REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10251556
Adrienne Oliveira da Silva1
Samuel Reis e Silva2
Resumo: Em se tratando da violência intrafamiliar, estudos apontam que a violência psicológica atinge a mulher com maior frequência e pode culminar em agressões físicas e até feminicídio, mas tem sido negligenciada no âmbito da investigação científica e atendimento dos serviços públicos. Em quase todos os casos de agressão física há uma ambiência pré-estabelecida na qual a violência psicológica estava instalada. Esse estudo visa colocar em discussão as razões que levam uma mulher a aceitar uma convivência de humilhações e quais são suas dificuldades para romper o vínculo afetivo abusivo. Para compreender o fenômeno da violência psicológica no contexto doméstico será usado o método descritivo, a partir de uma revisão de literatura, utilizando-se artigos científicos eletrônicos, com abordagem desse tema. A análise dos efeitos da violência psicológica na relação conjugal e a complexidade do processo de rompimento desse vinculo de afetividade visa contribuir para a exclusão do processo progressivo da violência psicológica para outras violências e auxiliar os profissionais da saúde e da segurança pública para direcionar um novo olhar às mulheres vítimas de violência.
Palavras-chave: Mulher, Violência Psicológica, Saúde.
Abstract: When it comes to intra-family violence, studies indicate that psychological violence affects women more frequently and can culminate in physical aggression and even femicide, but it has been neglected in the scope of scientific research and public service provision. In almost all cases of physical aggression there is a pre-established environment in which psychological violence was installed. This study aims to discuss the reasons that lead a woman to accept a humiliating coexistence and what are her difficulties in breaking the abusive emotional bond. To understand the phenomenon of psychological violence in the domestic context, the descriptive method will be used, based on a literature review, using electronic scientific articles, addressing this topic. The analysis of the effects of psychological violence on the marital relationship and the complexity of the process of breaking this bond of affection aims to contribute to the exclusion of the progressive process of psychological violence to other types of violence and help health and public safety professionals to direct a new perspective to women victims of violence.
Keywords: Women, Psychological Violence, Health.
1. INTRODUÇÃO
A violência tem se destacado como um dos grandes temas de discussão na sociedade. Diariamente, a mídia apresenta um balanço dramático com informações sobre as mais recentes vítimas de assaltos, crimes, conflitos e comportamentos agressivos em diferentes contextos sociais. Diante de tal realidade questiona-se: o que motiva a violência? Os sujeitos envolvidos em atos de violência são invariavelmente agressores e/ou vítimas? A violência é parte integrante da natureza dos indivíduos; prejudica e/ou controla a sociedade?
A investigação dos aspectos históricos da expansão e das conquistas de um povo, da ideologia que legitima o poder e as estratégias de manutenção econômica numa sociedade em que prevalece a desigualdade entre homens e mulheres no âmbito familiar e social, significa reconhecer a necessidade da prática de uma nova legislação em defesa dos direitos fundamentais da humanidade, como admissão de que “todos são iguais perante a lei”, e investimento na promessa de uma sociedade mais pacífica e igualitária (BRASIL, 1998).
A garantia da saúde como bem-estar coletivo e direito de todos tem início na ação política de cada um, e no reconhecimento das leis governamentais, como a publicação da Lei Federal nº 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, tornando-se um marco no sistema jurídico brasileiro, não apenas através da formalização legal, mas também por meio da consolidação de estruturas específicas, mediante a mobilização dos aparelhos estatais da segurança em defesa das vítimas, punição e reeducação humanitária aos agressores.
A violência psicológica constitui uma das inovações conceituais contempladas pelo dispositivo legal e ainda carece de substancial reflexão. A metodologia de pesquisa trata-se de revisão bibliográfica, pautando-se principalmente em livros e artigos científicos do campo jurídico e sociológico, bem como pesquisa documental de fontes institucionais diversas, como pesquisas nacionais do IBGE, Instituto Avon, dentre outros dados estatísticos.
Em uma conjuntura nacional, caracterizada por altos índices de violência psicológica contra a mulher, o presente estudo pretende investigar as causas e consequências na saúde a partir da perspectiva dos direitos da mulher, que embora tenha alavancado algumas conquistas, ainda muito caminho para percorrer no intento de proporcionar a ela uma vida digna, em que todos os direitos humanos também sejam garantidos e, em suma, respeitados.
2. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS
A violência atinge com requintes de crueldade os seres humanos sem distinção de cor, raça ou credo e sempre esteve presente na vida da humanidade, manifestada em formas, tamanhos e circunstâncias sutilmente planejadas. Cabe conhecer essa realidade em seus aspectos insuspeitados e implicações ideológicas que manipulam o imaginário dos indivíduos no contexto da coletividade e da família, num círculo vicioso de debates, ofensas e agressões.
A intolerância contra “o outro”, “o diferente”, “a mulher” e tantas outras representações simbólicas sociais pode ter inúmeros significados, podendo ser estimulada ou inibida por diversos fatores, dependendo do momento e das condições em que ocorre. Recentes publicações da Organização Mundial de Saúde – OMS indicam que a violência tem se manifestado acentuadamente em âmbito nacional e internacional, atingindo aproximadamente um terço das mulheres no mundo todo, de acordo com as estatísticas cerca de 736 milhões de mulheres já sofreram violência física, sexual ou psicológica pelos seus parceiros ou alguma pessoa próxima (OMS, 2021).
Historicamente, a violência tem sido utilizada em nosso país como mecanismo de repressão desde o período colonial, para escravizar negros e índios, passando pelas insurreições do Brasil Império e do Brasil República, período da Ditadura Civil-Militar (1964 a 1985), chegando ao Brasil pós-Constituição de 1988. Não se trata de uma causa isolada, a violência ocorre a partir uma série de fatores premeditados e conectados em diferentes contextos que permeiam a sociedade.
2.1 VIOLÊNCIA: DEFINIÇÕES E TIPOLOGIAS
O Dicionário Houaiss descreve a violência como ação ou efeito de (…) empregar a força física ou a intimidação moral contra outra pessoa (2001). Os índices de violência doméstica, em seus diferentes aspectos, deixam marcas na pessoa e na sociedade, “seus instrumentos estão no âmbito das humilhações, ameaças, ofensas; e seus efeitos podem levar a agressões físicas, tortura, morte ou danos psíquicos (PAVIANI, 2016).
O conceito de violência contra as mulheres adotado pela Política Nacional fundamenta-se na definição da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994, segundo a qual a violência contra a mulher constitui “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”.
A reprodução da violência é de tal forma reiterada na sociedade, que é entendida como um fenômeno natural diante de olhares indiferentes e conduta baseada no preconceito e na discriminação de pessoas, na violência e na invisibilidade das mulheres. Nas palavras de Arendt: “Isso indica quanto a violência e sua arbitrariedade foram consideradas corriqueiras e, portanto, negligenciadas socialmente; ninguém questiona ou examina o que é óbvio para todos” (ARENDT, 2013, p. 23). Segundo a definição da Organização das Nações Unidas– ONU “a violência ocorre contra uma mulher apenas porque ela é mulher”. Nessa perspectiva, Sacramento e Resende, (2006) comentam:
O termo violência contra a mulher foi dado pelo movimento social feminista há pouco mais de vinte anos. A expressão refere-se a situações diversas quanto aos atos e comportamentos cometidos: violência física, assassinatos, violência sexual e psicológica cometida por parceiros, estupro, abuso sexual e moral, abusos emocionais, espancamentos, prostituição forçada, coerção à pornografia, tráfico de mulheres, turismo sexual, violência étnica e racial, etc. (SACRAMENTO e RESENDE, 2006).
A violência contra as mulheres não pode ser entendida sem a análise da dimensão de gênero, construção social e política da sexualidade humana, que divide os contextos de atuação atribuindo diferentes espaços de poder para homens e mulheres, visto que ainda prevalece o preconceito e o racismo contra a figura feminina que de uma forma geral ocupa lugares de menor empoderamento, de desvalorização e de subalternidade na sociedade. Não se faz aqui referência as diferenças de sexos, destaca-se as desigualdades humanas veiculadas e reproduzidas em diferentes contextos – familiar, profissional, religioso trata-se especialmente da violência contra as mulheres como resultado de uma cultura da supremacia masculina que divide a sociedade nos espaços antagônicos das relações de gênero, como forma de reprodução da ideologia capitalista e patriarcal.
3. RELAÇÕES DE GÊNERO: TRAÇOS DE PODER E DESIGUALDADE
Atualmente, no contexto de pesquisas científicas parece haver um consenso de que o sistema patriarcal contribui para a formação da desigualdade de gênero. Para entender esta relação, precisa-se analisar os fatos sociais no decorrer da história humana que estão veiculados à idealização da superioridade física e mental dos homens sobre as mulheres, originando relações assimétricas que se revelam em inúmeras injustiças, especialmente contra as mulheres que são manipuladas, subjugadas e inferiorizadas nas relações sociais de poder econômico.
Acerca da violência de gênero contra a mulher estabelecida com base no contexto histórico da sociedade no Brasil, que determina papéis discrepantes para homens e mulheres Morais; Rodrigues, (2016) consideram que:
(…) a violência de gênero no país aumentou de forma considerável na última década, dados apontam que os índices de violência hoje, contabilizam “4,4 assassinatos a cada 100 mil mulheres, número que coloca o Brasil no 7º lugar no ranking de países nesse tipo de crime, 43% das mulheres em situação de violência sofrem agressões diariamente; para 35%, a agressão é semanal”. Nesse sentido, confirma-se o quanto a cultura da violência doméstica é arraigada na cultura brasileira (MORAIS; RODRIGUES, 2016: 90).
Em se tratando da violência doméstica, a atenção da sociedade se direciona mais para a violência contra a mulher, pela magnitude desse evento em todo o mundo. O uso recente da categoria gênero vem oferecendo a esses estudos uma importante base para se discutir sobre as causas e consequências desse fenômeno social. Algumas correntes teóricas, embora partindo de diferentes opiniões, têm sido utilizadas para abordar a questão de gênero. Dentre elas as características da sociedade patriarcal.
A corrente de grande influência na orientação de pesquisas sobre violência de gênero corresponde ao artigo de Marilena Chauí “Participando do debate sobre mulher e violência” em que concebe a violência contra as mulheres como resultado de uma ideologia de dominação masculina, produto socialmente construído e reconstruído por homens e mulheres. Nesse trabalho, a autora define violência como uma ação que transforma diferenças em desigualdades hierárquicas com o intuito de dominar, explorar e oprimir, cenário em que o ser dominado é tratado como “objeto” e não como “sujeito”, o qual é silenciado e se torna dependente e passivo. Nesse sentido, o ser dominado perde sua autonomia, sua liberdade, entendida aqui como “capacidade de autodeterminação para pensar, querer, sentir e agir” (CHAUÍ,1985: 36).
Marilena Chauí revela que, ao contrário do sujeito masculino, o sujeito feminino é sempre um ser “dependente”, desprovido de liberdade para pensar, querer, sentir e agir, ou seja, um ser sem autonomia. É nesse sentido que para Chauí as mulheres são “cúmplices” da violência e contribuem para a reprodução de sua “dependência” porque são “instrumentos” da dominação masculina. No entanto, é preciso frisar, as mulheres são cúmplices, mas sua cumplicidade não se baseia em escolha ou vontade. São coniventes da violência e cooperam para sua reprodução porque são “instrumentos” da dominação masculina.
As teorias de gênero foram muito questionadas, especialmente no século XX. As críticas desautorizaram seus argumentos por entender que a desigualdade entre sexos é uma construção cultural. De acordo com os novos conceitos, afirma-se que existem diferenças de ordem biológica, mas estas não devem ser utilizadas para explicar desigualdades sociais. Nesse contexto se torna relevante lembrar que diferente faz par com idêntico. Diferente e idêntico são conceitos culturais. Agora, igualdade faz par com desigualdade, “são conceitos políticos” (SAFFIOTI, 2005:49). Nessa perspectiva, a autora afirma que:
O patriarcado não se resume a um sistema de dominação, modelado pela ideologia machista. Mais do que isto, ele é também um sistema de exploração. Enquanto a dominação pode, para efeitos de análise, ser situada essencialmente nos campos político e ideológico, a exploração diz respeito diretamente ao terreno econômico. (SAFFIOTI, 1987:.50).
A análise dos processos de criação e expansão da ideologia patriarcal na sociedade tornam-se fator decisivo para se identificar a existência de realidades excludentes no país e compreender a inferioridade social das mulheres. Nesse sentido, Castells contribui com a definição do sistema patriarcal e sua influência nas estruturas político-econômicas que ajuda a compreender vários elementos de dominação inseridos na sociedade:
O patriarcalismo é uma das estruturas sobre as quais se assentam todas as sociedades contemporâneas. Caracteriza-se pela autoridade imposta institucionalmente do homem sobre mulher e filhos no âmbito familiar. Para que essa autoridade possa ser exercida, é necessário que o sistema patriarcal permeie toda a organização da sociedade de produção e de consumo, a política, a legislação e a cultura (CASTELLS, 1999, p. 169).
A violência contra as mulheres resulta da socialização da ideologia masculina, em que o homem se julga no direito de controlar a família, de espancar sua mulher. Esta, educada que foi para submeter-se aos desejos masculinos, toma este “destino” como natural. Ao contrário de Chauí, que define as mulheres como “cúmplices” da violência, Saffioti não concebe as mulheres como “vítimas”, define-as como “sujeitos” dentro de uma relação desigual de poder com os homens. A autora esclarece que as mulheres se submetem à violência não porque “consintam”, elas são forçadas a “ceder” porque não têm poder suficiente para não consentir.
Nesse contexto, podemos perceber que a violência age como ruptura de diferentes tipos de integridade: física, sexual, emocional e moral. No entanto, em se tratando de violência de gênero os limites são muito tênues entre a quebra da integridade e a obrigação de suportar o destino de gênero traçado pelas mulheres: sujeição aos homens, sejam pais ou maridos. (SAFFIOTI, 2015). Nessa perspectiva, a autora afirma que:
(…) os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os sexos e indicam que a prática desse tipo de violência não é fruto da natureza, mas sim do processo de socialização das pessoas (…) por essa razão os direitos humanos são destacados como aspectos fundamentais em que a violência diz respeito a todo agenciamento capaz de violá-los, e o respeito ao outro constitui-se como base de uma nova concepção de vida em sociedade. (SAFFIOTI, 2015).
Os conflitos ocasionados pelas dificuldades de convivência humana são elencados por um rol de definições da violência como objeto de estudos e resultado de pesquisas científicas. A violência pode atingir pessoas sem identificar status social, credo ou raça, pode ser definida pelas diversas ciências sociais, punida pelo sistema jurídico, mas continua se expandido de uma forma generalizada no mundo todo. Um fato é indiscutível: a violência existe como resultado de uma ideologia perversa criada em nome do poder econômico e de sua invisibilidade nas esferas culturais, econômicas e sexistas da sociedade.
4. A VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A SAÚDE DA MULHER
A violência doméstica, mais especificamente, a violência psicológica contra a mulher apresenta índices alarmantes de ofensas, agressões, maus-tratos, danos físicos e emocionais no âmbito familiar. A Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece a violência doméstica contra a mulher como uma questão de saúde pública, que afeta negativamente a integridade física e emocional da vítima, seu senso de segurança, e atinge seu papel de mãe, esposa, e geradora de rendimentos na família.
A Lei nº 11.340/2006, nomeada Lei Maria da Penha, reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das melhores legislações no processo de enfrentamento à violência de gênero, classifica os tipos de violência contra a mulher em cinco categorias: violência patrimonial, violência sexual, violência física, violência moral e violência psicológica. (BRASIL, 2006).
Nesse rol de agressividade contra a mulher, a violência psicológica tem sido analisada como aquela que causa inúmeros conflitos, mas passa despercebida, de forma sutil, diluída em comportamentos aparentemente neutros, não relacionados com o conceito de violência física. Como se trata de uma violência silenciosa pode se estender por longos períodos, com a tendência de culminar na forma de violência física. (PORTELA, 2021:53).
O artigo 7º § II, da Lei Maria da Penha, define a violência psicológica contra a mulher como:
[…] Qualquer conduta que cause danos emocionais, diminuição da autoestima, que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (BRASIL, 2006).
A violência psicológica está presente em diversos comportamentos como: xingar, humilhar, ameaçar, intimidar, amedrontar, criticar continuamente, desvalorizar ações e desconsiderar a opinião ou decisão da mulher; debochar publicamente; diminuir a autoestima; impedir a liberdade de crença e decisão; tentar persuadir a mulher de que está perdendo a noção da realidade, está ficando “louca”; atormentar a mulher atribuindo culpa; medo, controlar tudo o que ela faz, quando sai, com quem e aonde vai; impedir que ela trabalhe, estude, saia de casa, vá a igreja ou viaje; procurar mensagens no celular ou no e-mail dela; usar os filhos para fazer chantagem; isolar a mulher de amigos e parentes (BRASIL, 2016).
A gravidade da violência psicológica contra a mulher está associada à frequência e repetição da conduta violenta do agressor, conforme esclarece Saffioti:
(…) A violência psicológica que atinge a mulher no âmbito doméstico apresenta características específicas. Uma das mais relevantes é a sua repetição, ou seja, ela incide sobre as mesmas pessoas, tornando-se rotineira: os agressores são geralmente maridos, companheiros, namorados, amantes (Saffioti, 2004).
Maria Berenice Dias destaca que a violência psicológica é muito frequente e talvez seja o tipo menos denunciado pelas vítimas, que às vezes nem se dão conta de que agressões verbais, silêncios prolongados, tensões, manipulações de atos e desejos são violência e deve ser denunciada (Dias, 2012: 67).
4.1 O CICLO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
1ª fase: Ato de tensão – em um primeiro momento, o ofensor se utiliza de insultos, ameaças, raiva e ódio. Tais comportamentos fazem com que a vítima se sinta culpada, com medo, humilhada e ansiosa. A tendência é que o comportamento passe para a fase 2.
2ª fase: Ato de violência – nessa fase, as agressões tomam uma maior proporção, levando a vítima a se esconder na casa de familiares, buscar ajuda, denunciar, pedir a separação ou, até mesmo entrar em um estado de paralisia impedindo qualquer tipo de reação.
3ª fase: Ato de arrependimento e tratamento carinhoso, conhecido também como “Lua de mel’’ – o ofensor se acalma, pede perdão, tenta apaziguar a situação afirmando que nunca mais vai repetir tais atos de violência. Isso faz com que a vítima lhe dê “mais uma chance’’, inclusive por fatores externos como o bem-estar dos filhos e da família. Por fim, quando essa fase se encerra, a 1ª fase volta a ocorrer, caracterizando o ciclo de violência. (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2012, p. 68).
A repetição cíclica das etapas tende a ocasionar que a agressão seja cada vez mais grave e habitual. Quanto mais vezes esse ciclo se completa, menos tempo vai precisar para se completar na próxima vez. A intensidade e gravidade dos eventos aumentam com o tempo, de maneira que as fases vão gradualmente se encurtando, o que eventualmente leva a 1ª e a 3ª fase a desaparecerem com o tempo. Então, cria-se o hábito do uso da violência naquele relacionamento. A ação da vítima de questionar, argumentar ou queixar-se dá início a mais um ciclo de violência, ou incrementa o que já estava em curso. Se a vítima busca cessar a violência rompendo o relacionamento, o risco de sofrer agressões aumenta ainda mais, podendo resultar em situações extremas, como o feminicídio.
4.2 CONSEQUÊNCIAS DA VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA NA SAÚDE DA MULHER
A violência psicológica distorce a visão pessoal e atinge a autoestima da mulher, compromete seu estilo de vida, inibe a vontade de sair do isolamento doméstico, buscar ajuda, encontrar amigos, etc. Com a harmonia destruída as mulheres sofrem caladas, sem coragem de compartilhar as vivências sofridas com mais ninguém, essas implicações geram indecisões, vulnerabilidades, o que pode ocasionar repetições de agressões e doenças psicossomáticas como depressão, ansiedade e entre outras.
O sofrimento psíquico no cotidiano das mulheres que vivenciam violência psicológica, como salientam Trigueiro et al. (2017), representam um grave problema social, jurídico e de saúde pública, com dados preocupantes no Brasil e no mundo. Além disso, configura-se como fator de risco e prejuízos à saúde integral das vítimas, uma vez que além de provocar lesões físicas, pode desencadear danos à qualidade de vida, como transtornos alimentares, distúrbios sexuais e de humor, alterações no sono e comportamentos evitativos, silenciosos e suicidas. Similarmente, prejuízos à regulação emocional, consumo abusivo de álcool e outras drogas, comprometimento da autoimagem e dos vínculos sociais e afetivos também são apontados na literatura (SILVA E VAGOSTELLO, 2017; ZANCAN E HABIGZANG, 2018).
As abordagens referentes às mulheres em situação de violência psicológica confirmam que elas têm mais chances de desenvolver doenças psicológicas e, consequentemente, fazer uso de antidepressivos em busca de aliviar dores, mágoas e desesperanças adquiridas num relacionamento abusivo. Pitanguy (2013) contribui para esse debate informando que as agressões psicológicas se traduzem também em incidências de maior contato com os serviços de saúde pública e uso de medicamentos. (GODONI, ZUCATTI e DELL’AGLIO, 2011).
Segundo Rabello e Caldas Júnior (2007), identificou-se que embora o abuso de álcool e outras drogas e a violência contra mulher sejam abordados como uma relação causal de situações de agressões, destaca-se que essa não é a causa primordial da violência sofrida, mas um fator que potencializa e vulnerabiliza as mulheres ao contexto violento.
A violência psicológica contra a mulher, no ambiente doméstico, como pode perceber, é muito grave, pois afeta não somente a saúde da mulher, mas todos os que estão a sua volta acabam por sofrer também, afinal, uma doença de cunho psicológico interfere na forma como a mulher convive com os seus entes familiares.
As consequências da violência doméstica ou na saúde da mulher obtém destaque à medida que as pesquisas e agressões emergem, e os profissionais ligados a atenção em saúde da mulher, onde é possível perceber que não estão aptos para enfrentar e colaborar para a prevenção da violência é observável que esses profissionais necessitam de treinamentos para reconhecer os sinais e sintomas da violência, principalmente os de caráter psicológico visto que o mais difícil de se identificar. O setor de saúde deve estar ligado a uma rede de apoio que possibilite contato com as Delegacias de Atenção a Mulher, Casas Abrigo, Serviço Social entre outros. (SOUZA & MONTEIRO,2016)
Buscando mapear a presença e atuação de psicólogos em serviços especializados no atendimento a mulheres em situação de violência, Souto e Castelar (2020) salientam que a Psicologia é convocada para uma atuação de empoderamento dessas mulheres, compreendendo o fenômeno da violência contra estas a partir de estruturas de poder constituídas socialmente, produzindo sofrimento. A violência de gênero tem sido fortemente associada a impactos na saúde mental das mulheres, desse modo, se faz imprescindível a construção de conhecimentos teóricos e práticas profissionais éticas, abrangendo o fortalecimento de políticas integrais e maior visibilização do tema, de forma contextualizada para a prevenção de violências e a promoção de saúde. (DE OLIVEIRA ANDRADE E LIMA MARTINS, p. 02, 2023)
Embora haja uma posição de maior protagonismo das mulheres na sociedade, comparando-se com dados passados e com a condição social e política em que as mulheres eram expostas, a desigualdade, discriminação e submissão ainda existem, e são fatores diretamente ligados ao contexto cultural que ainda define o perfil mulher como um ser “frágil” na sociedade contemporânea. A realidade de exclusão das mulheres traz à tona a necessidade de novas lutas que causem a ruptura desse modelo tradicional.
A partir das lutas feministas, a busca do empoderamento das mulheres passa a ser incentivada como direito fundamental e elemento preventivo no combate da violência contra a mulher vivenciada em formas distintas tanto no contexto doméstico quanto social e profissional, que requer um processo de fortalecimento e protagonismo a partir da renúncia do sentimento de impotência e dependência, como a conscientização da sua igualdade e dignidade humana.
O enfrentamento desta problemática social depende da conscientização dos indivíduos, das famílias, da sociedade em geral, para que os valores da cultura do patriarcado possam ser desconstruídos em todos os espaços sociais onde a violência contra a mulher é construída, naturalizada e legitimada, sendo necessário que o recorte de gênero seja incorporado na construção das políticas públicas de educação, saúde, assistência social e segurança pública para que se possa promover a construção de relacionamentos humanos que não violem os direitos humanos das mulheres. Cabe à psicologia promover ações interdisciplinares fomentando tal discussão e possibilitando a construção de novos espaços de discussão e de construção/efetivação de uma rede integrada de saberes para suporte para as mulheres vítimas de violência doméstica e psicológica.
5. CONSIDERAÇÕES
Esse estudo apresentou a possibilidade de se realizar uma análise de literatura e refletir sobre as formas de violência contra a mulher como fatores de cerceamento de sua expressividade como pessoa, como sujeito, como protagonista na sociedade em que vive. Nesse sentido, percebe-se que os tipos de violência, elencados na Lei Maria da Penha causam efeitos penosos na vida da mulher, especialmente para aquela que lida com agressões psicológicas, em forma de rejeição diariamente, é menosprezada e tem dificuldade de entender que a situação de agressão verbal não é natural, não faz parte de relacionamentos saudáveis e que, portanto, não se deve aceitar.
Com o desenvolvimento da pesquisa bibliográfica, observou-se que, a violência doméstica afeta diretamente a saúde física e mental da mulher, com variações na intensidade e nas formas, transcendendo, em alguns casos, os danos gerados pela violência física, como lesões graves e gravíssimas ou até mesmo a morte. Verificou-se que, os efeitos relacionados com os traumas da violência doméstica são muitas vezes exacerbados pelo fato de que o agressor é conhecido e íntimo da vítima, o que aumenta as sensações de vulnerabilidade, perda e, sobretudo, a falta de coragem de denunciá-lo. A subordinação econômica, também, é um fator que contribui para que a mulher seja uma vítima vulnerável à violência doméstica, pois o companheiro utiliza tal fato como forma de ameaça e humilhação.
Por fim, faz-se necessário destacar a importância do desenvolvimento e melhoria das políticas públicas e da prestação dos serviços que contém os profissionais que visam o atendimento desse tipo de demanda, pois a mulher precisa ser acolhida, considerando-se que há dificuldades relacionadas ao desfecho dos casos de agressão psicológica, uma vez que abrange uma gama de eventos e não há por parte das políticas públicas um olhar diferenciado para esse acontecimento e suas particularidades, deixando prejudicada a definição da natureza do fenômeno.
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1Acadêmica do Curso de Psicologia pelo Centro Universitário Fametro
2Professor e orientador do Curso de Psicologia pelo Centro Universitário Fametro