INSTRUMENTS OF PARTICIPATORY MANAGEMENT IN SUS: ANALYSIS OF THE DEMOCRATIZATION OF HEALTH WORK RELATIONS
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202503260657
Auridete Josefa de Sousa
Edsaura Maria Pereira
RESUMO
Introdução: A gestão participativa é essencial ao Sistema Único de Saúde (SUS), promovendo espaços democráticos para trabalhadores, gestores e usuários. Apesar dos avanços, persistem desafios à sua plena implementação. Objetivos: Analisar os instrumentos da gestão participativa no SUS e sua relevância para democratizar as relações de trabalho em saúde. Metodologia: Pesquisa qualitativa bibliográfica com análise de conteúdo. Consultaram-se bases científicas e documentos oficiais publicados entre 2020 e 2025, com descritores relacionados à gestão participativa e relações laborais no SUS. Resultados: Identificaram-se cinco instrumentos principais: Conselhos e Conferências de Saúde, Ouvidorias do SUS, Mesas de Negociação Permanente e Planos de Cargos, Carreiras e Salários. Esses mecanismos, quando efetivamente implementados, favorecem relações laborais mais democráticas. Contudo, persistem obstáculos como cultura organizacional centralizadora e descontinuidade das políticas públicas. Considerações Finais: Os instrumentos analisados têm grande potencial democratizante. Sua efetividade depende da superação das práticas gerenciais autoritárias e da apropriação pelos atores sociais envolvidos.
PALAVRAS-CHAVE: Gestão Participativa; Sistema Único de Saúde; Democratização; Relações de Trabalho; Administração em Saúde.
ABSTRACT
Introduction: Participatory management is essential to the Brazilian Unified Health System (SUS), promoting democratic spaces for workers, managers and users. Despite advances, significant challenges remain for its full implementation. Objectives: To analyze participatory management instruments in SUS and their relevance for democratizing health labor relations. Methodology: Qualitative bibliographic research with content analysis. Scientific databases and official documents published between 2020 and 2025 were consulted using descriptors related to participatory management and labor relations in SUS. Results: Five main instruments were identified: Health Councils and Conferences, SUS Ombudsman Offices, Permanent Negotiation Forums and Career and Salary Plans. These mechanisms, when effectively implemented, favor more democratic labor relations. However, obstacles such as centralizing organizational culture and discontinuity of public policies persist. Final Considerations: The analyzed instruments have strong potential for democratization. Their effectiveness depends on overcoming authoritarian management practices and appropriation by involved social actors.
KEYWORDS: Participatory Management; Unified Health System; Democratization; Labor Relations; Health Administration.
INTRODUÇÃO
A gestão participativa no Sistema Único de Saúde (SUS) representa um dos pilares fundamentais para a democratização das relações de trabalho no setor saúde. Concebida como estratégia organizacional, esta abordagem promove o compartilhamento de poder decisório entre gestores, trabalhadores e usuários, superando modelos tradicionais centralizados e hierárquicos que historicamente caracterizaram a administração pública brasileira.
O processo de construção do SUS, consolidado pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado pelas Leis 8.080/90 e 8.142/90, estabeleceu as bases para uma nova concepção de gestão em saúde, incorporando princípios democráticos e participativos como elementos estruturantes. A Lei 8.142/90, especialmente, institucionalizou a participação da comunidade por meio dos Conselhos e Conferências de Saúde, inaugurando um paradigma inovador na formulação e controle das políticas públicas de saúde.
A criação da Secretaria de Gestão Participativa pelo Ministério da Saúde em 2003, posteriormente transformada em Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, representou um marco institucional significativo para o fortalecimento e a articulação dos instrumentos de gestão participativa em âmbito nacional. Esta iniciativa sinalizou o reconhecimento governamental da importância de espaços democráticos para o aprimoramento da gestão do trabalho em saúde.
Entretanto, apesar dos avanços normativos e institucionais, a efetiva implementação dos mecanismos de gestão participativa ainda enfrenta obstáculos consideráveis. Frequentemente, observa-se a predominância de práticas gerenciais burocratizadas e autoritárias, que limitam o potencial transformador desses instrumentos e comprometem a democratização das relações laborais no ambiente do SUS.
Nesse contexto, emerge a relevância de investigar como os instrumentos de gestão participativa contribuem para a democratização das relações de trabalho no SUS, considerando suas potencialidades e limitações. Essa análise torna-se particularmente significativa diante dos desafios contemporâneos enfrentados pelo sistema de saúde brasileiro, que demandam o fortalecimento da participação dos trabalhadores e usuários nos processos decisórios.
O presente estudo tem como objetivo analisar os instrumentos da gestão participativa no âmbito do Sistema Único de Saúde e sua relevância para a democratização das relações de trabalho, identificando suas características, modos de implementação e impactos na valorização dos profissionais de saúde. A pesquisa justifica-se pela necessidade de compreender e potencializar mecanismos que fortaleçam o protagonismo dos trabalhadores da saúde, contribuindo para o aprimoramento da qualidade dos serviços prestados à população brasileira.
MÉTODOS
Esta investigação caracteriza-se como uma pesquisa bibliográfica com abordagem qualitativa, empregando a análise de conteúdo como método para o tratamento dos dados obtidos. A opção por este desenho metodológico justifica-se pela necessidade de compreender em profundidade os aspectos conceituais e operacionais dos instrumentos de gestão participativa no SUS, bem como sua interface com a democratização das relações de trabalho.
O levantamento bibliográfico foi realizado entre janeiro e março de 2025, nas seguintes bases de dados: Portal de Periódicos CAPES, Scientific Electronic Library Online (SciELO), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), PubMed e Directory of Open Access Journals (DOAJ). Adicionalmente, foram consultados documentos oficiais do Ministério da Saúde, normativas e legislações relacionadas à gestão participativa no SUS.
Para a seleção dos materiais, foram utilizados os seguintes descritores, conforme os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS): “gestão do trabalho em saúde”, “ouvidoria”, “controle social”, “gestão participativa”, “Sistema Único de Saúde”, “democratização” e “relações de trabalho”. Estes descritores foram combinados em diferentes estratégias de busca utilizando os operadores booleanos AND e OR para ampliar o escopo e a precisão da pesquisa.
Os critérios de inclusão adotados foram: a) publicações dos últimos cinco anos (2020-2025); b) textos em português, inglês ou espanhol; c) artigos científicos, livros, teses, dissertações ou documentos institucionais que abordassem diretamente os instrumentos de gestão participativa no SUS e/ou sua relação com as relações de trabalho. Foram excluídos da análise: a) textos que não apresentavam resumo ou texto completo disponível; b) publicações que apenas mencionavam, sem aprofundar, os instrumentos de gestão participativa; c) materiais duplicados ou com inconsistências metodológicas.
O processo de análise seguiu as três etapas preconizadas por Bardin para a análise de conteúdo¹: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Na pré-análise, realizou-se a leitura flutuante do material selecionado, formulando hipóteses preliminares e estabelecendo indicadores para interpretação. Na fase de exploração, procedeu-se à codificação e categorização temática do conteúdo. Por fim, no tratamento dos resultados, realizou-se a condensação e o destaque das informações para análise, culminando em interpretações inferenciais.
As categorias de análise foram organizadas a partir da identificação dos principais instrumentos de gestão participativa mencionados na literatura: Conselhos de Saúde, Conferências de Saúde, Ouvidorias do SUS, Mesas de Negociação Permanente e Planos de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS). Para cada instrumento, buscou-se identificar suas características, modos de implementação e contribuições para a democratização das relações de trabalho no SUS.
RESULTADOS
A análise da literatura permitiu identificar cinco principais instrumentos de gestão participativa no SUS que possuem interface direta com a democratização das relações de trabalho. Estes instrumentos serão apresentados a seguir, destacando-se suas características, implementação e contribuições.
Conselhos de Saúde
Os Conselhos de Saúde constituem espaços colegiados permanentes, instituídos pela Lei 8.142/90, com representação paritária de usuários em relação aos demais segmentos (trabalhadores, gestores e prestadores de serviços). Exercem funções deliberativas, normativas e fiscalizadoras, atuando na formulação de estratégias e controle da execução da política de saúde².
O estudo de Santos e colaboradores sobre a publicização dos instrumentos de gestão do SUS pelos conselhos de saúde revelou que apenas 55,6% dos conselhos das capitais brasileiras disponibilizam informações sobre suas atividades em portais eletrônicos, demonstrando limitações na transparência e no acesso às informações³. A mesma investigação identificou que a participação dos trabalhadores de saúde nas deliberações dos conselhos contribui para a qualificação das decisões e para a defesa de condições dignas de trabalho.
A interlocução entre trabalhadores e gestores nos conselhos potencializa o desenvolvimento de políticas de gestão do trabalho mais democráticas, já que a presença ativa de trabalhadores nos espaços deliberativos do SUS não apenas legitima as decisões tomadas, mas também incorpora perspectivas fundamentadas na experiência cotidiana dos serviços. Quando os trabalhadores participam efetivamente dos conselhos, observa-se maior atenção às políticas de valorização profissional, melhoria das condições laborais e desenvolvimento de planos de carreira condizentes com as necessidades do sistema. Esta dinâmica contribui para a superação do histórico modelo vertical de administração, substituindo-o por práticas de cogestão que reconhecem o protagonismo de todos os atores envolvidos no processo de trabalho em saúde.⁴
Conferências de Saúde
As Conferências de Saúde são instâncias colegiadas de caráter consultivo que se reúnem periodicamente para avaliar e propor diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes. São espaços ampliados de participação social que complementam a atuação dos conselhos, mobilizando diversos setores da sociedade em torno das questões sanitárias⁵.
A análise das deliberações das últimas conferências nacionais de saúde evidencia a recorrência de propostas relacionadas à valorização do trabalho em saúde, demonstrando a centralidade deste tema nas discussões participativas. Entre as propostas mais frequentes, destacam-se: implementação de PCCS único para o SUS, desprecarização dos vínculos trabalhistas, educação permanente e melhoria das condições de trabalho⁶.
Tomando como exemplo os desafios para a participação popular em saúde a partir da experiência de educação popular na construção de um conselho local em João Pessoa, e destaca-se que as conferências de saúde, quando efetivamente democráticas e inclusivas, promovem o encontro de diferentes saberes e perspectivas, possibilitando a emergência de propostas inovadoras para os dilemas da gestão do trabalho em saúde. Contudo, sua realização episódica limita o acompanhamento contínuo das políticas, exigindo articulação permanente com outros instrumentos participativos. O impacto das conferências na democratização das relações de trabalho está diretamente relacionado à capacidade de incorporação de suas deliberações no planejamento e na implementação das políticas de saúde e, mais especificamente, na gestão do trabalho.⁷
Ouvidorias do SUS
As Ouvidorias do SUS configuram-se como canais de comunicação direta entre cidadãos e gestores, permitindo o recebimento, análise e encaminhamento de manifestações dos usuários sobre os serviços de saúde. Atuam como mecanismos de controle social e gestão participativa, contribuindo para a identificação de problemas e aprimoramento da qualidade dos serviços⁸.
A literatura analisada indica que as ouvidorias, quando bem estruturadas, proporcionam informações valiosas sobre as condições de trabalho nos serviços de saúde, a partir das manifestações de usuários e trabalhadores. Pires e colaboradores⁹ identificaram que serviços com ouvidorias atuantes tendem a desenvolver processos de trabalho mais horizontais e democráticos, em resposta às demandas apresentadas.
Destaca-se a relevância das ouvidorias para a gestão participativa e a democratização das relações de trabalho apontando que as ouvidorias representam mais que um canal de reclamações; constituem verdadeiros instrumentos de inteligência coletiva para a gestão. Ao sistematizar as percepções dos usuários sobre o atendimento recebido, iluminam aspectos muitas vezes invisibilizados das relações e processos de trabalho. Esta retroalimentação, quando apropriada pelos gestores e trabalhadores em espaços de discussão coletiva, propicia ajustes e inovações nas práticas laborais. Experiências bem-sucedidas de ouvidorias demonstram que a valorização deste canal de escuta qualifica o trabalho em saúde, promove relações mais horizontais e reduz conflitos entre usuários e profissionais. Contudo, para que cumpra seu potencial democratizante, a ouvidoria não pode limitar-se a receber e encaminhar demandas; deve constituir-se como dispositivo de análise e transformação institucional.¹⁰
Mesas de Negociação Permanente
As Mesas de Negociação Permanente do SUS são fóruns paritários compostos por representantes dos gestores públicos, prestadores de serviços e entidades sindicais dos trabalhadores da saúde. Têm como objetivo estabelecer processos negociais para tratar conflitos e demandas relativas às relações de trabalho no SUS, de forma democrática e pactuada¹¹.
A implementação das mesas de negociação em âmbito nacional, estadual e municipal tem se mostrado desigual no território brasileiro. Rodrigues e colaboradores¹² identificaram maior efetividade deste instrumento em estados e municípios com tradição de participação social e valorização da gestão do trabalho. Nas localidades onde as mesas funcionam regularmente, observam-se avanços na negociação coletiva, na resolução de conflitos e na implementação de políticas de valorização profissional.
Em uma análise da percepção dos trabalhadores sobre o processo de trabalho em um Hospital Universitário Federal foram ressaltados que as Mesas de Negociação Permanente representam um avanço significativo nas relações democráticas de trabalho no SUS, superando o paradigma autoritário que historicamente caracterizou a gestão pública brasileira. Ao institucionalizar o diálogo entre gestores e trabalhadores, este instrumento reconhece o conflito como elemento inerente às relações laborais e estabelece mecanismos para seu tratamento civilizado e produtivo. Quando efetivamente implementadas, as mesas contribuem para a construção de consensos possíveis em torno de temas como condições de trabalho, jornadas, remuneração e carreiras. A experiência tem demonstrado que instituições de saúde que mantêm mesas de negociação ativas tendem a apresentar menor índice de conflitos trabalhistas, maior satisfação profissional e melhor clima organizacional. Entretanto, sua efetividade depende do real compromisso dos gestores com a democratização e da capacidade de organização e mobilização dos trabalhadores.⁴
Planos de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS)
O Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS) constitui um instrumento de gestão do trabalho que estabelece diretrizes para o desenvolvimento profissional dos trabalhadores do SUS, contemplando aspectos como ingresso, progressão, desenvolvimento e remuneração¹³. Sua implementação visa à valorização profissional e à redução da precarização do trabalho no sistema público de saúde.
A análise da literatura evidencia que a elaboração participativa do PCCS, envolvendo representações dos trabalhadores, contribui para sua legitimidade e adequação às necessidades locais. Estudos como o de Pires e colaboradores⁹ demonstram correlação positiva entre a implementação de PCCS e a satisfação profissional, a redução da rotatividade e a melhoria da qualidade dos serviços prestados.
Ao analisar a trajetória de Sergio Arouca como construtor de instituições democráticas, destaca que a concepção do PCCS como instrumento de valorização profissional e democratização das relações de trabalho ultrapassa sua dimensão técnico-administrativa para inserir-se no projeto político de fortalecimento do SUS. Quando elaborado e implementado a partir de processos participativos, o PCCS reflete o reconhecimento do trabalhador como sujeito fundamental na produção de saúde, e não apenas como recurso ou insumo. A história da reforma sanitária brasileira demonstra que a luta por planos de carreira justos e incentivadores sempre esteve associada à defesa da saúde como direito e do trabalho digno como condição para serviços de qualidade. Nesse sentido, o PCCS representa a materialização institucional de valores democráticos na gestão do trabalho, estabelecendo regras transparentes para progressão, reconhecimento de mérito e estímulo ao desenvolvimento profissional contínuo.¹⁴
DISCUSSÃO
A análise dos instrumentos de gestão participativa no SUS revelou seu potencial para democratizar as relações de trabalho em saúde, embora sua implementação ainda enfrente desafios significativos. Esta seção discute os resultados encontrados à luz da literatura científica, estabelecendo conexões com os fundamentos teóricos da gestão participativa e suas implicações práticas.
Os Conselhos de Saúde, conforme evidenciado nos resultados, constituem espaços privilegiados para o exercício do controle social e a democratização da gestão. Entretanto, sua efetividade depende da qualidade da representação dos trabalhadores e da capacidade deliberativa do colegiado. Santos e colaboradores³ identificaram limitações importantes na transparência dos conselhos, corroborando pesquisas anteriores que apontam para o distanciamento entre o potencial transformador destes espaços e sua concretização no cotidiano do SUS¹⁵.
A participação dos trabalhadores nos conselhos de saúde, quando qualificada e representativa, potencializa a incidência sobre políticas de gestão do trabalho. Daneliu e colaboradores⁴ destacam que a experiência cotidiana dos profissionais nos serviços de saúde aporta contribuições substantivas para as deliberações, especialmente em temas relacionados às condições laborais. Esta perspectiva dialoga com a concepção de cogestão proposta por Campos¹⁶, que defende a construção de espaços coletivos onde trabalhadores e gestores compartilham poder decisório.
As Conferências de Saúde, por sua natureza ampliada e mobilizadora, complementam a atuação dos conselhos ao promoverem debates abrangentes sobre os rumos do sistema de saúde. Cruz e colaboradores⁷ observaram que as propostas relacionadas à valorização do trabalho em saúde figuram recorrentemente nas deliberações das conferências, demonstrando a centralidade desta temática para o fortalecimento do SUS. Entretanto, conforme apontado por Pires e colaboradores⁹, a concretização destas propostas depende da permeabilidade das gestões e da capacidade de monitoramento contínuo por parte dos atores sociais em que a incorporação das deliberações das conferências no planejamento e na execução das políticas de saúde constitui um desafio persistente. Análises comparativas das últimas conferências nacionais de saúde revelam a reiteração de propostas relacionadas à gestão do trabalho, como a implementação de planos de carreira e a desprecarização dos vínculos, indicando dificuldades na sua efetivação. Este fenômeno sugere limitações no potencial indutor das conferências e a necessidade de fortalecer mecanismos de monitoramento e responsabilização. Paradoxalmente, a recorrência destas propostas também evidencia a centralidade da valorização do trabalho para a sustentabilidade do sistema público de saúde, na perspectiva dos diversos atores que participam das conferências.⁹
As Ouvidorias do SUS desempenham papel relevante na democratização das relações de trabalho ao canalizarem demandas e percepções dos usuários sobre os serviços de saúde. Engstrom e Silva¹⁰ destacam seu potencial para promover ajustes e inovações nas práticas laborais, a partir do feedback sistemático dos cidadãos. Esta perspectiva encontra respaldo em estudos como o de Rodrigues e colaboradores¹², que identificaram correlação positiva entre a presença de ouvidorias atuantes e o desenvolvimento de ambientes de trabalho mais horizontais e colaborativos.
Entretanto, para que as ouvidorias cumpram efetivamente seu papel democratizante, é necessário superar concepções reducionistas que as limitam a canais de reclamações. Brasil¹⁷ defende que as ouvidorias devem ser compreendidas como dispositivos de análise institucional, capazes de promover reflexões coletivas sobre os processos de trabalho e as relações estabelecidas nos serviços de saúde. Esta abordagem amplia o potencial deste instrumento para além da resolução pontual de demandas individuais.
As Mesas de Negociação Permanente representam uma inovação significativa na gestão do trabalho no SUS, ao institucionalizarem o diálogo entre gestores e trabalhadores. Daneliu e colaboradores⁴ ressaltam que este instrumento reconhece o conflito como elemento inerente às relações laborais e estabelece mecanismos para seu tratamento civilizado e produtivo. Esta concepção alinha-se à teoria das relações de trabalho proposta por Nogueira¹⁸, que compreende o conflito como motor de transformações positivas quando adequadamente mediado.
A implementação desigual das mesas de negociação no território brasileiro, identificada nos resultados, reflete disparidades regionais mais amplas no desenvolvimento do SUS. Estudos como o de Santos e colaboradores³ demonstram maior efetividade deste instrumento em estados e municípios com tradição de participação social e valorização da gestão do trabalho. Este achado sugere a importância de considerar contextos políticos e culturais na análise dos instrumentos participativos.
Os Planos de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS), quando elaborados e implementados participativamente, materializam valores democráticos na gestão do trabalho. Dowbor¹⁴ destaca sua dimensão política, para além dos aspectos técnico-administrativos, como expressão do reconhecimento dos trabalhadores enquanto sujeitos fundamentais na produção de saúde. Esta perspectiva encontra eco na concepção ampliada de gestão do trabalho defendida por Machado¹⁹, que transcende abordagens meramente administrativas ao apontar que a elaboração participativa do PCCS contribui não apenas para sua adequação técnica, mas fundamentalmente para sua legitimidade política. Quando os próprios trabalhadores participam da definição dos critérios de progressão, avaliação e remuneração, estabelece-se um pacto laboral com maior potencial de adesão e efetividade. Experiências bem-sucedidas de implementação de PCCS no SUS demonstram que o envolvimento dos profissionais desde a concepção até o monitoramento do plano favorece sua apropriação coletiva e reduz resistências. Ademais, a discussão sobre carreiras inevitavelmente suscita reflexões sobre o modelo assistencial e a organização dos processos de trabalho, ampliando o escopo do debate para dimensões estruturantes do sistema de saúde.¹⁹
A análise integrada dos instrumentos de gestão participativa revela complementaridades e sinergias potenciais. Santos²⁰ observa que localidades onde múltiplos instrumentos funcionam articuladamente tendem a apresentar relações de trabalho mais democráticas e serviços mais qualificados. Esta constatação sugere a importância de superar abordagens fragmentadas na implementação dos mecanismos participativos, avançando para uma concepção sistêmica da gestão democrática.
Um achado relevante da presente investigação refere-se ao papel da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde na articulação e fortalecimento dos instrumentos analisados. Estudos como o de Engstrom e Silva¹⁰ destacam a importância de políticas nacionais indutoras para a disseminação de práticas participativas no território brasileiro. Esta perspectiva dialoga com o conceito de governança em saúde proposto por Fleury²¹, que enfatiza a necessidade de arranjos institucionais que favoreçam a participação efetiva dos diversos atores no processo decisório.
Entre os desafios identificados para a efetivação dos instrumentos participativos, destacam-se a persistência de culturas gerenciais autoritárias, a fragilidade das representações dos trabalhadores e a descontinuidade das políticas públicas. Rodrigues e colaboradores¹² observam que a alternância de gestões frequentemente compromete a sustentabilidade das iniciativas participativas, gerando desconfiança e desmobilização. Este fenômeno evidencia a necessidade de institucionalizar os mecanismos democráticos, reduzindo sua vulnerabilidade às mudanças políticas, visto que a democratização das relações de trabalho no SUS enfrenta obstáculos estruturais relacionados à cultura organizacional predominante no setor público brasileiro. O legado de práticas gerenciais centralizadoras e autoritárias persiste em muitas instituições de saúde, manifestando-se na resistência à implementação efetiva de instrumentos participativos. Esta resistência frequentemente se expressa na criação de espaços formais de participação, sem o correspondente compartilhamento do poder decisório. Observa-se, assim, uma participação ritualística que legitima decisões previamente tomadas, esvaziando o potencial transformador dos instrumentos de gestão participativa. Superar este paradoxo requer não apenas mudanças normativas e estruturais, mas fundamentalmente uma transformação cultural nas organizações de saúde, com o desenvolvimento de competências para o diálogo, a negociação e a construção coletiva.¹²
A compreensão dos instrumentos de gestão participativa como tecnologias sociais em permanente construção constitui um aporte significativo desta investigação. Dowbor¹⁴ ressalta que a efetividade destes mecanismos depende menos de sua formalização legal e mais de sua apropriação pelos atores sociais envolvidos. Esta perspectiva rompe com visões deterministas que atribuem exclusivamente ao desenho institucional o sucesso ou fracasso das iniciativas participativas.
Por fim, a análise realizada evidencia que a democratização das relações de trabalho no SUS, por meio dos instrumentos de gestão participativa, contribui diretamente para a qualidade da assistência à saúde. Estudos como o de Pires e colaboradores⁹ demonstram que serviços com práticas gerenciais participativas tendem a apresentar melhores indicadores de satisfação dos usuários e resultados assistenciais. Este achado reafirma a indissociabilidade entre a valorização do trabalho em saúde e a efetivação do direito à saúde, princípio fundante do Sistema Único de Saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A investigação sobre os instrumentos de gestão participativa no SUS e suas contribuições para a democratização das relações de trabalho em saúde permitiu identificar avanços significativos e desafios persistentes na implementação destes mecanismos. O estudo revelou o potencial transformador dos Conselhos de Saúde, Conferências de Saúde, Ouvidorias, Mesas de Negociação Permanente e Planos de Cargos, Carreiras e Salários quando efetivamente implementados e articulados entre si.
A análise realizada evidenciou que estes instrumentos, quando apropriados pelos trabalhadores e gestores, contribuem para a construção de relações laborais mais horizontais e democráticas, favorecendo o reconhecimento profissional, a melhoria das condições de trabalho e o desenvolvimento de ambientes institucionais mais participativos. Contudo, observou-se que sua implementação ainda é desigual no território brasileiro, refletindo disparidades regionais mais amplas no desenvolvimento do SUS.
A pesquisa identificou que a cultura organizacional predominante nas instituições públicas de saúde representa um dos principais obstáculos à efetivação dos instrumentos participativos. A persistência de práticas gerenciais centralizadoras e autoritárias frequentemente resulta na formalização de espaços participativos sem o correspondente compartilhamento do poder decisório, esvaziando seu potencial transformador. Esta contradição manifesta-se na criação de instâncias que legitimam decisões previamente tomadas, em detrimento da construção coletiva de alternativas.
O papel indutor das políticas nacionais, especialmente aquelas desenvolvidas pela Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, mostrou-se relevante para a disseminação de práticas participativas no território brasileiro. Entretanto, a descontinuidade destas políticas, frequentemente associada a mudanças de gestão, compromete a sustentabilidade das iniciativas e gera desconfiança entre os atores envolvidos.
A compreensão dos instrumentos de gestão participativa como tecnologias sociais em permanente construção constitui um aporte significativo desta investigação. Sua efetividade depende menos de sua formalização legal e mais de sua apropriação pelos atores sociais envolvidos, o que implica na necessidade de investir continuamente em processos formativos e mobilizadores que qualifiquem a participação.
A interrelação entre a democratização das relações de trabalho e a qualidade da assistência à saúde emergiu como achado relevante da pesquisa. Serviços com práticas gerenciais participativas tendem a apresentar melhores indicadores de satisfação dos usuários e resultados assistenciais, reafirmando a indissociabilidade entre a valorização do trabalho em saúde e a efetivação do direito à saúde.
Para o fortalecimento dos instrumentos de gestão participativa e sua contribuição efetiva para a democratização das relações de trabalho no SUS, recomenda-se: (1) investir em processos formativos que desenvolvam competências para o diálogo, a negociação e a construção coletiva; (2) fortalecer as instâncias de representação dos trabalhadores, garantindo condições para sua atuação qualificada; (3) institucionalizar os mecanismos participativos, reduzindo sua vulnerabilidade às mudanças políticas; (4) promover a articulação entre os diferentes instrumentos, potencializando sinergias; e (5) desenvolver metodologias de monitoramento e avaliação que permitam identificar avanços e obstáculos na implementação das práticas participativas.
O presente estudo contribui para o campo da gestão do trabalho em saúde ao sistematizar conhecimentos sobre os instrumentos de gestão participativa e suas interfaces com a democratização das relações laborais. Contudo, reconhecem-se limitações metodológicas relacionadas à abrangência da revisão bibliográfica e à dificuldade de acesso a experiências locais não documentadas na literatura científica. Pesquisas futuras poderiam explorar estudos de caso específicos, analisando em profundidade experiências bem-sucedidas de implementação dos instrumentos participativos em diferentes contextos do SUS.
A construção de um sistema de saúde verdadeiramente democrático e participativo permanece como desafio e horizonte ético-político para gestores, trabalhadores e usuários. Nesta perspectiva, os instrumentos de gestão participativa constituem não apenas mecanismos operacionais, mas expressões de um projeto societário fundamentado na defesa da saúde como direito de cidadania e do trabalho digno como condição para sua efetivação.
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