvimento social e ambientalmente sustentável, atingindo sua finalidade constitucional, sem que seja necessário o dispêndio direto de recursos.
Ademais, a incorporação de critérios ambientais, sociais e de governança nos processos licitatórios não apenas atende a demandas sociais crescentes por maior responsabilidade das empresas, mas também promove a construção de uma economia mais resiliente e voltada para o longo prazo.
1Fonte: https://einvestidor.estadao.com.br/investimentos/esg-tema-importante-investimentos publicado em 02/01/2023.
2partes interessadas – tradução livre
3ATCHABAHIAN, Ana Cláudia Ruy Cardia – ESG Teoria e prática para a verdadeira sustentabilidade nos negócios. Ed. Expressa, 2022. pag. 17
4Brasil, Constituição Federal, 1988.
5Os direitos sociais estão majoritariamente concentrados no artigo 6º da Constituição Federal do Brasil, mas podem também ser identificados em pontos esparsos do texto constitucional. Conforme a doutrina adotada por esse artigo, os direitos sociais devem ser considerados direitos fundamentais e, como tal, receber a mesma proteção. Nesse sentido, Martins; Flávio – Curso de Direito Constitucional, 2023, pag. 919. “De fato, os direitos sociais são formalmente direitos fundamentais (estão previstos no texto constitucional como direitos fundamentais) e materialmente fundamentais. Segundo Ana Carolina Lopes Olsen, ‘a fundamentalidade material está relacionada à correspondência havida entre os direitos fundamentais e o núcleo de valores que informa a Constituição(…) dentre os quais vale destacar a dignidade da pessoa humana’ Nesse sentido, concordam com a fundamentalidade dos direitos sociais autores como José Joaquim Gomes Canotilho, Jorge Miranda, Vital Moreira, Ricardo Maurício Freire Soares, dentre outros.”
6Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações – Brasil, Constituição Federal, 1988.
7BRASIL, Constituição Federal, 1988.
8Brasil – Constituição Federal de 1988.
9Justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos no Brasil: desafios e perspectivas. Araucaria, [S. l.], v. 8, n. 15, 2006. pag 10 e ss.
10RIBEIRO, Cássio Garcia e INÁCIO JÚNIOR, Edmundo – O Mercado de Compras Governamentais Brasileiro (2006 – 2017): Mensuração e Análise – pag. 18.
11RIBEIRO, Cássio Garcia e INÁCIO JÚNIOR, Edmundo – O Mercado de Compras Governamentais Brasileiro (2006 – 2017): Mensuração e Análise – pag. 18.
12VEIGA, Fábio da Silva e DOMINGOS, Isabela. Responsabilidade social das empresas e direitos humanos. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 20, e202545, 2023. – pag. 02.
13VEIGA, Fábio da Silva e DOMINGOS, Isabela. Responsabilidade social das empresas e direitos humanos. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 20, e202545, 2023. – pag. 03.
14ATCHABAHIAN, Ana Cláudia Ruy Cardia – ESG Teoria e prática para a verdadeira sustentabilidade nos negócios. Ed. Expressa, 2022. pag. 19 e 20.
15NOHARA, Irene Patrícia Dion – Inovação da Nova Lei de Licitação: Diretoria e Potencial de Modernização pelo Estado – pag 5.
16MARX, César Augusto – A nova governança pública e os princípios ESG. pag.07.
17São exemplos de acórdãos relevantes do TCU na matéria de sustentabilidade, que explicitam mas não exaurem o tema: Acórdão nº 1.752/2011; Acórdão nº 2.512/2016 -Plenário, Acórdão nº 1.056/2017-TCU-Plenário.
18ACÓRDÃO 1205/2023 – PLENÁRIO; RELATOR VITAL DO RÊGO; PROCESSO 014.499/2023-1 – DATA DA SESSÃO 14/06/2023; NÚMERO DA ATA 24/2023.
19 “Nasce o iEDGo, novo instrumento de pesquisa do TCU para avaliar a administração pública. O TCU aprovou, por meio do Acórdão 1.205/2023-Plenário, de relatoria do ministro Vital do Rêgo, proposta de fiscalização da AudGovernança para remodelar o questionário conhecido como iGG. O novo instrumento de pesquisa tem como desafio integrar a avaliação dos processos de governança e gestão aos de responsabilidade ambiental e de sustentabilidade. O acompanhamento feito pelo Tribunal de Contas da União (TCU) dos índices de governança e gestão dos órgãos e entidades da administração pública federal para identificar riscos sistêmicos e verificar a evolução dos entes públicos – conhecido como iGG – será ampliado e passará a abordar também questões relacionadas à responsabilidade ambiental e à sustentabilidade” -Portal TCU – https://portal.tcu.gov.br/governanca/governancapublica/organizacional/levantamento-de-governanca/
20NOHARA, Irene Patrícia Dion – Inovação da Nova Lei de Licitação: Diretriz e Potencial de Modernização pelo Estado. Inovação da Nova Lei de Licitação: Diretoria e Potencial de Modernização pelo Estado. Revista de Direito Brasileira. Volume 31 nº 12. Jan./Abr. 2022. pag 05.
21Brasil, Lei 14.133, 2021
22Os artigos 20 e 24 da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro abordam o viés da segurança jurídica e tem nítida intenção de proteger de revisionismo açodado e infundado, atos jurídicos e suas consequências já consolidadas no tempo, com fundamento axiológico na preservação da garantia da segurança jurídica.
23Brasil, Lei 14.133, 2021.
24Brasil, Lei 14.133, 2021. Artigo 60, III
25Brasil, Lei 14.133, 2021 art. 191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso. Art. 193. Revogam-se: II – em 30 de dezembro de 2023: (Redação dada pela Medida Provisória nº 1.167, de 2023) – Vigência encerrada
a) a Lei nº 8.666, de 1993; (Incluído pela Medida Provisória nº 1.167, de 2023) Vigência encerrada
REFERÊNCIAS
ATCHABAHIAN, Ana Cláudia Ruy Cardia – ESG Teoria e prática para a verdadeira sustentabilidade nos negócios. Ed. Expressa, 2022. versão para Kindle
Brasil, Constituição Federal, 1988;
Brasil, Lei 14.133, 2021
Brasil, Portaria SEGES/ME Nº 8.678, 2021.
Brasil, Decreto Lei 4657, 1942
Brasil, Lei 8666, 1993.
ESTADÃO – ESG: o que é e por que se tornou importante para investimentos? https://einvestidor.estadao.com.br/investimentos/esg-tema-importante-investimentos publicado em 26/11/2021, 17:07 ( atualizada: 10/11/2022, 16:45 ) – acessado em 23/06/2023
MARTINS, Flávio – Curso de Direito Constitucional. Ed. Saraiva. 2023
MARX, César Augusto – A nova governança pública e os princípios ESG. Controle Externo: Revista do Tribunal de Contas do Estado de Goiás, Belo Horizonte, ano 3, n. 6, p. 115-125, jul./dez. 2021 https://revcontext.tce.go.gov.br/index.php/context/article/view/140/97 (acessado em 22/12/2023)
NOHARA, Irene Patrícia Dion. Nova Lei de Licitações e Contratos Comparada. Revista dos Tribunais https://www.researchgate.net/publication/351914761_Nova_Lei_de_Licitacoes_e_Contratos_Comparada (acesso em 15/12/2023);
Inovação da Nova Lei de Licitação: Diretoria e Potencial de Modernização pelo Estado. Revista de Direito Brasileira. Volume 31 nº 12. Jan./Abr. 2022. https://www.indexlaw.org/index.php/rdb/article/view/7556/6287 (acesso em 21 de janeiro de 2024.)
PIOVESAN, Flávia; STANZIOLA VIEIRA, Renato. Justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos no Brasil: desafios e perspectivas. Araucaria, [S. l.], v. 8, n. 15, 2006. https://revistascientificas.us.es/index.php/araucaria/article/view/1117 (acesso em 28/12/2023)
RIBEIRO, Cássio Garcia e INÁCIO JÚNIOR, Edmundo – O Mercado de Compras Governamentais Brasileiro (2006 – 2017): Mensuração e Análise – Texto para Discussão – IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – 2019. https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9315/1/td_2476.pdf (acessado em 28/12/2023) Tribunal de Contas da União
ACÓRDÃO 1205/2023 – PLENÁRIO; RELATOR VITAL DO RÊGO; PROCESSO 014.499/2023-1 – DATA DA SESSÃO 14/06/2023; NÚMERO DA ATA 24/2023 https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/documento/acordao-completo/*/NUMACORDAO%253A1205%2520ANOACORDAO%253A2023%2520COLEGIADO%253A%2522Plen%25C3%25A1rio%2522/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/0 – acessado em 02/02/2024
Levantamento de Governança Pública Organizacional – https://portal.tcu.gov.br/governanca/governancapublica/organizacional/levantamento-de-governanca – acessado em 02/02/2024
VEIGA, Fábio da Silva – A criação de valor da empresa socialmente responsável na perspectiva jurídica do interesse social., Estudos de Direito, Desenvolvimento e Novas Tecnologias., 1, 1, Instituto Iberoamericano de Estudos Jurídicos / Universidade Lusófona do Porto – 2020. https://www.academia.edu/en/44529174/A_cria%C3%A7%C3%A3o_de_valor_da_empresa_socialmente_respons%C3%A1vel_na_perspectiva_jur%C3%ADdica_do_interesse_social (acesso em 02/01/2024);
VEIGA, Fábio da Silva e DOMINGOS, Isabela. Responsabilidade social das empresas e direitos humanos. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 20, e202545, 2023. Disponível em: http://revista.domhelder.edu.br/index.php/veredas/article/view/2545. (acesso em 01/01/2024)
VIEIRA, James Batista e BARRETO, Rodrigo Tavares de Souza. Governança, Gestão de Riscos e Integridade. Brasília: Enap, 2019. https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/4281/1/5_Livro_Governan%C3%A7a%20Gest%C3%A3o%20de%20Riscos%20e%20Integridade.pdf (acessado em 27/12/2023)
ZIMMER JÚNIOR; Aloísio; NOHARA, Irene Patrícia Diom. Compliance Anticorrupção e das Contratações Públicas. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021
1Mestranda em Direito Constitucional pela UNIFIEO. Procuradora do Município de Uberlândia