INTERRELATIONS BETWEEN QUANTIFICATION AND INTENSIFICATION IN RIVERSIDE COMMUNITIES IN OEIRAS DO PARÁ (PA)
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202412220832
Danielle de Melo Viana1
Raquel Maria da Silva Costa Furtado2
Resumo
Por meio dessa pesquisa buscamos esclarecer as interrelações que as áreas linguísticas da quantificação e da intensificação mantêm entre si, e suas significações para as comunidades tradicionais ribeirinhas, precisamente das regiões insulares, de rios e furos de Oeiras do Pará. Objetivamos, assim, descrever de que modo ocorrem, quais termos e expressões são utilizados – considerando principalmente os regionais – e quais mecanismos são dispostos para atender às intencionalidades de intensificação/quantificação dos ribeirinhos oeirenses. Desta maneira, este trabalho é relevante para a análise linguística e para/com o local de pesquisa. Sendo desdobramento da dissertação em andamento, os dados aqui utilizados fazem parte do corpus geral, obtido através de observações em 7 locais ribeirinhos e 5 entrevistas semiestruturadas com sujeitos-informantes dessas localidades. Percebemos que: a intensificação pode ser considerada como um tipo de quantificação, mas tem características distintas; muitos termos são utilizados em conjunto, sendo tanto intensificador quanto quantificador; muitos movimentos da relação quantificação/intensificação do português brasileiro são plenamente utilizados pelos ribeirinhos, como é o caso da repetição de termos e sufixação; estes sujeitos possuem um conjunto extenso de quantificadores com sentido intensificado e expressões quantificacionais intensificadas; as duas áreas muitas vezes se modificam e, até mesmo, se ligam diretamente para satisfazer a intenção do falante; sendo assim, tão relacionadas, há muitas dúvidas e ambiguidades na classificação entre uma e outra área. Portanto, é nítido que, mesmo sendo particulares, quantificação e intensificação permanecem inteiramente ligadas na língua oral dos ribeirinhos das regiões insulares, de furos e rios do município de Oeiras do Pará.
Palavras-chave: Intensificação. Quantificação. Ribeirinhos. Oeiras do Pará.
1. INTRODUÇÃO
O trabalho que se segue é um desdobramento da dissertação em andamento, denominada “A identidade sociocultural ribeirinha em Oeiras do Pará (PA) por meio do fenômeno linguístico quantificação”, do Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura, da Universidade Federal do Pará. O diferencial deste artigo no que tange a dissertação é o estudo da relação entre quantificação e intensificação, já que esse último não se constituiu como objeto principal da pesquisa devido às limitações. Deste modo, procuraremos explicitar e registrar as expressões e os quantificadores/intensificadores alinhados às intencionalidades do sujeito no âmbito da língua oral em algumas comunidades tradicionais ribeirinhas de Oeiras do Pará.
A associação do discurso/gramática com a língua oral em âmbitos linguísticos regionais é de grande importância para o clareamento do movimento linguístico feito pelos sujeitos falantes de determinadas comunidades. Algo que ainda é pouco considerado quando se analisa quantificação e intensificação. A maioria das críticas e problemáticas do estudo dessas áreas ainda se direciona ao fato de não haver análises mais concretas sobre os termos que são de fato quantificadores/intensificadores, sendo muitas vezes apenas repetidos. Porém, sabemos que ainda é impraticável uma classificação unânime do que seria a classe da quantificação.
Nossa forma de contornar essa falta de conceituação geral e bem definida das classificações é o registro e estudo da língua oral em âmbitos pouco visualizados. A análise que trazemos através deste estudo direciona-se em explanar a relação que a intensificação e a quantificação mantém entre si dentro de comunidades ribeirinhas do município de Oeiras do Pará, no interior da Amazônia. A escolha de analisar esta relação dentro dessas comunidades se dá pela necessidade de registrar os elementos linguísticos que utilizam diariamente, códigos raramente reconhecidos dentro da gramática tradicional/canônica. Desta maneira, procuramos investigar e aprofundar os estudos acerca das relações, convergências e divergências entre quantificação (quantificadores) e intensificação (intensificadores), em esfera local.
Os dados foram obtidos por meio de observações com ribeirinhos das regiões insulares, de furos e rios do Rio Araticu e de sua saída, no período de agosto a dezembro de 2023; posteriormente, também foram feitas entrevistas semiestruturadas em algumas dessas regiões. Os dados contraídos através desses dois métodos de coleta foram sistematizados conforme cada objetivo da pesquisa, sendo aqui utilizados aqueles que relacionam quantificação e intensificação, como serão vistos na análise que se seguirá neste documento.
2. OBJETO DE PESQUISA E APORTE TEÓRICO
A pesquisa sobre língua é interessante não apenas para a área de linguagem, mas para as questões de cultura, comportamento, esquemas cerebrais, identidade e discurso/gramática. Em todas as esferas cotidianas do ser humano a linguagem é elemento vital. Sendo assim, podemos considerar que a língua (principalmente oral) apresenta mudanças conforme o espaço e o tempo em que está localizada perante esse dia a dia dos indivíduos e comunidades.
A quantificação se constrói como um dos fenômenos linguísticos mais complexos no que tange a construção gramatical. Classificações e caracterizações precisas são quase impossíveis de se edificarem, já que não há critérios bem definidos no que seriam de fato quantificadores, ou quais termos formariam a classe; do mesmo modo ocorre com a área da intensificação, considerada por alguns teóricos como parte da quantificação.
Os quantificadores não podem ser simplificados como apenas palavras que denotam quantias ou que se relacionam de maneira única as categorias quantificadas. A quantificação não é exposta exclusivamente por vocábulos, mas dentro também de expressões que muitas vezes parecem não ter qualquer relação com o fenômeno, estando presentes ainda de maneira implícita dentro do discurso. Se relacionam com seus objetos de maneiras diversas, podendo criar sentidos diferentes conforme o quantificador escolhido pelo falante, sendo assim, o fenômeno linguístico da quantificação e o seu falante estão plenamente ligados.
De modo didático, podemos considerar a quantificação como sendo “um fenômeno linguístico que indica as quantidades de uma propriedade em diferentes domínios, tendo suas peculiaridades” (Viana, 2020, p. 13). Essas quantidades podem ser precisas, quando há a nominação direta da quantia (três pessoas, cada pessoa), ou imprecisas, sem que se tenha quantidade definida numericamente (muito, bastante, pouco). Mesmo em quantificadores com sentido impreciso, há maneiras construídas a partir de códigos linguísticos particulares que fazem com que os indivíduos consigam depreender os significados repassados.
As definições de quantificação não são muito claras, estando ainda em processo de questionamentos e considerações em diferentes âmbitos. Para Guimarães (2007), a repetição dos mesmos termos sem revisões ou pouca análise dos âmbitos que ocorrem permanecem sendo um problema. Dessa maneira, a consideração da esfera oral e cotidiana podem ser de grande valor para a resolução dessa problemática, já que a língua está constante transformação. Um desdobramento poderia considerar quantificação em sua relação com a cultura e a identidade.3
Dessa maneira, podemos considerar que os códigos linguísticos, sendo a quantificação e a intensificação parte deles, são construídos socialmente e culturalmente, ou seja, não há por que descartar a língua oral em detrimento dos termos já registrados na escrita ou nas gramáticas tradicionais, habitualmente repetidos como exemplos de quantificadores/intensificadores. Somos cientes de que essas classificações são cruciais para a pesquisa e a gramática, porém, a desconsideração do que o falante está construindo todos os dias não apenas despreza sua diversidade linguística, mas apaga também modos de vida e saberes que são expostos por meio da língua falada e dos comportamentos culturais e identitários.
Com um olhar mais atento, percebemos que mesmo os quantificadores e intensificadores já registrados desafiam a caracterização frequentemente dadas a eles, se comportando de maneiras totalmente díspares e surpreendentes. As definições que já se têm do que seria a classe da quantificação não conseguem dar conta de todas as construções que surgem cotidianamente, o que percebemos, por exemplo, com a análise de quantificadores regionais em Oeiras do Pará. Outro problema levantado por Guimarães (2007) é que raras são as vezes que expressões e contextos sintáticos são considerados nas pesquisas da área da quantificação e intensificação; a delimitação do que seriam quantificadores é antes de tudo um processo de registro e entendimento da diversidade de contextos de ocorrência.
Essa tarefa tem sido negligenciada, e não apenas nas abordagens ditas “tradicionais”. Também nas abordagens mais “modernas” observam-se carências ainda a serem superadas: tanto a identificação de todas as expressões que compartilham as propriedades definidoras do que é um quantificador não é feita, quanto nem mesmo as propriedades definidoras do que é um quantificador estão suficientemente claras. Por isso, nem todas as expressões que expressam quantidade estão devidamente caracterizadas como quantificadores, basicamente porque algumas noções não são entendidas como quantificação (Guimarães, 2007, p. 1).
Apesar de não focarmos nas discussões dos problemas em caracterizar e classificar a quantificação, esse levantamento é importante para o entendimento de que a área não é homogênea e ainda necessita de novos encaminhamentos. Observe que mesmo que entendamos esses termos como sendo uma classe, não podemos considerá-los como tendo as mesmas características, já que se expressam de maneiras diferentes e se relacionam com outras classes de formas complexas. Certas palavras serão, portanto, pertencentes a classes diferentes, conforme as construções em que estão presentes e o papel que estão desempenhando.
No que tange a intensificação, os questionamentos não são menores. Essas classes, se é que realmente podemos chamá-las assim, encontram-se em aberto, pois transcendem qualquer tipo de classificação categórica e fechada. Para Andrade et al (2009, p. 2-3) “a intensificação é um fenômeno associado à quantificação”, se diferenciando por estar relacionada a unicidade enquanto a segunda à multiplicidade. Porém, os autores dizem que essa diferenciação não é autossuficiente, não sendo, portanto, algo em que podemos nos apoiar.
De forma suscinta, Foltran e Nóbrega (2016, p. 319) consideram que “a intensificação está relacionada a qualquer dispositivo que escalona uma qualidade, tanto para graus máximos, mínimos ou médios”. Seriam, portanto, mecanismos utilizados no âmbito de grau, de forma a construir termos que atendam às necessidades do falante por intensificar seus discursos. As análises desses mecanismos os demonstram como sendo inteiramente diversos, se manifestando em contextos e expressões muitas vezes inovadores e inesperados.
Os intensificadores incidem sua função principalmente sobre objetos que possam ser escalonados em questão de grau, como ocorre com os adjetivos. Mas mesmo aqui, a classificação não está bem delimitada, já que, por exemplo, em “é um município muito extenso” (IMDR02), indagamos se estamos de frente a uma referência ao grau da extensão, ou a quantidade, ou aos dois ao mesmo tempo. Esse tipo de utilização é que nos leva a crer que intensificação e quantificação estão intrinsecamente unidos.
Sob um ponto de vista mais purista, a denominação de quantificador deveria ser dada apenas às expressões que denotam operações sobre quantidade; para as expressões que denotam operações sobre grau, talvez se devesse dar o nome de operadores de grau, ou de intensificadores, a se aceitar a minha sugestão de que grau e intensidade são sinônimos. A estreita relação entre a quantidade e o grau é o que justifica, no meu entender, que se chame aos dois de quantidade; talvez um outro nome fosse mais conveniente, talvez algo como quantização – que então se dividisse em quantificação e grau ou intensificação (Guimarães, 2007, p. 136).
Guimarães (2007) defende e sustenta que a intensificação é um tipo de quantificação, de forma que intensificadores seriam os quantificadores utilizados em operações sobre o grau. Embora concordemos com essa premissa, ainda os utilizaremos como dois operadores distintos por causa de suas funções diferentes. A distinção não está, portanto, no caminho para entendê-los como mecanismos individuais, mas no sentido de que os dois, mesmo com suas diferenciações, se mantém ligados; este é um encaminhamento puramente didático por conta dos objetivos da pesquisa, já que também discutimos intensificação como necessidade de expressividade do indivíduo.
No âmbito de intensificadores como mecanismos de escala gradual, Foltran e Nóbrega (2016, p. 319-320) consideram que “pode-se manifestar intensificação por meio de estruturas sintáticas estereotipadas (1a, 1b), expressões exclamativas (1c), recursos lexicais (1d), palavras de grau (1e, 1f), morfemas de grau (1g), dentre outras estratégias lexicais e sintáticas”4. A diversidade de manifestações e colocações da intensificação na língua nos demonstra ainda mais a necessidade de se considerar o uso cotidiano desses mecanismos em conjunto com a quantificação.
Nesse sentido, a análise de termos em esferas pouco estudadas, principalmente em comunidades ainda invisibilizadas pelas relações de poder, é um dos caminhos que merecem mais consideração nas pesquisas atuais. Isso porque a variação e a mudança linguística são elementos que movimentam a língua e contribuem para dar novas fisionomias ao vocabulário e a gramática (Saussure, 2012). Intensificação e Quantificação são áreas que ainda necessitam de resoluções nas esferas mais regionais e empíricas de língua. Guimarães (2007), em sua tese, levantou diversos questionamentos e críticas acerca da pouca importância que se dá a esses estudos. O autor, em sua conclusão, analisa que
O trabalho com a quantificação em um horizonte mais amplo e situado ante o pano de fundo dessas questões mais gerais exigiu um trabalho bastante grande de levantamento de dados empíricos de língua, coisa que não é considerada essencial, quando não é totalmente evitada, em trabalhos formais. Porém, o contato com esses dados propiciou o vislumbre de uma gama maior de fenômenos do que os listados nos manuais, mesmo os manuais de semântica formal (Guimarães, 2007, p. 181).
Como já afirmado, evitar esses dados é mais do que desconsiderar a língua falada, é excluir partes importantes da sociedade. Esses ambientes necessitam de caracterizações mais cuidadosas, pois produzem muito mais termos que aqueles listados pela maioria dos manuais. A relação complexa que existe nessas esferas nos explicita que de fato a ordem das línguas segue as determinações da cultura e as escolhas dos falantes acompanham sua identidade sociocultural.
Aplicando essa premissa nas áreas da intensificação e quantificação, percebemos que muitos de seus modificadores foram criados a partir de elementos presentes na cultura do sujeito, o que realça a ideia de que há uma gama de quantificadores/intensificadores muito maior do que imaginamos, que precisam ser relatados nas pesquisas científicas. Mesmo que não resolva os problemas existentes na caracterização do que seriam de fato quantificação e intensificação, uma abrangência maior da língua oral é imprescindível para que as conheçamos mais a fundo.
Desde o ano de 2020, a partir do Trabalho de Conclusão de Curso5, percebemos que os falantes de Oeiras do Pará têm um leque de possibilidades no que tange ao uso da quantificação/intensificação. Não à toa essa pesquisa permanece até os dias atuais, nos confirmando que, a partir de novos levantamentos de dados, a diversidade de termos é até maior do suspeitávamos inicialmente. O que estamos percebendo é que há uma presença nítida da intensificação nos âmbitos sintático e semântico no que tange à construção de quantificadores.
Desta forma, voltamos aos questionamentos se a intensificação não seria um tipo de quantificação. Para Guimarães (2007, p. 78) “a intensificação, entendida como um tipo de quantificação sobre o grau das predicações, é um tipo de quantificação”. Mesmo que considerássemos as duas como distintas, não há como não perceber a tamanha interferência que as duas mantêm uma sobre a outra. Portanto, é inegável que a intensificação e quantificação estão plenamente intricadas.
Essa caracterização da relação quantificação/intensificação será a proposição para a análise que se seguirá nesse artigo, com um olhar específico para a língua oral dos ribeirinhos de Oeiras de Pará. As discussões sobre a língua falada por essa população já se constitui como uma preocupação científica desde 2020, com o TCC já citado anteriormente, em que abordamos a quantificação. Em trabalhos posteriores, as discussões se desdobraram: especificamos a análise de alguns quantificadores, como o mina6 – com abordagem sobre abstratização – e o murrada7 – já com discussões sobre a influência da intensificação para a constituição desse quantificador; além de trabalhos específicos sobre essa relação e caracterização da identidade ribeirinha, discutido adiante e que é principal fonte para dissertação em andamento.
2.1 Caracterização da Comunidade Tradicional Ribeirinha
Como já afirmado, a quantificação e a intensificação são mecanismos linguísticos utilizados de acordo com as necessidades dos falantes. Sendo assim, é também verdade que são movidos e construídos dentro dos códigos linguísticos particulares de cada comunidade, manifestando a cultura e a identidade destes indivíduos. Embora hoje as questões de identidade estejam cada vez mais dispersas, as comunidades tradicionais mantém seus costumes como forma de preservar sua cultura e seus saberes, estando em uma relação que valoriza seu passado e olha para as inovações ao longo do tempo. Todos esses âmbitos são expressos a partir da linguagem, e esta é parte importante para a afirmação identitária dessas comunidades.
A comunidade ribeirinha, fonte da pesquisa que aqui se discorre, é composta por diversos saberes e carregada de histórias que se atrelam ao seu ambiente e as suas profissões. É heterogênea, o que vai de encontro com a visão errônea que se construiu ao longo do tempo de que eram parados e quase que parte da paisagem. As comunidades ribeirinhas vivem de formas parecidas, embora não iguais, já que de local para local, há uma mudança significativa do tipo de atividades que desenvolvem ou do modo como se relacionam com a natureza.
Por não serem homogêneas, cabe nessa caracterização, localizar as comunidades tradicionais ribeirinhas que estão nos auxiliando como informantes. Estamos falando do interior da Amazônia, no nordeste paraense, precisamente da região insular e de furos e rios da saída do Rio Araticu no município de Oeiras do Pará. A maior diferença entre essas comunidades, além da caracterização territorial, diz respeito as principais fontes de renda. Nas ilhas a principal profissão permanece sendo a pesca de camarão seguido da pesca de peixe e extração de açaí; já nos furos e rios, se desenvolvem mais as atividades de extração de açaí, seguido da pesca de peixe e, por último, do camarão. Maiores diferenciações podem ser vistas na comparação com ribeirinhos moradores de rios localizados na direção mais interior do município, como Rio Anauerá e Rio Arioca-Pruanã, em que as atividades principais são a coleta de frutas nativas e produção de farinha de mandioca.
Essas comunidades ribeirinhas foram edificadas a partir da povoação por parte de outras comunidades tradicionais como os indígenas e os quilombolas, além de imigrantes. Desta maneira, a identidade ribeirinha de Oeiras do Pará foi e é construída a partir das relações existentes entre estes sujeitos, ou seja, dentro dos contextos e das interações sociais. Sendo assim, é constituída dentro de um conjunto de saberes artesanais, profissionais, relação com a natureza e com o capital.
Como o próprio nome já referencia, os ribeirinhos residem a beira rio em casas altas, comumente conhecidas como palafitas, já que, especificamente as comunidades a que nos referimos, vivem em ambientes de várzea que são totalmente invadidos pela água. Embora essa relação natureza/rio/sujeito seja muito forte, isso não configura os ribeirinhos como isolados, isso porque, além da relação com a cidade, a presença tecnológica nesses locais é ampla, principalmente por meio de energia 24h através de sistemas solares, e da presença de internet e de eletroeletrônicos.
Considerando essas características, os ribeirinhos dessas localidades possuem um código linguístico particular, entendido coletivamente, e construído dentro da cultura, identidade e modos de vida. Todos estes âmbitos cotidianos são carregados de léxicos que são específicos de cada atividade desenvolvida pelos ribeirinhos. Provavelmente, muitas das palavras utilizadas por esses sujeitos não são entendidas pelo resto do país, o que endossa a importância não só do registro, mas da análise e explicação dos significados de cada uma.
3. METODOLOGIA
Como base bibliográfica utilizamos Guimarães (2007), Andrade et al (2009), Foltran e Nóbrega (2016), Viana (2020) e Viana e Rua (2021), com pesquisas sobre quantificadores e intensificadores. A pesquisa de campo ocorreu em comunidades ribeirinhas de Oeiras do Pará, precisamente em regiões insulares, de rios e furos do Rio Araticu e de seu desaguamento, por meio de 11 momentos de observações em 7 desses locais, ocorridas entre agosto e dezembro de 2023. Posteriormente também realizamos 5 entrevistas semiestruturadas, com ribeirinhos dessas comunidades, além de constantes voltas aos locais para busca de novos dados que não foram alcançados nestes dois primeiros momentos.
Conforme os preceitos da Teoria Fundamentada Construtivista (Charmaz, 2009), que defende a construção da análise e da teoria baseada nos dados, buscamos nas observações construir anotações em relação ao contexto e modo de vida ribeirinho e da realização dos quantificadores/intensificadores, que foram codificadas e analisadas. Esse objetivo e forma de análise também foram alcançados pelas entrevistas semiestruturadas, no qual fizemos uma nova sistematização e codificação das diversas realizações da quantificação na fala desses sujeitos. Com o corpus que construímos para a pesquisa em andamento, buscaremos neste trabalho observar os contextos em que cada intensificador e quantificador aparecem, tendo atenção principal aos diversos modos de realização e relação de quantificação e intensificação.
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES
No momento, não buscamos desempenhar discussões acerca das problemáticas nas classificações de quantificação e intensificação. Basicamente, procuramos registrar e analisar expressões e termos dessas áreas encontrados durante a observação e entrevistas com os ribeirinhos de Oeiras do Pará. Por estarmos analisando a língua falada ribeirinha oeirense, todos as exemplificações sobre intensificação e quantificação pertencem ao corpus que estamos construindo para a dissertação em andamento já citada.
Destacaremos nessa discussão pontuações que evidenciem a complexa relação que os dois fenômenos mantêm, de forma a distinguir algumas das variadas formas de suas ocorrências. Em Viana e Furtado (2024) já discutíamos essas interrelações por meio de um esquema de continuum categorial, dividido em: convergência, onde haveria termos pertencentes as duas categorias, produzindo ambiguidade; divergência, no qual há uma limitação estrita; e influência, onde um exerce ação na construção do outro. Presumíamos que esse esquema se daria através de distanciamentos e proximidades entre as duas áreas.
Porém, embora de fato tenhamos essa espécie de continuum, sendo uma forma interessante para a organização dessas interrelações, consideramos que as ligações são ainda mais complexas do que já suponhamos, sendo muito simplista encaixá-las apenas nesses três itens, o que surte efeito apenas para fins mais didáticos. Consideraremos, portanto, os diversos âmbitos e formas de ocorrência de quantificação e intensificação dentro da comunidade de fala já mencionada, buscando explicar os sentidos e intencionalidades desses usos pelos ribeirinhos.
Intensificação no âmbito do sentido
Os significados das palavras são criados dentro dos códigos linguísticos dos falantes, sendo assim, são construídos socialmente, o que implica sentidos diferenciados de comunidade para comunidade. No entanto, mesmo sendo variável, a língua constrói-se como um conjunto de significados mais ou menos comuns a todos os seus falantes. A língua portuguesa dispõe de mecanismos diferentes para expressar cada objetivo linguístico do falante, o que é bastante visto quando se considera o uso da quantificação e da intensificação. No item (1) temos exemplificações de como a intensificação, sendo parte da quantificação, foi manifestada em termos distintos do que são habitualmente integrados a ela.
(1) a. “Morei muitos anos, fui nascido e criado” (OEFOBE01)
b. “Morei no interior desde quando eu nasci” (OEIMEM02)
c. “Então ela (Ilha do Lago) é colada na Ilha do Maiuira” (OEIMEM02)
d. “Então era vinte e quatro horas eu pensando em estudar” (OEIPBES04)
Em (1) temos em destaque alguns termos que tecnicamente não fazem parte ou não expressam comumente a intensificação. No exemplo (1a) a intensificação é revelada a partir de uma segunda expressão nascido e criado, para intensificar a quantia trazida pelo muito, ou seja, além de ter o papel de aumento dos anos de moradia, também traz uma adição de descrição na conversa; essa mesma função intensificadora é utilizada em (1b) com a frase em negrito. Já em (1c) temos o termo colada não expressando apenas ligação, mas estando em um sistema que inicia com o advérbio perto, aqui entendido como quantificação de distância, sendo intensificado e expressando algo como muito ou extremamente perto.
Já o exemplo (1d) traz a intensificação em um âmbito de necessidade de expressividade, não sendo entendida literalmente, mas como figura de linguagem que busca deixar claro para o ouvinte a intensidade daquilo sobre o qual está ponderando. A frase em (1d) se utiliza de numerais, comumente entendidos como quantificadores, para intensificar o sentido; porém, a função principal está além da classe dos numerais, sendo considerada, nesses contextos, mais como uma expressão propriamente, muito utilizada no português brasileiro (PB), o que demonstra a ligação entre os ribeirinhos e o restante do país.
Expressões quantificacionais intensificadas
Esses tipos de expressões são conjuntos de termos que implicam uma leitura quantificada por parte dos falantes. Nossas observações demonstraram que os ribeirinhos possuem um grande conjunto desses mecanismos para atender as suas necessidades linguísticas. A maioria delas são utilizadas em contextos em que há uma intensificação da ideia de quantidade, o que faz com que os próprios termos carreguem essa função.
(2) a. “Quase não coloco meu barco, não tem onde botar rabeta” (FO01)
b. “Hoje não tem quem vença esse vento” (OEIPBES04)
c. “Que arraia brinca de pira” (IP02)
d. “Sucuriju não apareceu mais, mas tinha muito, nem pense” (IPB06)
f. “É bom? – Mas nem fale” (PA11)
g. “Mas credo, pra tudo lado”8 (OERABE05)
h. “E o camarão? – Tá dando nem merda” (IG07)
O conjunto proposto em (2) traz expressões muito utilizadas pelos ribeirinhos oeirenses para intensificar quantidades tanto para mais quanto para menos. Em (2a) e (2b) há duas expressões que iniciam com uma negativação não tem, seguido das palavras que completam o sentido quantificacional. No exemplo (2a) o falante especifica o pouco/nenhum espaço ao invés da ideia habitual de, já de início, focalizar o muito, ou seja, embora a ideia dele seja dizer que há uma quantia enorme de barcos, prefere intensificar o pouco espaço. Na mesma direção, em (2b) o ribeirinho manifesta intensidade por meio da especificação que pouca/nenhuma pessoa consegue atravessar o rio devido ao mal tempo, o que sugere que a quantia de vento é intensa ou que está muito forte.
A expressão quantificacional em (2c) faz referência a uma brincadeira conhecida na região, em que envolve muitos jogadores; repassado isso para a quantificação, o falante intensifica a quantidade, ao mesmo tempo que permanece com a ideia original. Em (2h) a intensificação da pouca quantia é trazida através da expressão nem merda que, para os ribeirinhos, significa algo como a intensificação de “não tem ou não está dando nada”.
Já as expressões (2d), (2f) e (2g) envolvem a conjunção mas, seguida das expressões principais. O interessante a se destacar nestes exemplos é a forma como o mas é utilizado para acentuar expressões intensificadas, ao contrário de seu significado original, o que nos demonstra que esse termo está num processo de gramaticalização como um quantificador propriamente, como registramos nas observações com a frase “mas tá feio praí” (CAP09), que envolve a conjunção como um quantificador. Em (2d) e (2f) a necessidade de intensidade do falante é manifesta por meio da “proibição” do falar ou pensar na quantia com o auxílio do termo nem, já que é muito grande. Por último, a frase (2g) traz para dentro do âmbito da quantificação uma expressão muito utilizada no PB, especialmente para concordar e dar uma ideia de intensificação com perguntas que envolvem quantificação.
Intensificação por repetição dos termos
Um dos movimentos mais utilizados no PB para a intensificação é a repetição dos termos, sendo uma de suas funções “a de sustentar uma ideia ou pensamento, construir uma imagem na mente por meio da constante repetição de palavras ou frases” (Andrade et al, 2009, p. 6). As frases do bloco (3) enfatizam a função da repetição para uma intensificação da quantificação, ou seja, repete-se os termos para que a ideia descrita seja mais acentuada.
(3) a. “Naquela época era muito farto, muito farto” (OEFOBE01)
b. “Seja de camarão, de peixe, eu vi muita fartura, muito mesmo” (0EIPBES04)
c. “Eu vejo uma carência muito grande, muito grande em alguns rios” (OEIMEM02)
d. “Eles os moradores dessa ilha mesmo, desde muito, muito, muitos anos” (OEIMEM02)
e. “Mudou, mudou bastante, mudou, há falta de camarão, falta de peixe” (OEFOBE01)
Como já dito, os exemplos desse grupo trazem a repetição como forma de deixar claro aos ouvintes que uma quantia muito grande está sendo referida. Esse mecanismo é utilizado em (3a) como forma de dar ligeira importância a informação, ou seja, o movimento ocorre para que se fixe a ideia do que acontecia antigamente na mente de quem está recebendo a informação; porém, a principal intenção é a intensificação do quantificador farto, que por si só já significa abundância, sendo ainda modificado pelo intensificador muito; apesar dessas construções, o falante ainda sentiu a necessidade de intensificar com a repetição. As frases (3b) e (3c) têm características parecidas a (3a); o exemplo que demonstra o muito modificando grande – que está funcionando como intensificador – também tem como preocupação chamar a atenção do ouvinte para o assunto tratado e a intensidade do tamanho do conjunto referido.
Em (3d), além da quantificação presente através da flexão de número no quantificador muito, a intensificação é feita a partir de uma tripla repetição do termo, o que denota que, possivelmente, há uma referência a décadas. Na frase (3e) há uma grande diferença em relação às outras, já que a repetição não está aplicada aos quantificadores/intensificadores, mas sim sobre o verbo, que é repetido três vezes, tendo apenas o auxílio do intensificador bastante; a ideia dessa ocorrência é a mesma das outras: repetir os termos para que a informação seja enfatizada e o ouvinte perceba a intensa mudança no cotidiano ribeirinho ao longo dos anos.
Intensificadores como modificadores ou complementos dos quantificadores
Uma das funções primordiais dos intensificadores é servir como modificador de outros elementos, tais como dos participantes da quantificação. A questão neste tópico é a utilização dos intensificadores como formas de complementar e aumentar os significados dos quantificadores, funcionando como um mecanismo para acentuar quantias tanto para mais quanto para menos, como estão descritos em (4).
(4) a. “Na safra do açaí elas vão super abastecidas” (OEIMEM02)
b. “Que é quando elas vão super lotada” (OEIMEM02)
c. “o camarão tem, tem diminuído muito” (OEIPES03)
d. “Quando ele (camarão) tá muito pouco” (OEIPBES04)
e. “Fica mais tobado o matapi!” (IP02)
f. “Peguei bem avortado” (OERABE05)
Os exemplos (4a) e (4b) são de origem clássica e, segundo Foltran e Nóbrega (2016), assim como hiper e mega, só podem ser aplicados em posição prefixal. No entanto, o que nos interessa destacar é o papel de super para o aumento da quantificação expressa pelos termos abastecida e lotada, sendo adotado pela necessidade do sujeito de dar ênfase a lotação de balsas na época da safra de açaí. Já as frases (4c) e (4d) trazem o muito funcionando como um modificador de intensificação associado a quantias para menos, o que provoca nos quantificadores diminuir e pouco uma acentuação negativa do valor quantificacional do objeto referido.
Por fim, em (4e) e (4f) os intensificadores mais e bem estão servindo como complemento para dois quantificadores regionais, que são o tobado – relacionado ao cheio – e o avortado – que significa quantidade grande; o que percebemos nestes exemplos, além do aumento da quantia devido ao uso dos dois acentuadores, é que a funcionalidade dos intensificadores como modificadores da quantificação seguem a mesma linha clássica mesmo quando se trata de quantificadores regionais, o que demonstra que o código linguístico ribeirinho é ao mesmo tempo identitário e ligado ao português brasileiro geral.
Associação ou junção direta entre intensificador e quantificador
Como vimos anteriormente, os intensificadores costumam ser utilizados como complemento dos quantificadores, para modificar a quantia ou intensificá-la, atendendo assim a necessidade de expressividade do sujeito. Esta sentença é tão verdadeira para os ribeirinhos oeirenses, que eles acabaram por começar a utilizar esta relação inesperadamente de forma conjunta, ou seja, já não entendem esses termos como sendo quantificador + intensificador, mas significando um único quantificador intensificado, como se exemplifica em (5a) e (5d).
(5) a. “Disque tá queimando grande quantidade pro outro lado” (PA08)
b. “o pessoal falam mal dela grande quantidade” (OEIMEM02)
c. “Essa quantidade de camarão né” (OEIPBES04)
d. “Mas o camarão deu uma falhada bonita” (OEFOBE01)
e. “Rum, quer saber que deu uma falhada bonita no açaizal lá de casa” (PA11)
f. “Eu tô sem camarão porque ele falhou” (OEIPBES04)
Existem dois casos principais e extremamente utilizados pelos ribeirinhos quando se trata de formar um único quantificador a partir da junção de dois termos: o grande quantidade e o falhada bonita. A gramaticalização dos dois segue quase o mesmo caminho das expressões quantificacionais, sendo apreendidos conjuntamente; porém, embora já estejam incorporados ao código linguístico dos ribeirinhos de Oeiras do Pará, esses quantificadores permanecem sendo aplicados de maneira individual, como ocorre nos exemplos (5c) e (5f).
A ocorrência individual não significa que os adjetivos grande e bonita se configurem apenas como complementos, pelo menos não nesses contextos em que têm a função de intensificador desses dois quantificadores. Na realidade, os ribeirinhos oeirenses entendem esses exemplos como quatro quantificadores plenos. Em (5a) e (5b) os dois termos se unem para formar um único quantificador que atenderá as necessidades de intensificação não resolvidas somente pelo termo quantidade.
No exemplo (5d) e (5e) temos uma intensificação contrária a do quantificador anterior, ou seja, basicamente intensifica-se o pouco. Para os ribeirinhos, quando uma frase como a de (5f) é aplicada, o termo falhou já denota uma diminuição acentuada, porém, o auxílio e posterior junção do adjetivo faz com que o quantificador falhada bonita se concretize como um elemento adotado em momentos de intensificação da quantia, como foi intencionado pelo falante para acentuar o pouco camarão (5d) ou escalonar a diminuição brusca de açaí (5e). Também é exemplo dessa junção o quantificador porrada seca, que envolve quantificação mais adjetivo intensificador, embora não esteja registrado no corpus dessa pesquisa, foi encontrado durante as observações, sendo já registrado em Viana (2020).
Dúvidas e ambiguidades na classificação de intensificador/quantificador
Embora tenhamos deixado claro nas discussões desse texto que não iríamos nos ater as questões de classificação do que seriam exatamente quantificadores ou intensificadores, é necessário que se destaque algumas ambiguidades, justamente por serem motivadoras da relação e gramaticalização de termos como quantificadores/intensificadores. Antes de observarmos o grupo (6), vale que ressaltar que, geralmente, essas dúvidas são sanadas por uma observação mais contundente do contexto de ocorrência, ou simplesmente há uma validez dos dois sentidos, abarcando tanto um âmbito de intensificação quanto de quantificação.
(6) a. “Pra não ficar muito perto” (OEIPES03)
b. “A mãe dele faleceu muito cedo” (OEIMEM02)
c. “Um processo que é mais demorado” (OEIPES03)
d. “(Oeiras) tem um potencial muito alto” (OEIMEM02)
A principal forma de ausentar a dualidade desses termos seria a consideração de todos eles como quantificadores, entendendo, assim, a intensificação como um tipo de quantificação. Porém, embora concordemos com essa sentença, não há dúvida de que possuem características distintas. Em (6a) fica o questionamento se o falante está especificando uma quantidade, algo como uma quantificação de distância ou medição, ou simplesmente escalonando o grau dessa distância. Já em (6b) o sentido também fica ambíguo, embora nos pareça que a intenção do falante seja intensificar; da mesma forma ocorre com (6c), porém este também pode ter raiz em uma quantificação de medição de tempo. No exemplo (6d) a dúvida repousa no fato de o muito estar ligado tanto ao aqui quantificador alto, ao mesmo tempo que pode modificar o termo potencial, nos parecendo haver um duplo significado.
Termos que funcionam como intensificador e como quantificador
Como já dito, um dos principais meios para a diferenciação de palavras entre intensificadores e quantificadores é a análise do objeto modificado. A partir do entendimento por meio das observações, percebemos que a intensificação geralmente modifica objetos mais abstratos, enquanto a quantificação está muito mais ligada ao concreto, a categorias que podem ser contadas, medidas ou pelo menos modificadas pela maioria dos quantificadores.
(7) a. “No mês de março é muito imensa a água né?” (OEFOBE01)
b. “Muito feliz em ser ribeirinho, um prazer imenso” (OEFOBE01)
c. “Antigamente tinha mais (garachamba – cipó grosso) […]” (OEIPES03)
d. “[…] e era mais fácil tirar” (OEIPES03)
e. “É uma grande produção de açaí, no Urubuena, no Aracaeru” (OEIMEM02)
f. “As escolas não tinha fogão, lousa, então uma grande dificuldade” (OEIMEM02)
g. “O vento tem dia que dá bem” (OERABE05)
h. “(viagem cidade/interior) é bem cansativo né” (OEIPBES04)
i. “O peixe tem maré que pega muito” (OERABE05)
j. “Uma profissão (pesca) que eu gosto muito” (OEIPBES04)
Os exemplos trazidos pelo bloco (7) resumem uma gama de termos que podem ser, dependendo da aplicação, tanto quantificadores como intensificadores na fala dos ribeirinhos das regiões insulares, de furos e rios de Oeiras do Pará. A frase (7a) nos reporta a ocorrência de imensa como um quantificador de medição de tamanho, já (7b) parece trazer apenas uma intensificação do sentimento de alegria e satisfação em ser ribeirinho do falante. O mais também tem diversas funções, entre elas está a de poder expressar quantidade de contagem, como em (7c), e de funcionar em posição de grau, como intensificador do adjetivo fácil, descrito em (7d).
Já o exemplo (7e) apresenta o adjetivo grande como tendo funções de quantificador, já que há uma medição do tamanho do conjunto produção, por outro lado, em (7f) o termo está funcionando apenas como intensificador do substantivo dificuldade, funcionando por meio de uma sequência de grau e expressando a conclusão da afirmação expressa no começo da frase. Os conjuntos (7g)/(7h) e (7i)/(7j) também são mecanismos muito utilizados para expressar quantificação e intensificação, não apenas na fala dos ribeirinhos, mas dos falantes do português brasileiro de um modo geral. O bem em (7h) e o muito em (7j) estão ocorrendo como modificadores de intensidade dos seus objetos, trazendo o grau do substantivo cansaço e do verbo gostar, já em (7g) temos bem funcionando como uma forma de determinar uma grande quantia de vento, movimento que também ocorre em (7i), com muito modificando a porção do conjunto peixe, trazendo, portanto, um significado quantificacional.
Acúmulo de termos intensificadores/quantificadores
Outro mecanismo intensificador muito requisitado pelos ribeirinhos de Oeiras do Pará é o acúmulo de vários termos em uma mesma frase. O objetivo permanece sendo o mesmo da repetição, fixar o sentido, mas acima de tudo deixar claro ao ouvinte a acentuação da quantia. A diferença da repetição para o acúmulo repousa no fato de que esse último é formado por diferentes termos, o que constitui uma intensificação após a outra.
(8) a. “A tala ficam mais afastada, aí fica muito mais seguro” (OEIPES03)
b. “Lá (região insular) sentia muita dificuldade muito grande” (OEFOBE01)
c. “E lá fora tem mais o camarão avortado” (OEIPBES04)
O primeiro exemplo (8a) traz a utilização de muito e mais com função de intensificadores, desta maneira, além de se modificarem mutuamente, conectados conseguem expressar uma acentuação ainda maior. Já em (8b) a gradação é demonstrada a partir de um acúmulo dividido em duas partes, sendo mais anteposto ao substantivo, e a dupla intensificadora muito grande, formada por intensificador e adjetivo, posposta ao objeto intensificado/quantificado. Essa movimentação dividida em duas partes também é vista em (8c), com a diferença de que o acúmulo incide sobre um quantificador regional e sobre mais funcionando como quantificador, o que nos exemplifica como que os ribeirinhos conseguem expressar intensificação utilizando dois quantificadores plenos.
Quantificadores com sentido intensificado
Já destacamos anteriormente alguns dos mecanismos encontrados na língua oral ribeirinha oeirense que clarificam a relação quantificação/intensificação, tais como expressões, repetições, acúmulos e associações. Agora, destacaremos em (9) os quantificadores que carregam uma característica que o associa a um sentido intensificado, nos referimos aqueles que são utilizados somente quando há uma necessidade de aumentar a ideia de quantidade. Além de carregarem uma quantificação “maior”, são preferidos em contextos em que se envolvem ideais de intensificação da quantia.
(9) a. “Tá dando chute na praia camarão” (OEIPBES04)
b. “Veio pancada (de açaí) do beiradão” (CAP03)
c. “Peia (de placa solar) bandalhou, largo ligado” (IG10)
d. “Hoje peguei murrada de camarão” (OEIPBES04)
e. “Camarão tá fraco camarão, lavando só o X” (CAP09)
f. “Mas eu acho que é bem caratinga/ – O X que pegou um pingo” (IP02)
g. “Micidade (de açaí) veio do Canaticú, alagou ontem” (PA11)
O conjunto (9) representa alguns dos diversos quantificadores que por si só já trazem a ideia de quantidade acentuada. De (9a) a (9d) temos quatro exemplos que se constituem a partir do mesmo esquema imagético de golpe/pancada; esse esquema é bastante utilizado na construção de quantificadores intensificados, em contextos que carreguem essa mesma propriedade e em situações que o falante busca satisfazer alguma outra necessidade relacionada a essa ideia. Em (9a) o quantificador chute segue o mesmo princípio de intensificação dos termos que designam rapidez no código linguístico ribeirinho, como por exemplo: “ele saiu chutado”; “o rapaz meteu ficha”; e “tá vendendo no pisão” (PA08); o que nos leva a crer que seu significado foi construído dentro desse conjunto linguístico cultural.
O quantificador pancada (9b) já é ligeiramente conhecido no PB, carregando aqui o mesmo sentido culturalmente construído pelos falantes brasileiros. Já o quantificador da frase (9c), além da intensificação pelo esquema imagético comum aos seus outros companheiros, também expressa uma ideia de coletivo para os ribeirinhos, o que faz com que ele se intensifique ainda mais. O termo murrada (9d) já foi explicitado em Viana e Rua (2021), sendo um quantificador construído em cima de um processo de escalaridade por intensificação, sendo algo como soco<murro<murrada, o que faz com que ele seja utilizado nesses contextos.
O esquema de líquido também é muito requisitado na construção de quantificadores pelo círculo linguístico dos ribeirinhos oeirenses, tendo significados e contextos de ocorrência repousando sobre a intensificação. Em (9e) a ideia do sujeito foi utilizar o quantificador apenas quando desejou contrastar com a primeira afirmação; neste caso, fraco quer dizer pouco. No exemplo (9f) a intensificação para mais da quantia é trazida justamente pelo uso de um termo que é extremamente pequeno. Por fim, (9g) se utiliza do termo alagar por causa de seu significado original, o que explicita para os ribeirinhos um quantificador intensificado.
Uso do sufixo -inho para intensificação
Assim como a repetição é um mecanismo muito utilizado, o uso do sufixo -inho também é bastante adotado pelos falantes do português brasileiro. No entanto, este sufixo que é tradicionalmente entendido como diminutivo é, na maioria das vezes, aplicado pelos ribeirinhos de Oeiras do Pará numa ideia de aumentativo. Há uma tendência de significação contrária do que é comumente entendida no PB no código linguístico dessa comunidade, ou seja, muitas vezes a intenção do ribeirinho é justamente fazer com que certas palavras signifiquem o contrário, como ocorre com o quantificador pouco e seu modificador demais em “Demais pouca fumaça” (IPB06), que significa “muita fumaça”. Essa ideia de significação contrária também está enraizada na gramaticalização de mas como um quantificador, discutido a partir das frases (2d), (2f) e (2g).
(10) a. “Tinha um pouquinho de vento aí fora” (FO01)
b. “Lá na boca do rio sai um pinguinho de lixo”9 (RA04)
c. “Rum, pra atravessar aí, deu um farelinho de vento” (IG10)
d. “Macaquinho atentado, comeu tudinho (a manga)” (RA04)
e. “O funil fica um pouquinho maior” (OEIPES03)
Os significados intensificados dos quantificadores com sufixo -inho se ligam diretamente ao modo como os ribeirinhos construíram seu código, ou seja, seus entendimentos sobre os sentidos desses termos são na verdade identitários, o que ocasiona significações diferentes das outras comunidades de fala. No exemplo (10a) o uso do sufixo serve para intensificar o quantificador pouco, de forma que essa acentuação acaba por significar uma quantia contrária ao comumente trazido pelo termo, ou seja, há uma referência justamente a uma quantia enorme.
O mesmo ocorre com pingo em (10b), já que este, como analisamos anteriormente, expressa um sentido quantificacional intensificado para mais, o que permanece, de maneira mais proeminente com o uso do sufixo; basicamente, o ribeirinho oeirense entenderá pinguinho como uma referência a uma grande quantidade. Outro quantificador regional que aceita a sufixação de -inho está indicado em (10c); diferente dos dois primeiros quantificadores, que funcionam nesses contextos com sentido contrário de seu valor habitual, em farelo a quantificação já é comparada ao sentido de muito, sendo assim, a função do sufixo permanece sendo acentuar a quantia em um sentido aumentativo, do mesmo modo como ocorre em (10d). No entanto, há de se destacar que dificilmente o quantificador farelo é utilizado pelos ribeirinhos sem o sufixo, o que foi comprovado nas observações.
Obviamente, sendo falantes do português brasileiro, os ribeirinhos aplicam a sufixação conforme é ditado pelas regras gerais da língua. Em (10e) a sufixação incide em um grau diminutivo do quantificador pouco, funcionando para os ribeirinhos da mesma maneira que é entendido pelo restante dos falantes do PB. Percebemos, portanto, que os ribeirinhos que nos serviram como fonte linguística constituem-se como tendo uma variante identitária que busca dar sentidos diversos aos seus modos de falar e usar as palavras. Desta maneira, intensificação e quantificação se mantêm dentro desses âmbitos, funcionando em comum acordo e se relacionando e se modificando conforme as necessidades dessa comunidade.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das discussões levantadas ao longo do texto buscamos demonstrar conceituações sobre quantificação e intensificação, analisando problemáticas e classificações conceituais de cada área. Para isso, entendemos ser necessário focalizar as interrelações em âmbitos regionais da língua oral, já que são esferas ainda pouco pesquisadas. Sendo assim, por meio de observações e entrevistas semiestruturadas em comunidades ribeirinhas de regiões insulares, de furos e rios de Oeiras do Pará, buscamos sistematizar os termos, os mecanismos e os contextos de ocorrência realizados dentro das áreas da quantificação e da intensificação.
Sendo assim, algumas considerações podem ser feitas: a intensificação, de fato pode ser considerada como um tipo de quantificação, porém, tem funções muito distintas, incidindo sempre sobre o grau; muitos termos pertencem a diferentes classes, estando entre suas funções ser tanto intensificador quanto quantificador, porém isso pode ocasionar ambiguidades; como falantes plenos do PB, muitos movimentos conhecidos da relação quantificação/intensificação são plenamente utilizados pelos ribeirinhos, como ocorre com a repetição e sufixação.
A comunidade ribeirinha pesquisada possui um conjunto extenso de quantificadores e expressões com sentido intensificado; além do mais, as duas áreas muitas vezes se modificam e se juntam diretamente para satisfazer a intenção do falante. Portanto, é perceptível, apesar de suas particularidades, que quantificação e intensificação permanecem interrelacionadas na língua oral dos ribeirinhos das regiões insulares, de furos e rios de Oeiras do Pará.
3O estudo dessa relação está em andamento em dissertação própria.
4(1) a. Estou morto de fome. / b. Ele é um idiota com “i” maiúsculo. / c. Que filme! / d. Ele é um perfeito idiota. / e. Esse aluno é muito dedicado. / f. Ela é mais competente do que seu irmão. / g. Ela é inteligentíssima (Foltran e Nóbrega, 2016, p. 319-320).
5VIANA, Danielle de Melo. O uso de quantificadores na modalidade oral no município de Oeiras do Pará: uma abordagem funcionalista. Monografia (Faculdade de Linguagem). Universidade Federal do Pará, Oeiras do Pará, 2020.
6VIANA, Danielle de Melo. O quantificador mina na língua falada de Oeiras do Pará: do concreto ao abstrato. In: Anais do III Colóquio da linha de pesquisa Culturas e Linguagens, 2020. PPGEDUC/UFPA, Cametá – PA, 2020. v.2.
7VIANA, Danielle de Melo; RUA, Robson Borges. Na língua, nada se cria, nada se perde, apenas recrutam-se elementos para novas funções. In: Estudos Dialetais e Sociolinguísticos no Brasil.1. ed. Rio Branco: Nepan Editora, 2021, v.1, p. 91-104.
8Resposta ao questionamento: “a senhora escuta muito essas palavras?”.
9Não se refere ao lixo urbano, mas sim aos galhos, frutas e folhagens que saem de dentro da mata com a maré.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Wallace Costa.; SILVA, Brian Galdino; SOUZA, Flávio Fabrício Ferreira de. Intensificação no Português Falado. 1. ed. São Paulo: Revista Anagrama, 2009.
CHARMAZ, Kathy. A construção da teoria fundamentada: um guia prático para análise qualitativa. tradução Joice Elias Costa. Porto Alegre: Artmed, 2009.
FOLTRAN, Maria José; NÓBREGA, Vitor Augusto. Adjetivos intensificadores no português brasileiro: propriedades, distribuição e reflexos morfológicos. São Paulo: Alfa, 60 (2): 319-340, 2016.
GUIMARÃES, Márcio Renato. Dos Intensificadores como Quantificadores: os âmbitos de Expressão da Quantificação no Português do Brasil. Tese (Doutorado em Letras). Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2006.
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. 28. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.
VIANA, Danielle de Melo. O uso de quantificadores na modalidade oral no município de Oeiras do Pará: uma abordagem funcionalista. Monografia (Faculdade de Linguagem). Universidade Federal do Pará, Oeiras do Pará, 2020.
VIANA, Danielle de Melo; FURTADO, Raquel Maria da Silva Costa. Interrelações entre quantificação e intensificação na língua oral do município de Oeiras do Pará (PA). IV Congresso de Letras do Tocantins/Cametá, UFPA, 2024.
VIANA, Danielle de Melo; RUA, Robson Borges. Na língua, nada se cria, nada se perde, apenas recrutam-se elementos para novas funções. In: Estudos Dialetais e Sociolinguísticos no Brasil.1. ed. Rio Branco: Nepan Editora, 2021, v.1, p. 91-104.
1Graduada em Letras pela Universidade Federal do Pará. Mestranda em Educação e Cultura pelo PPGEDUC/CUNTINS/UFPA. Email: danielle.viana@cameta.ufpa.br
2Doutora em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Docente do PPGEDUC/CUNTINS/UFPA. Email: raqmaria@ufpa.br