REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7900223
Karen de Almeida Miranda¹
Paulo Beli Moura Stakoviak Júnior²
RESUMO
Este trabalho pretende evidenciar a linha tênue existente entre a sucessão de bens incorpóreos economicamente relevantes e daqueles que auferem de valor sentimental, face aos direitos inerentes à personalidade humana, defendida constitucionalmente. Essa temática alavancada pela revolução tecnológica, traço mais característico da contemporaneidade, se encontra desamparada pelo ordenamento jurídico brasileiro, no sentido de que, por se tratar de fatos sociais extremamente específicos e sui generis, a eles seria ineficaz a aplicação das regras sucessórias vigentes. Acentua-se, no decorrer da pesquisa, a urgência de disposições legislativas que amparem o instituto da herança digital, diante da necessidade de normas que não deixem de observar o direito à personalidade do de cujus, garantindo maior segurança jurídica aos envolvidos na relação.
Palavras-chave: Herança digital; Sucessão causa mortis; Direitos da personalidade.
ABSTRACT
This work aims to highlight the fine line between the succession of economically relevant intangible assets and those that earn sentimental value, in view of the rights inherent to human personality, constitutionally defended. This theme leveraged by the technological revolution, the most characteristic feature of contemporary times, is abandoned by the Brazilian legal system, in the sense that, as these are extremely specific and sui generis social facts, the application of current succession rules would be ineffective. In the course of the research, the urgency of legislative provisions that support the institute of digital inheritance is emphasized, given the need for norms that do not fail to observe the right to personality of the deceased, guaranteeing greater legal security to those involved in the relationship.
Key-words: Digital heritage; Succession causa mortis; Personality rights.
1 INTRODUÇÃO
A virtualização da sociedade moderna é um fato exponencial. Cada dia mais o mundo digital alcança as áreas da vida cotidiana, invadindo, e por necessidade, o dia-a-dia dos bancos, dos lojistas, de serviços de atendimento e cobranças e, evidentemente, no ato da compra e venda, bem como inúmeros outros aspectos que dependem da tecnologia que temos atualmente.
Colocando a popularização da Internet como um marco revolucionário, houve um salto de realidades, em que as redes sociais- que já preexistem à contemporaneidade- passaram de um agrupamento de pessoas em uma determinada localidade, para um ambiente cibernético, no qual conversas, arquivos confidenciais são solidificados e guardados.
Houve a construção de um cenário de facilitação do acesso à informação, da movimentação do capital em uma realidade que até mesmo o dinheiro se vê virtualmente, e é exatamente dessa universalidade que surge a necessidade de maior amparo jurídico.
Como se trata de uma geração mais recente, a população que iniciou suas memórias em arquivos agora que inicia a morrer, trazendo uma bagagem de questionamentos processuais e materiais para o ordenamento jurídico.
É que a herança digital possui bens com características distintas dos quais estamos acostumados, porque costumamos pensar e ver herdeiros sucedendo bens como imóveis, automóveis, terrenos, ou mesmo, em casos mais específicos, um legado de um objeto com valor familiar, passado de geração a geração.
Mas a herança digital vai além, de forma que até mesmo fotos, vídeos e conversas podem significar um bem de grande valor para um familiar que perdeu um ente querido.
No entanto, isso fustiga os direitos inerentes à personalidade do de cujus. A personalidade é atributo inerente ao homem; não requer o preenchimento de qualquer requisito, nem depende do conhecimento ou da vontade do ser humano. De acordo com Pereira (2001, p. 142) mesmo que o indivíduo não tenha consciência da realidade, é dotado de personalidade, pelo simples fato de ser pessoa.
A compreensão do direito brasileiro é de que se adquire a personalidade após o nascimento com vida, sendo que este decorre do funcionamento das vias respiratórias; a outro passo, se o nascimento com vida é o marco inicial para os direitos da personalidade, a morte seria, então, o seu exaurimento.
Por isso é que, em tese, apenas seria possível a transmissão dos bens digitais se no post mortem cessar os direitos da personalidade, já que, se o morto não os possui, não haveria óbice para a sucessão de bens que digam respeito à intimidade ou a qualquer outro. É o que se pretende investigar no decorrer desta pesquisa.
Outro ponto que agita a problemática é a ausência de legislação específica capaz de conferir amparo a essas situações que serão por muito recorrentes no mundo fenomênico, porque as preocupações com o ambiente virtual estão muito focadas na experiência em vida, sendo apagado da esfera jurídica o post mortem.
Utiliza-se, diante da ausência de regulamentação específica, as disposições genéricas do Código Civil, o que beira a insegurança jurídica, porquanto a internet é um ambiente vasto e repleto de peculiaridades, o que gera situações que já são alheias ao Código Civil vigente.
Ora, em que pese a ausência de lei definidora, o julgador não pode se esquivar de apreciar o caso concreto sob argumento de que não existe fundamento legal para ampará-lo. Entende-se, a partir daqui, a necessidade e a urgência de que o Direito Civil abrace os lastros da contemporaneidade- os fatos jurídicos devem acompanhar os fatos sociais.
De um modo geral, este artigo objetiva contribuir para o debate acerca da herança nas nuances do ‘novo mundo’, ressaltando como, hoje, toda a estrutura social depende das tecnologias e qual a preparação do arcabouço jurídico e administrativo para possíveis consequências
Quanto aos objetivos específicos, procura-se examinar possíveis alternativas para a incorporação da herança em seu viés digital, destrinchando tais possiblidades através do estudo do ordenamento jurídico brasileiro atual, no tocante ao direito sucessório, bem como serviços digitais já disponibilizados e em que poderiam ser aprimorados; também é abordado nesta pesquisa projetos de lei acerca do tema, salientando suas lacunas.
Optou-se por utilizar, neste trabalho, o método de pesquisa qualitativo, com o fito de se aprofundar nas questões que ensejam a necessidade da cobertura legislativa brasileira quanto a reforço das rédeas do procedimento de inventário e partilha, no tocante à sucessão de bens digitais.
2 NATUREZA E ASPECTOS JURÍDICOS DOS BENS DIGITAIS
É inegável que houve uma transmutação de realidades nas últimas décadas, de forma que as interações e as convenções sociais passaram do mundo palpável ao que se pode chamar de ciberespaço[1], inclusive no que concerne à aquisição de bens.
Nesse sentido, considerando que um indivíduo, durante toda a sua vida, tende a lograr bens para si, estes, na reprimenda do post mortem, serão objetos de transferência de titularidade, passa-se os bens do de cujus ao seu herdeiro- é uma forma de manifestação do direito à propriedade.
Sobre o direito hereditário, é assim que entendem Pablo Stolze Gagliano e Rodrigo Pamplona (2018, p. 49):
“O reconhecimento do direito hereditário encontra a sua razão existencial na projeção jurídica post mortem do próprio direito de propriedade privada, constitucionalmente garantido, segundo o princípio da intervenção mínima do Estado nas relações privadas. É a própria manifestação da autonomia privada do indivíduo, direcionada ao âmbito das relações jurídicas constituídas ou derivadas do seu falecimento”.
A sucessão pode se dar inter vivos, mediante atos consolidados entre vivos, a exemplo de um donatário que sucede o doador; ou causa mortis, sendo esta o objeto de estudo deste trabalho. Cumpre ressaltar, então, que o ato de suceder não se restringe à transferência dos bens em si, mas do conjunto de direitos que antes pertencia ao falecido, e sucede-se porque, com a morte, há a cessação das relações jurídicas para o sujeito morto, de modo que serão continuadas pelos herdeiros.
Para o direito sucessório brasileiro, a herança é um direito fundamental, consagrado pelo vértice constitucional, no art. 5º, XXX, sendo uma novidade o status de cláusula pétrea na Constituição Federal de 1988, compreendendo por aquela, num sentido mais amplo, como um conjunto de todos os bens deixados pelo falecido,
Do que se pode depreender do conceito de herança, Barboza e Almeida (2021, p. 29) ensinam:
“A herança abrange, portanto, os direitos de que era titular o falecido, suas dívidas, suas pretensões e ações contra ele, ou seja, todo o ativo e o passivo de seu patrimônio. A herança é uma universalidade de direito, constituída pelo complexo de relações jurídicas do morto, dotadas de valor econômico (CC, art. 91), que passam aos sucessores, como um todo unitário, mesmo que muitos sejam os herdeiros. Até a partilha, o direito dos sucessores sobre essa universalidade será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio”.
Há, no direito de herança, o prosseguimento e a linearidade da vida humana e, inerente a isso, o patrimônio do falecido para depois de sua morte, transmitindo-se aos herdeiros. Considera-se, nessa ótica, a solidificação do direito de propriedade individual, o qual possui caráter perpétuo, o que não faria sentido se fosse encerrado com a morte[2].
Em consonância com o diploma civilista vigente, a herança defere-se como um todo unitário, que seguirá indivisível até o momento da partilha. Disso se extrai que todos os bens deixados serão compreendidos em unicidade, passando-se ao espólio não somente os bens corpóreos, mas também aqueles de natureza imaterial (art. 1.784 do Código Civil).
Em uma breve distinção, pode-se definir um bem corpóreo como possuidor de matéria, dotado da existência física em si, perceptíveis e palpáveis no mundo fenomênico. É o que se tem como uma casa, um móvel, um automóvel, assim por diante. Por outro lado, os bens incorpóreos são intangíveis e abstratos, sem uma concretude que se perceba, por exemplo, no toque[3].
Como se verá adiante, o posicionamento doutrinário predominante é de que os ativos digitais se enquadram como bens incorpóreos, mas que isso não significa que não possuem repercussão patrimonial, diga-se ao contrário. É o que se tem quando um cantor vem a falecer e deixa músicas gravadas nas plataformas de streaming, como Deezer e Spotify, podendo vender milhões de cópias de álbuns mesmo após a morte. Toda essa exemplificação serve para demonstrar a relevância dos bens incorpóreos-digitais na atual conjuntura social, posto que são mais presentes do que podemos nos atentar.
Por apresentarem naturezas bem distintas das que gozam os bens corpóreos convencionais, merecem um amparo jurídico acurado, pois a transmissão imediata dos bens poderia ser inviabilizada diante dos pontos tocantes da herança digital, que ultrapassam a esfera do direito das coisas, sendo pertinente, inclusive, à experiência da pessoa no viés cibernético e, portanto, em sua personalidade.
Nos lastros da contemporaneidade, os bens corpóreos continuam tendo espaço, sendo imprescindíveis e assim continuarão a ser, mas a facilidade, o engajamento e a globalização dos bens incorpóreos têm ganhado cada vez mais espaço nos interesses da nova geração, catalisando situações que demandam amparo do ordenamento jurídico, que ainda é carente nesse âmbito.
É cediço que a sucessão se abre com a morte e, após esta, a herança é transmitida de forma imediata aos herdeiros legítimos ou testamentários. Esse fenômeno está contemplado pelo princípio norteador da sucessão causa mortis, o Droit de Saisine[4], sob a dicção do art.1.784 do Código Civil.
Seguindo essa ótica, quando se trata da transmissão de um bem material convencional deixado pelo de cujus, como por exemplo, um automóvel ou um imóvel, é diferente do que se fosse um álbum de fotos inserido em aplicativos ou na nuvem do aparelho celular.
Nessas considerações, é possível afirmar que o direito de saisine ainda prospera quando se trata de um bem digital? Os bens armazenados digitalmente serão transmitidos desde logo aos herdeiros? Ora, em se tratando de fotos, vídeos, mensagens trocadas, avatares e contas havidas digitalmente, entra-se em uma questão ainda mais delicada, pois se adentra ao direito de uma terceira pessoa que trocou mensagens e tirou fotos com o falecido.
Há de se questionar, então, de que maneira, em que momento e se pode ocorrer, no âmbito virtual, a transmissão da herança deixada pelo de cujus. Isso porque a natureza dos bens digitais instiga reflexos que não se cingem apenas a questões patrimoniais, mas alcançam, até mesmo, os direitos relativos à personalidade.
Sendo assim, para melhor entendimento do impacto que as idiossincrasias dos bens digitais têm sobre o entendimento jurídico da sucessão causa mortis, cabe delinear neste capítulo a carga conceitual. Passo a explicar.
No discernimento de Bruno Miragem (2019, p. 17-62), os bens digitais podem ser caracterizados como conteúdos arquivados na internet e vinculados a um determinado titular.
Já Bruno Zampier (2021, p. 110) entende que os bens digitais são bens incorpóreos, inseridos na Internet de forma progressiva por um usuário, consistindo em informações de caráter pessoal que trazem alguma utilidade àquele, tenha ou não conteúdo econômico.
A partir dessas assertivas, deve-se entender que esses conteúdos armazenados virtualmente podem ser diversos, possuindo características e naturezas singulares e, por isso, não podem ser indistintos, confundidos em uma só definição, devendo existir, por assim dizer, uma subdivisão. Explico.
Para Bruno Zampier (2021, p. 110-112), os bens insetos no viés digital têm características distintas e merecem ser divididos como:
I) bens digitais de cunho patrimonial;
II) bens digitais existenciais;
III) bens digitais patrimoniais-existenciais.
Na primeira subclassificação, residem os bens que possuem unicamente reflexos financeiros, que não provocam interferência nos direitos da personalidade do autor da herança, tal como um e-book, músicas, criptomoedas, contas em jogos eletrônicos e assim por diante.
Em suma, são bens que seguem à risca o sistema de mercado, porque possuem carga patrimonial expressiva, o que no âmbito do direito repercute é completamente viável e comum a transferência de titularidades do vendedor para o comprador, do titular do patrimônio para seus herdeiros.
É o que se vê, por exemplo, nos jogos online, onde há a construção de uma vida paralela à real, na qual cada usuário é representado por seus avatares, fazendo do ambiente virtual uma
“segunda vida”. É óbvio que apenas considerando o lado rentável desses games, em detrimento das conversas em chat, que pertencem a outro tipo de bem e de direito
No mundo dos jogos online, existe a aplicação de dinheiro do mundo real para angariar ferramentas de aprimoramento, que podem conferir ao usuário um maior potencial dentro daquela realidade, consagrando uma competitividade mais acirrada. Salienta-se que dentro do próprio sítio cibernético existem lojas que permitem que essas compras sejam efetivadas, tendo expressiva valorização econômica.
Acontece que, de mais a mais, o espaço contemporâneo tem dado azo às inovações do novo mundo, chegando a um ponto em que negócios jurídicos têm sido celebrados, por exemplo, no metaverso, que é uma realidade cada vez mais nítida. Isso significa que essas “coisas” adquiridas na esfera digital serão discutidas, posteriormente, como possíveis integrantes do espólio do falecido que deixá-las.
Tanto é verdade que, recentemente, o Conselho Nacional de Justiça[5] noticiou que aconteceu, no mês de setembro deste ano de 2022, aos 13 dias, a primeira audiência brasileira no metaverso, realizada pela Justiça Federal da Paraíba. Pelo que informa o site, tratou-se de uma sessão de conciliação, na qual as partes, representadas por seus avatares, firmaram um acordo.
Também é o caso das milhas aéreas, que, por terem reconhecido seu caráter destacadamente patrimonial, foi-lhes conferida a possibilidade de transmissão pelos Tribunais do Brasil. Pode-se ver essa situação em decisão exarada no processo 102517230.2014.8.26.0100, do Tribunal de Justiça de São Paulo, no qual a magistrada entendeu que se não fossem transmitidas as milhas, restaria configurado o enriquecimento sem causa da companhia aérea, o que é vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Em contrapartida, em julgado mais recente, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.878.651, entendeu pela validade da cláusula do regulamento do programa de fidelidade de uma companhia aérea, que estabelecia o cancelamento das milhas acumuladas pelo cliente após o seu falecimento[6]. 2022
De acordo com o Relator do caso, ministro Moura Ribeiro, são duas as formas de acumular pontos com viagens aéreas: em uma, o consumidor adquire de maneira onerosa; noutra, ganha-se pontos de forma gratuita como um “bônus” pela fidelidade.
O caso desse julgamento se tratava da segunda hipótese supramencionada. Assim, pelo entendimento do julgador, trata-se de uma espécie de contrato de adesão, em que a companhia aérea é quem fica responsável pela definição das cláusulas, de forma que o consumidor não precisará pagar para obter o benefício.
No mais, em se tratando da transferência de titularidade desse bem, haveria a transferência para um herdeiro que, em muitas das vezes, não é cliente da empresa.
Dessa forma, Moura Ribeiro concluiu que o direito de propriedade, nesse caso (cujo titular é a própria pessoa), deve ser analisado sob o enfoque do poder de fruição, sendo, assim, a previsão da empresa aérea quanto a ser o benefício pessoal e intransferível, é completamente viável.
Na segunda divisão feita pelo autor, o que também pode integrar o arcabouço virtual, são as fotos e os arquivos audiovisuais, que resguardam momentos vividos pelo falecido e configuram lembranças deixadas por ele. Assim, o bem digital não é só aquilo que possui reverberação patrimonial, podendo-se levar em consideração o valor afetivo.
Já quanto à classificação do bem digital como de natureza existencial-patrimonial, como já expressa a própria nomenclatura, quando num bem residem características tanto personalíssimas, quanto patrimoniais, podendo-se evidenciar, nesse caso, a profissão de influencer digital, galgada pela democratização do acesso à tecnologia e pelo consumo em massa dos aplicativos, de forma que foram- e são- gerados perfis milionários, através da exposição pública da imagem e pela interação do influenciador com os telespectadores¹
Em vista desse aspecto, e em lembrança de que inexiste amparo legal e específico na atualidade para o conteúdo aqui tratado, alimenta-se ainda mais a questão da possibilidade da transmissão dos bens digitais. É o que será aprofundado no capítulo seguinte.
3 O ESTADO DA OBRA DA TRANSMISSIBILIDADE DOS BENS DIGITAIS NO BRASIL
O Código Civil brasileiro prevê, em seu art. 1.756, que a sucessão pode se dar mediante testamento ou por lei, aos herdeiros legítimos, de forma que, na primeira hipótese, quando existirem herdeiros necessários, o testador apenas pode dispor de metade da sua herança.
Compulsando os ensinamentos de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2020, p.258), quanto à sucessão testamentária, vê-se que:
“Um testamento, portanto, nada mais é do que um negócio jurídico, pelo qual alguém, unilateralmente, declara a sua vontade, segundo pressupostos de existência, validade e eficácia, com o propósito de dispor, no todo ou em parte, dos seus bens, bem como determinar diligências de caráter não patrimonial, para depois da sua morte”.
Já quando há a transmissibilidade da herança ab intestato, ou seja, sem que o morto tenha disposto de suas vontades antes de falecer, a sucessão segue a preferência da ordem de vocação hereditária estabelecida pelo Código Civil, pois há uma presunção da vontade do de cujus.
Mas essa transmissão, nos termos alinhavados acima, se daria de forma instantânea aos herdeiros, em se tratando dos bens digitais? Parte-se do ponto em que a controvérsia surge tanto da interferência nos direitos da personalidade, quanto porque inexiste amparo legislativo específico para essa situação.
É salutar exprimir que as fotos, os vídeos, os perfis pessoais em redes sociais, conversas e diários deixados pelo falecido, ainda que possam significar um bem como memória, são pertencentes à intimidade, privacidade daquele antes do evento morte, de forma que repassá-los seria transpassar um direito inerente à dignidade da pessoa humana: os direitos da personalidade.
Maria Helena Diniz (2007, p. 142) assim ensina quanto aos direitos relativos à personalidade:
“São direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a sua integridade física (vida, alimentos, próprio corpo vivo ou morto, corpo alheio, vivo ou morto, partes separadas do corpo vivo ou morto); a sua integridade intelectual, (liberdade de pensamento, autoria científica, artística e literária) e sua integridade moral (honra, recato, segredo pessoal, profissional e doméstico, imagem, identidade pessoal, familiar e social) ”
Nesse ínterim, os direitos inerentes à personalidade, que é o ponto delimitador do presente trabalho, ligam-se à indisponibilidade, posto que são intransmissíveis, irrenunciáveis e impenhoráveis. Ou seja, não existe outro titular do seu direito, nem que essa seja a vontade do indivíduo possuidor.
Em contraponto ao ditame acima, é sim aceitável, em excepcionais hipóteses, a transmissão dos direitos da personalidade, como nas questões patrimoniais, mas que não poderá essa limitação voluntária ter caráter perene, devendo ter, para todo bem, transitoriedade.
Na I Jornada do Conselho da Justiça Federal (CJF), foi aprovado o enunciado nº 4, que carrega o seguinte dispositivo:
“Art. 11: o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral”.
A personalidade é um direito inalienável, decorrente da dignidade da pessoa humana, que, diga-se de passagem, é o pilar do ordenamento jurídico brasileiro, não se tratando de direito adquirido. Ora, até mesmo pelo que dispõe o Código Civil de 2002, mais especificamente no artigo 2º, a personalidade existe a partir do nascimento com vida. Trata de direito inerente à própria existência da pessoa humana, tornando-a digna e cidadã.
São imperiosas as dúvidas que resistem quanto ao período de duração da personalidade. Indo direto ao ponto, se continuam a configurar como direitos após a morte.
Acontece que no diploma civilista brasileiro, mais especificamente no art. 6º, tem-se que a existência da pessoa natural se encerra com a morte e, por conseguinte, a sua personalidade civil. Assim, cessa a aptidão para titularizar direitos e angariar obrigações, mas os direitos relativos à personalidade reverberam, de uma forma peculiar, para depois da morte.
Tanto que o art. 12 do Código Civil, parágrafo único, prevê a legitimação do cônjuge sobrevivente ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau, para pleitear ação com o fito de se fazer cessar a lesão aos direitos da personalidade do falecido. É o que a doutrina denomina de danos reflexos ou em ricochete.
Em vista dos aspectos contornados acima, o direito de saisine quanto à sucessão dos ativos digitais, é matéria que causa opiniões controversas no estudo doutrinário, logo porque é bem evidente que são muitos os pontos a serem considerados. Sendo assim, tem-se duas correntes predominantes:
I) transmissibilidade ou hereditariedade;
II) intransmissibilidade.
Diante dessa controvérsia, Gabriel Honorato e Lívia Teixeira Leal (2020, p. 155-173), defensores da última corrente aludida, entendem que as regras gerais da sucessão apenas devem ser aplicadas aos bens com características e reflexos patrimoniais.
Ou seja, nessa vertente, é sustentado que nem todos os bens digitais poderão ser transmitidos, no sentido de que, como já destacado anteriormente, o acervo compreende bens de naturezas distintas, que tocam em pontos específicos, e que, por lógica, deverão ser regidos por regimes jurídicos diferentes.
Os defensores desse posicionamento apontam que tão somente os bens com reflexos patrimoniais é que serão passíveis à transmissão, ao passo que os que possuem valor sentimental não poderão ser sucedidos, porquanto deve ser resguardado o direito à intimidade.
Na transmissão de bens ab intestato se tem a presunção da vontade do de cujus, o que chega a ser arriscado para os institutos civis da sucessão e da personalidade, porquanto, na consideração de uma foto ou um vídeo como bem, ou seja como uma propriedade possível de integrar no espólio, não se pode presumir até onde vai a vontade do autor, a mais porque pode atingir a esfera dos direitos de um terceiro que, por acaso, participou de um dos arquivos de bens sentimentais.
Daí a importância da disposição de última vontade do falecido, em se tratando dos ativos digitais afetivos, mas que, repise-se, trata-se de testamento virtual, que se difere do ordinário.
No entanto, de acordo com Gabriel Honorato e Lívia Teixeira Leal, ainda que quisesse, o autor da herança não poderia dispor de, por exemplo, suas conversas e e-mails, porquanto estaria a comprometer os direitos relativos à personalidade de outra pessoa.
O que leva a entender que existem direitos personalíssimos, que não devem ser alterados, disponibilizados, nem mesmo transferidos, ainda que se trate dos herdeiros.
Em que pese a impossibilidade da transferência de alguns conteúdos, há de se considerar a possibilidade de que os herdeiros tenham direito ao mero acesso ao conteúdo das postagens feitas pelo falecido ainda em vida.
Esse direito de acesso, entretanto, não seria pleno no sentido de que haveria a disponibilização de todo o conteúdo inserido pelo de cujus, de forma que nem mesmo poderia haver alterações.
O impedimento de alteração do acervo se justifica porque nas redes sociais se registra um modo de viver, com suas escolhas pessoais, profissionais, afetivas. Isso não pode ser continuado por outra pessoa. Todavia, esse conteúdo precisa ser transmitido, não nos moldes tradicionais de transmissão de bens, mas pode ficar acessível a todos os herdeiros, como forma de afeto e de preservação da memória do falecido (GUILHERMINO, 2021, p. 229).
No Facebook, existe a possibilidade de transformar o perfil da pessoa falecida em um mural de memórias, onde amigos poderão deixar depoimentos, homenagens e, até mesmo, compartilhar lembranças. Nesse memorial, ao invés de ser disponibilizado somente o nome do usuário, ficará visível “em memória de”, para que fique evidente a situação, sendo um verdadeiro “túmulo” virtual.
Para isso, basta que seja preenchido um formulário com o requerimento feito em “solicitação de memória” dentro do próprio site. No entanto, apenas será possível o acesso ao perfil, não estando a conta passível de qualquer alteração.
Caso almeje gerenciar a conta do falecido, a pessoa deverá constar como contato herdeiro naquele perfil, e que o morto o tenha inserido ainda em vida, ocasião essa que poderão ser feitas algumas alterações, admitidas em funções especificadas pela própria plataforma.
Em condição de contato herdeiro, a pessoa poderá decidir quem pode ver e publicar homenagens, excluir publicações, alterar foto de perfil e a capa; Poderá também solicitar a remoção da conta, se assim desejar.
De outro modo, o gerenciador não poderá entrar na conta do usuário falecido, nem ter acesso às suas mensagens ou, sequer, alterar o quadro de amigos. Assim, salienta-se que apenas a plataforma e o usuário já falecido é que têm o pleno contato com o perfil criado para a experiência.
Diante disso, algumas plataformas já se utilizam de termos de aceitação que explicitam ao usuário, quando da criação da conta, que, embora seja o titular da conta, as postagens feitas no sítio virtual são de propriedade daquela. Disso, pode-se interpretar que as plataformas é que são os grandes sucessores universais dos bens digitais, porquanto possuem acesso irrestrito do que está inserido naquele âmbito.
No tocante aos bens com reflexos patrimoniais, ou seja, aqueles que podem ser transmitidos, observa-se que é confortável se pensar que a eles poderia ser aplicada a lei sucessória brasileira tradicional.
Todavia, vale relembrar que se trata de bens com naturezas singulares, com uma vastidão de especificidades que, por serem uma “novidade”, não seria adequada a aplicação de uma legislação que não se destina à realidade virtual, o que viria a causar uma insegurança jurídica alarmante.
Quanto aos bens digitais existenciais-patrimoniais, consubstancia-se no exemplo citado no capítulo anterior, sobre os influenciadores digitais. Os perfis desses profissionais têm uma valorização patrimonial que chega a surpreender, chegando a superar em muito o valor econômico dos bens corpóreos do acervo.
Mede-se essa valoração econômica a partir do engajamento do perfil acerca das publicidades feitas, o número de curtidas e seguidores e, muito embora evidente esse viés patrimonial, os influencers digitais promovem o uso da própria imagem, utilizando de suas redes para esse uso exacerbado, o que adentra nos direitos da personalidade.
O que não seria o caso dos perfis de cunho unicamente econômico, tais como contas direcionadas à venda de cursos, de produtos no geral, sendo inexistente essa correlação com o nome ou a imagem de uma pessoa natural. Nessa ocasião, há que se falar na transferência de titularidade, pois seu conteúdo é estritamente patrimonial.
Por assim dizer, é nitidamente inviável a transmissão total dos bens digitais, prosperando melhor o termo “transmissão parcial” dos bens, porquanto existem direitos personalíssimos que não são passíveis da transferência de seu titular a outrem, ainda que este seja herdeiro.
4 PROPOSTAS LEGISLATIVAS PARA A REGULAMENTAÇÃO DOS DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS BENS DIGITAIS NO BRASIL
Como bem reiterado neste artigo, a aplicação extensiva das regras da sucessão causa mortis ordinária na herança digital, se faria ineficaz. Bem porque as demandas agora são outras, abrangendo situações em grande parte alheias ao Código Civil vigente, já que, de 2002 ao ano de 2022, adveio a tecnologia touchscreen, a amplificação das redes sociais entre outras tantas inovações.
No cenário jurídico atual, o que não faltam são propostas legislativas para suprir esse distanciamento da esfera civilista à herança digital, mas que são, em grande parte, omissas quanto à necessidade de se sobressair do direito das coisas e alcançar os direitos relativos à personalidade.
Um dos precursores, dentre os projetos de lei, foi o PL 4099/2012, de autoria do deputado Jorginho de Mello. A proposta encabeçada tinha como objetivo a alteração do art. 1.788 do Código Civil, a garantir aos herdeiros o direito à transmissão de todos os conteúdos insertos no acervo digital deixado pelo de cujus.
Ora, há muito houve a constitucionalização do Direito Civil, em que as preocupações da esfera privada deixaram de ser adstritas ao direito das coisas, debruçando-se a interagir com as demandas inerentes à condição humana, de modo a salvaguardá-la e garanti-la. Nessa senda, tratar da transmissibilidade de bens digitais num total, sem fazer vista ao direito à privacidade e intimidade, é uma forma pouco minuciosa de regulamentação.
Os projetos de leis não levam em consideração que alguns dos bens digitais, são direitos de personalidade e conforme a teoria tradicional são relativamente intransmissíveis. Nesse sentido, tampouco levam em consideração a ideia de privacidade do morto e das pessoas que correlacionaram com ele em vida, fato que já vem sendo objeto de discussão em âmbito internacional, apesar da ausência de norma reguladora nesse sentido tal qual, no Brasil (ALMEIDA, 2019. p. 85).
Noutro lado, é cediço que a Internet possui algumas regulamentações. Intangíveis a este tema, mas possui. Afinal, é nela que residem diversas dependências cotidianas, tanto no que se refere à parte laboral, quanto no que toca ao entretenimento. Tudo se move e se dá por essa tecnologia e, deixá-la sem uma norma, seria como ignorar um fato social e criar uma “terra sem lei”.
Nesse sentido, advieram a Lei Geral de Proteção de Dados (2020) e o Marco Civil da Internet (2014), visando regulamentar os direitos, garantias e deveres no uso da internet, além de proteger a privacidade e os dados pessoais dos usuários.
Larissa Prado Santana (2022, p. 7) situa que a privacidade está prevista no art. 5º da Constituição Federal, no art. 21 do Código Civil e nos arts. 7º, inciso I, 21 e 23 da- Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), e que é um instituto considerado inviolável no ordenamento jurídico brasileiro, devendo-se observância obrigatória por parte dos fornecedores de internet, a ensejar, caso o contrário ocorra, a responsabilização civil por conteúdo que viole direito de terceiro.
Em que pese a imprescindibilidade da lei aludida e todo o brilhantismo com que foi tecida, houve uma despreocupação com as diligências a ser tomadas acerca da privacidade no post mortem, o que dá abertura a diversas burocracias que futuramente – e que já é uma realidade- serão levadas a juízo.
Em proposta legislativa estreada pelo Deputado Alfredo Nascimento, com o propósito de incluir o art. 10-A, alterando o Marco Civil da internet, previa que os provedores de internet deveriam excluir a conta dos usuários após o óbito devidamente comprovado.
Vê-se aí um cuidado com o direito à privacidade, mas que não foram observadas algumas das hipóteses abordadas neste artigo, tais como a opção disponibilizada pelas plataformas digitais acerca do mero direito de acesso, da transformação do perfil do falecido em um mural. Cabendo ressaltar, contudo, que apesar disso, existe a possibilidade de exclusão do perfil do de cujus, bastando que seja solicitado ao site.
Mas seria inegociável essa intransponibilidade de dados pessoais? a saber, como se resolveria se por algum acaso o perfil da pessoa falecida contivesse informações úteis para o andamento de, por exemplo, alguma investigação ou até mesmo para a solução de uma questão eminentemente importante?
A Constituição Federal já prevê que há proibição de um terceiro de ter acesso às comunicações telefônicas sem autorização judicial em seu art. 5º, inciso XII e considerando que na atualidade as ligações em sua maioria foram substituídas por mensagens de texto ou áudio deve ser repensado se esta autorização judicial estaria estendida hoje para acessar aplicativos de mensagens (SANTANA, 2022, p.7)
Em recente julgado, o Tribunal de Justiça de Minas ressaltou que a autorização judicial para o acesso aos dados privados do de cujus não pode se dar a qualquer caso, devendo ser quebrado o sigilo somente nas ocasiões em que for relevante o acesso de dados. O caso decidido teve a seguinte ementa:
“EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. HERANÇA DIGITAL. DESBLOQUEIO DE APARELHO PERTENCENTE AO DE CUJUS. ACESSO ÀS INFORMAÇÕES PESSOAIS. DIREITO DA PERSONALIDADE.
A herança defere-se como um todo unitário, o que inclui não só o patrimônio material do falecido, como também o imaterial, em que estão inseridos os bens digitais de vultosa valoração econômica, denominada de herança digital.
A autorização judicial para o acesso às informações privadas do usuário falecido deve ser concedida apenas nas hipóteses que houver relevância para o acesso de dados mantidos como sigilosos.
Os direitos da personalidade são inerentes à pessoa humana, necessitando de proteção legal, porquanto intransmissíveis.
A Constituição Federal consagrou, em seu artigo 5º, a proteção constitucional ao direito à intimidade.
(TJ-MG- AI 11906755001 MG, Relator: Albergaria Costa, Data de Julgamento: 27/01/2022, Câmaras Cíveis/ 3º Câmara cível. Data de Publicação: 28/01/2022)
Diante da ausência legislativa, portanto, as decisões judiciais não têm seguido um caminho uníssono. Exatamente aí é que começa a submissão dos casos ao Poder Judiciário, porque não há nada definido.
As decisões, todavia, não podem se encontrar ad eternum alicerçadas sob o aspecto da subjetividade, devendo cada caso ser amparado por uma norma jurídica capaz de abraçar toda a especificidade que a transmissão de um acervo digital exige, a encerrar a lide com mais segurança jurídica.
A outro passo, tem-se a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n 13.709/2018), que, embora não regularmente expressamente acerca das procedências virtuais no pós-morte, aproxima-se dos direitos da personalidade, sendo um divisor de águas na esfera das experiências cibernéticas.
Logo em seu artigo piloto há a consagração da finalidade da LGPD, defendidos os direitos fundamentais da liberdade, da privacidade e do desenvolvimento da pessoa natural. Esse desenvolvimento seria justamente a relevância das expressões da personalidade nos símbolos, signos insertos no ambiente digital, configurados, a todo, como dados pessoais, que advém da experiência personalíssima daquele usuário.
A respeito do tema, Konder e Teixeira dispõem o seguinte:
Os dados pessoais trazem consigo informações relacionadas à pessoa (art. 5º, I, da Lei Geral de Proteção de Dados), o que justifica sua ligação direta com a identidade do indivíduo. Por isso, um dado que, em si, não aparenta possuir nenhuma importância, pode adquirir um novo valor; portanto, nas atuais condições do processamento automático de dados, não existe mais um dado sem importância pois podem estar ligados diretamente a algum aspecto da personalidade (2021, p. 74).
Repisando os projetos de lei, pode-se citar o PL 4.847/2012, do Deputado Federal Marçal Filho, que tinha como propósito a inclusão do art. 1.797-B no Código Civil, para dispor que no caso em que o indivíduo tenha capacidade para testar, e assim não fazendo, a herança seria transmitida imediatamente aos herdeiros legítimos.
Mais uma vez se vê a omissão quanto aos direitos da personalidade, pois não se vê a especificidade da comunicação desses bens, nem se pode presumir até onde se daria acesso, nem mesmo a vontade do morto e de um possível terceiro, em se tratando de alguém que teve uma conversa online com o de cujus ou participou de qualquer forma de um arquivo digital deixado.
Em propostas mais recentes, se nota uma minuciosidade mais nítida em se tratando da inviabilidade de transmissão de aspectos concernentes à personalidade do falecido. É o que tentou alavancar o Projeto de Lei n. 3.050/2020, que restringiu a abrangência da herança digital somente ao que diz respeito aos bens de qualidade patrimonial.
Mas como já compreendido, a sucessão ordinária, positivada pelo Código Civil, relativa aos bens que já estamos acostumados, é bem abrangente e não prevê qualquer situação específica recorrente nos acervos digitais. Não há definição de quais as naturezas e do que é um bem digital patrimonial por exemplo, nem há a consideração de que existem bens que têm características tanto patrimoniais, quanto existenciais, no tocante à personalidade da pessoa Heloisa Helena Barboza e Vitor Almeida (2021, p. 36) escreveram o seguinte:
“Não há tratamento unitário idôneo a tutelar situações tão díspares no que tange ao seu conteúdo e função. A reunião desse heterogêneo conjunto de bens e situações sob a categoria da chamada “herança digital” revela a insuficiência dos instrumentos jurídicos disponíveis no direito brasileiro, mormente na seara da transmissão de bens post mortem, bem como reforçam a feição patrimonial da morte para fins sucessórios”
Em tais aspectos, é uma situação a ser delicadamente pensada e, consequentemente, adequada às normas do direito brasileiro, a se pensar em possíveis soluções, ou melhor, em vértices aos quais devem ser elevados à observância do legislador de forma mais detida.
A pensar nisso, Flávio Tartuce (2018), em redação feita à coluna migalhas, discorreu acerca dos projetos de lei concorrentes no Brasil. Posteriormente, fez algumas considerações, às quais deve ser dada a devida observância. Assim:
“Os projetos de lei pretendem transmudar o regime de direito de propriedade do Direito das Coisas para os direitos da personalidade, uma vez que o direito de personalidade do falecido transforma-se em bem patrimonial, pois a intimidade e a imagem da pessoa morta servem como fonte de riqueza econômica”
A primeira diligência a ser observada é de que os familiares e os terceiros só poderão ter o direito de gerência do acervo digital se o de cujus assim houver declarado em testamento, por instrumento público ou particular.
Segundo que, no caso da ausência dessa declaração ou de comportamento condizente, ou se houverem atingidos por problemas relativos à validade ou eficácia, o arcabouço digital que estiver relacionado de alguma forma com a personalidade do morto não será passível de visualização, alteração ou de compartilhamento.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O escopo deste artigo se cinge no aspecto da relevância dos direitos inerentes à pessoa humana, em evidência as prerrogativas relativas à personalidade, destacando-se o estado da transmissibilidade dos ativos digitais diante da ausência de legislação específica a um instituto que carece e necessita da observância acurada do legislador.
A consideração de um bem digital como algo passível de sucessão é uma ideia atualíssima, e que muitos, até mesmo a plataforma digital, por carecerem de um norte jurídico para que as regras sejam estabelecidas, se olvidam de muitos direitos do de cujus e dos herdeiros.
Sobressaltou-se nesta pesquisa que, embora as plataformas digitais já tenham adequado seus sítios, em muito ainda se esquece da viabilidade da conta do usuário falecido para depois da morte. Assim, deve ser repensado o direito de acesso, sem alterabilidade do acervo deixado, porquanto existem alguns direitos que são personalíssimos, perenes e, portanto, intransmissíveis.
Ainda mais, quanto às fotos armazenadas na nuvem, deixadas em redes sociais, vídeos feitos em vida pelo falecido, deve-se dar atenção não somente aos direitos inerentes à personalidade do falecido, mas também àqueles que tiveram contato com ele.
Todo esse grosso pressupõe a inviolabilidade da intimidade, direito de se ter sua persona salvaguardada, que decorre do direito à personalidade humana, que acompanha a todos os usuários e, adaptando-se à realidade virtual: consumidores de conteúdos digitais.
O que ficou bem evidente neste artigo é que a melhor forma para que ocorra essa transmissão, em se tratando do acervo digital- com muitas ressalvas, é claro- é mediante disposição de última vontade, porque não se pode presumir até onde vai a vontade do de cujus.
Efetivamente, a morte de uma pessoa de há muito deixou de ser o seu fim: seja através de seus bens, de seus sucessores ou de sua memória, sempre houve uma situação de permanência da “pessoa”, que não o é mais, ao longo do tempo. Constata-se, contudo, especialmente no campo sucessório, talvez um dos mais conservadores do Direito Civil, que há novas situações de permanência que desafiam o direito legislado, especialmente no campo sucessório. Sem dúvida a tecnologia, no sentido aqui adotado, se inscreve com suas múltiplas faces na lista dos desafios (BARBOSA; ALMEIDA, 2021, p. 39)
Dessa forma, o imediatismo construído para uma sociedade que não tem tempo, forçou as profissões, os bancos, a nova geração e até mesmo os antiquados a se adaptarem à facilidade dos aplicativos de celular. Toda essa progressão de realidades pede a urgência de legislações atentas e que não sejam restritas ao viés do direito das coisas, mas da indisponibilidade que resguarda todo o procedimento da sucessão.
REFERÊNCIAS
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[1] William Gibson traduz esse conceito em sua obra distópica “Neuromancer”, na qual o ciberespaço consiste num espaço não-físico, nem territorial, formado por redes de computadores, através das quais todas as informações circulam.
[2] JUSBRASIL, 2015. Disponível em: <https://nayaraperea.jusbrasil.com.br/artigos/258660996/afuncao–social–da–heranca>. Acesso em: 15 de novembro de 2022. Nayara Moreno Perea: A função social da herança.
[3] Âmbito Jurídico, 2008. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitocivil/definicoes–e–disposicoes–gerais–de–bens–juridicos/>. Acesso em: 15 de novembro de 2022.
[4] O droit de saisine é uma ficção jurídica que determina a passagem do patrimônio sucessível do falecido para seus herdeiros legítimos e testamentários, automaticamente, sem a exigência de qualquer ato por parte desses e até se os mesmos desconhecerem o evento morte ocorrido com o transmissor. Disponível em:<https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/467/edicao-1/principio-droit-de-la-saisine Acesso em 28 de novembro de 2022.
[5] Conselho Nacional de Justiça, 2022. Justiça Federal da Paraíba realiza primeira audiência no metaverso. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/justica–federal–na–paraiba–realiza–primeiraaudiencia–real–do–brasil–no–metaverso/> Acesso em: 24 de outubro de 2022.
[6] Passageiro de Primeira, 2022. STJ decide que milhas não podem ser herdadas. Disponível em: < https://passageirodeprimeira.com/stj–decide–que–milhas–nao–podem–serherdadas/#:~:text=O%20Superior%20Tribunal%20de%20Justi%C3%A7a,cl%C3%A1usula%20c ontratual%20vedando%20essa%20opera%C3%A7%C3%A3o.> Acesso em 31 de outubro de
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