REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202410311643
Victória Guerra Abdias1; Orientador: Denison Santos Silva2; Yan Vitor Gomes Silva de Jesus3; Amanda de Souza Oliveira4; Jéssica Macedo Santos5; Matheus Martins Pereira6; Aécio Freire Monteiro7; Júlia Millen Mendes8; Ramilly Guimarães Andrade Santos9; Marina Déda Peixoto Leite10; Victor Gabriel Santana Cruz11
RESUMO
O trauma quase sempre esteve entre as principais causas de morte no Brasil e no mundo, porém sua fisiopatologia segue suscitando dúvidas até os dias atuais. Ao analisar retrospectivamente prontuários de pacientes internados em unidades de terapia intensiva, os níveis séricos reduzidos de cálcio chamaram atenção de alguns pesquisadores por sua possível inter-relação com as taxas de mortalidade e transfusão de hemoderivados, o que nos leva a questionar não somente seu papel no organismo, mas também se um possível manejo do íon seria modificador de desfecho. Dessa forma, a presente revisão tem o intuito de reunir o que há de mais atual e consistente entre os estudos a respeito da hipocalcemia no trauma de modo a tornar mais clara sua interferência na sobrevida dos pacientes e até reiterar novos questionamentos para que possam ser aprofundados por estudos posteriores.
Palavras-chave: trauma, hipocalcemia, transfusão de hemoderivados.
INTRODUÇÃO
No trauma e em seus mecanismos fisiopatológicos, já é bem estabelecido e estudado o que se chama de “tríade letal do trauma”. O termo se refere a acidose metabólica, hipotermia e coagulopatia, alterações incidentes na mortalidade dos pacientes vítimas de trauma. Porém, outra condição clínica também vem chamando atenção por sua possível relação com os óbitos, a hipocalcemia. Em pesquisa retrospectiva realizada entre 2011 e 2019 em um centro de trauma nível 1 do norte da Itália, dos 798 pacientes elegíveis, 129 pertenciam ao grupo dos “hipocalcêmicos”. Apesar de um número pouco significativo dentro do espaço amostral, o alarmante do estudo foram os 124 óbitos dentro da coorte com cálcio sérico abaixo do preconizado. Isto é, aproximadamente 96% dos pacientes com hipocalcemia vieram a óbito. (2)
Ainda que o tema seja pouco abordado até o presente momento, é possível compreender o impacto do cálcio no paciente traumatizado quando nos voltamos para sua função no organismo. O íon participa da contração dos músculos esquelético e liso, liga-se especificamente à troponina atuando na contratilidade cardíaca, participa da liberação de neurotransmissores e ainda possui papel fundamental na ativação plaquetária e de fatores de coagulação, incluindo o fator XIII. Com isso, sua ausência impacta na fisiopatologia da hipóxia e hipercapnia, da hipotensão, da redução do débito cardíaco e da coagulação, todas alterações bem conhecidas e temidas no contexto do trauma. (5)
Dentre os fatores contribuintes para a hipocalcemia no paciente vítima de trauma grave, podemos citar a hipovolemia consequente de exsanguinação, hemodiluição induzida por uso de coloide, hipoparatireoidismo após ingesta aguda de álcool, acidose metabólica e a quelação do íon secundária à transfusão sanguínea. Este último é a etiologia mais delicada em termos de manejo, considerando que o uso de hemoderivados nem sempre pode ser adiado e, somado a isso, conforme já citado, a ressuscitação com uso de coloides também pode ser fator causal da redução do cálcio sérico. Desse modo, os questionamentos atuais giram em torno não somente da hipocalcemia enquanto preditor de mortalidade, mas também da hipótese de reposição do íon na tentativa de modificar os desfechos clínicos. (2)
Assim, dada a relevância clínica evidente do tema, podemos afirmar que seu grande limitante é a escassez de pesquisas mais consistentes e de dados provenientes de variáveis padronizadas. Até o momento o que se tem são estudos isolados embasados em variantes distintas e concordantes com as necessidades específicas de serviços de terapia intensiva espalhados pelo mundo.
OBJETIVOS:
Evidenciar através das literaturas atuais a relevância e o impacto da hipocalcemia no desfecho clínico do paciente vítima de trauma e identificar sua interrelação com a hemotransfusão e suas demais etiologias de modo a, por meio de evidências, buscar respostas no que diz respeito ao manejo.
METODOLOGIA:
O presente trabalho trata-se de um estudo bibliográfico, tipo Revisão Integrativa da Literatura (RIL), que tem como intuito, reunir estudos relevantes acerca de uma temática específica, utilizando métodos controlados de pesquisa.
Inicialmente, segundo as etapas descritas por Silva (2010), após a construção do tema, a seguinte pergunta norteadora foi elaborada: Qual a correlação entre hipocalcemia e a taxa de mortalidade em pacientes vítimas de trauma? Posteriormente, em agosto do corrente ano, os descritores “hypocalcemia” e “trauma” e seus equivalentes em português foram combinados no método booleano “AND” e inseridos nas bases de dados Pubmed e LILACS. Os artigos encontrados a partir dessa busca foram selecionados de acordo com os critérios de inclusão que consistiram em textos completos gratuitos e correspondentes aos últimos 5 anos. Desse modo foram obtidos 91 resultados na base de dados Pubmed e 5 na base de dados LILACS.
Finalizada a primeira triagem, os 96 trabalhos tiveram seus títulos e resumos analisados e foram filtrados somente aqueles que continham elementos que fizessem alusão à hipocalcemia no contexto do trauma, resultando em 11 artigos passados para a seguinte e última etapa, na qual foram lidos na íntegra e de forma minuciosa. Esses 11 trabalhos foram os embasadores da presente revisão.
DISCUSSÃO E RESULTADOS:
Quadro 1 – Resultado da Pesquisa Integrativa
Artigo | Objetivo | Conclusão |
Calcium supplementation during trauma resuscitation: a propensity score-matched analysis from the TraumaRegister DGU® (2024) | Esclarecer os impactos da suplementação de cálcio durante a reanimação do trauma e sua interferência na mortalidade precoce. | Não foram encontradas evidências claras a respeito da suplementação precoce de cálcio durante a reanimação. Contudo, não é descartado o benefício da sua reposição em alguns subgrupos de pacientes com valores limítrofes. |
Early Hypocalcemia in Severe Trauma: An Independent Risk Factor for Coagulopathy and Massive Transfusion (2022) | Investigar a hipocalcemia enquanto provável fator preditivo para coagulopatia e transfusão maciça, interrogar a interferência da hemodiluição e da ingestão aguda de bebida alcoólica sobre a hipocalcemia, além de buscar outras etiologias que levam a esta condição clínica. Analisar também a mortalidade hospitalar. | Ainda que necessite de maiores esclarecimentos, a hipocalcemia foi identificada como um preditor independente de necessidade de transfusão maciça, coagulopatia precoce e mortalidade em casos de trauma grave. Recomenda-se a correção da hipocalcemia nessas condições. Porém, deve ser parcimoniosa dados os riscos da hipercalcemia. |
Effect of ionized calcium level on short-term prognosis in severe multiple trauma patients: a clinical study (2023) | Compreender a relação entre as flutuações do Ca iônico e a mortalidade em 28 dias em pacientes com choque hemorrágico traumático submetidos a protocolos de transfusão maciça, estabelecer um corte mínimo ideal do íon para prever a mortalidade em 28 dias e encontrar um valor alvo a partir do qual deve ser corrigida a hipocalcemia. | É esperado que a manutenção dos níveis de cálcio iônico acima ou igual a 0,95mmol/L dentro de 24 horas melhore os desfechos imediatos nos pacientes vítimas de trauma grave com hemorragia maciça. |
Forgot calcium? Admission ionized-calcium in two civilian randomized controlled trials of prehospital plasma for traumatic hemorrhagic shock (2020) | Comparar pacientes que receberam plasma pré-hospitalar e aqueles que tiveram ressuscitação com cristaloides avaliando um risco maior no primeiro grupo de hipocalcemia na admissão hospitalar. Do mesmo modo, avaliar também a maior propensão a transfusão maciça e maiores taxas de mortalidade no grupo dos hipocalcêmicos. | A administração de plasma no atendimento pré-hospitalar do trauma está interligado com a hipocalcemia, importante preditor da necessidade de transfusão de hemoderivados e das taxas de óbito.Ressaltando-se assim, a imprescindibilidade de diretrizes que abordem a suplementação de cálcio na hemoterapia pré-hospitalar. |
Hypocalcemia as a predictor of mortality and transfusion. A scoping review of hypocalcemia in trauma and hemostatic resuscitation (2022) | Analisar os presentes dados acerca da hipocalcemia, da mortalidade e da necessidade de hemotransfusão em pacientes traumatizados a fim de eleger evidências que comprovem a interrelação entre os níveis reduzidos de cálcio iônico e a morbimortalidade. | Embora a hipocalcemia esteja relacionada com a mortalidade, os presentes estudos não são suficientes para estabelecer uma relação de causalidade. Além disso, é necessário investigar a interrelação entre transfusões maciças, hipocalcemia e os parâmetros hemodinâmicos relacionados às transfusões. |
Hypocalcemia in trauma patients: A systematic review (2021) | Buscar na literatura atual associações entre pré-transfusão, hipocalcemia na admissão e desfechos como mortalidade, necessidade de transfusão de hemoderivados e coagulopatia nas vítimas de trauma. | Foram encontradas evidências de qualidade moderada que associam a hipocalcemia, independente de transfusões, à mortalidade, necessidade de transfusão de sangue e coagulopatia. |
Impact of Transfused Citrate on Pathophysiology in Massive Transfusion (2021) | Identificar os efeitos do citrato na fisiologia da transfusão maciça no paciente sangrante. | A interação entre o citrato e as condições clínicas que compõem o “Diamante da Morte”, pode agravar ainda mais o quadro. A manutenção do citrato na circulação impacta na geração de trombina e na função plaquetária, levando a hipocalcemia e necessidade de novas transfusões. Dessa forma, é importante realizar infusão cautelosa e limitada de citrato em pacientes em choque hemorrágico, ao mesmo tempo em que se maneja a hipocalcemia gerada. |
Influence of hypocalcemia on the prognosis of patients with multiple trauma (2024) | Oferecer uma referência para aprimorar o monitoramento e tratamento de pacientes com múltiplas lesões. Dentre os parâmetros importantes a serem avaliados minuciosamente no contexto dessas múltiplas lesões, temos a hipocalcemia. | A hipocalcemia pode ser usada como indicador clínico do prognóstico de pacientes politraumatizados. Contudo, limitações foram identificadas, como o espaço amostral reduzido e o uso de casos selecionados em um estudo retrospectivo, em vez de incluir casos mais recentes. |
Pre-hospital blood products and calcium replacement protocols in UK critical care services: A survey of current practice (2022) | Estabelecer a disponibilidade de hemoderivados no atendimento pré-hospitalar no Reino Unido e abordar os recentes protocolos de reposição de cálcio utilizados por estes serviços. | No ano de 2022, 91% das ambulâncias aéreas do Reino Unido transportam hemoderivados destinados para o atendimento pré-hospitalar. Entretanto, não existe consenso sobre a reposição de cálcio. |
Transfusion‐Related Hypocalcemia After Trauma (2020) | Esclarecer se a transfusão de hemácias é um preditor independente de hipocalcemia nas vítimas de trauma e investigar também se existe uma relação dependente da dose entre a redução do cálcio iônico e a transfusão de hemácias. | A hemotransfusão com concentrado de hemácias e plasma fresco congelado pode ser considerada um preditor independente da hipocalcemia grave estando também interrelacionada com as taxas de mortalidade. Concluiu-se também que a administração de 4 unidades de hemácias + plasma fresco impactam elevando o risco de hipocalcemia grave. |
Trauma-induced disturbances in ionized calcium levels correlate parabolically with coagulopathy, transfusion, and mortality: a multicentre cohort analysis from the TraumaRegister DGU® (2023) | Estabelecer a interrelação entre os níveis de cálcio ionizado não ligados à transfusão é o resultado de uma coorte europeia de pacientes admitidos no departamento de emergência com trauma grave. | Os níveis de Ca iônico não relacionados à transfusão em pacientes vítimas de trauma grave na chegada à emergência apresentam relação parabólica com coagulopatia, necessidade de hemotransfusão e taxas de mortalidade. Contudo, segue interrogado se o cálcio iônico muda de maneira dinâmica e é consequência da gravidade da lesão ou um parâmetro independente a ser analisado. |
Fonte: Elaborado pelo Autor (2024)
A hipocalcemia no trauma é multifatorial, ou seja, o nível sérico do íon encontra-se reduzido por mais de um componente fisiopatológico. Como etiologia mais direta, podemos citar a hipovolemia causada por exsanguinação. Porém, as próprias medidas clínicas de compensar o quadro hipovolêmico podem também culminar em hipocalcemia. Isto é, podemos ter um quadro hipocalcêmico tanto a partir da hemodiluição induzida por coloides, quanto a partir da quelação do íon cálcio pelo citrato durante a transfusão sanguínea. Além disso, em situações em que houve ingesta aguda de álcool o organismo do paciente pode passar por um hipoparatireoidismo transitório e consequentes hipocalcemia e hipercalciúria. Logo, à priori, é preciso compreender as funções desenvolvidas pelo cálcio no organismo para entender a gravidade de sua depleção no trauma, o quão interrelacionada está com as taxas de mortalidade e o que pode ser feito até os presentes estudos para modificar o desfecho. (2)
HIPOCALCEMIA E PREDIÇÃO DE MORTALIDADE
Até o presente momento, ainda não há consenso entre os valores de cálcio sérico considerados reduzidos no paciente traumatizado. As literaturas vigentes variam de 0,9mm/dL a 2,11mm/dL como limites que pontuam a hipocalcemia. Em análise retrospectiva de 99 prontuários de pacientes politraumatizados no Departamento de medicina Intensiva do Hospital Popular de Fuyang, na China, que considerou hipocalcemia valores séricos menores que 2,11mm/dL, ao final de 28 dias, 20 pacientes dentre os 81 com hipocalcemia vieram a óbito, isto é, aproximadamente 25% do espaço amostral. Em contrapartida, nenhum dos 18 pacientes com cálcio sérico normal morreu. Concluiu-se uma sensibilidade de 39,2% e uma especificidade de 95% de predição prognóstica do cálcio sérico. (8). Nesse mesmo período de 28 dias, Imamoto e colaboradores apontaram o cálcio sérico como um preditor independente de mortalidade, apontado, após análise ROC, um corte de 0,95mmol/L de cálcio para a predição. (3) Enquanto isso, Helsloot et al., ao analisar retrospectivamente o Trauma Register DGU, da sociedade Alemã de Trauma entre 2015 e 2019, usando como parâmetro valores séricos de cálcio menores que 1,1mm/dL, encontrou 21,2% de morte hospitalar dentre os 3982 pacientes hipocalcêmicos, versus 13,6% entre os 25.238 enfermos normocalcêmicos, sem precisar um espaço temporal entre a admissão e os óbitos. (11) Esse mesmo estudo também isolou pacientes com Ca2+ menor que 0,9mm/dL, considerado hipocalcemia grave e encontrou um percentual ainda maior de mortalidade hospitalar, 36,3%. (11)
Ainda com base nos dados retrospectivos de Helsloot et al., além da mortalidade hospitalar como um todo, foram separados os óbitos nas primeiras 6 e 24 horas. Os pacientes que vieram óbito nas primeiras 6h apresentaram forte associação com os valores de Ca2+ menores que 0,9mm/dL (OR 2,69, IC 95%) enquanto nas primeiras 24h a razão de chances caiu para 1,12. (11)
Clinicamente falando, Byerly et al., através de dados retrospectivos dos registros médicos eletrônicos da Universidade do Sul da Califórnia, de 2004 a 2014, consultou todos os pacientes traumatizados com cálcio total ou iônico quantificado em até 48h da admissão e encontrou alterações clínicas importantes prevalecendo no grupo classificado como hipocalcêmico grave. Utilizando como referência concentrações menores que 0,9mm/dL como um valor crítico de hipocalcemia, dos 7341 prontuários analisados, 716 apresentaram hipocalcemia grave. Tanto a Escala de Coma de Glasgow (ECG) quanto a Escala Máxima de Lesão Abreviada (AIS) apresentaram piores resultados nos pacientes com cálcio crítico. A primeira teve uma mediana de 13 versus uma mediana de 15 dentre os 6625 pacientes sem hipocalcemia grave. A segunda teve valores superiores da escala para lesões de Cabeça, Tórax, Abdomen/Pelvis, Extremidades e Externas no grupo hipocalcêmico grave. Além disso, incidiu sobre o grupo também maiores percentuais de hipotensão (23,2% vs 5,1%), taquicardia (57% vs 41,9%), intubação orotraqueal (47,1% vs 28,4%) e operação de emergência (71,8% vs 29%). (10)
HIPOCALCEMIA E A TRANSFUSÃO DE HEMODERIVADOS
No manejo do paciente traumatizado, a reposição sanguínea é por vezes imprescindível e insubstituível na manutenção da vida (6). Vetollero e colaboradores encontraram uma avidez ainda maior pela transfusão no grupo dos pacientes com hipocalcemia. Em análise retrospectiva de pacientes com trauma grave (Injury Severity Score > 16) no Hospital Niguarda entre 2015 e 2021, a hipocalcemia foi um preditor independente das transfusões maciças necessárias. Enquanto o ISS apresentou razão de chance de 1,03 com a transfusão de 10 ou mais unidades de hemoderivados em 24h, os pacientes hipocalcêmicos (Ca2+< 1,1) tiveram OR de 2,42. O protocolo de transfusão maciça foi iniciado em 25,8% dos pacientes com valores de íon cálcio abaixo do esperado. Em contrapartida, somente 3,3% dos pacientes normocalcêmicos passaram pelo mesmo protocolo. (2).
Conflituosamente, a necessidade de hemotransfusão apontada como mais incidente entre os pacientes hipocalcêmicos, também participa da etiologia da própria hipocalcemia. Isto é, o sangue doado recebe adição de citrato, um agente anticoagulante que viabiliza o armazenamento do hemoderivado mas que também tem ação quelante do cálcio. (5, 11) Em pacientes adultos hígidos, o fígado é capaz de metabolizar 3g de citrato, concentração presente em uma bolsa de sangue, a cada 5 minutos. No entanto, o organismo vítima de trauma em estado hipovolêmico tem sua metabolização hepática prejudicada, seja por lesão traumática no tecido e/ou hipoperfusão do sistema. (4, 10, 7) Como resultado, teremos um efeito prolongado do citrato no corpo humano e da consequente hipocalcemia secundária à quelação do íon. (1, 7). Frente a essa dualidade e à hipocalcemia de modo global no paciente politraumatizado, interroga-se a respeito da reposição do íon e seus possíveis benefícios.
REPOSIÇÃO DE CÁLCIO
Dada a importância fisiopatológica do cálcio no paciente traumatizado e a relação independente entre a hipocalcemia, o agravo da coagulopatia e a mortalidade já demonstrada em alguns estudos, questiona-se atualmente a viabilidade da reposição profilática do cálcio em vítimas de trauma hemorrágico. De acordo com o “guideline” europeu sobre manejo de hemorragia e coagulopatia secundária ao trauma, publicado em 2019, é recomendado o acompanhamento das concentrações e cálcio sérico durante a transfusão de hemoderivados e, se inferior ao parâmetro pré estabelecido, correção com Cloreto de Cálcio a 10%. (9) Porém, conforme descrito por Helsloot e colaboradores, tanto a mortalidade como a coagulopatia tiveram uma relação parabólica com os níveis crescentes e decrescentes de cálcio, ou seja, a hipercalcemia também é prejudicial. (11).
Nenhuma das literaturas revisadas encontrou evidências robustas de que a suplementação profilática empírica do íon em pacientes que receberam hemoderivados seria modificadora da taxa de mortalidade. Frente a esse cenário e considerando que o cloreto de cálcio, usado por alguns serviços, contém 6,8 mmol de cálcio, podemos inferir que a reposição do íon está em uma linha tênue entre um resultado até o momento não modificador de desfecho e valores que excedem o limiar da normalidade e têm evidências iniciais de relação com a mortalidade. (9)
CONCLUSÃO:
O cálcio é um íon de interferência multimodal dentro da fisiopatologia do paciente traumatizado e possui uma relação independente com a morbimortalidade. Frente aos dados retrospectivos avaliados, conforme já vem sendo discutido no meio científico, parece ser oportuna a adição da hipocalcemia à “tríade letal do trauma”, passando assim a ser chamada de “diamante letal do trauma”. Entretanto, não se pode deixar de ressaltar que o que se tem até o momento são estudos póstumos baseados em diferentes serviços com diferentes parâmetros de avaliação. Não somente os cortes de cálcio iônico são diferentes, como também as escalas classificatórias do trauma, o manejo e o espaço temporal no qual o recorte dos índices de mortalidade são calculados.
No tocante à interrelação entre a hemotransfusão e a hipocalcemia, ainda que haja uma relação dose-dependente, não foi estabelecido com clareza o grau da correlação e se trata-se de uma variável linear ou exponencial. Da mesma forma, a reposição empírica do íon ainda permanece obscura. Existem recomendações formais de suplementação, porém, nenhuma das literaturas analisadas apresentou evidência significativa de redução das taxas de mortalidade. Desse modo, é crucial um maior aprofundamento sobre o tema através de ensaios duplo-cego randomizados e que possam abarcar um maior n de pacientes. Assim, teremos parâmetros melhor estabelecidos e protocolos mais assertivos na manutenção da vida das vítimas de trauma.
REFERÊNCIAS:
HELSLOOT, Dries; FITZGERALD, Mark; LEFERING, Rolf; et al. Calcium supplementation during trauma resuscitation: a propensity score-matched analysis from the TraumaRegister DGU®. Critical Care (London, England), v. 28, n. 1, p. 222, 2024. (1)
VETTORELLO, Marco; ALTOMARE, Michele; SPOTA, Andrea; et al. Early Hypocalcemia in Severe Trauma: An Independent Risk Factor for Coagulopathy and Massive Transfusion. Journal of Personalized Medicine, v. 13, n. 1, p. 63, 2022. (2)
IMAMOTO, Toshiro; SAWANO, Makoto. Effect of ionized calcium level on short-term prognosis in severe multiple trauma patients: a clinical study. Trauma Surgery & Acute Care Open, v. 8, n. 1, p. e001083, 2023. (3)
MOORE, Hunter B.; TESSMER, Matthew T.; MOORE, Ernest E.; et al. Forgot calcium? Admission ionized-calcium in two civilian randomized controlled trials of prehospital plasma for traumatic hemorrhagic shock. The Journal of Trauma and Acute Care Surgery, v. 88, n. 5, p. 588–596, 2020. (4)
KRONSTEDT, Shane; ROBERTS, Nicholas; DITZEL, Ricky; et al. Hypocalcemia as a predictor of mortality and transfusion. A scoping review of hypocalcemia in trauma and hemostatic resuscitation. Transfusion, v. 62, n. Suppl 1, p. S158–S166, 2022. (5)
VASUDEVA, Mayank; MATHEW, Joseph K.; GROOMBRIDGE, Christopher; et al. Hypocalcemia in trauma patients: A systematic review. The Journal of Trauma and Acute Care Surgery, v. 90, n. 2, p. 396–402, 2021. (6)
SCHRINER, Jacob B.; VAN GENT, J. Michael; MELEDEO, M. Adam; et al. Impact of Transfused Citrate on Pathophysiology in Massive Transfusion. Critical Care Explorations, v. 5, n. 6, p. e0925, 2023. (7)
WANG, Jia; LI, Dong-Feng; SUN, Zhen-Kang; et al. Influence of hypocalcemia on the prognosis of patients with multiple trauma. World Journal of Clinical Cases, v. 12, n. 19, p. 3800–3806, 2024. (8)
LEECH, Caroline; CLARKE, Eleri. Pre-hospital blood products and calcium replacement protocols in UK critical care services: A survey of current practice. Resuscitation Plus, v. 11, p. 100282, 2022. (9)
BYERLY, Saskya; INABA, Kenji; BISWAS, Subarna; et al. Transfusion‐Related Hypocalcemia After Trauma. World Journal of Surgery, v. 44, n. 11, p. 3743–3750, 2020. (10)
HELSLOOT, Dries; FITZGERALD, Mark; LEFERING, Rolf; et al. Trauma-induced disturbances in ionized calcium levels correlate parabolically with coagulopathy, transfusion, and mortality: a multicentre cohort analysis from the TraumaRegister DGU®. Critical Care (London, England), v. 27, n. 1, p. 267, 2023. (11)
1Autora principal: Instituição: Universidade Tiradentes. E-mail: victoria.guerra@souunit.com.br. Orcid: https://orcid.org/
2Orientador: E-mail: denisansil@hotmail.com
Co-autores: 3Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6811-2146. Instituição: Santa Casa de Misericórdia da Bahia. E-mail: dryanvitor@gmail.com
4Orcid: https://orcid.org/0009-0009-4348-0183. E-mail: oliveiramanda_26@hotmail.com. Instrução: Faculdade de Ciências Médicas de Campina Grande – FCM Campina Grande – Paraíba, Brasil
5Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1574-1816. Instituição: Universidade Tiradentes. E-mail: Jessicasarasqueta@gmail.com
6Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6665-6457. E-mail: martinsm1101@gmail.com. Instituição: Universidade tiradentes-unit
7Email: aecio.freire@souunit.com.br. ORCID: https://orcid.org/0009-0008-1251-2114. Instituição: Universidade Tiradentes
8E-mail: juliamillenm@gmail.com. Instituição: Universidade Tiradentes
9E-mail: ramillyunit@gmail.com. Instituição: Universidade Tiradentes
10E-mail: marina.deda@souunit.com.br. Instituição: Universidade Tiradentes. Orcid: https://orcid.org/0009-0006-4286-0553
11E-mail: victorgabriel28@gmail.com. Instituição: Hospital de Urgência de Sergipe