MESENTERIC ISCHEMIA: A CASE REPORT
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202409082216
Leonardo Capocci Vida Leal
Vinicius Hoffmann da Silva
Orientação: Prof. Dr. Eduardo Henrique Stefano
Co-orientação: Prof. Dr. Sidney Rodrigues Proença.
RESUMO
A isquemia mesentérica abrange um grupo de mecanismos obstrutivos que levam a restrição de fluxo sanguíneo aos intestinos, podendo levar à necrose. A depender de sua etiologia e fisiopatologia, pode ser classificada em aguda ou crônica, além de oclusiva ou não oclusiva. Assim, trata-se de uma condição potencialmente fatal, cujo diagnóstico precoce e individualizado está diretamente ligado ao melhor prognóstico dos pacientes, devido a maior eficácia terapêutica. O objetivo deste artigo é descrever um relato de caso de um paciente epidemiologicamente atípico afetado pela doença, relacionando o caso com o que é descrito na literatura. Trata-se de um paciente do sexo masculino, 34 anos, que apresenta inicialmente uma isquemia mesentérica crônica, mas que agudizou devido ao elevado grau de obstrução vascular. Iniciou com dor abdominal difusa, intensa e pós-prandial, caracterizando uma claudicação abdominal por restrição de oxigênio aos intestinos, achado comum na doença. A angiotomografia detectou a presença de um trombo que se estendia do arco da aorta até a emergência da artéria mesentérica superior, passando pelo tronco celíaco, confirmando o diagnóstico. O paciente passou por internações recorrentes, apresentando recidiva da obstrução de forma aguda, evoluindo para prognóstico desfavorável. Ainda é um desafio diagnóstico aos profissionais, apesar da evolução dos métodos de diagnóstico e tratamento, visto que ainda é uma condição de altíssima mortalidade, necessitando de maiores estudos randomizados. O presente trabalho contextualiza a doença com base na literatura atual, relacionando a prática que é apresentada no caso descrito, trazendo bases para diagnóstico e tratamento desta condição.
Palavras-chave: Isquemia Arterial Mesentérica Oclusiva. Trombose Aguda Arterial Mesentérica. Artéria Mesentérica.
ABSTRACT
Mesenteric ischemia encompasses a set of obstructive mechanisms that limit the blood flow to the intestines, possibly leading to necrosis. Depending on its etiology and physiopathology, it can be classified as either acute or chronic, occlusive or nonocclusive. Hence, it is a potentially fatal condition, whose early individualized diagnosis is closely related to a better prognosis, as it ensures greater therapeutic effectiveness. The objective of this article is to present a case report of an epidemiologically atypical patient affected by the disease, relating the case to what has been described in the literature. The patient is a 34-year-old male, initially presenting with chronic mesenteric ischemia, which became acute due to the high degree of vascular obstruction. At first, he had diffuse, intense, postprandial abdominal pain, characterizing abdominal claudication caused by insufficient oxygen in the intestines – which is commonly found in the disease. Angiotomography detected a blood clot extending from the aortic arch to where the superior mesenteric artery arises, passing through the celiac trunk, thus confirming the diagnosis. The patient was recurrently hospitalized, with acute obstruction relapse progressing to an unfavorable prognosis. Its diagnosis still poses a challenge to professionals, despite the evolution in diagnostic and treatment methods, as it is still a very high-mortality condition. Thus, further randomized studies are needed. This paper contextualizes the disease based on the current literature in relationship with the practice presented in the case report, providing the bases for diagnosing and treating this condition.
Keywords: Occlusive Mesenteric Arterial Ischemia. Acute Mesenteric Arterial Thrombosis. Mesenteric Artery.
1 INTRODUÇÃO
A isquemia mesentérica (IM) é uma emergência cirúrgica vascular potencialmente fatal, sendo a mortalidade variável entre 50% e 80% dos casos. Trata-se de uma restrição de fluxo sanguíneo intestinal, que pode ser classificada em aguda e crônica considerando o tempo de instalação da doença. Consiste em um quadro sindrômico de abdome agudo isquêmico, onde há hipoxemia com consequente restrição nutricional, o que leva ao infarto intestinal por insuficiência vascular.2,3,7
É uma doença rara, representando um caso para cada 1.000 internações, sendo mais prevalente no sexo feminino em uma proporção três vezes maior quando comparada ao sexo masculino. Tem sido observada uma maior incidência em pacientes acima dos 50 anos, confirmando que pacientes idosos têm maior risco de desenvolver a doença.2,3,7
A vascularização intestinal é formada pelos ramos originados da artéria aorta em sua porção abdominal. Assim, o tronco celíaco, a artéria mesentérica superior e a artéria mesentérica inferior são os principais vasos que emitem seus ramos e estabelecem o fluxo íntegro de sangue para o completo funcionamento do trato gastrointestinal. O vaso com maior importância clínica na IM, tanto aguda (IMA) quanto crônica (IMC), é a artéria mesentérica superior, que se localiza inferiormente ao tronco celíaco e superiormente à artéria mesentérica inferior, sendo responsável pela irrigação de parte do pâncreas, todo o intestino delgado e parte do cólon.4
A IM pode ser definida de acordo com o tempo de instalação, configurando em IMA ou IMC. Também pode-se considerar a isquemia quanto à forma de interrupção do fluxo sanguíneo, sendo oclusiva ou não oclusiva. A IMA oclusiva é causada, em 50% dos casos, por processo emboligênico, e em 25%, por processos trombóticos. Já na IMA não oclusiva, o mecanismo de obstrução se dá pelo vasoespasmo arterial, sendo mais comum em pacientes em estado de choque, sepse ou aqueles em uso de vasoconstritores.2
Em paralelo, a IMC acontece com frequência muito menor, correspondendo a 5% de todas as IM. Ela é mais comum em pacientes com comorbidades que elevam o risco cardiovascular, como hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo 2 ou intervenções cirúrgicas prévias cardíacas ou vasculares.2,5 Atualmente, estima-se que a IMC sozinha seja responsável por um caso a cada 100.000 internações. Tal estimativa pode ser considerada relativamente baixa, devido à existência de uma extensa rede de colaterais que mantêm o fluxo sanguíneo necessário, mesmo com a presença de estenose.1,2,6
A principal etiopatogenia da IMC é o processo trombótico por formação aterosclerótica. Devido à interrupção gradual do fluxo sanguíneo, é uma patologia que apresenta maior dificuldade diagnóstica, visto que os pacientes se apresentam assintomáticos na fase inicial da doença. Justamente devido a essa etiologia, a incidência da IMC acompanha a incidência da doença aterosclerótica (DA), acometendo mais frequentemente o sexo feminino e idosos, embora apenas 6% dos portadores da DA tendem a desenvolver IMC.5,6
O quadro clínico da IM é inicialmente inespecífico, abrindo uma ampla gama de diagnósticos diferenciais. O que caracteriza a clínica dessa doença é a desproporcionalidade da dor abdominal ao exame físico. Outras queixas podem estar presentes devido às condições cardiovasculares prévias que elevam o risco de IM. Na IMC, é comum haver dor abdominal pós-prandial, o que pode confundir com outros quadros de dor abdominal.2,15
O objetivo deste trabalho foi relatar um caso epidemiologicamente atípico de IM, constatando sua relevância clínica e cirúrgica, visto que se trata de uma condição incomum e com uma alta mortalidade. Assim, propõe-se, através de uma correlação entre a literatura atual e o caso relatado, estabelecer uma discussão sobre os fatores que influenciam tanto o diagnóstico quanto um melhor prognóstico dos pacientes que são acometidos pela doença.
2 METODOLOGIA
O relato de caso foi desenvolvido a partir da análise de prontuários e exames complementares, que foram obtidos mediante evolução clínica do paciente em questão. Os dados foram fornecidos, e sua coleta autorizada, pela Rede de Assistência à Saúde Metropolitana de Sarandi. Sendo assim, o estudo se pauta em características individual, descritiva e observacional. Para a realização da revisão bibliográfica, foram utilizadas as plataformas Eletronic Library Online (SciELO) e PubMed, além de livros-texto, viabilizando a integração de evidências científicas com o quadro a ser relatado pelo presente estudo.
As etapas de construção do artigo foram: elaboração do pré-projeto, enviado para o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Unicesumar por meio da Plataforma Brasil, e subsequente autorização e aprovação deste para o seguimento do trabalho. O assentimento do CEP foi consolidado por meio de seu parecer consubstanciado, no qual está contido o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) 49187121.5.0000.5539. Foi obtida a autorização de dispensa de TCLE pela Rede de Assistência à Saúde Metropolitana de Sarandi e consequentemente justificada ao CEP devido ao óbito do paciente contextualizado no estudo. Dessa forma, asseguramos a plena confidencialidade das informações obtidas.
3 RELATO DE CASO
Paciente A. L. G. S., 34 anos, sexo masculino, admitido no pronto socorro com queixa de dor abdominal há 24 horas em região epigástrica e hipocôndrio direito (HCD), associada a vômitos, e dor em membros inferiores (MMII) há um ano. Paciente em sobrepeso, tabagista importante e etilista esporádico, negando alergias e história familiar de trombose. Ao exame físico inicial, apresentava abdome globoso, flácido, doloroso à palpação difusa, peristalse reduzida e dor à descompressão brusca (DB). Em MMII, apresentava dor à palpação, associada a redução de pulsos poplíteo e pedioso à esquerda e redução de temperatura deste membro. Demais sistemas sem alterações significativas.
Diante do quadro de abdome agudo, foi iniciado o tratamento de suporte inicial e foram solicitados exames complementares. A tomografia (TC) de abdome evidenciou a presença de extenso trombo arterial estendendo-se do arco aórtico à artéria mesentérica superior, determinando suboclusão desta e do tronco celíaco (Figura 1). Sendo assim, optou- se por anticoagulação plena e observação clínica.
Figura 1. Tomografia computadorizada de abdome, evidenciando trombo que se estende do arco da aorta até a artéria mesentérica superior, passando pelo tronco celíaco.
Fonte: foto do autor.
O paciente evoluiu com piora do estado geral, intensificação da dor abdominal e fezes escurecidas, sugerindo hemorragia digestiva alta. Perante a deterioração do quadro clínico (mesmo com hematócrito e hemoglobina normais), por ser um paciente jovem, optou-se por tratamento endovascular com trombólise.
O paciente foi submetido a punção de artéria femoral direita e passagem de um cateter pigtail, posicionado logo acima do tronco celíaco. Foi realizada dose de ataque de 5 mg de Actlyse, com diminuição do trombo em arteriografia de controle e melhora imediata da dor abdominal, sendo então encaminhado à UTI para monitorização e infusão contínua de 20 mg de Actlyse em 24 horas. A arteriografia de controle após a dose de manutenção evidenciou diminuição significativa do trombo e melhora da perfusão do tronco celíaco e artéria mesentérica superior, como demonstrado nas Figuras 2 e 3. Evoluiu assintomático e recebeu alta hospitalar 48 horas após a trombólise com anticoagulação plena com Xarelto e antiagregação com clopidogrel.
Figura 2. Arteriografia pré-trombólise.
Fonte: foto do autor.
Figura 3. Arteriografia de controle 24 horas pós-trombólise.
Fonte: foto do autor.
No dia seguinte à alta, o paciente foi reinternado no serviço de origem, com retorno da dor, distensão abdominal e sinais de peritonite. Foi realizada nova tomografia, que evidenciou espessamento parietal de alças intestinais e aspecto em “empilhamento de moedas” e trombo residual em aorta. Foi indicada laparotomia exploratória, que evidenciou necrose segmentar do intestino delgado, necessitando a realização de enterectomia segmentar. O paciente evoluiu com boa recuperação, recebendo alta nove dias após a cirurgia, com retorno da anticoagulação plena.
O paciente realizou seguimento ambulatorial assintomático. Porém, após sete meses, retornou ao pronto socorro com queixa de dor abdominal difusa, de pior intensidade em flanco e hipocôndrio direitos, associada a vômitos, com exacerbação do quadro após refeição, melhorando apenas com administração de morfina. Ao exame físico, apresentava-se abdome doloroso difusamente, com sinais de Murphy, Bloomberg e descompressão brusca, todos negativos, caracterizando a desproporcionalidade da dor abdominal ao exame físico, comum na IM. A figura 4 demonstra uma TC contrastada, evidenciando trombo aórtico que se estende até o tronco celíaco e emergência da artéria mesentérica superior, realizada 10 meses após trombólise e anticoagulação. Foi realizado tratamento clínico com jejum, hidratação, analgesia e anticoagulação, com melhora do quadro.
Figura 4. Angiotomografia computadorizada com contraste, 10 meses após trombólise e anticoagulação.
Fonte: foto do autor
Após nova internação por dor abdominal, com piora no período pós-prandial, associada a diarreia aquosa, foi indicado tratamento endovascular com angioplastia e implante de stent em artéria mesentérica superior. O procedimento foi realizado por punção de artéria radial direita e sem intercorrências. A alta hospitalar ocorreu no segundo dia de pós- operatório e, no mesmo dia, reinternou com diarreia e vômitos. Foi realizada nova tomografia, que evidenciou stent pérvio e bem-posicionado, sem sinais sugestivos de isquemia de alças.
Na investigação da diarreia infecciosa, a colonoscopia demonstrou colite e ileíte intensa, com lesões erosivas em cólon ascendente e ceco. Após iniciada a corticoterapia, com melhora do quadro clínico, o paciente recebeu alta hospitalar e foi encaminhado ao acompanhamento ambulatorial e acompanhamento da gastroenterologia.
Após cerca de um mês de seguimento ambulatorial, o paciente foi reinternado com novo quadro de abdome agudo isquêmico e parada de eliminação de fezes e flatos há dois dias. Enterorressonância realizada no dia anterior à internação demonstrou espessamento parietal de íleo terminal e estenose na transição jejuno-ileal. O paciente evoluiu com instabilidade clínica, havendo leucocitose, aumento do lactato sérico, LDH e aumento expressivo das transaminases, além de acidose metabólica, como mostram as Tabelas 1 e 2. Portanto, foi indicada laparotomia exploratória de urgência. No intraoperatório (Figuras 5 e 6), evidenciou- se necrose extensa de fígado, intestino delgado abrangendo toda a extensão do jejuno e íleo, cólon ascendente e transverso, com duas perfurações no intestino delgado e coleção purulenta em mesogástrio e fundo de saco.
O paciente permaneceu instável durante todo o procedimento, com necessidade de drogas vasoativas em doses crescentes. Diante de um quadro incompatível com a vida, a laparotomia exploratória foi interrompida, com o paciente evoluindo a óbito no dia seguinte.
Figuras 5 e 6. Intraoperatório da laparotomia exploratória de urgência.
Fonte: fotos do autor.
4 DISCUSSÃO
A IM é um quadro grave e de altíssima mortalidade. Ela se baseia em uma lesão tecidual devido a uma obstrução do fluxo sanguíneo, seja por causas oclusivas ou não oclusivas, que levam à redução do suprimento de oxigênio, podendo levar a necrose. Trata-se de uma doença rara, com quadro clínico relativamente inespecífico, tornando o diagnóstico impreciso e o tratamento muitas vezes ineficaz, visto que existem muitas condições que compartilham dos mesmos sintomas, que são mais prevalentes.1,2,6,7,8
Este caso contraria, em parte, certos dados epidemiológicos da IMC, visto que o relato aborda um paciente jovem, de 34 anos, do sexo masculino. Contudo, apresenta fatores de risco que apoiam o diagnóstico, entre eles o tabagismo importante e Do sobrepeso, além de uma forte suspeita de estado de hipercoagulabilidade. Nesse caso, uma eventual trombofilia teria relação direta com a formação de diversos trombos que se formaram e levaram ao desenvolvimento da isquemia em diversas ocasiões, mesmo com o uso contínuo de anticoagulantes. Por outro lado, estes impediram a confirmação de tal hipótese, visto que para diagnóstico definitivo deveriam ser suspendidos tais medicamentos, o que agravaria mais ainda o quadro do paciente.2,6,8
Na IMA, há um infarto intestinal de rápida instalação, que tem como etiologias mais frequentes: (1) eventos emboligênicos, correspondendo a aproximadamente 50% dos casos, em que um êmbolo, gerado por uma condição vascular prévia, se desloca pela circulação e vem a ocluir a luz vascular e interromper a passagem de sangue; (2) eventos vasoconstrictivos, correspondendo a 20% dos casos, sendo configurada em uma isquemia não oclusiva, onde se observa um intenso vasoespasmo que impede a passagem de sangue para o intestino, sendo mais comum em pacientes instáveis, na presença de choque; (3) trombose arterial da artéria mesentérica superior, correspondendo a 15% dos casos, em pacientes com risco elevado para a formação de aterosclerose, sendo normalmente pacientes com elevado risco cardiovascular, estabelecido por tabagismo, dislipidemia, história familiar, hábitos de vida, entre outros; por último, (4) trombose venosa, sendo a etiologia mais rara, em que um trombo de veia mesentérica superior aumenta a pressão sobre a parede intestinal, que consequentemente altera o gradiente pressórico do sistema arterial, obstruindo-o e gerando isquemia.1,2,3,6,8
Já na IMC, o fluxo sanguíneo é interrompido de forma gradual, o que determina uma clínica mais branda em fase inicial, e mais grave em fase terminal, colaborando para uma maior dificuldade diagnóstica. A principal etiologia é o evento aterosclerótico, responsável por mais de 90% dos casos de IMC, sendo os fatores de risco semelhantes aos descritos anteriormente em IMA por trombose arterial, podendo estar associado a estados de hipercoagulabilidade, como a trombofilia, por exemplo.1,3,5,9
A aterosclerose é um processo multifatorial e complexo, possuindo diversos fatores de risco associados, dentre eles a hipertensão, tabagismo e sedentarismo, todos apresentados pelo paciente relatado, embora jovem. A patogenia da doença consiste na lesão ou disfunção da célula endotelial, determinada pela presença e integração dos fatores de risco. Assim, a deposição de colesterol e o recrutamento de células inflamatórias e plaquetas criam um ambiente pró-inflamatório e pró-trombótico, gerando uma condição de instabilidade hemodinâmica (desidratação e/ou queda do débito cardíaco) ou ruptura da placa aterosclerótica, que podem ser o motivo da agudização da IM apresentada pelo paciente em estudo.1,6,17
A vascularização intestinal consiste no suprimento arterial, que se dá principalmente através do tronco celíaco, artéria mesentérica superior e artéria mesentérica inferior, sendo a drenagem venosa feita para o sistema venoso portal, paralelamente à circulação arterial. A artéria mesentérica superior origina a artéria pancreaticoduodenal inferior, artéria cólica média, artéria cólica direita, artéria ileocólica e muitos ramos jejunais e ileais. Os ramos jejunais e ileais suprem o jejuno e o íleo, respectivamente, enquanto a artéria ileocólica supre o íleo distal, ceco e cólon ascendente proximal.4,10
O tronco celíaco dá origem às artérias hepática comum, esplênica e gástrica esquerda, fornecendo fluxo sanguíneo para o estômago, fígado, baço e pâncreas e colaborando como circulação colateral quando o fluxo sanguíneo da artéria mesentérica superior é reduzido (Figura 7). No paciente relatado, houve obstrução da artéria mesentérica superior e do tronco celíaco, comprometendo assim a circulação principal e colateral.4,10
Considerando o sistema de circulação colateral, a obstrução de apenas uma artéria não necessariamente contribui para a instalação da doença. Porém, a obstrução de duas artérias do sistema esplâncnico (Figura 7) é suficiente para reduzir o fluxo sanguíneo em pelo menos 50% e gerar repercussões clínicas. 4,16 Por outro lado, em certos casos documentados na literatura, houve obstrução apenas da artéria mesentérica superior, levando a IM, principalmente em pacientes que já haviam sido submetidos a cirurgias prévias, entre elas a ressecção intestinal e reparo de aneurisma de aorta.4,10
Levando em consideração a anatomia vascular intestinal, conseguimos compreender as regiões afetadas pela IMC apresentada inicialmente pelo paciente relatado, com consequentes repercussões clínicas com dor abdominal intensa, persistente e pouco responsiva a analgésicos. Essa dor era pós-prandial e perdurava cerca de uma a três horas, devido ao consumo de oxigênio aumentado pela digestão, caracterizando claudicação abdominal. Além disso, temos uma discrepância entre a dor intensa referida pelo paciente e os poucos achados do exame físico, configurando uma das principais características da doença. Pode ainda haver náuseas, vômitos e diarreia, levando assim à perda de apetite e redução de ingesta alimentar.
Esse quadro gera perda de peso, devido à síndrome disabsortiva, que é causada pela isquemia.2,5,6,11,15
A IMC pode se desenvolver subitamente para uma IMA oclusiva, com interrupção total do fluxo sanguíneo em pelo menos duas outras artérias do sistema esplâncnico. Assim, a dor abdominal piora consideravelmente, associada à constipação e irritação peritoneal por necrose. Ademais, há uma piora no prognóstico do paciente, visto que cerca de 70 a 90% evoluem para óbito. Muito frequentemente, são necessárias grandes ressecções de alças intestinais, tornando tais pacientes dependentes da alimentação via parenteral ou mesmo enteral.2,6
O diagnóstico é, na grande maioria das vezes, feito através da exclusão de patologias mais comuns, visto que a clínica apresentada pelo paciente se manifesta de forma ampla e inespecífica. Inicialmente, para fazer tal diagnóstico, são solicitados exames laboratoriais, entre eles o hemograma, coagulograma, lipase, amilase, ácido láctico, enzimas cardíacas, transaminases, LDH e gasometria arterial. No caso do paciente relatado, houve alterações significativas em diversos exames laboratoriais. Porém, como tais exames não são confirmatórios, são necessários exames de imagem, incluindo o padrão ouro para diagnóstico: a AngioTC (sensibilidade 93% e especificidade 96%), que foi realizada junto com a arteriografia. Além destes, também podem ser utilizados o eco-Doppler e a ressonância magnética.6,12,13
A Angio TC permite observar as estruturas anatômicas mais amplamente. Uma de suas principais vantagens é a orientação do plano de revascularização (como a angioplastia), caso seja essa a abordagem mais adequada. Além disso, é possível diferenciar entre etiologias trombóticas e embólicas dentro de um contexto clínico de IMA ou IMC. Técnicamente, é observada uma falha de enchimento no local de estenose vascular, determinando a hipocaptação do contraste e confirmando a presença de trombo ou êmbolo no interior do vaso, como mostrado nas Figuras 3 e 4. Também é possível observar as paredes intestinais, que podem estar espessadas com aspecto de empilhamento de moedas, demonstrando uma obstrução funcional, o que indicaria um pior prognóstico.6,12
Comparada a angioTC, a arteriografia é mais invasiva e atualmente não muito utilizada para diagnóstico, exceto no caso das IM não oclusivas. Ela é mais utilizada na avaliação terapêutica por cateterismo e angioplastia, avaliação do seguimento de trombolíticos e substâncias vasodilatadoras, e em pacientes com suspeita de IMC, nos quais os métodos não invasivos não foram conclusivos.2,12
O eco-Doppler tem certa limitação quando utilizado para diagnóstico da IMA, visto que em um contexto de abdome agudo, as imagens podem não ser fidedignas. Entretanto, na IMC, consiste em um exame de primeira linha, pois é possível avaliar o fluxo sanguíneo dos segmentos com estenose.6,14
Em uma oclusão aguda, a necrose da mucosa entérica ocorre dentro de quatro horas após isquemia e, depois de cerca de seis a oito horas, ocorre necrose de toda parede intestinal. Justamente por isso o diagnóstico da IMA deve ser precoce, para que haja uma melhor eficácia do tratamento.6,14
Muitos estudos têm tentado padronizar uma abordagem ideal ao paciente com IM. Atualmente, é preconizado que pacientes hemodinamicamente instáveis sejam primeiro estabilizados para posteriormente receberem uma conduta adequada. A estabilização é inicialmente feita por analgesia e reposição de fluidos para alívio da dor e correção de débito urinário, volemia e desequilíbrios hidroeletrolíticos; eventualmente, se necessário, hemoderivados podem ser usados. A antibioticoterapia de amplo espectro pode ser realizada com o objetivo de evitar translocação bacteriana decorrente da isquemia.6,14
O tratamento a ser empregado dependerá do tempo de obstrução em que o paciente se encontra (agudo ou crônico) e do grau de obstrução do vaso. Caso haja uma obstrução parcial, deve-se priorizar o tratamento conservador; já em uma obstrução completa, prioriza-se o tratamento cirúrgico. O objetivo do tratamento é restabelecer o fluxo sanguíneo adequado e evitar que novos trombos sejam formados, embora na prática tal prevenção não seja tão eficaz. A abordagem invasiva pode ser feita de três formas: endovascular, cirurgia aberta e abordagem híbrida.6,14
Na terapia endovascular, é importante que sejam descartados sinais de peritonite e necrose. Assim, as técnicas mais utilizadas são a trombólise intracateter e angioplastia com colocação de stent. As vantagens desse método são o maior aproveitamento de tecido intestinal viável e menor incidência de complicações, enquanto sua maior desvantagem é a impossibilidade de avaliar a vitalidade e a quantidade de tecido lesado. Os anticoagulantes e antiagregantes devem ser administrados continuamente para evitar recidivas. Por outro lado, eles não garantem que a cirurgia aberta não venha a ser realizada, visto que esta permite avaliar o grau de necrose e inflamação tecidual. Ela é recomendada na literatura atual em casos com complicação, evidenciados principalmente por sinais de infecção e peritonite. Na cirurgia aberta, se houver necrose intestinal extensa, não há indicação para enterectomia. Nesse caso, opta-se por interromper a abordagem e fornecer cuidados paliativos, visto que há incompatibilidade com a vida, como ocorrido com o paciente estudado.6,13,14
5 CONCLUSÃO
O caso relatado demonstrou grande desafio diagnóstico e terapêutico de uma doença rara e relacionada com uma alta taxa de mortalidade. O paciente era jovem, do sexo masculino, e considerado epidemiologicamente atípico, embora se enquadrasse em diversos fatores de risco apresentados. Trata-se de um caso de IM com componentes agudos e crônicos, com associação de ambos os aspectos da doença. Sendo assim, o diagnóstico e o tratamento permanecem um desafio para os profissionais da atualidade, visto que o manejo deve ser individualizado e rápido.
A IM possui um quadro clínico variável. Por isso, ainda são necessárias evidências que estabeleçam melhores conexões da fisiopatologia da doença com seus sinais e sintomas, o que pode contribuir para o desenvolvimento de novos métodos de tratamento, com melhor eficácia, conduzindo os pacientes a um melhor prognóstico. Ademais, é importante compreender a anatomia envolvida na IM, para assim entender as repercussões que podem ocorrer no quadro e realizar um diagnóstico precoce, que é ponto chave na sobrevida dos pacientes acometidos, sobretudo aqueles com IMC, como foi no caso descrito.
Embora tenha havido grande avanço da medicina nas últimas décadas, ainda há escassez de informações acerca da doença na literatura atual. Sendo assim, há necessidade de mais estudos randomizados acerca do tema para reduzir a alta taxa de mortalidade ainda presente.
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