REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202507281406
Orientador: Dr. Ramon Araújo Gonçalves1
Danielle Priscila de Oliveira Melo2
Alexandre Dal-ri Pagani3
Sthefany da Fonseca Leal4
RESUMO
As infecções urinárias de repetição (IUR) representam uma condição de alta prevalência entre mulheres jovens na pré-menopausa, com um impacto substancialmente negativo na qualidade de vida, produtividade e bem-estar psicossocial. O manejo clínico desta condição é complexo, frequentemente resultando em um ciclo vicioso de tratamentos antibióticos recorrentes que contribuem para o aumento da resistência antimicrobiana. O objetivo deste artigo é sistematizar a abordagem clínica e preventiva das IUR, oferecendo um guia prático e atualizado para o clínico. Por meio de uma revisão narrativa da literatura, com ênfase em diretrizes de sociedades de especialidade e revisões sistemáticas recentes, foram sintetizadas as evidências sobre a investigação diagnóstica, a fisiopatologia e os fatores de risco associados. A discussão aprofunda as estratégias preventivas, organizadas de forma escalonada: inicia-se com medidas comportamentais e de estilo de vida, progride para intervenções não-antibióticas como produtos à base de cranberry, D-manose e probióticos, avança para a imunoprofilaxia ativa com lisados bacterianos e, por fim, detalha o uso criterioso da profilaxia antibiótica em suas diferentes modalidades. Conclui-se que a chave para o sucesso terapêutico e para a quebra do ciclo de recorrência reside na elaboração de um plano de manejo individualizado, que prioriza estratégias não-antibióticas e a educação da paciente, em um processo de decisão compartilhada.
Palavras-chave: Infecção Urinária; Cistite; Prevenção & Controle; Saúde da Mulher. Microbiota.
INTRODUÇÃO
A infecção do trato urinário (ITU) é uma das patologias infecciosas de origem bacteriana mais comuns na prática clínica, acometendo aproximadamente 50% a 60% das mulheres em algum momento de suas vidas (FEDERAÇÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA, 2021; SOCIEDADE BRASILEIRA DE NEFROLOGIA, 2021). Embora um episódio agudo de cistite seja geralmente de fácil manejo, uma parcela significativa dessas pacientes desenvolve um quadro de infecção urinária de repetição (IUR), definida classicamente pelas diretrizes da American Urological Association (AUA) e da European Association of Urology (EAU) como a ocorrência de dois ou mais episódios sintomáticos e com cultura positiva em um período de seis meses, ou três ou mais episódios em um ano (AMERICAN UROLOGICAL ASSOCIATION, 2022; EUROPEAN ASSOCIATION OF UROLOGY, 2024).
O problema central das IUR transcende o mero desconforto físico. A condição impõe um ciclo vicioso de dor, urgência miccional, absenteísmo laboral e escolar, e um impacto psicológico profundo (CARO-CONDOR et al., 2023). Estudos demonstram uma redução quantificável na qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS), com prejuízos em domínios físicos, sociais e de produtividade no trabalho (CARO-CONDOR et al., 2023; RUTIIQ STUDY GROUP, 2024). Clinicamente, o manejo das IUR apresenta um dilema significativo: a necessidade de tratar eficazmente os episódios agudos versus a urgência de prevenir futuras ocorrências. Essa tensão é agravada pelo cenário global de crescente resistência antimicrobiana, onde a prescrição repetida de antibióticos não apenas expõe a paciente a efeitos adversos, mas também contribui para a seleção de cepas bacterianas multirresistentes, um dos maiores desafios de saúde pública da atualidade (EUROPEAN ASSOCIATION OF UROLOGY, 2024).
A prática de simplesmente prescrever um novo ciclo de antibióticos a cada recorrência é insustentável e inadequada. Existe uma necessidade premente de uma abordagem estruturada e de longo prazo, que vá além do tratamento reativo. Essa abordagem deve se basear na compreensão da fisiopatologia da recorrência, na identificação de fatores de risco individuais e na aplicação de uma gama de estratégias preventivas, priorizando aquelas que não envolvem antibióticos. A lacuna no conhecimento clínico muitas vezes não está na falta de opções, mas na falta de uma sistematização que guie o médico na escolha e no escalonamento dessas intervenções.
O objetivo desta revisão é fornecer ao clínico uma abordagem sistemática e baseada em evidências para o diagnóstico e manejo de infecções urinárias de repetição em mulheres jovens na pré-menopausa, detalhando as estratégias preventivas, desde medidas comportamentais até opções farmacológicas.
METODOLOGIA
Este artigo consiste em uma revisão narrativa da literatura, conduzida com o objetivo de sintetizar as evidências mais atuais e clinicamente relevantes para o manejo de IUR em mulheres jovens.
As fontes de dados utilizadas incluíram as bases eletrônicas PubMed, SciELO, LILACS e a Cochrane Library. A estratégia de busca foi desenhada para capturar publicações de alto impacto e relevância clínica, utilizando uma combinação dos seguintes Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e Medical Subject Headings (MeSH): “Urinary Tract Infections”, “Cystitis”, “Recurrence”, “Prevention”, “Women’s Health”, “Anti-Bacterial Agents”, “Probiotics”, “Cranberry” e “Immunotherapy”.
Os critérios de inclusão foram definidos para focar na população de interesse e no mais alto nível de evidência disponível. Foram incluídos: revisões sistemáticas, meta-análises e diretrizes clínicas publicadas por sociedades de especialidades de renome internacional e nacional (e.g., AUA, EAU, FEBRASGO) nos últimos 10 anos. Foram excluídos estudos cujo foco principal era a população pediátrica, gestantes ou mulheres na pós-menopausa, bem como relatos de caso e séries de casos, a fim de manter o foco em evidências generalizáveis.
A análise dos dados foi realizada de forma descritiva e sintética. As informações coletadas foram organizadas e consolidadas com foco na aplicabilidade clínica direta. O principal produto desta análise é a criação de um roteiro de manejo escalonado, que visa guiar o raciocínio do clínico desde a avaliação inicial até a implementação de estratégias preventivas complexas, sempre fundamentado nas melhores evidências disponíveis.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Fisiopatologia e Fatores de Risco: O Terreno Fértil para a Recorrência
A compreensão da fisiopatologia da IUR é o primeiro passo para um manejo eficaz. A infecção geralmente ocorre por via ascendente, com bactérias da microbiota fecal colonizando a região periuretral e, subsequentemente, a bexiga (SOCIEDADE BRASILEIRA DE UROLOGIA, 2011). O agente etiológico predominante, responsável por mais de 75% dos casos de cistite aguda não complicada, é a Escherichia coli uropatogênica (UPEC) (FEDERAÇÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA, 2021).
Um conceito fundamental na IUR é que a recorrência frequentemente não é uma nova infecção, mas sim uma recidiva (ou relapse) da infecção original. Estudos de sequenciamento genético confirmam que até 77% das IUR são causadas pela mesma cepa bacteriana que sobreviveu ao tratamento antibiótico inicial (UQORA, 2023). O principal mecanismo que permite essa persistência bacteriana é a formação de biofilmes. Biofilmes são comunidades bacterianas estruturadas, envoltas por uma matriz polimérica autoproduzida, que se aderem à superfície do urotélio. Essa estrutura funciona como um escudo, protegendo as bactérias tanto do sistema imunológico do hospedeiro quanto da penetração dos antibióticos (UQORA, 2023). Dentro desses biofilmes, as bactérias podem permanecer em um estado de dormência metabólica, tornando-se insensíveis a muitos antibióticos que atuam sobre células em replicação. Periodicamente, as bactérias podem se desprender do biofilme e voltar a um estado planctônico, causando um novo episódio sintomático (UQORA, 2023). Além dos biofilmes, a UPEC pode invadir as células uroteliais e formar reservatórios intracelulares quiescentes (QIRs), outra fonte de persistência e recidiva (UQORA, 2023).
É crucial distinguir entre recidiva (relapse), que é a persistência do patógeno original, e reinfecção, que é uma nova infecção por uma cepa diferente ou pela mesma cepa após a erradicação comprovada. Em mulheres jovens, a reinfecção é considerada o mecanismo mais comum, embora a persistência via biofilmes desempenhe um papel subestimado (AMERICAN ACADEMY OF FAMILY PHYSICIANS, 2010).
O desenvolvimento de IUR é influenciado por uma interação complexa entre a virulência do patógeno e os fatores de risco do hospedeiro. Em mulheres jovens e sexualmente ativas, esses fatores são bem definidos e devem ser ativamente investigados na anamnese.
| Categoria | Fator de Risco | Mecanismo Proposto |
|---|---|---|
| Comportamentais | Frequência de atividade sexual | Principal fator de risco. Facilita a inoculação mecânica de bactérias periuretrais para a bexiga (AMERICAN ACADEMY OF FAMILY PHYSICIANS, 2010). |
| Novo parceiro sexual | Pode introduzir novas cepas de UPEC na microbiota da parceira. | |
| Uso de espermicidas (com ou sem diafragma) | Altera a microbiota vaginal protetora (dominada por Lactobacillus), permitindo a proliferação de E. coli (AMERICAN UROLOGICAL ASSOCIATION, 2024). | |
| Históricos | História de ITU na infância | Sugere uma predisposição subjacente, possivelmente anatômica ou imunológica. |
| História materna de IUR | Aponta para uma possível predisposição genética a uma maior suscetibilidade. | |
| Biológicos | Colonização vaginal por UPEC | A presença de E. coli na vagina é um pré-requisito para a ascensão uretral. |
| Disbiose da microbiota vaginal | A depleção de Lactobacillus produtores de peróxido de hidrogênio e ácido lático eleva o pH vaginal e reduz a barreira contra patógenos (GRIN et al., 2013). | |
| Fatores genéticos/anatômicos | Receptores específicos na superfície das células uroteliais que facilitam a adesão bacteriana; uretra curta. |
Tabela 1: Fatores de Risco para IUR em Mulheres na Pré-Menopausa.
O próprio tratamento antibiótico, embora necessário para o episódio agudo, pode perpetuar o ciclo de recorrência. Ao erradicar não apenas o patógeno, mas também a microbiota vaginal comensal protetora, o antibiótico cria um ambiente mais propício para a recolonização por UPEC, aumentando a vulnerabilidade a uma reinfecção futura. Este ciclo de infecção-tratamento-disbiose-reinfecção é um dos pilares do desafio clínico das IUR.
Abordagem Diagnóstica Estruturada: Confirmar e Saber Quando Aprofundar
Uma abordagem diagnóstica rigorosa é fundamental no manejo das IUR. O primeiro passo é afastar a ideia de que “toda disúria é ITU”. Diagnósticos diferenciais como vaginites, uretrites (e.g., por Chlamydia trachomatis ou Neisseria gonorrhoeae), síndrome da bexiga dolorosa e vulvodínia devem ser considerados.
A pedra angular do diagnóstico, conforme enfatizado pela AUA, é a documentação de uroculturas positivas associadas aos episódios sintomáticos (AMERICAN UROLOGICAL ASSOCIATION, 2022). A recomendação é obter uma urinálise e uma urocultura com antibiograma (TSA) a cada episódio agudo, antes de iniciar o tratamento. Isso cumpre três objetivos cruciais:
- Confirma o diagnóstico: Distingue uma ITU bacteriana de outras causas de sintomas do trato urinário inferior.
- Guia a terapia aguda: Permite um tratamento direcionado, em vez de empírico, o que é vital em uma era de resistência crescente.
- Estabelece o padrão de recorrência: Confirma que a paciente de fato sofre de IUR, justificando a consideração de estratégias preventivas.
É essencial orientar a paciente sobre a coleta adequada da urina (jato médio, após higiene local) para minimizar as taxas de contaminação, que podem levar a resultados falso-positivos e tratamentos desnecessários (AMERICAN UROLOGICAL ASSOCIATION, 2022).
Uma questão frequente é quando investigar mais a fundo com exames de imagem ou endoscópicos. Para a maioria das mulheres jovens com IUR não complicada, a investigação anatômica não é necessária. No entanto, a EAU e a AUA recomendam uma avaliação urológica mais aprofundada em cenários específicos (EUROPEAN ASSOCIATION OF UROLOGY, 2024; AMERICAN UROLOGICAL ASSOCIATION, 2022):
- Suspeita de litíase renal ou vesical.
- Hematúria macroscópica ou microscópica persistente após a resolução da infecção.
- Sintomas de obstrução do trato urinário (e.g., jato fraco, esvaziamento incompleto).
- Infecções por patógenos atípicos, especialmente os produtores de urease como Proteus mirabilis, que estão fortemente associados à formação de cálculos de estruvita.
- Falha terapêutica ou recidiva muito rápida após um tratamento adequado.
Nesses casos, a ultrassonografia de rins e vias urinárias é geralmente o exame de imagem inicial de escolha. A uretrocistoscopia pode ser considerada para avaliar a uretra e a bexiga em busca de anormalidades como divertículos ou fístulas.
Estratégias Preventivas Não-Farmacológicas (Primeira Linha): Construindo a Base
A base de qualquer plano preventivo para IUR deve ser composta por estratégias não farmacológicas. Essas intervenções são seguras, de baixo custo e capacitam a paciente a tomar um papel ativo no seu cuidado. Devem ser a primeira linha de abordagem para todas as mulheres com IUR.
| Estratégia | Mecanismo de Ação Proposto | Nível de Evidência (Resumo) | Considerações Clínicas |
|---|---|---|---|
| Aumento da Ingestão Hídrica | Aumento do fluxo urinário (“flushing effect”), diluição de bactérias e mediadores inflamatórios. | Forte. Um ensaio clínico randomizado (RCT) demonstrou uma redução de ~50% nas recorrências em mulheres que aumentaram a ingestão em 1,5 L/dia (COSTA et al., 2022). | Recomendação de primeira linha, especialmente para mulheres com baixo consumo de líquidos (<1,5 L/dia). Meta de diurese clara e pálida. |
| Medidas Comportamentais | Micção pós-coito, higiene perineal (frente para trás), evitar duchas vaginais e banhos de banheira prolongados. | Fraco a Moderado. Baseado principalmente em estudos de caso-controle e lógica fisiopatológica, não em RCTs robustos (COSTA et al., 2022; AMERICAN ACADEMY OF FAMILY PHYSICIANS, 2010). | Apesar da evidência limitada, são recomendações de baixo risco e devem ser incluídas na educação da paciente como parte de um pacote de autocuidado. |
| Abandono de Espermicidas | Prevenção da disbiose vaginal causada por espermicidas que favorece a colonização por E. coli. | Forte. A associação entre uso de espermicidas e IUR é bem estabelecida. | Aconselhar métodos contraceptivos alternativos é uma intervenção de alto impacto para usuárias de diafragma/espermicida (AMERICAN UROLOGICAL ASSOCIATION, 2024). |
| Cranberry / D-Manose | Inibição da adesão da UPEC às células uroteliais através das proantocianidinas (PACs) tipo A (cranberry) ou competição com receptores de manose (D-manose). | Moderado a Forte (Cranberry). A revisão Cochrane de 2023 (WILLIAMS et al., 2023) concluiu que produtos de cranberry reduzem o risco de IUR sintomática em mulheres com recorrência. A evidência para D-manose é promissora, mas baseada em menos estudos. | Aconselhar o uso de produtos padronizados com dose conhecida de PACs. A eficácia pode variar. É uma opção válida antes de considerar antibióticos. |
| Probióticos Vaginais (Lactobacillus) | Restauração da microbiota vaginal protetora, manutenção do pH ácido e produção de substâncias antimicrobianas. | Moderado (Emergente). Meta-análises são conflitantes. No entanto, RCTs recentes de alta qualidade mostram benefício significativo da administração vaginal em comparação com a oral ou placebo (ARORA et al., 2024; GRIN et al., 2013). | A via de administração parece ser crucial. Probióticos vaginais (supositórios/cápsulas) são uma opção promissora para restaurar a barreira local. |
Tabela 2: Sumário das Estratégias Preventivas Não-Antibióticas.
A discussão sobre suplementos como cranberry e probióticos evoluiu significativamente. A questão não é mais simplesmente “se” eles funcionam, mas sim “para quem”, “qual produto” e “de que forma”. A revisão Cochrane de 2023 sobre cranberry (WILLIAMS et al., 2023) foi um marco, revertendo a conclusão negativa de sua versão de 2012 e fornecendo evidências de certeza moderada de que os produtos de cranberry são eficazes para mulheres com IUR (WILLIAMS et al., 2023; PCMEDPROJECT, 2023). Isso reforça a sua posição como uma intervenção não-antibiótica legítima. Da mesma forma, a evidência emergente sobre probióticos vaginais sugere que a abordagem local, visando restaurar a primeira linha de defesa da mulher – a microbiota vaginal –, é mais lógica e eficaz do que a administração oral para a prevenção de IUR (ARORA et al., 2024).
Estratégias Preventivas Farmacológicas (Segunda e Terceira Linhas): Quando a Base Não é Suficiente
Para pacientes cujas recorrências persistem apesar da adesão às estratégias de primeira linha, a farmacoprofilaxia se torna necessária. É fundamental que a abordagem seja escalonada, priorizando opções não-antibióticas antes de recorrer à profilaxia antibiótica de longo prazo.
Imunoprofilaxia Ativa (Segunda Linha)
A imunoprofilaxia com o lisado bacteriano OM-89 (Uro-Vaxom®) representa uma mudança de paradigma no manejo da IUR. Trata-se de uma intervenção farmacológica não-antibiótica que age fortalecendo o sistema imunológico da própria paciente. O OM-89 é uma preparação oral que contém lisados liofilizados de 18 cepas de E. coli (BAUER; MÜLLER, 2023; LATTANZI et al., 2024).
O mecanismo de ação envolve a estimulação do tecido linfoide associado à mucosa (MALT) no intestino. Isso desencadeia uma resposta imune que inclui a ativação de macrófagos, células dendríticas e linfócitos T, e um aumento na produção de imunoglobulinas, especialmente a IgA secretora, que é transportada para a mucosa do trato urinário, aumentando a defesa local contra a invasão bacteriana (BEER et al., 2011; LATTANZI et al., 2024).
A eficácia do OM-89 é robusta e sustentada por múltiplas revisões sistemáticas e meta-análises. Os estudos demonstram uma redução significativa na taxa de recorrência de ITUs, variando de 34% a mais de 60% em comparação com o placebo, além de uma diminuição na necessidade de uso de antibióticos e uma melhora na sintomatologia (BAUER; MÜLLER, 2023; LATTANZI et al., 2024). As diretrizes da EAU recomendam o OM-89 como uma opção profilática eficaz (EUROPEAN ASSOCIATION OF UROLOGY, 2024). O regime padrão é de uma cápsula ao dia por 90 dias, podendo ser seguido por ciclos de reforço. A sua excelente tolerabilidade e o mecanismo de ação que promove a imunidade do hospedeiro, em vez de atacar a bactéria, posicionam a imunoprofilaxia como uma etapa intermediária crucial e altamente desejável antes da consideração da antibioticoprofilaxia crônica.
Profilaxia com Antibióticos (Terceira Linha)
A profilaxia com antibióticos é uma estratégia altamente eficaz, com uma meta-análise mostrando uma redução de risco de até 85% em comparação com o placebo (CAI et al., 2022). No entanto, seu uso deve ser criterioso e reservado para casos refratários, após falha das medidas anteriores e uma discussão aprofundada com a paciente sobre os riscos (efeitos adversos, disbiose, desenvolvimento de resistência) e benefícios. Existem três modalidades principais:
| Modalidade | Indicação Principal | Regimes Comuns (Fármaco e Dose) | Principais Riscos e Considerações |
|---|---|---|---|
| Profilaxia Contínua | IUR frequentes (≥1/mês) e não associadas a gatilhos específicos como o coito. | – Nitrofurantoína: 50-100 mg/dia – Trimetoprima-Sulfametoxazol (TMP-SMX): 40/200 mg/dia – Cefalexina: 125-250 mg/dia – Fosfomicina: 3 g a cada 10 dias | Risco de efeitos adversos a longo prazo (e.g., toxicidade pulmonar/hepática com nitrofurantoína). Seleção de resistência bacteriana. Duração geralmente de 3 a 6 meses, com reavaliação. |
| Profilaxia Pós-Coito | IUR com clara associação temporal com a atividade sexual. | – Nitrofurantoína: 50-100 mg – TMP-SMX: 40/200 mg ou 80/400 mg – Cefalexina: 250 mg (Dose única até 2h após a relação) | Tão eficaz quanto a profilaxia contínua para este subgrupo, mas com menor exposição total a antibióticos. Menor risco de efeitos adversos e resistência. |
| Autotratamento Iniciado pela Paciente | Pacientes bem orientadas, confiáveis e com IUR menos frequentes (<1/mês). | Fornecer receita para um curso curto (3 dias) de um antibiótico de primeira linha (e.g., Fosfomicina, Nitrofurantoína). | Empodera a paciente e permite tratamento precoce. Reduz o uso geral de antibióticos em comparação com a profilaxia contínua. Requer excelente educação e adesão da paciente. |
Tabela 3: Modalidades e Regimes de Profilaxia com Antibióticos. Fontes: (AMERICAN UROLOGICAL ASSOCIATION, 2022; CAI et al., 2022; EUROPEAN ASSOCIATION OF UROLOGY, 2024).
A escolha da modalidade deve ser uma decisão compartilhada. A profilaxia pós-coito é a opção preferencial para mulheres com IUR associada à atividade sexual. O autotratamento é uma excelente alternativa para reduzir a exposição a antibióticos em pacientes selecionados. A profilaxia contínua, embora muito eficaz, deve ser a última opção, usada pelo menor tempo necessário e com monitoramento cuidadoso.
Proposta de um Plano de Manejo Individualizado e Escalonado
A síntese das evidências apresentadas permite a construção de um fluxograma de manejo clínico, que serve como um guia prático para a abordagem da mulher jovem com IUR.
Passo 1: Fundamentação Diagnóstica e Comportamental
- Ação: Confirmar o diagnóstico de IUR com base em histórico de episódios sintomáticos e uroculturas positivas. Realizar anamnese detalhada e exame ginecológico para identificar fatores de risco.
- Intervenção: Iniciar com educação da paciente, focando em medidas comportamentais de primeira linha: aumento da ingestão hídrica, aconselhamento sobre contracepção (evitar espermicidas) e discussão sobre higiene e hábitos miccionais.
Passo 2: Introdução de Estratégias Não-Antibióticas
- Ação: Se as recorrências persistirem após 3-6 meses de adesão ao Passo 1, introduzir uma intervenção não-antibiótica.
- Intervenção: Discutir as opções com a paciente. Produtos padronizados de cranberry ou D-manose são uma escolha com evidência moderada a forte. Probióticos vaginais são uma opção emergente e promissora, especialmente se houver histórico de vaginose ou disbiose.
Passo 3: Imunoprofilaxia Ativa
- Ação: Para pacientes que continuam com IUR debilitantes apesar dos Passos 1 e 2.
- Intervenção: Prescrever um ciclo de imunoprofilaxia com OM-89. Esta é a principal estratégia farmacológica não-antibiótica, atuando como uma ponte essencial antes de se considerar a antibioticoprofilaxia crônica.
Passo 4: Uso Criterioso da Profilaxia com Antibióticos
- Ação: Reservado para os casos mais refratários, onde as IUR continuam a ter um impacto significativo na qualidade de vida, apesar da implementação dos passos anteriores.
- Intervenção: Realizar uma discussão de decisão compartilhada sobre os riscos e benefícios. Escolher a modalidade mais adequada ao perfil da paciente (pós-coito, autotratamento ou contínua), utilizando o antibiótico de espectro mais estreito possível, guiado por culturas prévias, e pela menor duração eficaz.
CONCLUSÃO
A infecção urinária de repetição em mulheres jovens é uma condição clínica complexa e multifatorial, cujo manejo eficaz exige uma abordagem que transcende o simples tratamento de episódios agudos isolados. O impacto debilitante na qualidade de vida e o risco crescente de resistência antimicrobiana demandam uma estratégia proativa, preventiva e centrada na paciente.
Esta revisão sistematiza a evidência atual e propõe um plano de manejo escalonado que se mostra fundamental para o sucesso a longo prazo. A priorização de estratégias não-antibióticas – desde modificações comportamentais e aumento da hidratação até o uso de produtos de cranberry, probióticos vaginais e, crucialmente, a imunoprofilaxia ativa – constitui a espinha dorsal de um tratamento racional e sustentável. A profilaxia antibiótica, embora eficaz, deve ser reservada como uma ferramenta de terceira linha, utilizada de forma criteriosa e personalizada.
A chave para quebrar o ciclo de recorrência reside na individualização do plano preventivo. Uma avaliação cuidadosa dos fatores de risco, da frequência e dos gatilhos das infecções, aliada a um processo de decisão compartilhada que respeite as preferências e valores da paciente, é o caminho mais seguro e eficaz para restaurar a saúde e o bem-estar dessas mulheres.
REFERÊNCIAS
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1ramongo2000@hotmail.com – Médico Graduado pela Unifagoc.
2danielleomelo@gmail.com – Médica Graduada Centro Universitário Maurício de Nassau.
3aledrpa@gmail.com – Médico formado pela Universidade do Vale do Taquari.
4sthefanyleal@outlook.com – Graduada em Universidade Federal do Piauí (UFPI).
