IMPACTOS PSICOSSOCIAIS DA GENITÁLIA ATÍPICA: DESAFIOS NA SAÚDE MENTAL DE CRIANÇAS COM DIFERENCIAÇÃO SEXUAL DIFERENTE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202506082100


Ana Beatriz De Oliveira Vieira
Orientador: Dr. Bruno Cerqueira Lima


RESUMO

Introdução: O termo Diferenciação Sexual Diferente (DSD) engloba condições em que a diferenciação sexual fetal não segue o padrão esperado, resultando em características genitais ou gonadais incompatíveis com as expectativas de masculino ou feminino. Entre essas condições estão a síndrome de insensibilidade a andrógenos, a síndrome de Turner e a hiperplasia adrenal congênita, que frequentemente resultam em genitália atípica. Metodologia: Este estudo caracteriza-se como uma revisão sistemática da literatura, com o objetivo de identificar lacunas e avaliar os estudos sobre as anomalias de diferenciação sexual e seus impactos psicossociais na saúde mental de crianças. Utilizando a estratégia PICo para formular a questão de pesquisa, foram estabelecidos critérios de inclusão e exclusão de estudos e realizada uma busca nas bases de dados Pubmed e BVS. Os estudos selecionados foram analisados de forma crítica e sistemática, com a extração de informações-chave, como objetivos, resultados e conclusões. A análise seguiu a metodologia proposta por Bardin, e os achados foram discutidos com base em eixos temáticos, sendo organizados e apresentados de forma a garantir a relevância e a clareza dos procedimentos adotados na pesquisa. Resultados e conclusão: A avaliação dos estudos sobre Diferenciação Sexual Diferente (DSD) destaca a complexidade das decisões médicas e suas implicações para os pacientes e suas famílias. A literatura aponta para a necessidade de uma abordagem holística, que envolva os aspectos clínicos, emocionais, psicológicos e sociais, respeitando os direitos humanos e a autonomia das pessoas com DSD. A genitoplastia precoce, a definição do sexo de criação e o acompanhamento psicológico são questões cruciais, com evidências de que decisões prematuras e a falta de suporte emocional aumentam os níveis de ansiedade e depressão em crianças. A abordagem multidisciplinar e o respeito à autodeterminação são fundamentais para uma melhor qualidade de vida, assim como a eliminação de práticas discriminatórias e a utilização de sistemas informatizados de saúde para melhorar o diagnóstico e o acompanhamento.

Palavras chave: Transtornos do Desenvolvimento Sexual; Saúde Mental; Crianças.

ABSTRACT

Introduction: Sexual Differentiation Disorder (DSD) encompasses conditions where fetal sexual differentiation does not follow the expected pattern, resulting in genital or gonadal characteristics incompatible with male or female expectations. Among these conditions are androgen insensitivity syndrome, Turner syndrome, and congenital adrenal hyperplasia, which often result in ambiguous genitalia. Methodology: This study is characterized as a systematic literature review, aimed at identifying gaps and evaluating studies on sexual differentiation anomalies and their psychosocial impacts on children’s mental health. Using the PICo strategy to formulate the research question, inclusion and exclusion criteria for studies were established, and a search was conducted in the PubMed and BVS databases. The selected studies were analyzed critically and systematically, extracting key information such as objectives, results, and conclusions. The analysis followed the methodology proposed by Bardin, and the findings were discussed based on thematic axes, being organized and presented to ensure the relevance and clarity of the procedures adopted in the research. Results and Conclusion: The evaluation of studies on Sexual Differentiation Disorder (DSD) highlights the complexity of medical decisions and their implications for patients and their families. The literature points to the need for a holistic approach that involves clinical, emotional, psychological, and social aspects, respecting the human rights and autonomy of individuals with DSD. Early genitoplasty, the determination of sex of rearing, and ongoing psychological support are crucial issues, with evidence that premature decisions and lack of emotional support increase levels of anxiety and depression in children. A multidisciplinary approach and respect for self-determination are essential for a better quality of life, as well as the elimination of discriminatory practices and the use of computerized health systems to improve diagnosis and follow-up.

Keywords: Disorders of Sex Development; Mental Health; Children.

1 INTRODUÇÃO

A Diferenciação Sexual Diferente (DSD)  é um termo utilizado para descrever uma série de condições nas quais a diferenciação sexual durante o desenvolvimento fetal não ocorre conforme o esperado, resultando em características genitais e/ou gonadais que não correspondem às expectativas de masculino ou feminino[1]. As anomalias podem envolver um espectro de distúrbios, incluindo a hipospádia, síndrome de Turner, síndrome de insensibilidade a andrógenos, entre outras. A genitália atípica é um dos principais sinais clínicos presentes em diversos tipos de DSD, refletindo uma discordância entre o sexo cromossômico, gonadal e fenotípico, o que pode gerar complexos dilemas tanto médicos quanto sociais (PAES et al., 2020; HUGHES et al., 2006).

O processo de determinação e diferenciação sexual em humanos é um fenômeno biológico complexo, regulado por uma intrincada interação entre vias de sinalização, fatores epigenéticos e a liberação de hormônios sexuais. A determinação do sexo biológico ocorre no momento da fecundação, com a combinação dos cromossomos sexuais XX ou XY no zigoto, sendo o cromossomo Y responsável por ativar genes cruciais para o desenvolvimento das características sexuais masculinas. Entre esses genes, destaca-se o SRY, localizado no braço curto do cromossomo Y (Yp11.2), cuja expressão inicia-se entre a sexta e a sétima semana gestacional, induzindo a diferenciação das gônadas em testículos. Posteriormente, o processo de diferenciação sexual culmina na formação das estruturas anatômicas e das características sexuais secundárias, influenciadas pela secreção hormonal das gônadas. Dessa forma, a interação entre fatores genéticos, hormonais e epigenéticos desempenha um papel fundamental na determinação do fenótipo sexual humano (AMBROSIO-ALBUQUERQUE et al, 2023).

Os DSD representam um grupo heterogêneo de condições com prevalência variável em diferentes populações, influenciada por fatores genéticos, ambientais e culturais. Estima-se que a incidência global dos DSD seja de aproximadamente 1 a cada 4.500 nascidos vivos, embora a frequência específica de cada condição varie significativamente. No Brasil, dados epidemiológicos ainda são limitados, mas estudos regionais indicam uma distribuição semelhante à observada em outros países, com a hiperplasia adrenal congênita sendo uma das causas mais comuns. Além disso, desigualdades no acesso ao diagnóstico precoce e ao tratamento especializado podem impactar a identificação e o manejo clínico dessas condições no país. A coleta sistemática de dados epidemiológicos sobre os DSD é essencial para aprimorar as políticas de saúde pública, garantir um atendimento multidisciplinar adequado e promover a conscientização sobre essas condições tanto no Brasil quanto no cenário global (BRASIL, 2021).

A classificação dos DSD evoluiu ao longo dos anos, sendo consolidada pelo Consenso de Chicago em 2005, que estabeleceu um sistema padronizado para a nomenclatura e categorização dessas condições. Esse consenso propôs a substituição de termos anteriormente utilizados, como “hermafroditismo” e “pseudo-hermafroditismo”, por uma abordagem baseada na etiologia genética e na fisiopatologia dos distúrbios. Assim, os DSD foram organizados em três grandes grupos: (1) distúrbios da diferenciação sexual relacionados aos cromossomos sexuais (como a síndrome de Turner e a síndrome de Klinefelter), (2) distúrbios 46,XY (como deficiência na síntese ou ação dos andrógenos) e (3) distúrbios 46,XX (como a hiperplasia adrenal congênita). Essa classificação permitiu um melhor entendimento das condições envolvidas, facilitando o diagnóstico, a conduta clínica e o aconselhamento genético, além de contribuir para a redução do estigma associado a essas variações no desenvolvimento sexual (LEE et al., 2006).

A Síndrome de Insensibilidade aos Andrógenos (SIA), também conhecida como Síndrome de Morris, é uma condição genética rara caracterizada pela resistência total ou parcial aos andrógenos em indivíduos com cariótipo 46,XY. Devido a mutações no gene do receptor de andrógenos (AR), localizado no cromossomo X, as células desses indivíduos não respondem adequadamente aos hormônios sexuais masculinos, resultando em um desenvolvimento fenotípico feminino ou ambíguo, apesar do sexo cromossômico masculino. Clinicamente, os afetados podem apresentar testículos internos, ausência de útero e trompas de Falópio, e genitália externa que varia de feminina típica a ambígua, dependendo do grau de insensibilidade aos andrógenos. A SIA é classificada em três formas: completa (CAIS), parcial (PAIS) e leve (MAIS), com manifestações clínicas que variam conforme o grau de funcionalidade do receptor de andrógenos (MENDONÇA et al., 2025; BOUCEK et al., 2015; WILSON et al., 1979).

A hiperplasia adrenal congênita (HAC) é uma condição genética resultante de defeitos nas enzimas que produzem os hormônios corticosteroides nas glândulas adrenais. A forma mais comum é a deficiência da enzima 21-hidroxilase, o que leva a um aumento na produção de andrógenos (hormônios masculinos) durante o desenvolvimento fetal. Os aspectos principais são: Nas meninas com HAC, o aumento de andrógenos pode resultar em genitália atípica ao nascimento, com clítoris hipertrofiado (clitoromegalia) e fusão dos grandes lábios, o que pode ser interpretado como uma genitália mais virilizada. Nos meninos, embora o sexo cromossômico e gonadal seja concordante, a produção excessiva de andrógenos pode levar a uma proeminência de caracteres sexuais secundários. Sem tratamento, a HAC pode implicar em distúrbios no equilíbrio hormonal e em complicações como a crise adrenal (BRASIL, 2025; MERCK, 2023).

A síndrome de Turner é uma condição cromossômica que ocorre quando uma mulher tem apenas um cromossomo X funcional (45, X em vez de 46, XX). Essa síndrome pode afetar o desenvolvimento sexual e o crescimento físico de maneira significativa. As meninas com síndrome de Turner frequentemente têm ovários não funcionais e podem não desenvolver características sexuais secundárias femininas sem intervenção médica. Por sua vez, a síndrome de Klinefelter é uma condição genética na qual os meninos nascem com um cromossomo X extra, ou seja, seu cariótipo é 47, XXY em vez de 46, XY. Essa anomalia afeta a produção de testosterona, resultando em características sexuais masculinas incompletas ou hipogonadismo (CAMPINAS, 2021).

Tendo em vista tais doenças, a identificação e o diagnóstico de uma criança com DSD podem gerar desafios complexos tanto para os profissionais de saúde quanto para os familiares, principalmente no que se refere à definição do sexo de criação. Esse processo envolve questões médicas e psicológicas delicadas, muitas vezes com consequências a longo prazo. Em várias situações, é necessário decidir qual será o sexo atribuído à criança, sendo que esta questão pode envolver uma intervenção cirúrgica precoce para restauração da genitália típica, além de um acompanhamento hormonal contínuo. No entanto, essas decisões frequentemente não envolvem a perspectiva da criança e podem gerar impactos profundos no seu desenvolvimento psicológico e emocional (NUNES et al., 2021).

O processo de decisão sobre a atribuição de sexo em crianças com Distúrbios do Desenvolvimento Sexual (DSD) e as intervenções médicas realizadas frequentemente ocorrem sem o consentimento ou envolvimento da criança, o que pode gerar sentimentos de confusão, angústia e frustração. A literatura tem questionado a abordagem tradicional de “normalização” precoce da genitália, argumentando que intervenções invasivas, sem uma compreensão do impacto psicológico, podem agravar os problemas de identidade e aumentar os riscos de distúrbios emocionais a longo prazo. Estudos recentes sugerem que as abordagens mais eficazes envolvem o acompanhamento contínuo da criança, com foco no suporte psicológico e no desenvolvimento de uma identidade de gênero que respeite o tempo e as necessidades individuais da criança (HUMAN RIGHTS WATCH, 2017).

O impacto psicossocial sobre crianças com genitália atípica manifesta-se também na interação com a sociedade. A genitália atípica pode ser vista como uma “marca” de diferença, resultando em bullying, discriminação e exclusão social. A pressão para se conformar aos estereótipos de gênero, muitas vezes exacerbada por concepções conservadoras e binárias de masculinidade e feminilidade, gera um ambiente hostil que agrava os aspectos emocionais e psicológicos da criança. Crianças e adolescentes com Distúrbios da Diferenciação Sexual (DSD) frequentemente enfrentam um duplo estigma: o estigma da “anormalidade” genética e o estigma da “não conformidade” de gênero, o que pode dificultar sua adaptação social e afetar negativamente sua saúde mental. (FAUSTO-STERLING, 2020).

A abordagem multidisciplinar é essencial no manejo de crianças com Distúrbios da Diferenciação Sexual (DSD), envolvendo médicos, psicólogos, assistentes sociais e familiares.

O acompanhamento psicológico adequado pode minimizar os impactos negativos do DSD sobre a saúde mental da criança, promovendo uma compreensão mais holística e humanizada da condição. Ao invés de priorizar intervenções médicas precipitadas, os profissionais de saúde devem adotar práticas que considerem o bem-estar emocional e psicológico da criança, respeitando o seu direito à autodeterminação no que se refere à identidade de gênero. Além disso, é fundamental proporcionar suporte adequado às famílias para lidar com os aspectos emocionais dessa condição, educando-os sobre as possíveis implicações psicológicas e sociais das decisões médicas tomadas (SANTOS et al., 2015).

Dessa forma, o estudo dos impactos na saúde mental de crianças com genitália atípica oferece uma oportunidade de aprofundamento em temas relacionados à identidade de gênero, estigma social, ética médica e direitos humanos. Tendo isso em vista, o objetivo da pesquisa foi identificar, por meio de uma Revisão Sistemática da literatura, os desafios que essas crianças enfrentam, bem como explorar possíveis abordagens terapêuticas que favoreçam o seu desenvolvimento emocional e psicológico de maneira saudável e respeitosa, respeitando os direitos das crianças à privacidade, autonomia e dignidade.

2 METODOLOGIA

Este estudo caracteriza-se como uma pesquisa de levantamento bibliográfico, de natureza descritiva, do tipo revisão sistemática da literatura, que possibilita a associação entre dados da literatura empírica e teórica, com o intuito de apresentar definições, identificar lacunas, revisar teorias e avaliar metodologicamente os estudos relacionados a um tema específico (MATTOS, 2015). Assim, este artigo reuniu os resultados de pesquisas já realizadas e publicadas em fontes acadêmicas, viabilizando a síntese dos achados sem comprometer a base epistemológica dos estudos empíricos analisados. Com o objetivo de assegurar o rigor dessa revisão sistemática, as seis etapas do processo de produção foram fundamentadas nas diretrizes sugeridas por Mattos (MATTOS, 2015).

Na fase inicial, foi definido o objetivo específico da pesquisa, formulados os questionamentos que deveriam ser respondidos e as hipóteses a serem testadas, estabelecendose, assim, a problemática e a questão central da investigação. Para a formulação da questão de pesquisa, foi empregada a estratégia PICo, que facilita a construção de perguntas a partir de palavras-chave, adaptando-se também à metodologia de pesquisas não-clínicas: P= população, paciente ou problema; I= interesse; e Co= contexto. (DAVIES, 2011) (SANTOS et al., 2018). Desse modo, a população (P) a qual essa pesquisa visa atender são os pacientes pediátricos; O interesse (I) trata-se do entendimento sobre os distúrbios de diferenciação sexual e o contexto (Co) trata-se dos principais impactos psicossociais que o agravo promove nos pacientes. Sendo assim, a questão que norteou a pesquisa foi: “Quais informações disponíveis na literatura sobre os impactos dos distúrbios de diferenciação sexual na saúde mental de crianças diagnosticadas com esses agravos?”.

A segunda etapa diz respeito ao estabelecimento da fonte de dados e dos critérios para inclusão e exclusão de estudos. Após a escolha do tema e a formulação da questão de pesquisa, iniciou-se a busca nas bases de dados para identificação dos estudos incluídos na revisão. Avaliou-se criticamente os critérios e métodos empregados no desenvolvimento dos vários estudos selecionados, determinando assim os que contemplavam ou não o objetivo e temática desta pesquisa. Neste contexto os termos de busca selecionados e utilizados nas bases de dados, foram os descritores “Transtornos do Desenvolvimento Sexual”, “Saúde Mental”, “Crianças”, “Disorders of Sex Development”, “Mental Health”, “Children”, os quais foram correlacionados por meio dos operadores booleanos “AND” e “OR” nas bases de dados selecionadas Pubmed e BVS(Biblioteca Virtual em Saúde), tendo em vista sua amplitude no que tange a abrangência dos periódicos da saúde, contemplando um banco de dados internacional, tendo uma ótica geral do contexto das publicações em relação a questão norteadora da pesquisa. Foram utilizados os seguintes critérios de inclusão: textos completos disponibilizados gratuitamente nas línguas portuguesa e inglesa, publicados nos últimos 10 anos e adequados à temática da pesquisa. Excluiu-se outras revisões, relatos de caso e documentos de literatura cinzenta.

Na terceira fase, foram determinadas as informações a serem extraídas dos artigos selecionados. As informações recolhidas incluíram: título do artigo, autores, objetivo da pesquisa, principais resultados e conclusões do estudo. A quarta fase assemelhou-se à análise convencional de dados, em que, para garantir a confiabilidade da revisão, os estudos escolhidos foram avaliados com atenção minuciosa. A análise seguiu a metodologia proposta por Bardin, de forma crítica, buscando explicações para eventuais resultados divergentes ou contraditórios entre os estudos (BORGES, 2020). No que diz respeito à leitura dos artigos, inicialmente foi realizada uma leitura preliminar rápida para facilitar a compreensão geral do conteúdo e identificar as ideias centrais, seguida de uma leitura detalhada e cuidadosa para identificar os temas principais, com o objetivo de responder à questão de pesquisa.

A quinta fase envolveu a discussão dos principais achados da pesquisa convencional, com base nos eixos temáticos estabelecidos na ferramenta utilizada para a avaliação dos estudos incluídos na revisão sistemática. Na sexta fase, foram incluídas informações que permitiram ao leitor avaliar a relevância dos procedimentos adotados na elaboração da revisão, os aspectos relacionados ao tema tratado e o nível de detalhamento dos estudos selecionados. Nessa etapa, foram apresentadas as conclusões e evidências organizadas em temáticas, utilizando mapas conceituais para estruturar os eixos temáticos.

Por fim, os dados foram organizados de maneira sistemática e a análise crítica, assim como a síntese reflexiva, foi realizada de forma descritiva, com base na literatura relevante ao tema abordado no estudo.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

A sistematização da seleção dos artigos ocorreu por meio do diagrama PRISMA (Figura 1) o qual expõe os resultados globais da pesquisa. Diante disso, foi obtido um total de 694 artigos no processo de busca sem filtros. Desses, incluiu-se 25 que obtinham textos na íntegra, excluindo posteriormente 19 pela aplicação dos critérios de elegibilidade, resultando em 06 artigos para a análise.

Figura 1 – Processo de seleção de elegibilidade para publicações sobre DSD baseada no modelo PRISMA.

Fonte: Autores (2025).

Os estudos incluídos na revisão sistemática cujas informações de identificação estão dispostas no quadro abaixo (Quadro 1) abordaram aspectos categorizados em:

Quadro 1 – Principais informações sobre os estudos incluídos na revisão sistemática.

Fonte: Autores (2025).

A avaliação dos estudos sobre Diferenciação Sexual Diferente (DSD) revela a complexidade das decisões médicas e suas repercussões para as pessoas afetadas, suas famílias e para as políticas de saúde. A literatura existente ressalta a importância de adotar uma abordagem holística que leve em consideração não apenas os aspectos clínicos e físicos, mas também os emocionais, psicológicos e sociais, respeitando a autonomia e os direitos humanos das pessoas com DSD. A análise dos seis estudos revisados e a incorporação de outras referências evidenciam como a prática médica em DSD pode ser mais sensível às necessidades e à dignidade dos indivíduos, particularmente no que tange a decisões como a genitoplastia precoce, a definição do sexo de criação e o acompanhamento psicológico a longo prazo.

O Estudo 1 evidenciou que a decisão sobre a genitoplastia precoce afeta profundamente o bem-estar psicológico dos cuidadores, particularmente das mães, que experienciam mais estresse quando a genitália do filho permanece atípica. Essa constatação se alinha com estudos anteriores, como o de Prieur et al. (2015), que apontam que o estresse dos pais está associado à ambiguidade genital e à falta de clareza nas decisões médicas, enfatizando a necessidade de um suporte psicológico adequado para os cuidadores. De acordo com Cohen-Kettenis et al. (2017), a intervenção psicológica para pais de crianças com DSD pode ajudar a mitigar esse estresse, promovendo uma adaptação mais saudável ao diagnóstico e ao tratamento.

O Estudo 2 observou que crianças com DSD enfrentam níveis elevados de ansiedade e depressão, especialmente em comparação com crianças de desenvolvimento sexual  típico. Essa dificuldade emocional pode ser exacerbada pelo diagnóstico precoce e pelas intervenções médicas, como a genitoplastia. Pesquisas adicionais, como o estudo de Meyer-Bahlburg et al. (2007), confirmam que crianças com DSD frequentemente apresentam maiores índices de sofrimento psicológico, incluindo ansiedade e depressão. Isso reforça a necessidade de intervenções precoces, além de acompanhamento psicológico contínuo para essas crianças, conforme sugerido no estudo de Miller et al. (2016), que demonstra que a inclusão de suporte emocional na infância tem um impacto positivo na saúde mental dessas crianças na adolescência e na fase adulta.

No contexto dos pacientes adultos com DSD, o Estudo 3 destacou que a qualidade de vida desses indivíduos não difere significativamente da população geral, desde que tenham acesso a um suporte terapêutico adequado e contínuo. Essa conclusão corrobora a pesquisa de Sifford et al. (2015), que observou que, para pessoas com DSD, o tratamento precoce e a abordagem multidisciplinar são fatores essenciais para garantir uma boa qualidade de vida a longo prazo. Além disso, o Estudo 3 aponta que a autoestima, o apoio social e os sentimentos positivos, como a espiritualidade, são determinantes importantes para o bem-estar dessas pessoas, aspectos que também foram observados em estudos como o de Voyer et al. (2019), que ressaltaram a importância de fatores psicossociais em vez de apenas médicos para o ajuste de vida de pacientes com DSD.

Quanto à definição do sexo de criação, o Estudo 4 destacou como fatores como a genitália atípica e as características ultrassonográficas influenciam essa decisão. No entanto, há uma crescente evidência de que essa escolha deve ser feita com uma abordagem mais inclusiva, levando em consideração aspectos culturais, sociais e, sobretudo, a identidade de gênero da criança. Pesquisas similares , incluindo os trabalhos de Dreger et al. (2015) e Karkazis et al. (2016), sugerem que as decisões sobre o sexo de criação devem ser mais flexíveis, considerando o desenvolvimento da identidade de gênero da criança e evitando intervenções médicas desnecessárias e precoces. Essas recomendações se alinham com a proposta do Estudo 5, que advoga por um modelo baseado nos direitos humanos, permitindo que as pessoas com DSD tenham autonomia sobre seu próprio corpo e suas decisões médicas.

O Estudo 5 destaca a importância de eliminar práticas discriminatórias em saúde e de garantia de autodeterminação para indivíduos com DSD, algo que é fundamental para o desenvolvimento de políticas públicas mais justas e inclusivas. As recomendações do estudo ecoam as sugestões de Kovacs et al. (2020), que defendem a revogação de resoluções médicas discriminatórias e a promoção de uma abordagem mais centrada na pessoa, respeitando sua autonomia e identidade. Além disso, a pesquisa sugere que é necessário que os profissionais de saúde desenvolvam competências culturais e éticas para lidar com a diversidade de condições DSD, apoiando a pessoa em seu processo de tomada de decisão.

Finalmente, o Estudo 6 sobre a análise de registros eletrônicos de saúde para melhorar a identificação e o acompanhamento de casos de DSD também se alinha com as tendências atuais de integrar sistemas de saúde informatizados para melhorar o diagnóstico e a gestão dos cuidados com DSD. A utilização de dados e tecnologia tem sido cada vez mais incentivada, como defendido por Varga et al. (2018), que argumentam que a melhoria na coleta de dados pode resultar em cuidados mais eficazes e personalizados. Além disso, a utilização de sistemas de saúde informatizados facilita o acompanhamento a longo prazo, contribuindo para o melhor entendimento das trajetórias de saúde de pacientes com DSD e ajudando na elaboração de políticas baseadas em evidências.

Em suma, a literatura existente e os estudos revisados indicam a necessidade urgente de uma abordagem integradora, que leve em consideração tanto os aspectos médicos quanto os psicossociais, culturais e éticos, para garantir cuidados adequados e justos para as pessoas com DSD. A inclusão de perspectivas interdisciplinares, baseadas em direitos humanos e evidências científicas, será fundamental para promover um plano de cuidados mais adequado, valorizando a autonomia e qualidade de vida destes pacientes, garantindo que suas decisões médicas e suas identidades sejam conciliadas com dignidade e valorização.

4 CONCLUSÃO

Em conclusão, a análise dos estudos sobre Diferenciação Sexual Diferente (DSD) destaca a complexidade das decisões médicas e seu impacto profundo não apenas na saúde física, mas também no bem-estar psicológico, social e cultural das crianças afetadas. Os resultados revelam a importância de se adotar uma abordagem multidisciplinar que leve em conta as necessidades emocionais e psicossociais dos pacientes e suas famílias, garantindo que as decisões médicas, como a genitoplastia precoce e a definição do sexo de criação, sejam feitas de forma informada, respeitosa e alinhada aos direitos humanos. A literatura revisada sublinha a necessidade de intervenções precoces e de um acompanhamento contínuo para minimizar o sofrimento psicológico, além de reforçar a relevância de políticas de saúde que considerem a autonomia e a identidade de gênero das pessoas com DSD.

Além disso, as evidências apontam para a importância de modelos de cuidado centrados na pessoa, que considerem as particularidades de cada indivíduo, incluindo sua história de vida, identidade de gênero e contexto sociocultural. O fortalecimento das políticas públicas para garantir a autodeterminação das pessoas portadoras de DSD, o desenvolvimento de competências culturais e éticas pelos profissionais de saúde, e a implementação de sistemas de saúde informatizados para monitoramento a longo prazo são essenciais para o aprimoramento do cuidado destes pacientes. A inclusão de uma abordagem baseada em direitos humanos, juntamente com estratégias clínicas fundamentadas em evidências científicas, representa um avanço crucial para oferecer um suporte mais integral, equitativo e humanizado às crianças com DSD para usufruírem de uma melhor qualidade de vida e adaptação psicossocial.


¹A genitália atípica é uma característica que surge quando os órgãos genitais externos de uma criança não se desenvolvem de maneira clara, fazendo com que seja difícil identificar se são masculinos ou femininos. Isso pode ocorrer devido a várias condições relacionadas às ADS, a exemplo da Síndrome de Insensibilidade a Andrógenos (SIA), da Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC) e das Síndromes de Turner e de Klinefelter.

REFERÊNCIAS

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