INDÍGENAS, MILITARES E AVENTUREIROS NAS ORIGENS DE SANTA MARIA DA BOCA DO MONTE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10249061410


Eliezer Pacheco[1]


1 INTRODUÇÃO

A “lenda” vincula a origem de Santa Maria ao romance entre a Índia Imenbuí e o português Rodrigo, história criada por Cezimbra Jaques em seu livro “Assuntos do Rio Grande do Sul” (1912).

Incrivelmente, este texto ficcional acaba se transformando em lenda e elemento importante na leitura sobre as origens de Santa Maria. João Belém (História do Município de Santa Maria-1797/1933, 2000) contribuiria para isto apresentando-a como lenda, embora o próprio Cezimbra Jacques tenha ressaltado o caráter ficcional desta história.

Na verdade, a história do município está ligada a aspectos menos românticos e mais às lutas fronteiriças entre Espanha e Portugal, à diáspora guaranítica provocada pela destruição das Reduções Jesuíticas e a vinda de aventureiros, desertores e indivíduos que se aventuravam por estas terras desconhecidas.

2 AS ORIGENS

Os povos originários desta região foram os Tapes e os Minuanos, vindos para aí há milhares de anos. Os primeiros contatos com eles foram feitos pelo padre espanhol Antônio Ruiz Montoya, que registra estes acontecimentos na obra “A Conquista Espiritual”.

Esta região era chamada de Monte dos Tapes. Mais tarde chega aí também o Padre Adriano Formoso, acompanhado por alguns Guaranis. É com este povo que os Jesuítas vão estabelecer relações, catequizando-os e adentrando neste território, não sem resistência dos Tapes. Em 24 de janeiro de 1634 os Jesuítas fundam a Redução de São Cosme e São Damião, cujo território abrangia toda esta vasta área onde, mais tarde, surgiria Santa Maria.

Aos poucos os Tapes foram sendo “guaranisados” pelos jesuítas. Esta Redução é transferida em 1640 para a região onde atualmente fica Santa Rosa, mais precisamente, para onde hoje se localiza Porto Vera Cruz. Depois de intensos combates com os Bandeirantes migraram para o Paraguai, retornando posteriormente para o Rio Grande do Sul, iniciando o processo de formação dos Sete Povos das Missões. Passam a organizar o gado disperso pela região nas chamadas Estâncias Missioneiras, praticando também alguma agricultura.

Entre estas estâncias, estava a Estância de São Luiz Gonzaga cujo território se expandia por onde hoje se localizam Santa Maria, Agudo, Novos Cabrais, Cachoeira do Sul e outras. Quando se intensifica a expansão portuguesa do leste para oeste começam os conflitos com os índios responsáveis pelas fazendas de gado. Tentando resolver os conflitos, Portugal e Espanha assinam, em 1750, o Tratado de Madrid. Por este tratado, os índios missioneiros deveriam abandonar os Sete Povos, o que não aceitaram, dando causa a Guerra Guaranítica, entre 1754 e 1756.

Com a derrota dos indígenas haverá uma grande dispersão destes, vindo uma expressiva parcela para onde surgiria Santa Maria. Entre 1756 e 1797 este território é ocupado por fazendeiros e índios dispersos das Missões estes, geralmente, trabalhando para aqueles.

Em 1756, seis anos após o Tratado de Madrid, o Gen. Gomes Freire de Andrade, à frente de cerca de 300 homens, tenta demarcar as terras, estabelecendo os limites com as terras de Espanha. Transpoē o Rio Ibicuí no Passo São Martinho, conseguindo subir a serra e levando sua tropa até a região conhecida como Boca do Monte, considerada adequada ao povoamento.

 A área, entretanto, apresentava a dificuldade de situar-se próxima às fronteiras com áreas espanholas. Com isto, sofreria constantes incursões dos súditos de Espanha, que tinham uma guarnição no alto da Serra de São Martinho. Por esta razão, os povoadores se transferem para outro local, em direção ao leste, mais protegido pela mata, estabelecendo um acampamento identificado como Capela de Santa Maria.

Freire de Andrade, em fevereiro de 1756, penetrara na região em direção ao Monte Grande (São Martinho) enfrentando e derrotando os Guarani missioneiros em Santa Tecla e Caibaté, e espanhóis na Boca do Monte (em 22 de março de 1756). Freire Andrade, também Governador do Rio de Janeiro, encontrou nos índios missioneiros a principal resistência na implantação das fronteiras estabelecidas pelo Tratado de Madrid. Ele determina então a abertura de estrada para São Martinho para possibilitar as demarcações dos limites (21 de abril de 1756). Daí inicia a marcha de retorno para a Fortaleza de Rio Pardo, passando ao sul dos dois cerros que, mais tarde, seriam chamados de Cerro Agudo (ou Abrahão Cassel) e o outro denominado de Hoffmeister. À esquerda estava a mata e o Rio Araricá, depois chamado de Vacacaí Mirim.

Em 1777, Portugal e Espanha assinam o Tratado de Santo Ildefonso (cidade espanhola), na tentativa de resolver as disputas territoriais não resolvidas pelo Tratado de Madrid. À Comissão Demarcatória enviada estabelece seu acampamento no começo da rua que hoje leva o nome de Rua do Acampamento, mais precisamente onde hoje se localiza a Praça Saldanha Marinho, em 1797.

Em fevereiro de 1801, comandava a Guarda Avançada de São Pedro o Capitão de Dragões Francisco Barreto Pereira Pinto quando se apresentam a este comando um grupo de 20 aventureiros comandados por Manoel dos Santos Pedroso se propondo a atacar a Guarda castelhana estabelecida em São Martinho. Aceitos seus serviços, marcharam em direção a São Martinho, derrotando os castelhanos e tomando a pequena fortificação. Depois disto, avançam em direção à Província de Missiones, onde derrotam aos espanhóis.

Pouco antes desta investida, o desertor do Regimento dos Dragões, José Borges do Canto, também se apresenta ao Comandante Pereira Pinto, com 15 homens, se dispondo a combater aos espanhóis. Pereira Pinto então forma uma força de 40 combatentes e os manda reforçar as tropas do Comandante Manoel dos Santos Pedroso, em São Lourenço, que se preparava para atacar Missiones. Avançando sobre a Província de Missiones, esta é conquistada em cerca de 40 dias.

Como recompensa o ex-desertor José Borges do Canto recebe o posto de Capitão de Milícias e o civil Manoel dos Santos Pedroso o de Tenente de Milícias. Estes aventureiros não eram motivados por sentimentos de “patriotismo”, pois isto não existia ainda, mas pela busca de enriquecimento através de pilhagens. Na linguagem de hoje seriam classificados como mercenários.

Eles agiam na extensa área que faria parte da Paróquia Santa Maria, onde já começava a surgir uma aldeia com este nome. Com a conquista de Missiones e a desarticulação das Reduções Jesuíticas vai ocorrer um grande fluxo de indígenas para esta região. Estes índios se fixam, principalmente, nas margens de duas sangas cujas nascentes ficavam no alto da colina onde se levantava o acampamento a que já nos referimos, onde hoje fica a Praça Saldanha Marinho e o começo da rua que herdou este nome.

Nas duas aldeias formadas nestas localidades se destacavam os Chefes Narciso Fernandes da Silva, Domingos Ipucun e Abaeté Inácio de Miranda. Narciso morava na estrada chamada de IPE, à direita, antes de chegar ao caminho onde hoje é a rua Floriano Peixoto. Na chamada Rua da Aldeia, depois Av. Ipiranga (atualmente Getúlio Vargas) à leste da Floriano Peixoto, próximo a onde atualmente se localiza o Hospital de Caridade, foi levantada a primeira Igrejinha de Santa Maria, quase um barraco, coberto de capim e frequentada pelos indígenas convertidos.

Em 1805 assume o Comando do Destacamento de Vacacahy, localizado no povoamento de Santa Maria, o capitão Manoel Carneiro da Silva e Fontoura. Este era também responsável por dar as informações ao Governador Paulo José da Gama sobre os terrenos devolutos requisitados por interessados.

Em 10 de agosto de 1805, os despachos do governador favoreceram as seguintes pretensões: solicitação de José Jacinto de Bittencourt, de 100 braças de frente, junto à estrada Alto da Beira; uma área com as mesmas dimensões para o Alferes Jacintho Mateus da Silveira. Ambas as áreas ficavam distante do acampamento central onde se desenvolvia a Aldeia.

Em 1808 são feitas várias concessões no centro onde se desenvolveria a cidade:

  • João Barbosa, 80 palmos de frente, onde hoje está situada a Av. Rio Branco;
  • Manoel Carneiro, 90 palmos na esquina onde mais tarde seria construída a sede da União dos Caixeiros Viajantes, hoje Prefeitura.

Os demais seguiram este alinhamento delineando a rua que chamaram de Conceição.

O Capitão Carneiro também possuía uma chácara, a do IPE, no fim do acampamento, onde implantou uma olaria, a primeira do novo povoamento. As edificações foram sendo erguidos pelo sistema indígena, com pau-a-pique, cipó, prego, ripa e vara verde, dando as características iniciais da aldeia.

Se fôssemos destacar alguns nomes que iniciaram a fundação de Santa Maria seriam os indígenas Narciso Fernandes da Silva, Domingos Ipucun e Abaeté Ignacio de Miranda, os colonos João Barbosa e Manoel Carneiro, José Jacinto de Bittencourt, Alferes Jacintho Matheus da Silveira e o Capitão Manoel Carneiro da Silva e Fontoura. Infelizmente, a história não registra o nome de centenas de indígenas, portugueses e brasileiros que assentaram as bases da futura Santa Maria da Boca do Monte.

Em 1807, o Continente do Sul é elevado à Capitania Geral, sendo seu primeiro Governador o Capitão-General D. Diogo de Souza, empossado em 9 de outubro de 1809. Neste mesmo ano Santa Maria é elevada à Freguezia.

D. José Coutinho, Bispo do Rio de Janeiro, eleva Santa Maria à Capela-Curado em 25 de janeiro de 1814, nomeando seu primeiro Cura o padre Antônio José Lopes. O território da Paróquia abrangia áreas dos atuais municípios de Santa Maria, São Vicente, São Gabriel, Rosário do Sul e Santana do Livramento.

Santa Maria era um pequeno povoado cercado pela mata, visitada por viageiros, aventureiros e pelos índios dispersos pela destruição das Missões Jesuíticas.

A Freguesia de Santa Maria foi criada por lei provincial Nº 6 (17/11/1837), elevada à Vila pela lei Nº 400(16/12/1857) e à cidade em 6 de abril de 1876, pela lei provincial 1013, com o nome de Santa Maria da Boca do Monte. O crescimento de Santa Maria esteve sempre vinculado à questão militar e às disputas territoriais com a Espanha e, mais tarde, com os países vizinhos.

Cabe ainda registrar que o primeiro jornal publicado em Santa Maria foi a “Gazeta do Norte”, em 1º de janeiro de 1884, propriedade do advogado Francisco José Ferreira Camboim Filho. A partir deste, surgiriam inúmeras outras publicações que deram grande contribuição ao desenvolvimento cultural e político do município.

3 CONCLUSÃO

No estudo sobre a história de Santa Maria ainda existem muitos pontos obscuros a serem explorados. A historiografia, de um modo geral, oculta o papel dos indígenas, aventureiros e homens de origem incerta para destacar os “heróis” portugueses, militares e nobres.

Ela surge, na verdade, a partir de dois elementos centrais: a questão militar em função das disputas territoriais entre Portugal e Espanha e a destruição das Reduções Jesuíticas com a consequente dispersão de sua população e de seus rebanhos.

A memória da participação indígena está presente quase que apenas na “lenda” de Imembui criada pela imaginação de Cezimbra Jacques. Se observarmos as homenagens representadas nas denominações de ruas, praças e monumentos, veremos nomes de nobres, militares ou representantes das classes dominantes, mas nenhum de indígena.

Acredito que o papel desempenhado pelos indígenas e aventureiros na formação de Santa Maria são temas muito relevantes a serem pesquisados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BELÉM, João. História do Município de Santa Maria. 1797-1933. Santa Maria: UFSM, 2000.

BELTRÃO, Romeu. Cronologia Histórica de Santa Maria e do Extinto Município de São Martinho. 1787-1930. Santa Maria: UFSM, 2013.

COELHO, Catão. A Várzea de Outrora, São Paulo: De Maria, 1935.

JACQUES, João Cezimbra. Assuntos do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: Martins Livreiro, 1997.


[1]  Professor de História pela Universidade Federal de Santa Maria, Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.