INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO MERCADO DE TRABALHO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A SURDEZ UNILATERAL

INCLUSION OF PEOPLE WITH DISABILITIES IN THE LABOUR MARKET: CONSIDERATIONS ON UNILATERAL DEAFNESS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8039609


Symara Cíntia Bezerra da Costa1
Carlos Francisco do Nascimento2


RESUMO

O presente estudo busca analisar situações encontradas no sistema judiciário brasileiro que envolvem direitos sociais das pessoas com deficiência auditiva unilateral. A temática faz-se necessária ao possibilitar a afirmação e vinculação dos direitos fundamentais inerentes às pessoas de surdez unilateral, inserindo-os no mercado de trabalho, fato este que remonta a aspectos principiológicos do Estado Democrático de Direito, como a dignidade da pessoa humana e a isonomia. Possui como objetivo demonstrar que o deficiente auditivo unilateral deve ter igual oportunidade de acesso ao mercado de trabalho, efetivando o princípio do pleno emprego, equivalente-se às demais pessoas com deficiência. Como metodologia, foi realizada uma revisão bibliográfica à luz da Constituição Federal, leis complementares e jurisprudências aplicadas em tribunais superiores. O Direito, por ser o objeto próprio da justiça, que obriga a dar a cada um o que lhe é devido, precisa proteger e garantir a igualdade, a justiça e a liberdade, asseverando aos surdos unilaterais o gozo do direito à diferença na igualdade dos direitos. Não existe meia deficiência. O surdo unilateral é deficiente por completo. Apenas com a consolidação da condição isonômica dos surdos unilaterais, enquanto pessoa com deficiência, é que será garantida a igualdade, a independência pessoal, a dignidade, a não discriminação e a plena e efetiva participação e inclusão social, especialmente no mercado de trabalho.

Palavras-chave: Pessoa com deficiência. Surdez unilateral. Pleno emprego.

ABSTRACT

The present study seeks to analyze situations found in the Brazilian legal system that involve social rights of people with unilateral hearing impairment. The theme is necessary to enable the affirmation and binding of the fundamental rights inherent to people with unilateral deafness, inserting them in the labor market, a fact that goes back to principled aspects of the Democratic State of Law, such as the dignity of the human person and the isonomy. It aims to demonstrate that the unilateral hearing impaired must have equal opportunity to access the labor market, putting into effect the principle of full employment, equivalent to other people with disabilities. As a methodology, a bibliographic review was carried out in the light of the Federal Constitution, complementary laws and jurisprudence applied in higher courts. The Law, as the proper object of justice, which obliges everyone to give what is due to them, needs to protect and guarantee equality, justice and freedom, assuring unilateral deaf people the enjoyment of the right to difference in the equality of rights. There is no half disability. The unilateral deaf person is a person with a disability. Only with the consolidation of the isonomic condition of unilateral deaf people, as a person with a disability, will equality, personal independence, dignity, non-discrimination and full and effective participation and social inclusion be guaranteed, especially in the labor market.

Keywords: Disabled person.  Unilateral deafness.  Full employment.

1 INTRODUÇÃO

Durante muito tempo, as pessoas que apresentavam alguma deficiência não eram consideradas sujeitos de direito, vivendo à margem da sociedade, passando a ser integradas a esta somente a partir do século XX, quando do advento da Segunda Guerra Mundial. Desde então, até os dias atuais, muitas mudanças ocorreram, partindo de nuances na nomenclatura que designa esse grupo de pessoas até sua caracterização e classificação enquanto deficiente.

No Brasil, em razão da falta de amparo legal que lhes dê subsídio, os deficientes auditivos unilaterais vivem num limbo jurídico onde há diversas decisões judiciais antagônicas no que se refere aos seus direitos sociais. Ora, como concorrer a uma oportunidade de emprego em ampla concorrência se a perícia médica o classifica como inapto devido a sua limitação auditiva? Como disputar uma vaga de pessoa com deficiência (PCD) se não há lei que a regulamente enquanto tal?

Várias são as ações impetradas no judiciário por portadores de surdez unilateral reivindicando seus direitos quanto à ocupação de vagas reservadas para pessoas com deficiência. Mesmo sob a égide da Constituição Federal de 1988, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de diversas outras leis e decretos, seus direitos estão longe de serem assegurados.

Nessa senda, este estudo propõe demonstrar que o deficiente auditivo unilateral deve ter garantido o pleno emprego através do acesso ao mercado de trabalho, público e/ou privado, em igual oportunidade de direitos como as demais pessoas com deficiência, sendo analisadas as políticas afirmativas específicas existentes para pessoas com deficiência.

Nesse sentido é essencial trazer ao debate a inclusão no mercado de trabalho das pessoas com surdez unilateral, onde surgem tais questionamentos: No Brasil, o deficiente auditivo unilateral é considerado pessoa com deficiência? Pode ele concorrer em cota reservada para pessoas com deficiência?

Como metodologia para composição do presente estudo foi utilizada a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial aplicada a tribunais superiores, com análise crítica dos dados e inferências fundamentadas na Constituição Federal e em normativas infraconstitucionais, que foram imprescindíveis no fomento do pensamento avaliativo.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 Pessoas com deficiência – breve análise da evolução histórica dos direitos

As pessoas com deficiência nem sempre foram tratadas de forma adequada, elas sempre enfrentam diversas barreiras em um contexto histórico-político-social e sua luta momentaneamente é pela inclusão social (LEITE, 2022).

A sociedade passou a se conscientizar e sensibilizar em virtude das pessoas com deficiência principalmente após as Grandes Guerras Mundiais, onde os militares que retornavam aos seus países, por vezes mutilados, encontravam barreiras que dificultavam seu convívio com o ambiente e com a sociedade que o estigmatizava. Assim como a sociedade, diversas organizações internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Organização Mundial de Saúde (OMS), Organização Internacional do Trabalho (OIT), e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) também reconheceram que essas pessoas com deficiência necessitavam de programas de fomento social (LEITE, 2022).

Em 1948, com vistas a reforçar os desígnios da Carta das Nações Unidas, foi criada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento fundamental para o fortalecimento e consolidação dos direitos das pessoas com deficiência, especialmente no que diz respeito à sua inclusão na sociedade (DICHER; TREVISAM, [2014]).

No Brasil, a Constituição de 1988 exprimiu marco histórico na defesa das pessoas com deficiência ao assegurar o direito à educação, assistência e reabilitação, proibição de discriminação e acessibilidade. No entanto, em virtude do regime ditatorial vigente, estes direitos não foram efetivados (FARIAS; SOARES JUNIOR, 2020).

Até um longo período do século XX, as pessoas com deficiência continuaram a ser segregadas, tendo seus direitos sociais tolhidos em uma sociedade minimamente desenvolvida. Somente a partir dos anos 80 houve um forte movimento internacional de fomento a políticas afirmativas que visavam assegurar seus direitos, tendo a ONU declarado 1981 como o ano internacional da pessoa deficiente (ROCHA, 2022).

A Constituição Federal de 1988 consagrou um caráter democrático e social ao Estado Brasileiro ao fundamentá-lo em princípios como a cidadania e a dignidade da pessoa humana, superando as desigualdades, e desta forma, caracterizando uma sociedade inclusiva. Em nenhum momento a CF/88 definiu em seu texto quem seria a pessoa com deficiência, apenas diretrizes e valores constitucionais que contribuem quando da fixação do conceito (LEITE, 2022).

Em uma disposição histórica, a legislação brasileira através do Decreto nº 3.298/99, com supedâneo na Lei nº 7.853/89, acentuou a discriminação de pessoas com deficiências consideradas de grau leve, haja vista que estas não eram caracterizadas como tal, a exemplo das pessoas que apresentam deficiência do tipo visão monocular e surdez unilateral, segregando-as de direitos que lhe são devidos.

Essa norma infraconstitucional, ao excluir tais pessoas, colide com o valor constitucional do pleno emprego, assim como com o Dec. nº 6.949/09, que promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. (TRIGUEIRO, 2015).

Sobre a visão monocular, esta foi recentemente classificada como deficiência sensorial, do tipo visual, conforme publicação da Lei nº 14.126, de 23 de março de 2021, assegurando a esse grupo de pessoas a efetivação de seus direitos. Quanto aos surdos unilaterais, cumpre lembrar que tramita pelo Senado Federal o Projeto de Lei nº 23/2016 que considera pessoa com deficiência aquela com perda auditiva unilateral.

A supramencionada convenção, promulgada e ratificada pelo Brasil através dos Decretos 186/2008 e 6.949/2009, pautou em seu texto a mudança da concepção médico-assistencialista que dominava a conceituação da pessoa com deficiência para o modelo social dos direitos humanos. Essa mudança iniciou-se pela transição da terminologia “pessoa portadora de deficiência”, que transmitia mais uma idéia patológica, assim como portadores de outras doenças, para “pessoa com deficiência”, decorrente do contexto atual do movimento de inclusão social (LARAIA, 2009).

Segundo Leite (2022),

No modelo social, a deficiência é resultante de uma função em que o valor final depende de outras variáveis independentes, quais sejam: as limitações funcionais do corpo humano e as barreiras físicas, econômicas e sociais impostas pelo ambiente ao indivíduo. “Dessa forma, a limitação funcional em si não ‘incapacita’ o indivíduo e sim a associação de uma característica do corpo humano com o ambiente inserido” (LOPES apud LEITE, 2022, p. 13).

De modo a consolidar os direitos já consagrados pela Convenção da ONU, o estado brasileiro promulgou a Lei nº 13.146/2015, também denominada de Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPCD), considerada uma das mais relevantes no ordenamento jurídico. O EPCD pontua que é pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, como a da comunicação, que limita a participação social do indivíduo, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (FARIAS; SOARES JUNIOR, 2020).

Art. 1º É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.

[…]

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

2.2 Deficiência auditiva unilateral – implicações associadas

A perda auditiva implica em prejuízo da audição em qualquer grau, independentemente de sua bilateralidade ou unilateralidade, que reduza a inteligibilidade da mensagem falada para a interpretação apurada ou para a aprendizagem. Por causa disso, a grande maioria dos sons da vida cotidiana não é perceptível.

Segundo dados do Censo Demográfico 2010, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 45,6 milhões de brasileiros declararam ter alguma deficiência, o que representa 23,9% da população brasileira. Concentra-se na região Nordeste os maiores percentuais da população com pelo menos uma das deficiências investigadas, em especial no estado do Rio Grande do Norte (RESENDE, 2015).

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (2021), 20,4% da população mundial, mais de 1 bilhão de pessoas, convivem com alguma perda de audição. No Brasil, em 2019, o IBGE realizou a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), na qual foi constatado que existem mais de 10,7 milhões de brasileiros com deficiência auditiva, sendo 2,3 milhões de pessoas com deficiência auditiva severa (IBGE, 2021). 

Apesar de parecer invisível, a perda auditiva contribui para um déficit de comunicação, ocasionando um sentimento de frustração entre os interlocutores, haja vista que a comunicação é basicamente oralista (RESENDE, 2015).

Poucos estudos com acervo estatístico foram encontrados acerca das pessoas com surdez unilateral, em sua ampla classificação, não sendo possível afirmar estimativa do número de pessoas com essa deficiência no Brasil e no mundo. Contudo, em publicação das diretrizes de prática clínica da American Academy of Audiology (2015), observou-se que nos Estados Unidos ocorrem, anualmente, 60.000 (sessenta mil) novos casos de pacientes com perda auditiva unilateral neurossensorial (OPS, 2021).

A audição, sentido fundamental do ser humano, tem função primordial na comunicação e interação entre os homens. Sua disfunção, acometida por perda da acuidade, que pode variar de grau leve a profundo, pode prejudicar no desenvolvimento de crianças e jovens, comprometimento profissional e social em idosos e adultos, e consequentemente em uma baixa qualidade de vida (RESENDE, 2015).

Resende (2015) classifica as perdas auditivas quanto ao tipo, grau e acometimento, unilateral ou bilateral. Para efeitos deste estudo, abordaremos apenas a perda auditiva unilateral.

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A metodologia utilizada neste trabalho elabora uma investigação bibliográfica à luz da Constituição Federal de 1988, leis complementares e jurisprudências aplicadas em tribunais superiores. A revisão bibliográfica tem como objetivo principal o embasamento teórico acerca do tema tratado, para logo em seguida tornar clara e precisa uma abordagem crítica sobre as últimas decisões dos tribunais superiores do judiciário pátrio.

           A presente pesquisa busca um modelo sistemático de análise crítica e para isso foram escolhidas de maneira seletiva bibliografias que fossem ricas na abordagem sociológica, filosófica e antropológica. Os pesquisadores referenciados neste estudo apresentaram trabalhos de alta relevância na área e que foram imprescindíveis no fomento do pensamento avaliativo deste trabalho. 

         Durante o levantamento bibliográfico também foram utilizados para a pesquisa os sites dos Diários Oficiais que publicam as leis pátrias, dentre eles os que discorrem sobre a temática proposta e a própria Constituição da República Federativa do Brasil. Do mesmo modo, foi consultado o acervo dos tribunais superiores, no qual foram consideradas as jurisprudências relevantes sobre a temática. 

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

O Direito, por ser o objeto próprio da justiça, que obriga a dar a cada um o que lhe é devido, precisa proteger e garantir a igualdade, a justiça e a liberdade deste grupo vulnerável da população.

A surdez unilateral é considerada quando há uma perda em um dos ouvidos de mais de 90 decibéis, nas frequências da voz falada, mas a audição contralateral permanece na faixa considerada “normal”, até 15 decibéis. Como problemas enfrentados pelos surdos unilaterais podemos elencar zumbidos, vertigens, dificuldade na localização do som, sendo necessário lateralizar a cabeça para identificar a sua origem, além de incômodo em ambientes com muito barulho, como em sala de aula, dificultando o aprendizado, baixa interação social, inclusive como forma de preservar a audição contralateral (NISHIHATA; VIEIRA; et al., 2012).

Conforme Trigueiro (2015),

[…] existem milhares de postos de trabalho que poderiam ser ocupados por portadores de surdez unilateral […], sem que a utilidade da mão de obra comprometa a eficiência de seu aproveitamento. Contudo, esses postos de trabalho jamais serão ocupados por essas pessoas se o processo seletivo não permitir uma competição justa, que considere suas necessidades específicas. Na prática, suas deficiências têm servido como critério oportuno de exclusão de uma parcela considerável de competidores (TRIGUEIRO, 2015, p. 31).

Como foi mencionado outrora, a Constituição Federal de 1988 e suas respectivas emendas tutelam os direitos das pessoas com deficiência, englobando diversos fatores principiológicos do direito evidenciados pela proibição de divergência salarial, habilitação, reabilitação e promoção de sua integração à sociedade, acessibilidade, disponibilidade de um percentual de vagas nos cargos e empregos públicos e privados, dentre outros implicados na tentativa de diminuir as diferenças existentes no cotidiano dessas pessoas.

Em amparo a essas pessoas, a legislação vigente busca resguardar seu ingresso no mercado de trabalho. A Lei 8.112/90, em seu art. 5º, §2º, assegura a estas o direito de se inscrever em concurso público, devendo ser reservado até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas. No âmbito privado, o referido direito é garantido na Lei 8.213/91, conhecida “lei de cotas”, que determina o percentual de vagas deste público nas empresas com mais de 100 (cem) empregados, tendo sua porcentagem variável de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento), a depender do quantitativo de empregados, sendo imputada multa em caso de inconformidade e não aplicabilidade.

Contudo, existem no ordenamento jurídico brasileiro decisões contraditórias quanto ao direito do deficiente auditivo unilateral no que concerne à ocupação de vagas reservadas às pessoas com deficiência. (SANTOS; NUNES, 2016).

A exemplo de decisão desfavorável ao surdo unilateral há a jurisprudência do Superior Tribunal Federal: 

Trata-se de recurso extraordinário interposto contra acórdão assim ementado: “ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. PORTADOR DE SURDEZ UNILATERAL. INEXISTÊNCIA DO DIREITO À COTA. 1. Hipótese em que se discute se o impetrante, ora apelante, portador de surdez unilateral, faz jus a tomar posse no cargo de Assistente em Administração da UFCG, em vaga destinada a deficiente físico; 2. O Decreto n. 3.298/99, com as alterações do Decreto n. 5.296/2004, excluiu da qualificação ‘deficiência auditiva’ os portadores de surdez unilateral, considerando, para tais fins, apenas a perda auditiva bilateral, parcial ou total; 3. É sempre oportuno lembrar que os portadores de deficiência não são subdivididos em lotes ou conjuntos distintos em função da qualidade ou quantidade de deficiência, tal como ocorre com atletas paraolímpicos. Não é assim. Em matéria de concurso, a lei divide todos os candidatos em duas grandes categorias, a saber: ‘normais’ e ‘portadores de deficiência’, inserindo estes últimos todos no mesmo grupo, independentemente do grau de deficiência que apresente. Daí que estender as vantagens próprias dos portadores de deficiências a todo e qualquer pessoa, ainda que seja mínima ou irrelevante a deficiência que apresente, termina por distorcer o benefício, prejudicando os verdadeiros deficientes que a Constituição visou pôr sob seu abrigo; 4. Ademais, a Súmula 552 do Eg. STJ assim dispõe: ‘O portador de surdez unilateral não se qualifica como pessoa com deficiência para o fim de disputar as vagas reservadas em concursos públicos.’; 5. Destarte, o portador de audição unilateral não deve ser considerado deficiente para o fim de concorrer como integrante das cotas destinadas aos portadores de necessidades especiais; 6. Apelação improvida” (pág. 3 do documento eletrônico […] 7). A pretensão recursal não merece acolhida. O Tribunal de origem, amparado no acervo probatório dos autos e na interpretação das normas infraconstitucionais pertinentes, concluiu que o candidato com surdez unilateral não deve ser considerado deficiente para o fim de concorrer como integrante das cotas destinadas aos portadores de necessidades especiais, conforme se observa do seguinte trecho do acórdão impugnado: “É que o Decreto n. 3.298/99, com as alterações do Decreto n. 5.296/2004, excluiu da qualificação ‘deficiência auditiva’ os portadores de surdez unilateral, considerando para tais fins, apenas a perda auditiva bilateral, parcial ou total. […] Ademais, é de se registrar que a Súmula 552 do Eg. STJ assim dispõe: ‘O portador de surdez unilateral não se qualifica como pessoa com deficiência para o fim de disputar as vagas reservadas em concursos públicos. Destarte, o portador de audição unilateral não deve ser considerado deficiente para o fim de concorrer como integrante das cotas destinadas aos portadores de necessidades especiais”. […] (STF – RE: XXXXX PB XXXXX-94.2020.4.05.8201, Relator: RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 19/05/2022, Data de Publicação: 24/05/2022)

Já em sentido contrário, há decisão favorável considerando o surdo unilateral enquanto pessoa com deficiência, como expõe a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho:

AGRAVO EM RECURSO DE REVISTA. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATA COM DEFICIÊNCIA AUDITIVA UNILATERAL. ENQUADRAMENTO COMO PORTADORA DE NECESSIDADES ESPECIAIS. No caso concreto, a decisão agravada se revela irrepreensível, porquanto retrata essencialmente a jurisprudência consolidada desta Corte Superior. Com efeito, constou o entendimento de que, conquanto o artigo 4º, inciso II, do Decreto n.º 3.298/99 estabeleça, tão somente, a surdez bilateral para fins de classificação como pessoa com deficiência, o Órgão Especial deste C. TST, ao julgar o RO-XXXXX-15.2018.5.01.0000, em 09/11/2020, ratificou a sua jurisprudência no sentido de considerar também a surdez unilateral como deficiência, à luz do art. 1º da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e do art. 3º do Decreto 3.298/99, para fins de inserção em cotas para portadores de necessidades especiais em concurso público. Dessa forma, não se constata violação literal ao artigo 5º, II, da CF/88, mesmo porque o referido preceito não trata diretamente da matéria objeto do recurso de revista. Além disso, a indicação de ofensa a artigo de Decreto, de contrariedade à Súmula do STJ, ou mesmo a transcrição de arestos provenientes do Superior Tribunal de Justiça não impulsionam o conhecimento do recurso de revista, uma vez que não se enquadram nos permissivos constantes do artigo 896 da CLT. Agravo conhecido e desprovido. (TST – Ag-RR: XXXXX20145130009, Relator: Alexandre De Souza Agra Belmonte, Data de Julgamento: 01/03/2023, 7ª Turma, Data de Publicação: 10/03/2023).

RECURSO DE REVISTA 1 – MULTA POR EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PROTELATÓRIOS. Embora os embargos de declaração interpostos pelo reclamante não tenham demonstrado a existência de algum dos vícios discriminados nos arts. 897-A da CLT e 535 do CPC/73 (art. 1.022 do NCPC), haja vista que pretende o prequestionamento das matérias, não se vislumbra na atitude da parte o intuito protelatório a ensejar a aplicação da multa de 1% incidente sobre o valor da causa, na forma do art. 538 do CPC/73 (art. 1026, § 2.º, do NCPC). Recurso de revista conhecido e provido. 2 – ADMISSÃO NA VAGA DE DEFICIENTE. SURDEZ UNILATERAL. DISPENSA SEM JUSTA CAUSA. REINTEGRAÇÃO. O acórdão regional fundamentou-se no fato de que não basta que a pessoa apresente doença auditiva para que seja considerada portadora de deficiência. Neste particular, é necessária a existência de perda da audição em ambos os ouvidos, seja total ou parcial, sendo que, no caso de perda parcial, esta deve ser igual ou superior a 41 dB, observada as frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz”. É incontroverso que o reclamante é acometido de surdez unilateral total. Tal condição se caracteriza como deficiência em seu sentido amplo, haja vista que acarreta incapacidade para o desempenho de atividades, se observado o padrão normal para o ser humano, nos termos dos parâmetros estabelecidos pelo art. 3º, inciso I, do Decreto 3.298/99 e do art. 1º da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporado ao nosso ordenamento jurídico pelo Decreto 6.949/2009. Sendo assim, o artigo 4º, inciso II, do Decreto 3.298/99, ao definir como hipótese de deficiência auditiva a “perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais”, deve ser interpretado de forma sistemática com o conjunto do ordenamento jurídico pátrio, observados os fins sociais a que se dirige a norma, de forma a assegurar a implementação das políticas afirmativas para a eliminação das distorções acarretadas pela desvantagem física. Pelo exposto, a pessoa com surdez unilateral, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, deve ser considerada deficiente auditiva, vez que decorre logicamente dessa condição a situação de desvantagem no mercado de trabalho em relação a outros trabalhadores não deficientes. Recurso de revista conhecido e provido. (TST – RR: XXXXX20125170011, Relator: Delaíde Miranda Arantes, Data de Julgamento: 26/09/2018, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 05/10/2018).

As divergências jurisprudenciais retratam a discriminação perante a qual os surdos unilaterais são submetidos no mercado de trabalho, prejudicando seu pleno emprego, haja vista que não são considerados aptos a concorrer em vagas de trabalho na ampla concorrência devido a limitação auditiva, nem tampouco nas vagas destinadas às pessoas com deficiência, pois não há lei que a regulamente, restando um limbo jurídico que fomenta os obstáculos aos quais são submetidos e cerceia seus direitos sociais, segregando-os da sociedade.

Em busca da redução das desigualdades sociais, através de uma sociedade justa e isonômica, observa-se que o trabalho relacionado ao deficiente auditivo unilateral, enquanto direito humano, ainda não é amparado legalmente de forma explícita. Busca-se, assim, a consolidação deste direito como forma de amparar essas pessoas (SANTOS; NUNES, 2016).

Por implicar em situações que ferem o desenvolvimento das pessoas com deficiência auditiva unilateral e da sociedade como um todo, faz-se necessário medidas com políticas assertivas imediatas do Estado voltadas para sua inserção no mercado de trabalho, fornecendo garantias constitucionais a este grupo detentor de uma disfunção orgânica sensorial, pois condiciona um profundo prejuízo relacionado ao seu desenvolvimento e sua vida profissional, principalmente no que diz respeito ao pleno emprego e a dignidade da pessoa humana.

Cabe citar alguns Estados que por iniciativa legislativa classificam o indivíduo com surdez unilateral enquanto deficiente: Paraíba (Lei Estadual 10.971/2017 – DOEPB nº 16.581, 21/03/2018, Pg. 11), Distrito Federal (Lei 4.317/2009 – DODF, 13/04/2009, Pg. 1, Seção 1), São Paulo (Lei 16.769/2018 – DOE-I, 19/06/2018). Em 2022, após aprovação do Congresso Nacional, o governo federal em exercício vetou o Projeto de Lei nº 1.361/15, que garantia o direito das pessoas com surdez unilateral.

CONCLUSÃO

Ao analisar a situação dos surdos unilaterais quanto ao acesso ao mercado de trabalho, faz-se mister a pacificação dos tribunais superiores sobre a definição das pessoas com surdez unilateral como pessoas com deficiência, assim como a evolução legislativa, para que assim elas possam gozar do direito à diferença na igualdade dos direitos.

A consolidação deste direito, aliada a uma sociedade livre de condutas estigmatizadoras, é que garantirá a igualdade, a independência social, a dignidade inerente às pessoas com deficiência, a não discriminação e a plena e efetiva participação e inclusão social.

A garantia dos direitos sociais, como o trabalho, é o que possibilita o verdadeiro desenvolvimento humano nas esferas econômica, social e psicológica de cada indivíduo, contribuindo com o impedimento da obstaculização de suas próprias limitações, alcançando, assim, uma existência digna. 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília/DF, 7 jul. 2015. 

_____. Lei nº 14.126, de 22 de março de 2021. Classifica a visão monocular como deficiência sensorial, do tipo visual. Diário Oficial da União – Seção 1 – 23/3/2021, Página 3.

_____. Constituição da República Federativa do Brasil. Senado Federal, Brasília/DF, 2015. 488 p.

_____. Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Regulamenta a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília/DF, 21 dez. 1999. 

DICHER, Marilu; TREVISAM, Elisaide. A jornada histórica da pessoa com deficiência: inclusão como exercício do direito à dignidade da pessoa humana [2014]. Disponível em: http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=572f88dee7e2502b. Acesso em: 02 mar 2023.

FARIAS, Alanna Larisse Saraiva; SOARES JUNIOR, Carlos Alberto. Evolução Histórica dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Questões Associadas no Brasil. Id on Line Rev. Mult. Psic. V.14, N. 52, p. 59-76, Outubro/2020.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional de Saúde : 2019 : ciclos de vida. Coordenação de Trabalhos e Rendimentos – Rio de Janeiro, 2021. 139p.

LARAIA, Maria Ivone Fortunato. A pessoa com deficiência e o direito ao trabalho. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, 197 p.

LEITE, Flávia Piva Almeida; LUVIZOTTO, Caroline Kraus. Marcos legais e perspectivas para a inclusão de pessoas com deficiência no Brasil. Revista História: Debates E Tendências, 22(2), 6-19. 2022.

NISHIHATA, Regiane; VIEIRA, Marcia Ribeiro; et. al. Processamento temporal, localização e fechamento auditivo em portadores de perda auditiva unilateral. Rev. soc. bras. fonoaudiol. 17(3). 2012.

Organización Panamericana de la Salud (OPS). Informe mundial sobre la audición. 2021. Disponível em: https://apps.who.int/iris/rest/bitstreams/1350530/retrieve. Acesso em: 12 jan 2023.

RESENDE, Luciana Macedo; et al. Uso terapêutico de tecnologias assistivas: direitos das pessoas com deficiência e audição. Belo Horizonte : Nescon/UFMG, 2015, 98 p.

ROCHA, Danubia. Apontamentos históricos dos direitos das pessoas com deficiência. 2022. Disponível em: https://danubiarocha1.jusbrasil.com.br/artigos/611373977/apontamentos-historicos-dos-direitos-das-pessoas-com-deficiencia. Acesso em: 25 mar 2023.

SANTOS, Leyde Aparecida Rodrigues; NUNES, Renata Cristina da Silva. As controvérsias das decisões judiciais na concorrência às vagas reservadas em concurso público aos portadores de deficiência auditiva unilateral. Colóquio de pesquisa das universidades paulistas. 1ª ed., p. 168-190, São Paulo: Editora Clássica, 2016.

TRIGUEIRO, Charles de Sousa. Políticas afirmativas para pessoas com deficiência e a efetividade do princípio do pleno emprego: o caso dos portadores de visão monocular e surdez unilateral. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Paraíba/CCJ, João Pessoa, 2015, 99 p.


1 Graduanda em Direito pela UFRN/CERES. Email: symarabezerra@hotmail.com
2 Doutor em Ciências Sociais pela UFRN e professor do Departamento de Direito da UFRN/CERES, campus Caicó. Email: carlos.nascimento@ufrn.br