JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL: A IMPORTÂNCIA DAS TESES DO STF COMO LIMITES AO ATIVISMO JUDICIAL EM AÇÕES ENVOLVENDO MEDICAMENTOS NÃO REGULADOS PELA ANVISA

JUDICIALIZATION OF PUBLIC HEALTH IN BRAZIL: THE IMPORTANCE OF THE STF THESIS AS LIMITS TO JUDICIAL ACTIVISM IN ACTIONS INVOLVING MEDICINES NOT REGULATED BY ANVISA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11672861


Adriani Queiroz do Rosário1
Orientador: Lucas do Couto Gurjão Macedo Lima2


RESUMO:

O presente trabalho possui o objetivo de demonstrar a importância das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) como limites ao ativismo judicial em tema específico da judicialização da saúde: a concessão de medicamentos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), haja vista a quantidade massiva de ações judiciais envolvendo a “judicialização na saúde” no país. Isto pois, em alguns casos, o magistrado se vale essencialmente da Constituição Federal para proferir suas decisões e deixa de lado outros critérios a serem analisados em cada caso concreto. Desta forma, o Supremo Tribunal Federal, em 2020, deu repercussão geral ao Tema 500, que aborda as especificidades para medicamentos sem registro no órgão regulador.

Palavras-chave: Direito à saúde, judicialização, Constituição Federal, Ativismo judicial, STF, ANVISA, SUS.

ABSTRACT:

The present work aims to demonstrate the importance of the decisions of the Federal Supreme Court (FSC) as limits to judicial activism on a specific topic of the judicialization of health: the granting of medicines without registration with the National Health Surveillance Agency (NHSA), given the the massive number of lawsuits involving the “judicialization of health” in the country. This is because, in some cases, the judge essentially uses the Federal Constitution to make his decisions and leaves aside other criteria to be analyzed in each specific case. In this way, the Federal Supreme Court, in 2020, gave general repercussion to Theme 500, which addresses the specificities for medicines not registered with the regulatory body.

Keywords: Right to health,  judicialization, Federal Constitution, Judicial Activism, STF, ANVISA, SUS.

1 INTRODUÇÃO 

 Com o advento da Constituição Federal de 1988, o legislador optou por abarcar o direito à saúde como direito social a ser garantido a todos os cidadãos, feito este inédito em comparação com as Cartas Magnas anteriores. Este direito, assim como os demais presentes no artigo 6º da Constituição Federal, pode ser conceituado como um “direito fundamental do homem, caracterizando-se como uma verdadeira liberdade positiva” (Moraes, p. 257, 2023), ou seja, é dever do Estado garantir e deter os meios necessários para efetivar tais direitos. 

 Depreende-se, assim, que a saúde no Brasil é pública e universal, devendo o Estado criar, aplicar e fiscalizar políticas públicas capazes de suprir as demandas da população. O problema surge quando o Estado, por meio do Poder Executivo e seus respectivos órgãos de saúde, não é capaz de atender com celeridade e qualidade as demandas de saúde da sociedade. É possível tomar o sucateamento do Sistema Único de Saúde (SUS) como o maior exemplo da ineficácia da Administração Pública de lidar com a garantia do direito à saúde.

 Porém, dentre as alternativas para sanar esta situação e terem seus direitos garantidos, muitos cidadãos optam por recorrer ao Poder Judiciário para dar celeridade às demandas de forma que os Órgãos públicos tomem as providências necessárias para sanar o problema. O caminho da judicialização das políticas públicas e o ativismo judicial tiveram um crescimento exponencial com o advento da Constituição de 1988, gerando assim um outro meio de os indivíduos obterem acesso aos seus direitos, especialmente aqueles que necessitam de tratamento médico imediato e lidam com a demora excessiva dos agendamentos pelas unidades de saúde.

 A judicialização da saúde vêm tomando espaço no cenário jurídico brasileiro desde o advento da Carta Magna de 1988, quando passaram a surgir inúmeras demandas judiciais, principalmente para o fornecimento de medicamentos para combater a AIDS, tendo como fundamento o direito constitucional à saúde e o dever do Estado enquanto prestador destes direitos, por se tratar de direito universal e igualitário (Pepe, Schramm, Simas, Ventura, 2010, p. 2).

 Com o crescimento exponencial de demandas judiciais relacionadas à prestação de serviços relacionados à saúde, muito se discute sobre a efetividade desse ativismo judicial relacionado à saúde, pois ao mesmo tempo em que há a necessidade de garantir o acesso aos direitos pleiteados pelos indivíduos, garantindo assim que eles disponham do mínimo existencial para viver com dignidade, há outros vetores a serem considerados nas decisões, como a disponibilidade e regulação dos medicamentos pelos órgãos de saúde competentes e a existência de formas alternativas e similares de tratamento.

 Em função de muitas decisões judiciais obrigarem os entes públicos a custear para os indivíduos tratamentos médicos e medicamentos demasiadamente onerosos ou, no caso deste último, que sequer estejam previstos na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) do SUS ou devidamente regulados pela ANVISA, muitos doutrinadores sustentam o entendimento de que a atuação do judiciário nestes casos estaria violando o princípio da separação dos poderes, uma vez que o Poder Judiciário estaria atuando excessivamente em função típica dos outros poderes.

 Em face de tais divergências relacionadas ao tema da judicialização da saúde, urge a atuação dos tribunais superiores para pacificar os temas e, principalmente, impor limites à atuação excessiva do judiciário em face das questões de saúde pública, para que assim seja limitado o número de casos judiciais contendo pedidos que, caso deferidos, de alguma forma venham a prejudicar o planejamento orçamentário e administrativo dos entes.

Neste diapasão, o presente artigo busca demonstrar em que medida as teses do Supremo Tribunal Federal são essenciais para limitar o ativismo judicial em ações referentes a medicamentos não registrados pela ANVISA. Importante salientar que será trabalhado especificamente o direito à saúde em seu sentido estrito, que trata das prestações de atendimento médico, disponibilidade de leitos e com foco específico no fornecimento de medicamentos pelo Poder Público.

Para elaborar este artigo, foi utilizada a pesquisa do tipo bibliográfica, por meio da leitura de artigos científicos, livros e da jurisprudência dos Tribunais Superiores, além do levantamento numérico sobre o crescimento de processos judiciais referentes à saúde advindo após a Constituição de 1988, se tratando portanto de uma pesquisa bibliográfica. Ademais, foi necessário realizar a busca de inúmeras informações e conceitos teóricos, de tal forma que se trata de um estudo descritivo, pois “pretende descrever os fatos e fenômenos de determinada realidade” (Triviños, 1987 apud Gerhardt; Silveira, 2009, p. 35).

 Desta forma, a divisão do trabalho foi feita da seguinte maneira: após a presente introdução, o segundo tópico será destinado para discorrer sobre a judicialização da política no Brasil no âmbito do direito à saúde, apresentando os pontos gerais sobre este fenômeno no ordenamento jurídico brasileiro e destacando as diferenças entre ativismo judicial e a judicialização da saúde. Ainda no segundo tópico, será apresentada a judicialização da saúde para a aquisição de medicamentos, onde serão apresentados dados numéricos sobre os custos que a judicialização da saúde acarreta para o Estado.

 No terceiro tópico, será abordada a atuação do STF para limitar o ativismo do magistrado na concessão de medicamentos não regulados pela ANVISA e, consequentemente, não fornecidos pelo SUS, que foi ocasionada pelo Tema de repercussão geral nº 500. Por fim, serão tecidas considerações finais sobre como a atuação do STF, apesar de muitas vezes exceder os limites de suas funções, foi certeira ao tratar sobre demandas judiciais para a aquisição de medicamentos não regulados pela ANVISA, pois contribuiu para a diminuição de demandas as quais só iriam congestionar ainda mais o judiciário.

2. O DIREITO À SAÚDE E SUA PREVISÃO LEGAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o chamado “Protocolo de São Salvador”, instituído no Brasil por meio do Decreto Lei nº 3.321/1999, estabelece em seu artigo 10 que a saúde é um direito garantido a todos, e conceituou a saúde como o proveito do mais alto nível de bem estar físico, mental e social. Sendo o Brasil signatário do referido instrumento, natural seria que a legislação brasileira dispusesse de instrumentos resguardando a saúde da forma que seria devida.  

Dessa forma, a Constituição Federal estabeleceu no Título II que estabelece os direitos e garantias fundamentais à saúde enquanto direito social, especificamente no caput do artigo 6º. Infere-se com isso que o Estado possui o dever legal de garantir esses direitos à população para que possam desfrutar de uma boa qualidade de vida. 

Para tanto, o Estado deve elaborar uma série de políticas públicas que atendam as necessidades da população em matéria de saúde, conforme o artigo 196 da Constituição Federal: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (Brasil, 1988)”.

Dentre as políticas públicas adotadas, foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS), regulado pela Lei 8.080 de 1990, a qual dispõe em seu artigo 5º os seguintes objetivos do SUS: 

São objetivos do Sistema Único de Saúde SUS: I – a identificação e divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde; II – a formulação de política de saúde destinada a promover, nos campos econômico e social, a observância do disposto no § 1º do art. 2º desta lei; III – a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas (Brasil, 1990).

Sendo o SUS uma entidade que possui a atuação descentralizada entre as esferas regionais, destaca-se que é o Poder Executivo o responsável pela execução das políticas de saúde e o consequente fornecimento de tratamentos médicos e medicamentos para a população, que por meio das chamadas Unidades Básicas de Saúde (UBS) realizam seus atendimentos e procedimentos necessários.

Em se tratando de um país com dimensões continentais, o Brasil possui sérias dificuldades de conseguir cumprir com os dispositivos legais supracitados e garantir à população o acesso a tratamentos de saúde de qualidade e em tempo hábil, tendo em vista que uma das grandes problemáticas do sistema público de saúde reside na demora para conseguir atendimento. Em casos mais específicos, como o fornecimento de medicamentos, a dificuldade está atrelada ao não fornecimento de certos fármacos na rede de saúde, seja pela ausência do produto nos estoques, seja por não estar o medicamento contemplado pela Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME).

Tendo em mente que esses fatores contribuem para o sucateamento do sistema público de saúde e que determinadas demandas possuem caráter urgente, a população, em alguns casos, tende a recorrer pela via judicial para conseguir seus tratamentos, a isso chamamos de judicialização da saúde, o fenômeno pelo qual uma ação é movida com o objetivo de solicitar ao Poder Judiciário o deferimento de pedidos para obrigar os órgãos públicos de saúde a fornecer o tratamento médico solicitado. 

3. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Quando falamos sobre judicialização, estamos nos referindo a um fenômeno pelo qual o Poder Judiciário interfere em atos administrativos que deveriam ser exercidos pelo Poder Executivo, conforme bem salienta Barroso (2009, p.3): “a judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo”.

Assim, quando tratamos sobre a judicialização da saúde estamos nos referindo ao Judiciário atuando para garantir ao indivíduo acesso ao tratamento de saúde que este requer e não o consegue por meio dos órgãos do Poder Executivo, cabendo ao juiz interferir para a garantia do disposto no artigo 196 da Constituição Federal:

 A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (Brasil, 1988).

Importante ressaltar que a atuação ativa do judiciário se tornou recorrente após a promulgação da já mencionada Carta Magna de 1988, momento histórico onde houve um aumento exponencial das demandas judiciais, especialmente daquelas relacionadas ao direito fundamental à saúde. Vieira (2020, p. 26), explicita que “a crescente de demandas judiciais foi fruto de uma movimentação dos pacientes portadores de HIV que na década de 1990 requereram remédios e tratamentos de saúde aos quais detinham direitos”.

Ademais, para Barroso (2009, p. 3), os motivos que levaram à crescente de demandas judiciais foi justamente o processo de redemocratização ocasionado pela promulgação da Constituição de 1988, o qual garantiu ao judiciário a possibilidade de intervir para garantir direitos, o que fez com que o “Judiciário deixasse de ser um departamento técnico-especializado e se transformasse em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros Poderes” (Barroso, 2009, p.3).

A judicialização não se restringe aos usuários do SUS, podendo o magistrado ser acionado para garantir a ampliação da cobertura de procedimentos ofertados pelos planos de saúde privados. No entanto, conforme fora introduzido no tópico anterior, este trabalho irá tratar especificamente das demandas judiciais relacionadas aos usuários do sistema de saúde pública.

3.1 JUDICIALIZAÇÃO E ATIVISMO JUDICIAL

A judicialização e o ativismo judicial são conceitos que, apesar de guardarem íntima relação, não podem ser sinônimos uns dos outros, haja vista que o ativismo judicial pode ser entendido como uma conduta praticada pelo magistrado além do que seria convencionalmente razoável, enquanto a judicialização seria, segundo Barroso (2009, p. 19), o fato de que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo. Desse modo, para dar prosseguimento ao presente trabalho, urge discorrer acerca das nuances a respeito da dicotomia ativismo e judicialização.

Judicializar algo significa levar à juízo uma demanda para que se tenha uma decisão proferida pelo magistrado, no sentido de julgar procedente ou não os pedidos que foram formulados. A judicialização no contexto do presente artigo seria a chamada judicialização da política, que segundo Viaro (2017, p. 234) trata o problema pelo prisma político-institucional, com principal foco no Estado e em processos de modificação das relações entre seus Poderes.

Ou seja, a judicialização da política seria a impetração de uma ação com vistas a garantir direitos cuja concessão são de competência dos Poderes Executivo e Legislativo, como é o caso da judicialização da saúde, haja vista que o acesso aos tratamentos de saúde é uma matéria que deve ser resguardada por tais poderes, especialmente o executivo. Por fim, por meio de tal ato, haverá uma sentença determinando se o direito pleiteado será ou não deferido.

Já o ativismo judicial traz a ideia de um modo proativo de interpretação da Constituição, expandindo seu sentido e alcance por meio de uma especificidade advinda de atitudes do Poder Judiciário (Lippi, Oliveira, 2020, p.12). Ademais, Barroso (2009, p.6) afirma que a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes.

Em linhas gerais, o ativismo judicial é uma conduta praticada pelo magistrado, no sentido de ampliar o entendimento de certos dispositivos normativos, criando uma interpretação extensiva para impor ao Poder Executivo que tome medidas as quais busquem uma ação positiva de modo a conceder o tratamento de saúde pleiteado pelos indivíduos.

Nesse sentido, vislumbra-se que o juiz, ao praticar o ativismo judicial, atuaria como uma espécie de juiz legislador: 

O ativismo judicial pode ser visto como consequência da judicialização, porém a omissão do Legislador e também por parte do Poder Executivo em aplicar os Princípios Constitucionais para a efetivação de direitos sociais fundamentais, como no caso do direito à saúde, provocam excesso de demandas de cunho político levadas ao judiciário e corroboram para que juízes atuem de maneira expansiva, ultrapassando o limite da lei, tornando-se o juiz legislador (Junckes, 2020, p. 38)

A partir do momento em que o juiz passa a atuar neste viés mais ativo frente às demandas judiciais, especialmente nas relacionadas à saúde – tendo em vista o foco do trabalho em comento – haverá um problema, pois essa figura do juiz legislador, pela obviedade do termo, exerce uma atuação fora do seu âmbito convencional de jurista, passando a exercer papéis dos Poderes Executivo e Legislativo para efetivar a garantia dos direitos constitucionalmente previstos.

Notório e perceptível que não há óbice para a judicialização de demandas médicas, especialmente aquelas referentes à concessão de medicamentos, pois em muitas situações o que se observa é a negligência e demora do Poder Público em fornecer aos usuários do SUS o acesso ao tratamento médico adequado e condigno em um período de tempo razoável. Tal fator é, conforme ora demonstrado, questão envolvendo direito fundamental, e que pode ser demandado judicialmente por força do art. 5º, XXV da Constituição Federal: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

 Ou seja, algumas das judicializações relacionadas a medicamentos não regulados pelos órgãos competentes e que eventualmente tenham algum tratamento alternativo oferecido pelo poder público – este fenômeno será abordado em tópico próprio – são deferidas em função da atuação mais ativa do magistrado, o qual se embasa unicamente em preceitos constitucionais e não observa outras disposições legais.

3.2 JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO QUE TANGE AO ACESSO A MEDICAMENTOS E OS DISPOSITIVOS LEGAIS RELACIONADOS A FÁRMACOS NÃO REGULADOS

 Quando o juiz defere pedido de medicamentos, é importante estar atento à regulação do mesmo pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) – autarquia federal responsável por exercer o controle e a fiscalização dos insumos consumidos pelos brasileiros , bem como pela disponibilidade do mesmo na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME).

 A lei 9.782 de 1999, que estabelece a criação da ANVISA, dispõe no seu artigo 2º, inciso III o seguinte: Compete à União no âmbito do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária: […] III – normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde. Observa-se com isso a necessidade do juiz de levar em conta o presente dispositivo, bem como o RENAME, na hora de proferir uma sentença concedendo medicamentos.

 A problemática surge quando o juiz interpreta o dispositivo 196 da Constituição – o qual estabelece que a saúde é um direito de todos e dever do Estado – rigorosamente e impõe aos entes públicos do executivo o dever de fornecer o medicamento solicitado sem levar em consideração se o Estado regularizou o insumo e se este é fornecido pelas unidades de saúde, desconsiderando assim as legislações infraconstitucionais supracitadas. Isto ocorre pois, por se tratar a saúde de direito fundamental, os juízes não levam em consideração outros fatores, como bem lembra Fogaça (2021, p. 38): “[…] a solução fixada pelo Poder Judiciário, em geral, se alicerça tão somente nas normas constitucionais para tomar decisões que, ulteriormente, gerarão consequências de ordem orçamentária e sociopolítica”. Destaca-se assim a tendência do magistrado de sustentar suas decisões unicamente na Constituição, sem levar em conta outros dispositivos tão importantes quanto.

 Para fins demonstrativos, conforme dados coletados do Insper, observa-se que aproximadamente 70% dos acórdãos proferidos em segunda instância dizem respeito ao fornecimento de medicamentos:

Figura 01 – Assuntos referente à saúde mais abordados em decisões de segunda instância

Fonte: Insper (2019).

Ademais, destaca-se o custo que as demandas judiciais geram para o SUS até o ano de 2016:

Figura 02 – Quantitativo utilizado pelo governo federal para custear a judicialização da saúde

Fonte: Insper (2019)

Muito embora não tenham sido encontrados gráficos mais recentes que apontem os custos da judicialização da saúde, a tendência observada é o aumento demasiado custeado pelo Estado para cumprir as demandas judiciais.

Ademais, apesar de não terem sido encontrados estudos que tratem especificamente do custeio do governo com medicamentos não regulados, há de se destacar o aumento exponencial dos gastos públicos com medicamentos ora mencionado, que podem ou não surtir os efeitos desejados pelos usuários ou que sequer possuem certeza científica de eficácia. 

Além disso, os dados abaixo demonstram que o magistrado pouco recorre a órgãos com capacidade técnica para elaborar análises técnicas sobre os medicamentos solicitados e a eventual necessidade ou não de concessão de tais insumos:

Figura 03 – Quantitativo de citações a órgãos técnicos em decisões judiciais por região

Fonte: Insper (2019).

Menos de 1% das decisões terem menção à CONITEC e seus respectivos protocolos é deveras preocupante, uma vez que o órgão – em conjunto com o Ministério da Saúde – é responsável pela análise de incorporação de novos medicamentos no âmbito do SUS, sendo de extrema importância a observância de seus entendimentos.

A falta de embasamento técnico nas decisões relacionadas a medicamentos é de extrema preocupação, pois o magistrado acaba baseando suas decisões exclusivamente nos preceitos fundamentais à saúde, mínimo existencial e obrigação do SUS em fornecer medicamentos aos pacientes. Tais argumentos merecem sim prosperar, mas não em todos os casos, pois isso leva o Estado a cumprir obrigações judiciais de modo a fornecer medicamentos que sequer gozam de regulação pela ANVISA ou tem sua eficácia devidamente comprovada – os chamados medicamentos experimentais.

 Frisa-se que mesmo tendo registro da ANVISA, o medicamento precisa passar pela avaliação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (CONITEC) para ser devidamente comercializado em território nacional – e consequentemente ingressar no RENAME -, pré requisito que também é desconsiderado pelos magistrados em sede de fornecimento de fármacos e está disposto na Lei 8.080/1990 em seu artigo 19-Q: 

A incorporação, a exclusão ou a alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, são atribuições do Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS.

Ademais, é perceptível a resistência do magistrado em considerar outros dispositivos legais que abordam a impossibilidade da dispersão de medicamentos não registrados e regulados por órgãos competentes, como a Lei 6.360/76 a qual dispõe em seu artigo 12 que nenhum medicamento pode ser vendido ou consumido sem registro no Ministério da Saúde. 

Mediante a conduta permissiva dos juízes em conceder medicamentos não regulados no país sem levar em consideração os dispositivos legais supracitados, bem como a alta demanda judicial solicitando medicamentos sem registro, coube ao STF firmar um posicionamento definitivo acerca do tema (Santos, 2019).

4. AS TESES DO STF REFERENTES À JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE 

 O presente capítulo se debruça na análise das decisões proferidas pelo STF em sede de judicialização da saúde, com ênfase no Tema de Repercussão Geral nº 500 do referido tribunal, uma vez que o julgado apresenta abordagens específicas que os magistrados devem observar ao se depararem com demandas referentes a medicamentos ausentes de registro na ANVISA.

O referido órgão possui diversos temas pertinentes à judicialização da saúde em um plano mais amplo, com uma jurisprudência sólida e a elaboração de outros temas com repercussão geral, entretanto, frisa-se a necessidade de delimitar o objeto do presente estudo para a demanda referente a medicamentos.

Ademais, urge a necessidade de demonstrar, na prática, os efeitos das decisões proferidas pelo Supremo, no sentido de limitar a atuação do magistrado para que atue de forma condizente com os dispositivos legais vigentes à respeito de direito à saúde e a condição para obtenção de fármacos na rede pública de saúde, conforme será demonstrado a seguir.

4.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE VISÕES CONTRÁRIAS À ATUAÇÃO DO STF

 Antes de adentrar nas teses firmadas pelo STF quanto à judicialização da saúde em sede de fornecimento de medicamentos, é importante discorrer sobre a atuação ativa do STF em políticas públicas, pois boa parte da doutrina entende que o órgão atua muito além do que as suas atribuições permitem, causando desequilíbrio e violação ao princípio da separação dos poderes, dado que muitas vezes o STF julga matérias envolvendo políticas que deveriam ser discutidas pelo legislativo, mediante a criação e elaboração de leis.

Desta forma, os entendimentos do STF devem ser interpretados não como uma solução definitiva para os percalços relacionados à judicialização da saúde, mas sim como uma maneira de frear a atuação dos magistrados nas instâncias inferiores, tendo em vista que a melhor forma de regular o direito à saúde e diminuir definitivamente a quantidade de ações judiciais relacionadas ao tema seria por meio da criação de leis pelo Legislativo e o respectivo cumprimento do dever de prestar saúde condigna por parte do Executivo. 

Na prática já há uma vasta regulamentação acerca da vedação à comercialização de fármacos não registrados nos órgãos competentes, conforme discutido em parágrafo anterior, porém ainda assim o ativismo judicial dos magistrados os faz entender que a presença da saúde como direito fundamental é requisito suficiente para obrigar o Poder Público a custear estes tratamentos, gerando assim um aumento nas ações judiciais de saúde ano após ano, sem que houvesse um posicionamento definitivo das instâncias superiores. Este tema aqui discutido foi por anos fruto de grandes divergências entre os juristas, de tal forma que foi necessário o STF tomar partido para pacificar o tema, visando garantir a segurança jurídica e a melhor tomada de decisão possível nos casos concretos.

4.2 A IMPORTÂNCIA DO TEMA 500 DO STF NA LIMITAÇÃO DA ATUAÇÃO DISCRICIONÁRIA DO MAGISTRADO

Foi demonstrado em tópico posterior como as decisões em julgamento de fornecimento de medicamentos costumam ser fundamentadas exclusivamente nos preceitos fundamentais da Constituição relacionados à saúde, especialmente os artigos 6º e 196 do referido dispositivo, de tal forma que a sentença obriga o Estado a fornecer insumos que podem não ser regulados pela ANVISA e outros órgãos fiscalizadores, praticando o juiz o chamado “ativismo judicial”.

 Esse fenômeno mais uma vez ocorreu, desta vez em ação movida contra o estado de Minas Gerais, que demandava a dispersão do medicamento ‘mimpara 30 miligramas’, utilizado por pacientes com insuficiência renal que apresentavam hiperparatireoidismo secundário. Apesar do magistrado ter deferido o pedido, houve reforma na sentença sugerindo pelo indeferimento do pedido, em consonância com o Enunciado nº 6 do Fórum Permanente do Direito à Saúde do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao qual afirma que não se recomenda o deferimento de pedido de medicamentos não aprovados e testados na ANVISA (TJMG, 2010).

 Tal ação judicial chegou ao STF por meio do Recurso Extraordinário 657.718, e levou os ministros a acordarem pela seguinte tese de repercussão geral, firmada em 2019: 

1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União.

 De uma forma geral, o entendimento firmado pelo STF apenas reforça o que já era previsto em inúmeras leis infraconstitucionais quando afirma que a inexistência de registro da ANVISA impede o fornecimento de medicamentos pela via judicial. 

 A novidade está nas hipóteses permissivas para a concessão de fármacos não registrados, pois as hipóteses elencadas e relacionadas à mora irrazoável da ANVISA, são cumulativas e, ausente quaisquer dos 3 requisitos (pedido para o registro da medicação, registro em renomadas agências do exterior e a inexistência de substituto no país) não será possível deferir os pedidos feitos posteriormente.

Alguns autores possuem uma visão crítica quanto à tese ora analisada, alegando que o STF estaria criando novas hipóteses permissivas (Santos, 2019), no entanto, frisa-se que a mora administrativa da ANVISA, utilizada como critério de excepcionalidade pelo STF, leva em consideração o período máximo para analisar um pedido de regulação, o qual pode variar de 90 a 365 dias de acordo com o artigo 19-R da Lei 8.080/1990:  

A incorporação, a exclusão e a alteração a que se refere o art. 19-Q serão efetuadas mediante a instauração de processo administrativo, a ser concluído em prazo não superior a 180 (cento e oitenta) dias, contado da data em que foi protocolado o pedido, admitida a sua prorrogação por 90 (noventa) dias corridos, quando as circunstâncias exigirem.

Para fins didáticos, reitera-se que o artigo 19-Q acima mencionado é o dispositivo referente à necessidade de a CONITEC avaliar a incorporação de novos medicamentos no âmbito do SUS.

Isto posto, é perceptível que, caso haja desacordo com o prazo legalmente estipulado, é plenamente possível interpor ação judicial para requerer o medicamento, haja vista não só o direito fundamental à saúde como o não cumprimento das obrigações da ANVISA no prazo previsto em lei. Porém, trata-se tal fato de situação excepcional, sendo a regra a não concessão de fármaco não regulado no órgão.

Ademais, a mora administrativa não é o único requisito abarcado pela decisão, tendo outros 3 que seriam o pedido para o registro da medicação, o registro em renomadas agências do exterior e a inexistência de substituto no país. Tais requisitos são dependentes entre si, ou seja, cumulativos, de tal forma que a inexistência de um deles no caso concreto torna inválido o ajuizamento de ação.

A legitimidade passiva da União nesses casos também é fato suscitado no julgado do STF, sendo as ações relacionadas a fármacos não regulados de competência da Justiça Federal (Santos, 2019), fato esse que pode contribuir significativamente para a diminuição de ações movidas em face dos Municípios e dos Estados, que teriam que arcar com os custos das medicações.

Vale ressaltar também que o ministro relator Roberto Barroso reforça a necessidade de que o Poder Judiciário baseie suas decisões em estudos técnicos e científicos: 

Nesse contexto, afirmo que as políticas do Sistema Único de Saúde são elaboradas com fundamentação na Medicina Baseada em Evidências Científicas e, por isso, deveria o Poder Judiciário utilizar os seus critérios para decidir demandas relacionadas às prestações de assistência à saúde, em especial quando se tratar de tratamentos não respaldados pelos órgãos e entidades responsáveis pelo fomento e pela fiscalização dos serviços de saúde no País. 

Dessa forma, resta evidente que o entendimento firmado no julgamento busca restringir/limitar as decisões em sede de assistência médica de modo que o magistrado leve em consideração não só a Constituição, mas sim o regramento previsto pelos órgãos fiscalizadores quanto aos fármacos.

Em síntese, apesar do Supremo ter elencado algumas hipóteses permissivas quanto aos medicamentos não regulados, essa decisão pacificou um tema polêmico e divergente entre os juristas, permitindo assim que as decisões futuras possam ser unificadas e o número de decisões proferidas com fulcro exclusivo na constituição seja reduzido, fazendo com que a Administração Pública não tenha mais que custear medicamentos não regulados com a mesma frequência de antes do julgamento da tese de repercussão geral, dado que os magistrados nas instâncias inferiores precisarão observar a decisão tomada pelo STF acerca do tema, além dos dispositivos legais já existentes.

4.2.1 O Tema de Repercussão Geral nº 500 aplicado nos casos concretos: decisão judicial sobre o insumo “EPIPEN”

 Posto o teor do Tema de Repercussão Geral nº 500, faz-se necessário vislumbrar como os magistrados vêm se posicionando na prática frente ao entendimento postulado pelo STF.  Em um caso interessante julgado em primeira instância na 3ª Vara da Fazenda Pública do Distrito Federal, o autor entrou com ação contra o Distrito Federal obrigando-o a fornecer a adrenalina EPIPEN para seu tratamento de saúde, solicitação a qual foi proferida em sede de antecipação de tutela para a parte requerente. Posteriormente, ao julgar a apelação cível interposta pelo Distrito Federal, a decisão final foi a seguinte: 

APELAÇÃO CÍVEL. NOVO JULGAMENTO APÓS RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CPC. ARTS. 1.040 e 1.041. TEMA 500. STF. OBRIGAÇÃO DE FAZER. DIREITO À SAÚDE. MEDICAMENTO SEM REGISTRO NA ANVISA. EPIPEN. ADRENALINA. ALERGIA ALIMENTAR. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. CASSAÇÃO. RECURSO RECEBIDO NO DUPLO EFEITO. SUS. EXISTÊNCIA DE MEDICAMENTOS E TRATAMENTOS SIMILARES. EXCEPCIONALIDADE. NÃO CONFIGURAÇÃO. 1. Ausente decisão de antecipação de tutela em vigor, é inviável o recebimento da apelação apenas no efeito devolutivo (CPC, art. 1.012 § 1º, V).  2. O STF, ao julgar o Tema 500 da repercussão geral (RE 657.718), decidiu que: […] “1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido de registro (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União” (RE 657718, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 22/05/2019, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-267  DIVULG 06-11-2020  PUBLIC 09-11-2020). 3. Ausente registro na ANVISA para a apresentação requerida do fármaco, o fornecimento excepcional em demanda judicializada depende do preenchimento concomitante dos três requisitos estabelecidos no Tema 500 pelo STF. 4. A adrenalina é um fármaco dispensado para tratamento, dentre outras, de reações alérgicas do tipo anafiláticas severas e potencialmente fatais. Comumente é injetável. A EPI-PEN, como o nome indica, é uma caneta de aplicação, sendo uma marca comercial de propriedade de um fabricante estrangeiro. Não tem registro na Anvisa e custa muito mais do que as alternativas disponíveis, não sendo cabível o seu fornecimento por determinação judicial, por conveniência do paciente. 5. Julgam-se prejudicadas as preliminares de ilegitimidade passiva, já decidida em sede de agravo interno, e de ausência de interesse processual ante a improcedência do pedido contido na petição inicial. 6. Preliminares prejudicadas. No mérito, recurso conhecido e provido.  (Acórdão 1654565, 07047476220198070018, Relator: DIAULAS COSTA RIBEIRO, 8ª Turma Cível, data de julgamento: 24/1/2023, publicado no PJe: 7/2/2023. Pág.: Sem Página Cadastrada.).

A apelante em suas preliminares alegou ilegitimidade passiva nos termos do item 4 Tema 500 do STF, uma vez que este tipo de ação deveria ser interposta em face da União. Em relação ao mérito, declarou sua desobrigação em conceder medicamento sem registro na ANVISA, sem o pedido para registro e que possui substituto disponibilizado no SUS.

O desembargador Diaulas Costa em seu voto entendeu que o caso realmente se encaixava nos termos do Tema 500, uma vez que até o momento do julgamento da apelação, haviam 4 processos relacionados ao fármaco na ANVISA e apenas 1 detinha o registro do  órgão, bem como o RENAME do SUS só tinha em seu registro a solução injetável de 1mg/ml do fármaco em questão. Além da ausência de registro, o medicamento apresentava um custo exacerbado para que fosse fornecido judicialmente (cerca de 600 dólares), sendo que haviam outras variedades disponibilizadas na rede pública.

Fica evidenciado no caso a importância do Tema nos casos concretos na medida em que o juiz profere sentença destacando se há ou não pedido de registro nos órgãos competente, bem como demonstra a existência de opções mais acessíveis no mercado, o que diminui os custos do Estado com o custeio de medicamentos à população.

Importante frisar a expectativa de que os magistrados na primeira instância passem a se atentar ao Tema 500, uma vez que o caso em comento teve o Tema como fundamento em instâncias superiores, o que não deixa de ser mérito do julgado, porém, como boa parte das demandas judiciais relacionadas ao fornecimento de medicamentos se encontra na 1ª instância, é importante que nos casos envolvendo fármacos não registrados hajam decisões em consonância com os entendimentos do STF.

4.3 A ADI 5501 E A FOSFOETANOLAMINA SINTÉTICA

Outra decisão importante do STF e cronologicamente anterior ao Tema 500, é o julgamento da ADI 5501, o qual ocorreu em 2016, quando a ex-presidente Dilma Rousseff sancionou a lei 13.269 e autorizou pacientes portadores de neoplasias malignas a utilizarem da fosfoetanolamina sintética como forma de tratamento, porém, no mês seguinte, o STF julgou a lei como inconstitucional, por se tratar de medicamento não regulado pela ANVISA e que violava os preceitos da Constituição Federal: 

SAÚDE – MEDICAMENTO – AUSÊNCIA DE REGISTRO – INCONSTITUCIONALIDADE. É inconstitucional ato normativo mediante o qual autorizado fornecimento de substância, sem registro no órgão competente, considerados o princípio da separação de poderes e o direito fundamental à saúde – artigos 2º e 196 da Constituição Federal.

Tal decisão se mostrou crucial para prevenir eventual crescente de demandas judiciais solicitando o medicamento, que já chegava a 14 mil. Ademais, quanto às ações já ajuizadas, algumas tiveram liminares concedidas, porém outras tiveram as liminares suspensas pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, justamente por se tratar de medicamento sem registro pela ANVISA.

Apesar de não se tratar, neste caso, de uma decisão do Poder Judiciário e sim de uma lei sancionada pelo Legislativo, é interessante destacar a atuação do STF em prontamente declarar inconstitucional o referido regramento, tendo em vista a quantidade de ações judiciais que já estavam em trâmite para a aquisição da fosfoetanolamina e que ainda poderiam surgir caso a ADI não tivesse sido proposta e deferida. Observa-se aqui a plena atuação do STF enquanto guardião da Constituição e seus preceitos. 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 Por meio deste estudo é possível ter um vislumbre de como a atuação do Supremo Tribunal Federal posta-se eficaz em alguns aspectos relacionados à limitação do ativismo judicial em matéria de direito à saúde, uma vez que se buscou analisar especificamente a judicialização da saúde com foco em solicitações de medicamentos não regulados pela ANVISA.

 O direito à saúde, notoriamente, é direito fundamental a ser garantido a todos os cidadãos por meio da atuação conjunta dos órgãos do Poder Executivo e Legislativo, devendo estes garantir condições de que as pessoas possam ter acesso a tratamentos de saúde de forma célere e igualitária.

 Porém, o que se observa na prática é a ineficácia do poder público em lidar com a alta demanda da população para tratamentos de saúde, especialmente o acesso a medicamentos, ocasionando o sucateamento do sistema público de saúde e, mediante tal insatisfação, os pacientes recorrem ao judiciário para que se posicionem no sentido de efetivar a garantia dos direitos constitucionalmente previstos dos litigantes, a já abordada judicialização da saúde.

 Essa demanda judicial, na grande maioria dos casos, é analisada pelo magistrado unicamente sob a ótica da Carta Maior, desconsiderando aspectos técnicos e leis infraconstitucionais que abordam a temática dos medicamentos de forma mais específica, bem como circunstâncias concretas que envolvem a administração e aplicação de recursos por parte do Poder executivo, atuando como uma espécie de juiz legislador e abrindo portas ao chamado ativismo judicial, em razão da interpretação extensiva dos dispositivos constitucionais para obrigar o Poder Público a cumprir decisões judiciais a respeito do tema.

 Tal situação é preocupante, na medida em que os medicamentos experimentais ou que não gozam de registro junto à ANVISA para serem regularmente distribuídos no país não podem ser deliberadamente concedidos aos requerentes visando o usufruto do preceito constitucional da saúde, devendo ser analisados nos casos concretos outros critérios infraconstitucionais para sanar a lide.

 Em face da ausência de fundamentação mais criteriosas e com teor técnico nas decisões judiciais a respeito da concessão de medicamentos não regulados no âmbito nacional, o STF decidiu, em sede do Recurso Extraordinário nº 657718, que, além da regra geral ser a não concessão de medicamento não registrado na ANVISA, para esta regra ser excepcionada existem alguns critérios a serem cumpridos, conforme demonstrado em tópico anterior.  A decisão da última instância do judiciário foi capaz de surtir impactos significativos no mundo jurídico, na medida em que os juízes passaram a observar as diretrizes do Tema de Repercussão Geral nº 500 para fundamentar suas decisões e não se ater exclusivamente à Constituição Federal, de modo que, em cada caso, será vislumbrada a necessidade ou não de conceder medicamentos que não gozem de registro, conforme bem demonstrado no caso da “EPIPEN”.

 A deliberação do Supremo claramente não resolve a temática da judicialização da saúde como um todo, vez que tal tópico e possui diversas vertentes que geram divergências no âmbito jurídico, mas foi crucial para que pelo menos as situações específicas de medicamentos não regulados pela ANVISA fosse pacificada e critérios de decisão fossem estipulados para lidar com tais demandas, afastando consideravelmente a presença do ativismo judicial nas decisões referentes ao tema.

 Dessa forma, presente trabalho buscou demonstrar justamente a importância das decisões da Corte nesses casos específicos e que eram objeto de muita discordância, baseandose sumariamente em pesquisas de periódicos científicos a respeito do tema, casos concretos e leis que abordassem a temática, para demonstrar a teoria e seu impacto na prática.

 O tema suscitado pelo STF é constantemente objeto de fundamentação jurídica em decisões recursais de segunda instância, na medida das peculiaridades do caso, havendo assim maior especificidade nas decisões e o defasamento de fundamentações voltadas unicamente para a Carta Magna, havendo com isso avanços significativos em um tema fruto de constantes divergências entre os juristas.

Assim, denota-se fundamental o entendimento firmado pela Suprema Corte, pois os percalços enfrentados na temática da judicialização da saúde precisam, de algum modo, serem delimitados, para que não hajam decisões conflitantes com a legislação em vigor e haja harmonia jurídica, ao mesmo tempo em que o direito à saúde é respeitado e garantido à população, especialmente aqueles que detêm pouco poderio financeiro e necessitam do SUS para viver com a dignidade que lhes é inerente.

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1Graduanda em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA).

2Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará – UFPA, na linha Constitucionalismo, Democracia e Direitos Humanos. Graduado em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará – CESUPA. Membro do Grupo de Pesquisa (CNPq) Teorias Normativas do Direito, coordenado pelo Prof. Dr. Saulo Monteiro Martinho de Matos. Integrante do Grupo de Pesquisa (CNPq) Pura Teoria do Direito. Membro do Grupo de Pesquisa (CNPq), Teorias da Democracia, coordenado pelo Prof. Dr. André Luiz Souza Coelho. Tem como áreas de experiência Direito, Ética, Filosofia Moral e Política. Atualmente é Professor de Introdução ao Estudo do Direito, Teoria Geral da Constituição e Direitos Humanos no Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA).