HEMÓLISE NA CIRURGIA CARDÍACA COM USO DE CIRCULAÇÃO EXTRACORPÓREA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202501161934


Neci Barrozo de Oliveira
Coautoras:
Vera Lúcia Lino Martin
Rafaela Mourão Redon


Resumo:

A hemólise na circulação extracorpórea (CEC) é um fenômeno importante e relevante no contexto de procedimentos cirúrgicos, especialmente durante a realização de cirurgias cardíacas e transplantes, que envolvem o uso de máquinas de circulação extracorpórea. A circulação extracorpórea é uma técnica que permite que o sangue do paciente seja desviado de seu corpo, passando por uma máquina que drena, filtra e oxigena o sangue, após retornar ao sistema circulatório. Durante esse processo, a integridade das células sanguíneas, em particular dos eritrócitos (hemácias), pode ser comprometida, levando à hemólise. Este artigo discute as causas, mecanismos, consequências e estratégias de manejo da hemólise associada à CEC.

PALAVRAS-CHAVE: Hemólise; Cirurgia cardíaca; Circulação extracorpórea

1.   Definição e Mecanismos de Hemólise

A hemólise é a destruição das hemácias, o que resulta na liberação de hemoglobina no plasma. Na CEC, a hemólise pode ocorrer devido a uma série de fatores mecânicos e hemodinâmicos. A exposição das hemácias a forças físicas intensas, como turbulência, cisalhamento e variações de pressão, pode danificar as membranas celulares, promovendo a ruptura das hemácias.

1.1.  Fatores Mecânicos

Durante a passagem do sangue através da bomba de circulação extracorpórea, as hemácias estão sujeitas a forças de cisalhamento geradas pela aceleração do sangue em altas velocidades e pela alteração da sua viscosidade. Esses fatores podem levar ao dano mecânico das células sanguíneas. Além disso, os dispositivos de CEC, como os oxigenadores e tubos de perfusão, podem causar a agregação de plaquetas e a destruição das hemácias, especialmente em condições de fluxo turbulento.

1.2.  Fatores Fisiológicos

A alteração no pH e na temperatura do sangue durante a CEC também pode contribuir para a hemólise. Por exemplo, a acidose ou a alcalose do sangue pode afetar a estabilidade das membranas das hemácias, tornando-as mais suscetíveis a rupturas. A temperatura mais baixa durante a CEC (hipotermia) pode aumentar a rigidez das hemácias, facilitando sua destruição.

1.3.  Fatores Químicos

O uso de anticoagulantes, como a heparina, é essencial durante os procedimentos de CEC para prevenir a formação de trombos. No entanto, a interação entre os anticoagulantes e as hemácias pode resultar em alterações na integridade das células vermelhas do sangue, contribuindo para a hemólise. Além disso, a presença de produtos de degradação das células, como as substâncias liberadas durante a hemólise, pode exacerbar o processo de lesão celular.

2.   Consequências da Hemólise na Circulação Extracorpórea

A hemólise na CEC pode ter várias consequências clínicas e laboratoriais. O impacto da hemólise depende da gravidade do fenômeno e do volume de hemácias destruídas.

2.1.  Liberação de Hemoglobina

Quando as hemácias se rompem, a hemoglobina é liberada para a corrente sanguínea, podendo resultar em níveis elevados de hemoglobina livre no plasma. A hemoglobina livre pode ser tóxica para os rins, causando lesão renal aguda devido à sua capacidade de induzir a vasoconstrição renal e a deposição de metemoglobina nos túbulos renais. Isso pode levar a complicações como a insuficiência renal pós-operatória.

2.2.  Resposta Inflamatória

A hemólise, especialmente quando ocorre em grande escala, pode ativar vias inflamatórias no organismo, o que pode contribuir para o desenvolvimento de complicações pós-operatórias, como a síndrome de resposta inflamatória sistêmica (SRIS) e a disfunção de múltiplos órgãos. O sistema imunológico pode ser ativado pela liberação de substâncias inflamatórias, como citocinas e produtos de degradação das hemácias.

2.3.  Alterações no Estado Hidroeletrolíticos e Eletrólitos

A destruição das hemácias também pode alterar o equilíbrio dos eletrólitos, como o aumento dos níveis de potássio no sangue (hipercalemia), o que pode afetar o ritmo cardíaco, levando a arritmias graves. O excesso de potássio liberado das células rompidas pode ser particularmente preocupante em pacientes com disfunção renal ou em situações de reperfusão.

3.   Prevenção e Manejo da Hemólise na CEC

A prevenção da hemólise na CEC envolve uma série de estratégias que visam minimizar a exposição das hemácias a condições danosas. A escolha de dispositivos adequados, a manutenção do fluxo sanguíneo adequado e a monitorização constante das condições fisiológicas do paciente são essenciais para reduzir o risco de hemólise.

3.1.  Atenção ao Fluxo Sanguíneo e Parâmetros da CEC

A otimização do fluxo sanguíneo na CEC é fundamental. O uso de bombas de perfusão com fluxo pulsátil ou controlado pode reduzir o cisalhamento e a turbulência, minimizando a hemólise. Além disso, a monitorização constante da pressão e da temperatura durante o procedimento pode ajudar a evitar condições que favoreçam a hemólise.

3.2.  Uso Adequado de Anticoagulantes

Embora a heparina seja frequentemente utilizada para evitar a coagulação durante a CEC, seu uso excessivo ou inadequado pode aumentar o risco de hemólise. O controle rigoroso dos níveis de anticoagulação e a administração de antagonistas apropriados após o procedimento podem reduzir os riscos associados à hemólise.

3.3.  Uso de Oxigenadores e Dispositivos Menos Traumáticos

A escolha de dispositivos de CEC com menores características traumáticas, como oxigenadores com menor área de superfície de contato e menos turbulência, pode reduzir a chance de hemólise. Dispositivos com revestimentos de baixo atrito e superfícies biocompatíveis também são vantajosos.

3.4.  Monitoramento Laboratorial

O monitoramento laboratorial é essencial para detectar precocemente os sinais de hemólise. A dosagem de hemoglobina livre no plasma, a contagem de hemácias e o teste de haptoglobina (é um marcador bastante sensível e específico para presença de hemólise). Além disso, a avaliação dos níveis de bilirrubina, lactato desidrogenase (LDH) e outras enzimas hepáticas pode fornecer informações adicionais sobre a gravidade da lesão celular.

4.   Conclusão

A hemólise é uma complicação relativamente comum durante a cirurgia com circulação extracorpórea, sendo causada principalmente por fatores mecânicos e hemodinâmicos associados ao circuito de CEC. Embora a hemólise seja, em muitos casos, transitória, ela pode ter sérias consequências, incluindo lesão renal, anemia e resposta inflamatória sistêmica. Estratégias de manejo, como o controle rigoroso das condições do circuito, monitoramento laboratorial e cuidados pós-operatórios, são essenciais para minimizar os riscos e otimizar o resultado clínico dos pacientes submetidos a esse tipo de cirurgia. O avanço da tecnologia dos dispositivos de CEC e a melhoria das técnicas de monitoramento continuam sendo fundamentais para reduzir a incidência de hemólise e suas complicações associadas.

Referências

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3.   Hansen, M. A., & O’Neill, L. (2005). “Mechanisms of hemolysis during cardiopulmonary bypass: Pathophysiology and clinical implications.” Perfusion, 20(6), 363–370.

4.   Cohen, B. J., & Shepherd, A. I. (1992). “The role of hemolysis in cardiovascular surgery: A review.” Journal of Cardiothoracic and Vascular Anesthesia, 6(5), 507-513.